Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:09279/12
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:10/04/2017
Relator:JOSÉ GOMES CORREIA
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
DIREITO COMUNITÁRIO
OMISSÃO
INCOMPETÊNCIA MATERIAL DOS TRIBUNAIS TRIBUTÁRIOS
Sumário:I – Os Estados-membros estão obrigados a reparar os prejuízos causados às partes pela violação do direito comunitário e essa violação pode resultar da não aplicação na ordem jurídica interna das normas e princípios comunitários – por omissão – ou quando desrespeite Acórdãos do TJCE.

II – A responsabilidade assacada ao Estado resulta de um comportamento omissivo violador do Tratado, omissão que é ético-juridicamente censurável, o que exprime culpa. Tratando-se de responsabilidade civil extracontratual aquela que o A. pretende actuar com a acção, alegou e provou factos integradores da causa de pedir, no caso: o facto ilícito, a culpa, o dano, e o nexo de causalidade entre o facto e o dano – art. 483º do Código Civil.

III- O presente litígio não é relativo a uma “questão fiscal”, na tese ampliativa defendida pela jurisprudência, segunda a qual questões fiscais são as que exigem a interpretação e aplicação de quaisquer normas de Direito Fiscal substantivo ou adjectivo para a resolução de questões sobre matérias respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública.

IV- Não envolvendo a presente acção directamente a interpretação e aplicação de disposições de direito fiscal, ou que se situem no campo da actividade tributária, a acção não tem por objecto um ato tributário ou o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria fiscal, mas a satisfação de um crédito emergente de um contrato administrativo.

V- Donde que não estamos perante uma decorrência de relação jurídica fiscal visto não estar em discussão a legalidade da interpretação e aplicação de disposições de direito fiscal, ou que se situa no campo da actividade tributária, impondo-se neste âmbito a revogação do julgado aqui sindicado que declarou serem competentes os tribunais tributários para conhecer dos prejuízos decorrentes do agravamento da tributação em consequência da conduta omissiva do legislador nacional.

VI- Sendo a competência material do tribunal administrativo e não sendo aplicável o disposto no art. 149.° do CPTA, porquanto, revogada a decisão de absolvição da instância, o conhecimento do pedido envolve, necessariamente, a elaboração de uma base instrutória, carecendo da necessária base de facto para poder definir o direito, não estando o TCA Sul habilitado a proferir qualquer decisão em substituição da decisão ora em recurso sob pena da postergação de um grau de jurisdição.

VII- É que não se trata de apenas de uma questão de direito, uma vez que foram impugnados os danos e respectivo montante na contestação do Réu/Recorrido Estado Português.

VIII- Inequivocamente, o uso deste poder processual, pelo TCA, previsto no n.° 2 do art. 149.°, n°2 do CPTA, pressupõe que o processo se encontre saneado e condensado e que se encontrem elaborada a base instrutória e admitidos os requerimentos de prova, ou que por uma lado que as partes tenham acordado em dispensar a produção de prova, o que não é manifestamente o caso.

IX- Pelo que, por via da procedência do recurso deverão os autos baixar à 1ª instância para o efeito de serem praticados os correspondentes actos processuais.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NA 1ª SECÇÃO DO 2º JUÍZO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL


I- RELATÓRIO


S…………….., SOCIEDADE …………., S.L., Autora melhor identificada na acção de responsabilidade civil extracontratual do Estado-legislador por violação do Direito da União Europeia supra identificada, tendo sido notificada da sentença proferida, que absolveu o Réu Estado Português da instância com fundamento em incompetência material do tribunal, vem da mesma interpor recurso apresentando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:

“A. A sentença recorrida errou ao considerar materialmente incompetentes os Tribunais Administrativos para o conhecimento da presente acção.
B. À luz do novo ETAF - artigos 4.º n.º 1 al. g), 44.º e 49.º - um tribunal administrativo é efectivamente chamado a conhecer, não apenas da presente acção, mas de qualquer outra acção cujo facto constitutivo do dever de indemnizar seja uma norma legislativa que viole o Direito da União Europeia.
C. Os Tribunais Administrativos são competentes para acções de responsabilidade civil do Estado-legislador, mesmo quando a norma em causa respeita a matéria fiscal, civil, penal, comercial, de família e menores, e de todas as demais matérias que beneficiam de Tribunais Especializados em função da matéria.
D. Mesmo que assim não fosse, a relação jurídica subjacente a estes autos não é materialmente uma relação jurídico-fiscal que, portanto, recaia por natureza sobre a jurisdição dos Tribunais Tributários.
E. De facto, esta acção respeita a um pedido de responsabilidade civil que se dirige contra o Estado-legislador, e não contra a Administração Fiscal, que tem na sua base um facto ilícito de natureza legislativa, e não um acto de natureza administrativa em matéria fiscal, e que implica aplicar normas relativas ao exercício da função legislativa (artigo 15.º da Lei da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado), e não apenas de normas relativas ao exercício da função administrativa fiscal (artigos 7.º a 11.º da mesma Lei).
F. Para além do mais, os Tribunais Tributários não estão melhor posicionados para conferir tutela jurisdicional efectiva no presente caso, como afirma a sentença recorrida.
G. Pelo contrário, os tribunais tributários são os que em concreto se afiguram pior posicionados para assegurar a tutela jurisdicional efectiva das partes in casu, porque não têm qualquer experiência nem sensibilidade para aplicar direito processual civil - o direito que se aplica a esta acção ex vi do art. 35.º CPTA.
H. Acresce que, com toda a probabilidade, caso a presente acção seja remetida para os Tribunais Tributários, esses tribunais se considerarão materialmente incompetentes, o que evidentemente penalizará a Autora com um calvário de recursos até a obter a tutela jurisdicional a que tem direito.
I. Consequentemente, o deferimento deste recurso é a via que melhor concorre para que se obtenha, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio que o princípio da tutela jurisdicional efectiva exige.
J. Acresce que a análise especializada da matéria fiscal não fica prejudicada pelo facto de a acção correr termos junto de um Tribunal Administrativo, pois a questão material controvertida foi já objecto de decisão, proferida pelo TJUE em sede de reenvio prejudicial.
K. Consequentemente, o Tribunal Administrativo que julgar esta acção tem apenas que aplicar in casu a decisão comunitária que foi proferida pela TJUE sobre a matéria fiscal no supra referido caso Secilpar.
L. Por fim, em nome do princípio da tutela jurisdicional efectiva e do princípio da promoção do acesso à Justiça, expressos respectivamente nos artigos 2.º e 7.º do CPTA, solicita-se ao Tribunal ad quem que, uma vez revogada a sentença proferida, decida do mérito da causa nos termos do disposto no artigo 149.º n.º 4 CPTA.
M. Caso o Tribunal ad quem considere que não estão inteiramente apreciadas pelo TJUE questões específicas sobre as quais tenha fundadas dúvidas, requer-se que suscite novo reenvio prejudicial para apreciação das mesmas, nos termos do supra transcrito artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
Nos termos supra expostos, e sempre com o douto suprimento de V. Exas., requer-se que seja revogada a sentença recorrida e reconhecida a competência material da jurisdição administrativa para o conhecimento da presente acção.
Consequentemente, a Recorrente REQUER que o Tribunal ad quem:
a)- Conheça do mérito da causa ex vi do disposto no artigo 149.º n.º 2 do CPTA, eventualmente por via da utilização do mecanismo do reenvio supra judicial nos termos supra sugeridos;
b)- Condene o Estado ao pagamento de indemnização civil extracontratual dos danos causados à A. por actos legislativos contrários ao direito comunitário, no montante de €1.233.377,88, acrescidos de juros à taxa legal vencidos, no montante de €478.212,71, e de juros vincendos;
c)-Subsidiariamente, em caso de não procedência do pedido supra, condene o Estado por Enriquecimento Sem Causa, à devolução dos montantes ilegalmente retidos na fonte à A. no montante de €1.233.377,88, acrescidos de juros à taxa legal vencidos, no montante de €478.212,71, e de juros vincendos.”

