Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:53/20.5BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:05/20/2021
Relator:CATARINA VASCONCELOS
Descritores:JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO
Sumário:I - Caso pretenda impugnar a matéria de facto, em sede de recurso, recai sobre o recorrente o ónus de alegar o motivo pelo qual os meios probatórios que indica impõem decisão diversa e também por que motivo os meios probatórios tidos em conta pelo tribunal não permitem que se considere provado determinado facto.
II - A tarefa de reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso está limitada aos casos em que ocorre erro manifesto ou grosseiro ou em que os elementos documentais fornecem uma resposta inequívoca em sentido diferente daquele que foi considerado no tribunal a quo.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – Relatório:

A Federação Portuguesa de Futebol, nos termos dos art.ºs 8º, n.ºs 1, 2 e 5 da LTAD, interpôs o presente recurso do acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) de 27 de março de 2020 que anulou a decisão proferida pela Secção Profissional do seu Conselho de Disciplina, em 5 de novembro de 2019, no âmbito do processo disciplinar nº 23-1/20, nos termos do qual o ..... – Futebol, SAD havia sido condenado numa sanção de multa no valor de €40.800,00 pela prática de uma infração disciplinar p.p pelo artigo 112º, nºs 1, 3 e 4 do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RDLPFP).

A Recorrida contra-alegou e pediu a ampliação do objeto do recurso, nos termos previstos no art.º 636º do CPC.
No que à matéria de ampliação de recurso concerne, concluiu do seguinte modo:
(…)
11. Entendendo-se ser de assumir posição diversa quanto ao mérito do Recurso, importa, então, conhecer do pedido de ampliação do objecto do Recurso, nomeadamente quanto à factualidade cuja solução jurídica adoptada no caso concreto prejudicou a apreciação.
12. Conforme melhor se detalhou em sede de alegações, deverá considerar-se provado que:
a) “Desde a época 2016/2017 que a ..... -Futebol, SAD (.....SAD), utilizando seu Director de Comunicação, f....., e o “Porto Canal”, tem conduzido campanha difamatória e de intoxicação da opinião pública com suspeitas permanentes sobre a isenção dos árbitros e a actuação da ..... SAD, e de criação de um manto permanente de dúvida sobre a verdade desportiva e a credibilidade das competições. É conhecido, aliás, o “naming” depreciativo utilizado pela ..... SAD para alcunhar a Liga NOS 2016/2017, baptizada de “Liga Salazar”;
b) “Essa campanha difamatória contra a ..... SAD ganhou dimensão inaudita com a orquestração do “caso dos emails” através do qual, com recurso à prática de ilícitos disciplinares e criminais, a ..... SAD tem tentado implantar em parte dos adeptos a ideia de que a ..... SAD controla os árbitros e adultera a verdade desportiva, utilizando o Director de Comunicação da ..... SAD as expressões “polvo”, “corja”, “corrupção” e “cambalacho”, por exemplo, para se referir à ..... SAD, como se de instituição mafiosa se tratasse”;
c) “esta forma de actuação da ..... SAD tem permitido que a suspeição se perpetue no espaço público e na competição, e constitui, ao mesmo tempo, estratégia de condicionamento emocional do desempenho das equipas de arbitragem durante os jogos”;
d) “a ..... SAD tem procurado manter postura institucional e desportivamente discreta e adequada, alertando reiteradamente para o grave clima de condicionamento sobre os árbitros e para o facto dos erros de arbitragem - não intencionais, é certo - estarem a suceder-se com muito mais frequência do que o desejado, visto que o tipo de discurso reiterado de suspeição sobre o trabalho dos árbitros em nada contribui para que os árbitros possam exercer a sua actividade com a tranquilidade e estabilidade exigidas à difícil função de julgar e aplicar as leis do jogo";
e) “o clima vivenciado actualmente no futebol nacional motivou diversas tomadas de posições dos árbitros e da APAF, seja com o pré-anúncio de greves, seja em comunicados e intervenções públicas”;
f) “De entre os exemplos de ameaças aos árbitros temos a invasão por elementos ligados aos ....., afectos à .....- Futebol, SAD., do Centro de Treino dos Árbitros na Maia, onde ameaçaram e insultaram o árbitro A.....";
g) “Têm sido remetidas aos árbitros mensagens com o seguinte teor