O Recorrido Estado Português representado pelo Ministério Público, contra-alegou pugnando, no essencial, pela improcedência do recurso para o que formulou as seguintes conclusões:

“1. Ao contrário do refere a recorrente o douto saneador - sentença não violou o disposto no nos termos dos artigos 101.°, 493.° n.° 2 e 494.° n.° 1, al. a), do C. P.C. e art. 4.°, n° 1, alínea g), e 49.° n.° 1, alínea c), do ETAF.
2. A Recorrente, pedia na presente acção, a condenação do Estado Português, no pagamento de indemnização decorrente de responsabilidade civil extracontratual por actos legislativos que considera contrários ao direito comunitário.
3. Como facto ilícito principal, gerador dessa responsabilidade civil, a Recorrente refere o regime de tributação dos lucros distribuídos por entidade residente em território português a entidade residente noutro Estado-Membro da União Europeia, tal como vigorou no texto do artigo 75,n.° 3, (actual 94.°, n.° 3, al. b)) quando conjugado com o regime estabelecido pelo artigo 45.° do CIRC ex vi art. 7.° do DL n.° 495/88, de 30 de Dezembro (actual art. 61.° do CIRC e 32.° do EBF respectivamente) e com o método para eliminar a dupla tributação estabelecido pelo artigo 23.° do ADT celebrado com Espanha, em 2001, consubstanciava uma tributação discriminatória de entidades residentes e não residentes, em violação dos princípios comunitários do livre estabelecimento (art.s 43.° a 48.° do TCE), na sua vertente de princípio de não discriminação entre residentes e não residentes (art. 12.° do TCE), e da livre circulação de capitais (art. 56º do TCE, actual art. 63° do TFUE) e dos princípios constitucionais da igualdade e da tributação das empresas pelo lucro real (art.s 12°, 13.° e 104.° da CRP).
4. Tal fundamento enquadra-se indiscutivelmente no âmbito de matéria fiscal, sendo que os alegados danos invocados pela Autora, ora recorrente, resultam de relações jurídico - fiscais, mais concretamente da aplicação do regime legal a nível da tributação de lucros distribuídos a accionistas residentes em território de outro Estado Membro da União Europeia, que na perspectiva da Recorrente alegadamente violam as normas e princípios de direito comunitário e de direito internacional, em matéria fiscal.
5. Nos termos do disposto no artigo 4.º, n.°1, alínea g) do ETAF, que compete à jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de acções de responsabilidade civil extracontratual resultante do exercício da função legislativa, conjugado com o disposto no art. 49.° n.º 1, alínea c), do mesmo diploma são os tribunais tributários os tribunais especificamente competentes para conhecer das acções em matéria fiscal e todas as que impliquem reconhecimento de direitos fiscais.
6. Pelo que, estamos no âmbito duma acção de responsabilidade civil em que estão em causa leis fiscais são tribunais tributários os competentes para o conhecimento de causas como a dos presentes autos, para a qual, os tribunais administrativos são incompetentes.
7. Assim sendo, a decisão recorrida ao considerar procedente a excepção de incompetência material deste tribunal administrativo e ao absolver o R. da instância nos termos dos art.s 101.°, 493.° n.° 2 e 494.° n.º 1, al. a), do C. P.C. e art. 4.°, nº 1, alínea g), e 49.° n.° 1, alínea c), do ETAF, ao contrário do pretendido pelo ora Recorrente, fez a correcta aplicação das disposições legais aplicáveis ao caso.
8. Não é aplicável o disposto no art. 149.° do CPTA, porquanto mesmo que seja revogada a decisão de absolvição da instância, o conhecimento do pedido envolve, necessariamente, a elaboração de uma base instrutória, ou seja por carecer da necessária base de facto para poder definir o direito, nunca estaria o TCA Sul habilitado a proferir qualquer decisão em substituição da decisão ora em recurso.
9. E isto, porque não se trata de apenas de uma questão de direito, uma vez que foram impugnados os danos e respectivo montante na contestação do Réu/Recorrido Estado Português, que aqui se dá por inteiramente por reproduzida, para além do mais nos seus art.s 119.° a 123.°, 129.° e 134.º a 157.º da referida peça processual.
10. O uso deste poder processual, pelo TC A previsto no n.° 2 do art. 149.°, n°2 do CPTA, pressupõe que o processo se encontre saneado e condensado e que se encontrem elaborada a base instrutória e admitidos os requerimentos de prova, ou que por uma lado que as partes tenham acordado em dispensar a produção de prova, o que não é manifestamente o caso.
11. Pelo que a entender-se procedente o fundamento do recurso, o que não se concede, deverá esse Tribunal mandar baixar o processo, para efeito de serem praticados os correspondentes actos processuais.
Pelo exposto, ao negarem provimento ao recurso e manterem a douta decisão sob recurso.
FARÃO VOSSAS EXCELÊNCIAS JUSTIÇA.”