- ”«- "meu —! Hoje vais arbitrar o teu —! Tem juízo, se não vais ter com o ....., fdp!"
-"vai te correr mal"
- "vais-te assustar o —. Eles vao te matar pah"
- "filho duma grande p—"
- "Vamos-te apanhar e vais ver o que te vai custar"
- "Se tiveres filhos cuidado seu mouro de m—"
- "o roubo de ontem vai te ficar caro seu filho duma grande p—“;
h) “O prédio em que reside o árbitro V..... foi vandalizado com os seguintes dizeres: "F....., tens razão, aqui mora um pulha pidesco, contudo, não desculpa a incompetência da SAD nos últimos quatro anos. Acorda .....! 30/11/86", numa alusão a F....., director de comunicação da ....., SAD”.
i) “O Grupo Organizado de Adeptos ..... fez deslocar um conjunto dos seus elementos, incluindo o seu líder, ao restaurante explorado pelo pai do árbitro J.....”;
j) uEm 16/04/2019-precisamente após jogo disputado entre a .....SAD eoCD ....., em ..... - o VAR do mencionado jogo, B....., foi também ele vítima de insultos e ameaças graves, alegadamente protagonizadas por adeptos do ....., que motivaram a apresentação por parte do árbitro de queixa-crime no DIAP”.
k) “Os factos supra descritos colocam em causa a estabilidade emocional e a própria integridade física dos árbitros e das suas famílias”;
l) “Continua a pairar sobre os árbitros clima de forte pressão que, inevitavelmente, é idóneo a condicionar e constranger os árbitros no exercício das suas funções, encontrando-se estes, por tal motivo, desprotegidos e mais expostos ao erro";
m) “a crítica desportiva considera ter existido, na época transacta, um benefício para a ....., SAD, decorrente de erros, ainda que não intencionais, de arbitragem, resultando na atribuição de mais 4 a 10 pontos do que aqueles que deveriam ter sido efectivamente atribuídos”;
n) “Perante um conjunto de acontecimentos que provocaram indignação e revolta por parte dos sócios e adeptos do ....., esta limitou-se a:
i. dar conhecimento de determinados factos - nomeadamente, erros incompreensíveis (por evitáveis à luz dos meios tecnológicos ao dispor) da equipa de arbitragem, e;
ii. manifestar incompreensão sobre tais erros - designadamente, reitere-se, tendo em conta os meios tecnológicos ao dispor da arbitragem proporcionados pelo sistema do vídeo-árbitro.
o) "As publicações referidas em 1° e 2° visaram expressar opinião crítica e legítima do ..... sobre tais decisões de arbitragem”;
p) "Pretenderam as mesmas dar voz à indignação do .....; indignação essa com substrato real e que teve por base factos que prejudicaram a equipa da ..... SAD.";
q) Trata-se de opinião suportada por factos concretos que motivaram a insatisfação da ......”;
r) "A Demandante exerceu assim o seu direito a relatar factos e a exprimir opinião crítica - contundente, é certo - sobre determinados temas que estavam na ordem do dia e que eram objecto de discussão pública e de notícia por parte da generalidade da comunicação social”;
s) "a Demandante não proferiu quaisquer declarações gratuitas susceptíveis de colocar em causa o bom nome e reputação de qualquer agente desportivo e ou de qualquer órgão da estrutura desportiva, imputando quaisquer factos ou formulando quaisquer juízos ofensivos da honorabilidade de qualquer órgão ou agente".;
13. Impõe-se, ainda, nos termos melhor descritos em sede de Alegações, alterar a redacção do ponto 3.° da matéria de facto provada.
14. Conforme resulta do exposto em sede de Alegações, o escopo das declarações proferidas são decisões concretas, públicas e notórias, e não os árbitros que as proferiram.
15. Pelo que, apenas se poderá considerar provado que “nas declarações vindas de transcrever a Arguida fez referência a decisões de arbitragem que considerou como erradas e com reflexos no resultado final do desafio em que se verificaram".
16. Devendo os pontos 4 a 7.° da matéria de facto provada ser considerados como não provados.

O Recorrente não apresentou resposta à matéria da ampliação.

Por acórdão deste Tribunal de 15 de outubro de 2020 (que a ora juíza relatora relatou, por vencimento) foi negado provimento ao recurso.
Foi admitido o recurso de revista para o Supremo Tribunal Administrativo que, por acórdão de 11 de março de 2021 revogou o acórdão proferido por este Tribunal em 15 de outubro de 2020 e determinou a baixa dos autos para que seja conhecida a ampliação do objeto de recurso requerida em sede de contra alegações pela recorrida.