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1. - Dos Factos:

A matéria de facto pertinente é a constante da decisão recorrida, ainda que não devidamente autonomizada, a qual se dá aqui por reproduzida, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 663º, nº 6, do Código de Processo Civil.
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2.2. Do Direito

Os recursos, que devem ser dirigidos contra a decisão do tribunal a quo e seus fundamentos, têm o seu âmbito objectivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso, alegação que apenas pode incidir sobre as questões que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido (ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas) - v.g. artigos 635º e 639 do NCPC, «ex vi» do artigo 1º do CPTA.
Atentas as conclusões de recurso, que delimitam o seu objecto, a questão decidenda consiste em saber se o Tribunal a quo errou ao considerar a Jurisdição Administrativa incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção.
Com efeito, na decisão recorrida foi julgada verificada a excepção da incompetência absoluta do tribunal pela seguinte ordem de razões de facto e de direito:
“ I. S..................., SOCIEDADE UNIPERSONAL, S.L., melhor identificada nos autos, veio intentar a presente acção administrativa, sob a forma ordinária, contra o ESTADO PORTUGUÊS, formulando os seguintes pedidos:
« (...)
i. Que o Estado seja condenado ao pagamento de indemnização civil extracontratual dos danos causados à A. por actos legislativos contrários ao direito comunitário, no montante de €1.233.377,88, acrescidos de juros à taxa legal vencidos, no montante de €478.212,71, e de juros vincendos;
ii. Subsidiariamente, que o Estado seja condenado, por Enriquecimento Sem Causa, à devolução dos montantes ilegalmente retidos na fonte à A., no montante de €1.233.377,88, acrescidos de juros à taxa legal vencidos, no montante de €478.212,71,e de juros vincendos».
Segundo a A., a presente acção «tem como fim a condenação jurisdicional do Estado Português ao pagamento de uma indemnização à A. pelo facto de existir no ordenamento jurídico português, à data dos factos sub judice, uma solução legal desconforme com o Direito da União Europeia, com um Tratado Internacional e ainda com a CRP, dela tendo resultado danos patrimoniais para a esfera jurídica da A.», solução legal essa que conduziu a que a A. tivesse sido «sujeita a tributação efectiva, em sede de IRC, sobre os dividendos recebidos, no montante de €.822,251,92, enquanto uma sociedade holding residente na mesma situação da A. não seria sujeita a qualquer tributação», sendo que «O regime jurídico fiscal português não assegurava a eliminação da dupla tributação às sociedades não residentes, sendo que o montante retido a título definitivo à A., não era susceptível de ser creditado no seu Estado de residência, em virtude da existência de prejuízos fiscais, gerando uma situação de tributação efectiva, com um prejuízo económico para a A. de €822.251,97», «enquanto uma sociedade residente, na mesma situação da A. seria sujeita a uma retenção na fonte por conta do imposto devido a final». Por outro lado, «O acordo para eliminar a dupla tributação celebrado entre Portugal e Espanha (doravante "ADT" ) estabelecia um montante máximo de retenção na fonte de 15% que não foi respeitado no caso concreto», pois a A. foi ainda «sujeita a imposto sobre sucessões e doações por avença à taxa de 5% no montante de €41 1.125,96 », não tendo sido respeitada a "cláusula da nação mais favorecida" «Uma vez que existem países que beneficiam de taxas máximas de retenção na fonte mais reduzidas do que a taxa constante do ADT», que foi aplicada in casu.
Mais considera que a condenação do Estado decorrerá da aplicação do regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado «por danos decorrentes do exercício da função político-legislativa em violação do Direito da União Europeia» e que, nesse sentido, a competência para o seu conhecimento pertence aos Tribunais Administrativos de Círculo, porquanto «em matéria de responsabilidade civil extracontratual do Estado, a competência dos tribunais administrativos abrange as situações em que o facto originador dessa responsabilidade consiste num acto legislativo, mesmo que a matéria sobre que incide a norma em causa seja de natureza fiscal como é o caso dos presentes autos», invocando o disposto no artigo 4.º, n.º1, al. g) do ETAF.
Citado o R., veio este contestar, por excepção, invocando a prescrição do direito indemnizatório da A. e, quanto ao demais, defendendo a improcedência da acção (cfr. fls.).
Perante a excepção levantada pelo R. veio, por sua vez, a A., apresentar Réplica (cfr. fls. 370-424).
Por despacho de tls. 471-475, foram as partes notificadas para se pronunciarem, querendo, quanto à questão da competência material suscitada oficiosamente no mesmo despacho, tendo a A. apresentado requerimento de fls. 479-486, através do qual defende a competência material deste tribunal e o prosseguimento da acção para apreciação do mérito da causa, eventualmente mediante o uso do mecanismo do reenvio prejudicial.
Cumpre decidir.
II. Pese embora se perceba e compreenda a concreta argumentação da A em sede de resposta à questão da competência material deste Tribunal Administrativo de Círculo, a verdade é que a decisão a tomar sobre esta questão, terá de valer tanto para o caso em apreço, como para quaisquer outros em que a responsabilidade do Estado seja aferida por referência, em primeira linha, a matéria fiscal.
Foi neste pressuposto que a excepção em causa foi suscitada oficiosamente pelo tribunal e é também neste pressuposto que não pode deixar de ser decidida.
Assim, tal como foi dito no primeiro despacho de fls. 471-475, o artigo 4.º, n.º 1, alínea g), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (doravante ETAF) prevê que "compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa."
Por seu turno, o artigo 44.º, n.º 1 do ETAF dispõe que "Compete aos tribunais administrativos de círculo conhecer, em 1.ª instância, de todos os processos da jurisdição administrativa, com excepção daqueles cuja competência, em 1.º grau de jurisdição, esteja reservada aos tribunais superiores e da apreciação dos pedidos que nestes processos sejam cumulados" (sublinhado nosso).
Também o artigo 49.º, nº 1, alíneas e) e f) do ETAF prevê que "Compete aos tribunais tributários conhecer:
(...)
c) Das acções destinadas a obter o reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos em matéria fiscal;
f) Das demais matérias que lhe sejam deferidas por lei. ( ...)" . (sublinhados nossos).
A este propósito LOPES DE SOUSA, defende o seguinte:
«(...) o ETAF de 2002, depois de repetidamente afirmar a jurisdição administrativa e fiscal como única jurisdição (os arts. 1.º a 8.º fazem referência à «jurisdição administrativa e fiscal», no singular), acaba por admitir conflitos de jurisdição entre tribunais administrativos de círculo e tribunais tributários ( art.º 29 ), o que revela que haverá duas jurisdições englobadas naquela.
Ora, o art. 44.º, n.º 1, do mesmo ETAF, ao definir a competência dos tribunais administrativos de círculo, estabelece que lhes compete «conhecer, em 1.ª instância, de todos os processos da jurisdição administrativa, com excepção daqueles cuja competência, em 1.º grau de jurisdição, esteja reservada aos tribunais superiores e da apreciação dos pedidos que nestes processos sejam cumulados».
Aquela referência à «jurisdição administrativa», como parte da «jurisdição administrativa e fiscal», permite concluir que se quer excluir da competência dos tribunais administrativos de círculo os litígios que caberão à «jurisdição fiscal», embora o legislador não utilize esta expressão.
Embora não haja uma indicação normativa de quais os litígios que se englobam na jurisdição administrativa e quais os que se englobam na jurisdição fiscal, sendo a jurisdição administrativa e fiscal globalmente competente para apreciação dos «litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais», será de concluir que caberá à jurisdição administrativa a apreciação de litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e à jurisdição fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações fiscais.
O que significa, assim, que o ET AF de 2002, embora não explicitamente, configura os tribunais tributários como os tribunais comuns para o conhecimento dos litígios emergentes das relações jurídicas fiscais», referindo ainda em nota de rodapé que «Não era assim à face do ETAF de 1984, pois, ao definir a competência dos tribunais administrativos de círculo, o seu art. 51.º, n.º 3, estabelecia que «O disposto nos números anteriores não abrange as matérias respeitantes ao contencioso fiscal», o que era interpretado como definindo a competência dos tribunais administrativos de círculo por exclusão: em todos os casos em que não havia um meio contencioso fiscal ou uma indicação explícita de utilização de um meio processual administrativo no contencioso tributário, estava-se no âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos de círculo. O que se reconduzia a que as acções comuns emergentes de relações jurídicas fiscais se inseriam no âmbito da jurisdição administrativa.» - LOPES DE SOUSA, 'Os lnvios e Tortuosos Caminhos da Reforma do Contencioso Tributário", in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 71, Set/Out 2008, pg. 25.)
Ora, sendo indiscutível, face ao disposto no artigo 4.º, n.º1, alínea g) do ETAF, que compete à jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de acções de responsabilidade civil extracontratual resultante do exercício da função legislativa, conclui-se que estando em causa leis fiscais e sendo nesta jurisdição, os tribunais tributários os tribunais especificamente competentes para conhecer das acções em matéria fiscal e todas as que impliquem reconhecimento de direitos fiscais, são eles os competentes para o conhecimento de causas como a dos presentes autos.
Cumpre ainda esclarecer que não se invoca uma qualquer atribuição da competência para julgar a causa tendo por referência a matéria versada na lei que se considera desconforme à "Constituição, o direito internacional, o direito comunitário ou acto legislativo de valor reforçado" (na expressão do n.º 1 do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 67/2007, de 31/12), mas apenas que, dentro da jurisdição administrativa e fiscal, competente para conhecimento das acções de responsabilidade civil extracontratual decorrentes da função legislativa, são os tribunais tributários os tribunais comuns e competentes para conhecer da presente causa, assim se assegurando, ademais, o princípio da tutela jurisdicional efectiva.
Na verdade, estando em causa a análise e verificação dos pressupostos de efectivação da responsabilidade civil previstos no artigo 15.º da Lei n.º 67/2007, de 31/12, no caso em apreço tal aferição levará à necessária contraposição de normas legislativas fiscais com normas e princípios de direito comunitário e de direito internacional, em matéria fiscal.
Ora, atribuindo o legislador, genericamente, à jurisdição administrativa e fiscal a competência para o conhecimento deste tipo de acções, e podendo os tribunais tributários configurarem-se «por exclusão, como os tribunais comuns da jurisdição fiscal» - LOPES DE SOUSA, in Sobre a Responsabilidade Civil da Administração Tributária por Actos ilegais, Áreas Editora, Lisboa, 2010, pág.130-, tudo aconselha que sejam os tribunais tributários chamados a dirimir acções comuns de responsabilidade civil extracontratual, em causas que tenham por base uma relação jurídica tributária.
E se assim é, considerando uma competência por conexão, também tais tribunais deverão ser considerados como os competentes em acções comuns de responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função político-legislativa, quando estiverem em causa leis tributárias, cuja aferição da ilicitude por parte de tais tribunais melhor garantirá a constitucionalmente consagrada tutela judicial efectiva.
III. Face ao exposto, decide-se em julgar materialmente incompetentes os tribunais administrativos para conhecerem da presente acção e, em consequência, absolve-se o R da instância.
Após trânsito, e caso a A. assim o requeira, remetam-se os presentes autos ao Tribunal Tributário de Lisboa (cfr. artigo 14.º, n.º2, do CPTA) - AROSO DE ALMEIDA e FERNANDES CADILHA, em anotação ao artigo 14.º do CPTA: «(…) a incompetência em razão da matéria implica a absolvição da instância, nos termos do nº2 deste artigo, e não a remessa oficiosa ao tribunal competente, e verifica-se quando a questão que constitui objecto do litígio pertence a uma outra ordem de jurisdição (Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas, Tribunal de Conflitos, tribunais judiciais). O mesmo princípio é aplicável quando se entenda que o objecto da acção versa sobre questão fiscal, caso em que a respectiva competência pertence aos tribunais tributários. Isso porque a expressão "jurisdição administrativa" é usada no n.º2 com o sentido e alcance que lhe é atribuído no artigo 13.11, pretendendo delimitar o âmbito de competência dos tribunais administrativos por referência a litígios que tenham por base relações jurídicas administrativas, sendo para o caso irrelevante a unicidade do regime de organização e funcionamentos dos tribunais administrativos e tributários (...)», in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª Ed. revista, Almedina, Coimbra, 2010, pg. 128.”