II – Objeto do recurso:
O objeto do recurso respeita a erro de julgamento quanto a matéria de facto, designadamente: a omissão de factualidade relevante (a identificada na 12.ª conclusão das contra-alegações); o errado julgamento da factualidade vertida no ponto 3. (nos termos definidos na 15.ª conclusão das contra-alegações); o errado julgamento da factualidade vertida nos pontos 4. a 7. como provada.


III - Fundamentação De Facto:

No acórdão recorrido foi julgada provada a seguinte factualidade:

1. No dia 23.09.2019, a arguida produziu e publicou, no sítio da internet com o endereço www. ......pt, concretamente na Edição n.° 171 da “.....”, acessíveis através do separador “Agora”, daquele sítio, e disponíveis no link https:// ....., nomeadamente, as seguintes declarações:
“P.S.: Pela terceira jornada consecutiva, terceiro erro de árbitros e VAR incompreensíveis em benefício do ...... Depois da expulsão do jogador do ....., do penálti fantasma marcado contra o ....., ontem um penálti indiscutível com respetiva expulsão de um jogador do ..... ficou por marcar, prejudicando claramente o ...... O ano passado foram 10 pontos a mais, este ano, sucedem-se os erros, sempre em benefício da mesma equipa e por equipas de arbitragem que já estiveram ligadas na época anterior a muitos desses erros que deram pontos.
Ontem, a imagem do jogador do ..... a sangrar e o árbitro a dar indicação para o jogo continuar, como se nada se tivesse passado, diz tudo e faz pensar e questionar— não acham que já é de mais?"

2. No dia 30.09.2019, a arguida produziu e publicou, no sítio da internet com endereço www. ......pt, concretamente na Edição n.° 176 da ".....", acessíveis através do separador "Agora", daquele sítio, e disponíveis no link https://www......, nomeadamente, as seguintes declarações:
"SINAIS PREOCUPANTES
No momento em que se pode fazer o balanço das sete primeiras jornadas do campeonato da Primeira Liga, para além da melhoria da qualidade e competitividade da maioria das equipas, um outro dado voltou infelizmente a estar em destaque: a existência de diversos erros incompreensíveis, sempre a favorecer a mesma equipa. Decisões, nos jogos com ....., .....e ....., tão evidentes e tão claras, que mais escandalosas se tornam quando se verifica que o próprio VAR conseguiu não ver o que toda a gente viu. Erros que valem pontos e erros que, a exemplo do ano passado, vêm das mesmas equipas de arbitragem que permitiram que o ..... fosse beneficiado em pelo menos dez pontos.
Mas os sinais preocupantes aumentaram muito este fim de semana com aquilo a que se assistiu na Luz: uma dualidade de critérios chocante com factos que importa questionar.
Qual o motivo por que O..... foi admoestado com um cartão amarelo num primeiro lance de suposta demora na reposição da bola em jogo e o guarda-redes do ....., em pelo menos seis reposições demoradas, não o foi?
Qual o motivo para a expulsão de T..... e o mesmo não ter acontecido num lance muito mais indiscutível como foi o da entrada faltosa sobre R.....?
Qual o motivo para o prolongamento do tempo adicional?
E qual a justificação para a grande penalidade sobre R..... não ser assinalada, bastando ver o que se passou no .........., onde o juízo ao lance que dá a marcação da grande penalidade foi corretamente outro?
Mas o pior ainda estava por vir...
Fomos ontem confrontados com a informação de que o árbitro do encontro terá escrito no seu relatório ter sido atingido por uma moeda que lhe terá provocado um hematoma.
Ora esse facto é de enorme gravidade. Porque, tal como as imagens podem comprovar, essa informação é falsa, até porque, pelo que se vê, nem sequer o árbitro foi atingido, nem em momento algum houve qualquer tipo de reação compatível com essa denúncia existente no relatório.
Inventar supostas agressões com uma moeda de cinco cêntimos, causadoras de hematomas, envergonha uma classe em que existem excelentes profissionais que todos os fins de semana, em vários campos do País, têm de enfrentar, aí sim, por vezes momentos de enorme tensão.
Importa que, de uma vez por todas, o Conselho de Arbitragem assuma as suas responsabilidades. A invasão do centro de treinos da Maia e as constantes ameaças e coação sobre árbitros e seus familiares levaram a que, no deve e haver, no final da época e em tempos de balanço, uma equipa seja sempre a beneficiada.
Esta época, pensem bem, com quem aconteceram erros que, por unanimidade, se reconheceu serem difíceis de entender? E quem foi sempre beneficiado nessas situações?
A paragem do Campeonato que seja aproveitada para uma profunda análise e reflexão. O pior que poderia acontecer seria, para além de uma equipa ser beneficiada, agora, no nosso caso, termos arbitragens que qualquer observador independente reconhece ter critérios difíceis de entender. E — só faltava — com relatórios com informação ficcionada e a existência de segundas moedas inventadas.