Contra o assim fundamentado e decidido se insurge a Autora e ora Recorrente por entender, no fundamental, à luz do novo ETAF - artigos 4.º n.º 1 al. g), 44.º e 49.º - um tribunal administrativo é efectivamente chamado a conhecer, não apenas da presente acção, mas de qualquer outra acção cujo facto constitutivo do dever de indemnizar seja uma norma legislativa que viole o Direito da União Europeia, sendo os Tribunais Administrativos competentes para acções de responsabilidade civil do Estado-legislador, mesmo quando a norma em causa respeita a matéria fiscal, civil, penal, comercial, de família e menores, e de todas as demais matérias que beneficiam de Tribunais Especializados em função da matéria.
Aduz que mesmo que assim não fosse, a relação jurídica subjacente a estes autos não é materialmente uma relação jurídico-fiscal que, portanto, recaia por natureza sobre a jurisdição dos Tribunais Tributários já que esta acção respeita a um pedido de responsabilidade civil que se dirige contra o Estado-legislador, e não contra a Administração Fiscal, que tem na sua base um facto ilícito de natureza legislativa, e não um acto de natureza administrativa em matéria fiscal, e que implica aplicar normas relativas ao exercício da função legislativa (artigo 15.º da Lei da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado), e não apenas de normas relativas ao exercício da função administrativa fiscal (artigos 7.º a 11.º da mesma Lei).
Adversamente, sustenta o Réu Estado Português, representado pelo Ministério Público, que, como a Recorrente, pedia na presente acção, a condenação do Estado Português, no pagamento de indemnização decorrente de responsabilidade civil extracontratual por actos legislativos que considera contrários ao direito comunitário, apontando como facto ilícito principal, gerador dessa responsabilidade civil, o regime de tributação dos lucros distribuídos por entidade residente em território português a entidade residente noutro Estado-Membro da União Europeia, tal como vigorou no texto do artigo 75, n.° 3, (actual 94.°, n.°3, al. b)) quando conjugado com o regime estabelecido pelo artigo 45.° do CIRC ex vi art. 7.° do DL n.°495/88, de 30 de Dezembro (actual art. 61.° do CIRC e 32.° do EBF respectivamente) e com o método para eliminar a dupla tributação estabelecido pelo artigo 23.° do ADT celebrado com Espanha, em 2001, consubstanciava uma tributação discriminatória de entidades residentes e não residentes, em violação dos princípios comunitários do livre estabelecimento (art.s 43.° a 48.° do TCE), na sua vertente de princípio de não discriminação entre residentes e não residentes (art. 12.° do TCE), e da livre circulação de capitais (art. 56º do TCE, actual art. 63° do TFUE) e dos princípios constitucionais da igualdade e da tributação das empresas pelo lucro real (art.s 12°, 13.° e 104.° da CRP), tal fundamento enquadra-se indiscutivelmente no âmbito de matéria fiscal, sendo que os alegados danos invocados pela Autora, ora recorrente, resultam de relações jurídico - fiscais, mais concretamente da aplicação do regime legal a nível da tributação de lucros distribuídos a accionistas residentes em território de outro Estado Membro da União Europeia, que na perspectiva da Recorrente alegadamente violam as normas e princípios de direito comunitário e de direito internacional, em matéria fiscal.
Por assim ser, na consideração de que nos termos do disposto no artigo 4.º, n.°1, alínea g) do ETAF, que compete à jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de acções de responsabilidade civil extracontratual resultante do exercício da função legislativa, conjugado com o disposto no art. 49.° n.º 1, alínea c), do mesmo diploma são os tribunais tributários os tribunais especificamente competentes para conhecer das acções em matéria fiscal e todas as que impliquem reconhecimento de direitos fiscais, conclui o Ministério Público que estamos no âmbito duma acção de responsabilidade civil em que estão em causa leis fiscais são tribunais tributários os competentes para o conhecimento de causas como a dos presentes autos, para a qual, os tribunais administrativos são incompetentes.
Vejamos, então, se a decisão recorrida ao julgar procedente a excepção de incompetência material deste tribunal administrativo e ao absolver o R. da instância nos termos dos art.s 101.°, 493.° n.° 2 e 494.° n.º 1, al. a), do C. P.C. e art. 4.°, nº 1, alínea g), e 49.° n.° 1, alínea c), do ETAF, fez a correcta aplicação das disposições legais aplicáveis ao caso.
Dúvidas não sobram, atentas a causa de pedir e o princípio do pedido, de que o fundamento do recurso se funda na afirmada “RESPONSABILIDADE RESULTANTE DA FUNÇÃO LEGISLATIVA”.
Nesse sentido, afirma a Autora que a responsabilidade civil do Estado resultante da função legislativa abrange a omissão e a deficiente produção legislativa pelo que, ainda que se aceitasse que o Estado adoptou as referidas normas e princípios comunitários, é manifesto que houve uma forma transposição imperfeita, deficiente, ambígua e geradora de responsabilidade civil dados os prejuízos causados à Recorrente.
Portanto e em definitivo, a Autora procura ancorar a sua acção na responsabilidade do Estado pelo exercício da função legislativa.
Sobre esta questão começaremos por tecer algumas considerações teórico -doutrinárias sobre a responsabilidade da administração em geral e sobre a responsabilidade do Estado legislador, em especial.
Assim, existe «responsabilidade do Estado» constitucionalmente consagrada para os casos em que os particulares são lesados nos seus direitos, nomeadamente nos seus direitos, liberdades e garantias, por acções ou omissões de titulares de órgãos, funcionários ou agentes do Estado e demais entidades públicas, praticados no exercício das suas funções e por causa desse exercício, podem demandar o Estado exigindo uma reparação dos danos emergentes desses actos (CRP, artigos 22°, 27°; ETAF, artigo 51°/l/h).
Mas o âmbito de protecção do artº 22° da CRP abrange igualmente a responsabilidade do «Estado legislador» por actos ilícitos, apesar de alguns defenderem a irresponsabilidade do Estado com o argumento de a disciplina da lei ser geral e abstracta.
Porém e no que ao caso releva, algumas leis «declaradas» ou «julgadas» desconformes com o direito e os princípios comunitários podem ter originado violação de direitos, liberdades e garantias ou prejuízos para os cidadãos e outras, portadoras de características de lei -medida são leis self executing, podendo ter gerado prejuízos relevantes aos cidadãos.