3. Nas declarações transcritas a arguida fez referência a jogos concretos, disputados na Liga NOS na época desportiva em curso (2019/2020), o que permitiu identificar os elementos das equipas de arbitragem elencados nos pontos seguintes:

4. C..... (árbitro), J..... (assistente 1), M..... (assistente 2), D..... (4.° árbitro), A..... (VAR), B..... (AVAR) e R..... (observador), que arbitraram o jogo entre a ....., Futebol, SAD, e a .....- Futebol, SAD, disputado no dia ....., a contar para a 4.a jornada da Liga NOS.

5. R..... (árbitro), T..... (assistente 1), J..... (assistente 2), G..... (4.° árbitro), V..... (VAR), B..... (AVAR) e C..... (observador), que arbitraram o jogo entre a ....., SAD, e a ....., Futebol, SAD, disputado no dia ....., a contar para a 5°jornada da Liga NOS.

6. L..... (árbitro), R..... (assistente 1), V..... (assistente 2 H..... (4° árbitro), R..... (VAR), N..... (AVAR) e A..... (observador),que arbitraram o jogo entre a ....., Futebol, SAD, e a ..... - Futebol, SAD, disputado no dia ....., a contar para a ó.a jornada da Liga NOS.

7. T..... (árbitro), P..... (assistente 1), R..... (assistente 2), M..... (4.° árbitro), B..... (VAR), A..... (AVAR) e A..... (observador), que arbitraram o jogo disputado entre a ..... —Futebol S.A.D. e a ....., S.A.D., realizado no dia ....., a contar para a 7.° jornada da Liga NOS.

8. A Arguida, sabendo-se responsável pela publicação na imprensa privada ou sítios na internet por si explorados, não só não impediu a sobredita publicação, como não manifestou, em momento posterior, qualquer repúdio ou discordância com o seu conteúdo.

9. A Arguida .....— Futebol, SAD, à data dos factos, tinha antecedentes disciplinares, tendo sido sancionada, mediante decisões disciplinares já definitivas na ordem jurídica desportiva, pelo ilícito disciplinar p. e p. no artigo 112.° do RDLPFP, em épocas anteriores, sendo por isso, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54.° n.° 1, e 112.°, n.° 3, ambos do RDLPFP, reincidente”.

Não foram provados quaisquer outros factos com relevância para a decisão do litígio, tendo a restante matéria alegada e não constante do enunciado supra sido desconsiderada pelo Tribunal nesta parte, por consubstanciar matéria de direito, conclusiva ou irrelevante para a decisão da causa, pelo que assim se decide a segunda questão supra referenciada.”

IV – Fundamentação De Direito:

Sobre o julgamento da matéria que constitui o objeto da ampliação do recurso, não houve qualquer dissídio entre as juízas que compõem este Tribunal coletivo. A sua apreciação foi julgada, no entanto, prejudicada por ter sido requerida a titulo subsidiário e atenta a recusa de provimento do recurso.

Assim sendo, por razões de eficiência processual, seguir-se-á de muito perto, o que inicialmente foi projetado pela juíza titular do processo.

O artigo 640.º do CPC, sob a epígrafe “ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”’, prevê o seguinte:

1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”

Em lugar paralelo, o artigo 412.º, n.os 3 e 4, do Código de Processo Penal (CPP), impõe ao recorrente que especifique os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação.

Temos então que, caso pretenda impugnar a matéria de facto, em sede de recurso, recai sobre o recorrente o ónus de alegar o motivo pelo qual os meios probatórios que indica impõem decisão diversa e também por que motivo os meios probatórios tidos em conta pelo tribunal não permitem que se considere provado determinado facto.

Não se pode limitar a questionar a fundamentação da decisão de facto apresentada pelo julgador, mas sim a decisão sobre determinado facto.