Em tais situações, como refere Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., pág. 661, “Quer se trate de responsabilidade por actos legislativos ilícitos enquadrável no âmbito normativo do art. 22°, quer de responsabilidade por actos legislativos lícitos, de que se pode ver refracção no art. 62°/2, além de não estar afastada no art. 22° (indemnização por expropriação), a responsabilidade por facto das leis não é um «luxo» (R. CHAPUS), mas uma exigência do Estado constitucional democrático. A possível exigência de um regime especial da responsabilidade por facto das leis significa não que o legislador se possa tornar imune ao regime de responsabilidade do Estado consagrado no artigo 22° da CRP, mas que deve concretizar/conformar esse regime através tia lei.”
Para o caso dos autos importam as normas portadoras de características de lei -medida ou leis self executing, podendo ter gerado prejuízos relevantes aos cidadãos, mais concretamente, as normas do direito comunitário com aquela natureza, impondo-se, acima de tudo, saber se as normas e princípios em causa revestem essa natureza (mas isso já nos desloca para a questão do mérito que não cabe aqui discutir!).
Na verdade, os chamados regulamentos previstos no art. 189° do tratado da CEE constituem direito self executing, o que significa que são direito imediatamente aplicável, sem necessidade de qualquer acto interno (lei, decreto) de transformação.
Como esses actos normativos têm valor legislativo, põe-se a questão de saber se derrogam as leis portuguesas internas com disciplina contrária e se, ao invés, as leis internas poderão posteriormente adoptar disposições contrárias aos actos normativos primários das comunidades.
Nesta matéria debatem-se duas correntes, a saber:
A corrente «europeísta» da primazia do direito comunitário segundo a qual o direito comunitário teria, à semelhança do direito internacional geral, um valor supralegislativo, admitindo-se, pois, competências concorrentes: uma legislação paralela dos órgãos comunitários e nacionais, na medida em que os actos nacionais não contrariem os actos comunitários;
Adversamente, a corrente do «nacionalismo jurídico», em boa medida tributária das velhas teorias dualistas do direito internacional, considera o direito comunitário (quer seja direito comunitário primário, isto é, os acordos constitutivos das três comunidades, quer seja direito comunitário secundário, ou seja, as normas regulamentares editadas pelos órgãos comunitários competentes em aplicação dos «tratados fundadores») como um estalão ou grau normativo igual ao dos actos legislativos internos.
Seja como for, com a adesão de Portugal à ordem jurídica comunitária, os tratados institutivos das comunidades europeias e as disposições comunitárias self executing formam uma nova fonte normativa da ordem jurídico-constitucional portuguesa, em paralelo com os actos legislativos internos, podendo impor-se relativamente a estes com base no princípio da especialidade ou da competência prevalente.
Assim, a normativa comunitária tem preferência relativamente a legislação estatal e, revelando-se o princípio da especialidade insuficiente para solver os conflitos, terá de reconhecer-se a superioridade do direito comunitário, traduzida na força activa dos regulamentos comunitários para revogar e modificar leis e na sua resistência passiva face a leis posteriores internas que por elas não podem ser revogados nem modificados.
Todavia, haverá que afirmar a supremacia da Constituição, no sentido de que a posição das normas comunitárias na hierarquia das fontes é sempre infraconstitucional, e isso porque, de contrário, seria supérflua a própria constituição, equivaleria ao reconhecimento de um processo apócrifo de revisão contra as próprias normas constitucionais e justificaria até a possibilidade de ultrapassagem dos limites materiais de revisão, violando frontalmente o art. 288° da CRP.
Foi a necessidade de as normas comunitárias estarem conforme as normas constitucionais que justificou a revisão extraordinária operada pela Lei 1/92, para possibilitar a ratificação do tratado de Maastricht.
A essa luz, será que as normas e princípios comunitários cuja violação a Recorrente erige como causa fundante da responsabilidade do, é self executing?
Sendo a Directiva um acto adoptado pelas instituições comunitárias em execução do disposto nos Tratados Constitutivos, a mesma é uma fonte de direito comunitário derivado ou secundário.
É nos arts. 189.º do Tratado CEE e 161.º do Tratado CEEA que a directiva vem definida como sendo um acto que «vincula qualquer Estado Membro destinatário quanto ao resultado a atingir, mas deixando às autoridades nacionais a competência quanto à forma e quanto aos meios».
Assim, a directiva, caracteriza-se por três elementos essenciais:
a) - a directiva fixa um objectivo; determina um resultado a atingir;
b) -fixando um resultado que tem de ser alcançado, vincula o seu destinatário que, deste modo, fica obrigado pela directiva a realizar o objectivo determinado;
c) -ao destinatário está assegurada a possibilidade de seleccionar a forma e os meios de cumprir essa obrigação imposta pela directiva.
Nesse sentido, Pedro Malaquias, «As directivas no ordenamento jurídico comunitário», Assuntos Europeus, vol. 3, n.º 3, Outubro de 1984, pp. 334 e ss.
«A directiva só cria, em princípio, efeitos jurídicos nas relações entre as Comunidades e os Estados Membros, pelo que se não apresenta, em si mesma, como um acto normativo. A sua execução é que poderá ser levada a cabo pelas autoridades nacionais através de actos normativos ou individuais».
A directiva caracteriza-se também por ser um acto incompleto e indeterminado. Incompleto por necessitar de intervenção das autoridades nacionais para poderem ser atingidos plenamente os seus objectivos e indeterminado por não fixar o processo de actuação que as autorizadas nacionais deverão adoptar» - cfr. loc. cit., pp. 339 e 340.
«Face à liberdade deixada aos Estados-membros quanto à escolha da forma (acto legislativo, regulamentar, portaria, despacho ministerial) e dos meios adequados para alcançar os fins em vista, a directiva constitui um instrumento de harmonização jurídica que permite respeitar as idiossincrasias nacionais» - cfr. J. C. Moitinho de Almeida, Direito Comunitário, A ordem jurídica comunitária. As liberdades fundamentais na CEE, pp. 13 e ss.; J. Mota Campos, Direito Comunitário, II vol., pp. 98e ss.