Por outro lado, haverá que ter presente que, de acordo com o artigo 607.º, n.º 5, do CPC, o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; e esta livre apreciação apenas não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.

Apreciando;

Entende a Recorrida que se deve considerar provada a seguinte factualidade:

a) Desde a época 2016/2017 que a .....-Futebol, SAD (..... SAD), utilizando seu Director de Comunicação, F....., e o “Porto Canal”, tem conduzido campanha difamatória e de intoxicação da opinião pública com suspeitas permanentes sobre a isenção dos árbitros e a actuação da ..... SAD, e de criação de um manto permanente de dúvida sobre a verdade desportiva e a credibilidade das competições. É conhecido, aliás, o “naming” depreciativo utilizado pela ..... SAD para alcunhar a Liga NOS 2016/2017, baptizada de “Liga Salazar”;
b) Essa campanha difamatória contra a ..... SAD ganhou dimensão inaudita com a orquestração do “caso dos emails” através do qual, com recurso à prática de ilícitos disciplinares e criminais, a ..... SAD tem tentado implantar em parte dos adeptos a ideia de que a ..... SAD controla os árbitros e adultera a verdade desportiva, utilizando o Director de Comunicação da ..... SAD as expressões “polvo”, “corja”, “corrupção” e “cambalacho”, por exemplo, para se referir à ..... SAD, como se de instituição mafiosa se tratasse”:
c) esta forma de actuação da ..... SAD tem permitido que a suspeição se perpetue no espaço público e na competição, e constitui, ao mesmo tempo, estratégia de condicionamento emocional do desempenho das equipas de arbitragem durante os jogos”:
d) a ..... SAD tem procurado manter postura institucional e desportivamente discreta e adequada, alertando reiteradamente para o grave clima de condicionamento sobre os árbitros e para o facto dos erros de arbitragem - não intencionais, é certo - estarem a suceder-se com muito mais frequência do que o desejado, visto que o tipo de discurso reiterado de suspeição sobre o trabalho dos árbitros em nada contribui para que os árbitros possam exercer a sua actividade com a tranquilidade e estabilidade exigidas à difícil função de julgar e aplicar as leis do jogo":
e) o clima vivenciado actualmente no futebol nacional motivou diversas tomadas de posições dos árbitros e da APAF, seja com o pré-anúncio de greves, seja em comunicados e intervenções públicas
f) De entre os exemplos de ameaças aos árbitros temos a invasão por elementos ligados aos ....., afectos à .....- Futebol, SAD., do Centro de Treino dos Árbitros na Maia, onde ameaçaram e insultaram o árbitro A.....":
g) Têm sido remetidas aos árbitros mensagens com o seguinte teor:
«- "meu —! Hoje vais arbitrar o teu —! Tem juízo, se não vais ter com o P....., fdp!"

-"vai te correr mal"

- "vais-te assustar o —. Eles vao te matar pah"
- "filho duma grande p—"
- "Vamos-te apanhar e vais ver o que te vai custar"
- "Se tiveres filhos cuidado seu mouro de m—"
- "o roubo de ontem vai te ficar caro seu filho duma grande p—
h) O prédio em que reside o árbitro V..... foi vandalizado com os seguintes dizeres: "F....., tens razão, aqui mora um pulha pidesco, contudo, não desculpa a incompetência da SAD nos últimos quatro anos. Acorda .....! 30/11/86", numa alusão a F....., director de comunicação da ....., SAD.
i) O Grupo Organizado de Adeptos ..... fez deslocar um conjunto dos seus elementos, incluindo o seu líder, ao restaurante explorado pelo pai do árbitro J.....
j) Em 16/04/2019-precisamente após jogo disputado entre a ..... SAD eoCD ....., em ..... - o VAR do mencionado jogo, B....., foi também ele vítima de insultos e ameaças graves, alegadamente protagonizadas por adeptos do ....., que motivaram a apresentação por parte do árbitro de queixa-crime no DIAP
k) Os factos supra descritos colocam em causa a estabilidade emocional e a própria integridade física dos árbitros e das suas famílias
l) Continua a pairar sobre os árbitros clima de forte pressão que, inevitavelmente, é idóneo a condicionar e constranger os árbitros no exercício das suas funções, encontrando-se estes, por tal motivo, desprotegidos e mais expostos ao erro";
m) “a crítica desportiva considera ter existido, na época transacta, um benefício para a ....., SAD, decorrente de erros, ainda que não intencionais, de arbitragem, resultando na atribuição de mais 4 a 10 pontos do que aqueles que deveriam ter sido efectivamente atribuídos
n) “Perante um conjunto de acontecimentos que provocaram indignação e revolta por parte dos sócios e adeptos do ....., esta limitou-se a:
i. dar conhecimento de determinados factos - nomeadamente, erros incompreensíveis (por evitáveis à luz dos meios tecnológicos ao dispor) da equipa de arbitragem, e;
ii. manifestar incompreensão sobre tais erros - designadamente, reitere-se, tendo em conta os meios tecnológicos ao dispor da arbitragem proporcionados pelo sistema do vídeo-árbitro
o) As publicações referidas em 1° e 2° visaram expressar opinião crítica e legítima do ..... sobre tais decisões de arbitragem
p) Pretenderam as mesmas dar voz à indignação do .....; indignação essa com substrato real e que teve por base factos que prejudicaram a equipa da S..... SAD."]
q) Trata-se de opinião suportada por factos concretos que motivaram a insatisfação da ..... - sad:-,
r) A Demandante exerceu assim o seu direito a relatar factos e a exprimir opinião crítica - contundente, é certo - sobre determinados temas que estavam na ordem do dia e que eram objecto de discussão pública e de notícia por parte da generalidade da comunicação social
s) a Demandante não proferiu quaisquer declarações gratuitas susceptíveis de colocar em causa o bom nome e reputação de qualquer agente desportivo e ou de qualquer órgão da estrutura desportiva, imputando quaisquer factos ou formulando quaisquer juízos ofensivos da honorabilidade de qualquer órgão ou agente".
Acontece que nem toda a matéria de facto alegada é relevante para a decisão. Está em causa a aplicação de sansão disciplinar p.p. pelo artigo 112º, nºs 1,3 e 4 do RDLPFP, atento o teor das declarações produzidas e publicadas no sítio da internet da Recorrida, em Setembro de 2009, identificadas nos pontos 1º e 2º da matéria de facto relevante para o Acórdão recorrido.

Por outro lado, é insuficiente a mera discordância da factualidade tida em conta pelo Tribunal a quo, impondo-se a identificação dos meios de prova que conduziriam a um resultado diverso.

Neste sentido o acórdão do TCAN n.º 00306/5BEVIS proferido em 07/12/2016, que acolhemos e que parcialmente transcrevemos por nele nos revermos:“(…) Assim, para que o TCA possa proceder a alteração da matéria de facto, devem ser indicados os pontos de facto considerados incorretamente julgados, indicados os concretos meios de prova constantes do processo ou de gravação realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.

O tribunal superior fica legitimado se esses meios de prova conduzirem e impuserem uma decisão diversa da proferida podendo concluir-se ter incorrido, a 1ª instância, em erro de apreciação das provas.(…)

A alteração da matéria de facto pelo Tribunal ad quem tem lugar necessariamente nos casos de manifesta desconformidade entre as provas produzidas e a decisão proferida, traduzida num erro evidente na apreciação das provas, que implica uma decisão diversa.

A modificabilidade da matéria de facto pressupõe uma clara distinção entre erro na apreciação da matéria de facto e a discordância do sentido em que se formou a convicção do julgador.

A tarefa de reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso está limitada aos casos em que ocorre erro manifesto ou grosseiro ou em que os elementos documentais fornecem uma resposta inequívoca em sentido diferente daquele que foi considerado no tribunal a quo. (No mesmo sentido (leia-se texto) e da mesma relatora o Ac.00039/17.7BEVIS de 13/07/20179”

Posto isto;

Justifica a Recorrida/Demandante o aditamento da matéria de facto com base nos documentos juntos à impugnação da decisão punitiva junto do TAD, por entender que dos mesmos resulta a prova de tais factos.

Acontece que os aludidos documentos, notícias de jornal sem identificação de fonte ou seu autor, mais não são do que artigos de opinião, não são meios de prova nos termos e para os efeitos do artigo 362º do Código Civil. Designadamente, os documentos. nºs 11, 12, o documento 14, o comentador fala de jogo difícil, que o arbitro é um bom árbitro, mas não teve um jogo à altura da sua competência, e os doc. 17 e 18 são iguais. O documento 20, junto à petição inicial, é também um artigo de opinião, aliás neste o comentador, começa por referir que a vitória do ..... é inquestionável, quanto ao jogo ..... – ..... .