Reunindo tais características, a Directiva em causa tinha como destinatário o Estado-membro Portugal e não qualquer indivíduo particularmente considerado.
Na sua literalidade ao dispor que a directiva é dirigida ao Estado, o art. 189.º do Tratado CEE apontaria para a sua aplicabilidade pelo Estado destinatário e não em qualquer Estado-membro destinatário. Dito de outro modo: a directiva só produziria efeitos após a respectiva execução pelo Estado; antes dessa intervenção de cada Estado não produziria efeitos nem criaria direitos subjectivos individuais.
Apesar disso, em certos casos, ainda que excepcionalmente, desde que verificados dados condicionalismos, a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias reconhece que as directivas podem produzir efeitos directos de modo que deles possam resultar direitos para os particulares e que estes podem invocar nas suas relações com o Estado membro considerado - efeito directo vertical.
Assim, só a título excepcional se poderá afirmar esse carácter à directiva comunitária, o que está na dependência da verificação da requisitagem que a norma da directiva tem necessariamente preencher para que possa eclodir esse efeito jurídico.
«Assim é indispensável verificar se, em cada caso, «la nature, I'économie et les termes de la disposition en cause sont susceptibles de produire dês effets directs dans les relations entre les États Membres et les particuliers»; esta indagação casuística conduzirá a uma resposta afirmativa sempre que a directiva enuncie uma «obrigação incondicional e precisa», quer dizer, sempre que a margem de apreciação consentida ao(s) Estado(s) destinatário(s) se confine à escolha da forma jurídica da medida de execução (lei, decreto-lei, regulamento, por exemplo), estando excluída no que toca à escolha das soluções de fundo (ou admitindo apenas a opção entre soluções perfeitamente determinadas).
São estas as directivas susceptíveis de produzirem efeitos directos na ordem jurídica interna dos Estados-membros; quer isto dizer que nem sempre essas directivas produzirão tais efeitos. Só será assim - é o que resulta da jurisprudência Ratti, posteriormente aprofundada no processo Commission c. Royaome de Belgique - quando, expirado o prazo previsto para a adopção das medidas internas de execução, o(s) Estado(s) destinatário(s) se tiver abstido de adoptar essas medidas ou tiver adoptado normas não conformes à injunção comunitária» - cfr. J. M. Caseiro Alves, «Sobre o possível «efeito directo» das directivas comunitárias», na Revista de Direito e Economia, ano IX, n.º 1 e 2, pp. 202-203. Cfr., também, Augusto Rogério Leitão, O efeito jurídico das directivas comunitárias na ordem interna das Estados Membros, publicação dactilografada da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, pp. 9 e ss.
A argumentação utilizada mais recentemente para a fundamentação da possibilidade da produção do efeito directo das directivas «assenta na ideia do estoppel, conceito britânico que corresponde ao abuso do direito: os Estados que não cumpriram uma directiva não podem invocar uma situação ilegal face ao direito comunitário, por eles criada, para recusarem direitos a particulares ou Lhes aplicarem sanções» - cfr. J. C. Moitinho de Almeida, op. cit., p. 76.
«L'Etat membre qui na pais pris, dans les délais, les mesures d'éxécution imposées par la directive, ne peut opposer eux particuliers le nonaccompiissernent, par lui-mêrne, des obligations quelle comporte. II en résulte qune juridiction natioine1e, saieie par uim justiciable qui sest conformé aux diapositions dune directive, dune demande tendant à écarter une disposition nationale inacmipatible avec ladite directive non introduite dans Iies délais dans I'ordre juridique interine dun êtat défaillant, doit faire droit à cette demande si l'obligation en cause est inconditionnelle et suffisarnrnent précise». - Cfr. acórdão Ratti, Cons. 19-21, Recueil 1979, p. 1629.
Esta jurisprudência vem sendo reafirmada pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.
«ll résulte d'une jurisprudence constante de la Cour et, en dernier lieu, e I'arrêt du 5 avril 1979 (Ratti, 148/78, Recueil, p. 1629), que si, en vertu des dispositions de I'article 189, les réglements sont directement applicables et, par conséquent, par leur nature susceptibles de produire des effets directs, il nen résulte pas que dautres catégories dactes vises par cet article ne peuvent jamais produire deffets analogues.
«II serait en effet incompatible avec le caractère contraignant que I'article 189 reconnait à la directive dexclure en principe que I'obligation quelle impose puisse être invoquée par des personnes concernées.
«Particulièrement dans les cas ou les autorités communautaires auraient, par voie de directive, obligé les États membres à adopter un comportement déterminé, Ieffet utile dun tel acte se trouverait affaibli si les justiciables étaient empêchés de sein prévaloir en justice et les juridictions nationales empêchées de le prendre en consideratiom en tant quélément du droit communautaire.
«En conséquence, I'État membre qui na pas pris, dans les délais, les mesures dexécution imposées par la directive, ne peut opposer aux pariiculiers le non-accomplissement, par lui-même, des obligations quelle comporte.
«Ainsi, dans tous les cas ou des dispositions dune directive apparaissent comme étant, du point de vue de leur contenu, inconditionnelles et suffisamment précises, ces dispositions peuvent être invoquées à défaut de mesures d'application prises dans les délais, à I'encontre de toute disposition nationale non conforme à la directive, ou encore en tant quelles sont de nature à définir des droits que les particuliers sont en mesure de faire valoir à Iégard de I'Etat» - cfr. acórdão da CJCE, de 19.01.82, Proc. 8/81 - «Becker», Cons. 21-25, Recueil 1982, p. 53.
Do exposto, pode extrair-se a conclusão geral e definitiva de que uma norma de uma directiva só produzirá efeito directo quando, pelo respectivo conteúdo, possa ser considerada como clara, suficientemente precisa e incondicional e ainda que esteja esgotado o prazo fixado na directiva para que o Estado membro se conforme com as suas disposições, adoptando na ordem interna as medidas necessárias de execução.