Também o documento nº 13 junto à petição impugnatória apresentada no TAD, é a cópia do recurso hierárquico apresentado pela Recorrida da multa então aplicada, e não tem qualquer respaldo na matéria de facto que a Recorrida pretende aditar.

Por outro lado, a eventual factualidade que pretenderia provar – de erros da arbitragem em favorecimento de uma equipa em concreto – é contraditória com a matéria que pretende aditar nas alíneas k), l), relativa a um clima de ameaça e de ódio sobre os árbitros, que devem ser protegidos.

Donde, a factualidade supra descrita que a Recorrida pretende aditar, designadamente nas alíneas k, m) a s) mais não são do que asserções e posições da recorrida e não qualquer factualidade, circunstância de vida. A matéria constante das alíneas o) a s) são considerações subjetivas sobre qual teria sido a intenção da Recorrida/Demandante na publicação das newsletters, compatíveis mais com a argumentação relativa ao aspeto jurídico da causa do que com factos passíveis de serem incluídos na matéria de facto. Pois não podemos olvidar que o que está em causa é exatamente determinar se os textos publicados são suscetíveis ou não de constituir infração disciplinar. Ou seja, o que o releva é a averiguação de factos que consubstanciem ou que excluam, a prática das infrações previstas nos artigos 112º, nº 1, 3 e 4 do RDLPFP, respetivamente, publicações na página eletrónica da Recorrida de textos de teor ofensivo da honra e do bom nome dos árbitros e do VAR.

Assim definido o objeto do processo, é igualmente notória a irrelevância de parte da matéria fáctica alegada pela Recorrida, em função das questões a resolver nos presentes autos, designadamente nas alíneas a) a i), pois respeita a contextos distintos e anteriores (época de 2016/2017), ao que está em causa nestes autos.

O certo é que dos factos 1º e 2º - não impugnados – não é feita qualquer alusão a esse clima hostil para com os árbitros e VAR durante aquelas épocas.

Pretende ainda a recorrente a alteração da matéria de facto constante do ponto 3º:

“Nas declarações transcritas a arguida fez referência a jogos concretos, disputados na Liga NOS na época desportiva em curso (2019/2020), o que permitiu identificar os elementos das equipas de arbitragem elencados nos pontos seguintes:

Para:

Nas declarações vindas de transcrever a Arguida fez referência a decisões de arbitragem que considerou como erradas e com reflexos no resultado final do desafio em que se verificaram.

O que constitui matéria conclusiva e não fáctica, pelo que não pode proceder.

Por último, quanto ao expurgo da factualidade dada como provada dos factos vertidos nos pontos 4 a 7 da matéria de facto provada, a Recorrida não apresentou prova da sua não ocorrência. Mas sobretudo, o que o daí se extrai é que era possível identificar em concreto as pessoas destinatárias daquelas publicações e não que a Demandante tenha aludido a nomes atento o teor das transcritas newsletters.

Pelo que improcedem todos os fundamentos da ampliação do recurso.

Negando-se provimento ao recurso (ampliado) impõe-se, dando cumprimento ao decidido pelo Supremo Tribunal Administrativo, revogar o acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto de 27 de março de 2020 que anulou a decisão proferida pela Secção Profissional do seu Conselho de Disciplina, em 5 de novembro de 2019, no âmbito do processo disciplinar nº 23-1/20.

As custas serão suportadas pela ..... – Futebol, SAD, nos termos dos art.ºs 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.




V – Decisão:

Nestes termos, acordam, em conferência, as juízas da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, em negar provimento ao recurso ampliado interposto pela ..... – Futebol, SAD e, consequentemente, em cumprimento do julgado pelo Supremo Tribunal Administrativo, revogar o acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto de 27 de março de 2020 que anulou a decisão proferida pela Secção Profissional do seu Conselho de Disciplina, em 5 de novembro de 2019, no âmbito do processo disciplinar nº 23-1/20.

Custas pela ..... – Futebol, SAD.

Lisboa, 20 de maio de 2021


Catarina Vasconcelos
Sofia David (em substituição da Juíza que substituiria o Juiz - 2.º Adjunto, que se encontra ausente ao serviço, por impedimento legal daquela)
Ana Cristina Lameira

Nos termos e para os efeitos do artigo 15º-A do DL nº10-A/2020, de 13.03, a Relatora atesta que as Sr.ªs Juízas Desembargadoras Adjuntas têm voto de conformidade.