Feito esse trabalho exegético, poderá então afirmar-se que o direito comunitário prima (prevalece) sobre o direito incompatível dos Estados-membros, sendo que esse primado do direito comunitário abarca quer as disposições dos Tratados, quer as dos Regulamentos e quaisquer outros actos comunitários. E, onde exista efeito directo há primado.
Com a adesão de Portugal às Comunidades, o primado do direito comunitário foi constitucionalizado pelo art. 8.º, n.º 3, da Constituição da República, normação operada pela primeira revisão realizada para prevenir as consequências jurídico-institucionais decorrentes da adesão.
«O art. 8.º, n.º 3, consagrou a directa vigência na ordem jurídica portuguesa dos actos emitidos por organizações internacionais quando tal se ache expressamente consagrado nos respectivos tratados constitutivos - só eles serão «directamente aplicáveis», quer dizer, só eles serão automaticamente recebidos na ordem interna. O que não tira que: outras normas, desprovidas embora dessa característica, possam, dentro de certas condições, produzir um efeito directo, pois este não pode assimilar-se integralmente a directa vigência ou aplicabilidade. Nem se compreenderia que, visando o legislador adequar a ordem constitucional às exigências do direito das «organizações internacionais» (pois é essa, manifestamente, a ratio do art. 8.º, n.º 3) viesse excluir aquele que é, juntamente com o primado, um dos imperativos «existenciais» desse ordenamento jurídico - o «efeito directo de algumas das suas normas» - cfr. J. M. Caseiro Alves, art. e loc. cit., nota 35, pp. 216/7.
E é o respeito pelo primado do direito comunitário, que para a situação dos autos se impõe fazer a indagação sobre a natureza e efeitos das normas em causa em causa, mormente, se indicadas disposições, são susceptível de produzir efeito directo, criando para um particular um direito subjectivo que ele possa fazer valer perante o Estado.
No caso sub judice, determinar se o A. pode prevalecer-se de um direito subjectivo a indemnização em virtude de, por força das normas e princípios comunitários que aponta, o Estado Português ter ficado vinculado a produzir legislação interna que garantisse a tributação menos gravosa para os interesses doa Recorrente enquanto contribuinte porque o Estado Português demorou tempo excessivo a produzir legislação que transpusesse de forma cabal, expressa, clara e inequívoca os comandos das disposições comunitárias, incorrendo consequentemente, o Estado em responsabilidade civil resultante da função legislativa e constituindo-se na obrigação de prestar ao Recorrente a indemnização reclamada nestes autos.
Portanto, o que se discute à luz das considerações supra expostas, é se se pode ou não afirmar que as disposições invocadas pela Autora na sua petição inicial, era susceptível de produzir efeito directo, criando para um particular um direito subjectivo que ele possa fazer valer perante o Estado.
Nesse âmbito, coloca-se o problema do controlo, pois, não obstante a existência de um Tribunal das Comunidades para apreciar as questões suscitadas pelo direito comunitário, cabe questionar se os juízes e as partes num processo portugueses poderão suscitar o incidente da inconstitucionalidade em face do direito português.
Nesse sentido, Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6ª ed., pág. 905, ensina que “As normas comunitárias — dir-se-á — são «normas» para efeitos do art. 280.°, não estando previsto na Constituição qualquer regime privilegiado quanto ao seu controlo (ao contrário do que, de resto, acontece quanto ao direito internacional convencional nos termos do art. 277.°/2). Em sentido contrário é possível argumentar com a ideia de as normas comunitárias (o problema coloca-se sobretudo quanto aos regulamentos) não serem fontes de direito interno, mas fontes de um sistema jurídico autónomo. Por conseguinte, não existiria qualquer controlo — incidental ou principal — de constitucionalidade incidente sobre regulamentos comunitários.
Um eventual controlo não significa a aniquilação das normas comunitárias: os juízes portugueses conhecem e julgam inaplicáveis as normas comunitárias eventualmente desconformes com as normas e princípios constitucionais. No entanto, os juízes devem também valorar a compatibilidade entre as leis comunitárias e as leis portuguesas, fazendo prevalecer as primeiras sobre as segundas, independentemente da relação de sucessão de leis no tempo. Aqui os juízes portugueses julgarão inaplicáveis as normas internas conflituantes com as normas comunitárias (cfr. LTC, art. 70.°/l/c e 71.°/2). Neste sentido, o Tribunal de Justiça da Comunidade tem sistematicamente remetido que o juiz nacional encarregado de aplicar, no âmbito da sua competência, as disposições de direito comunitário, tem a obrigação de garantir a plena eficácia dessas normas, desaplicando qualquer disposição contrastante da legislação nacional, mesmo posterior.
O princípio da aplicação preferente (Anwendungsvorrang) exigirá, pois, à não aplicação da norma jurídica nacional e a aplicação da norma comunitária com ela colidente a uma solução de um caso através do juiz ou da administração.”
Sendo assim, como é, cabe então evocar, de novo, o preceituado no art. 22º da CRP, segundo o qual “O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”.
Ora, na senda do Prof. Alberto dos Reis (in “CPC Anotado”, Vol. I, pags. 147, “…a competência do foro comum só pode afirmar-se com segurança depois de se ter percorrido o quadro dos tribunais especiais e de se ter verificado que nenhuma disposição de lei submete a acção em vista à jurisdição de qualquer tribunal especial”. No mesmo sentido se pronunciaram o Prof. Manuel de Andrade (in “Noções Elementares de Processo Civil” – 1976 – págs. 94/95) e Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (in “Manual de Processo Civil”, 2ª Ed., págs. 208/209).
Nos termos do art. 3º ETAF antes da reforma do contencioso administrativo incumbia “…aos tribunais administrativos e fiscais, na administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas e fiscais”.
E o art. 4º, definindo o âmbito da jurisdição administrativa, preceituava que estão, designadamente, “excluídos da jurisdição administrativa e fiscal os recursos e as acções que tenham por objecto…b) Normas legislativas e responsabilidade pelos danos decorrentes do exercício da função legislativa”.
Como expendem os Profs. Diogo Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida, “Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo” (3ª Ed.), pág. 25: “Como foi referido, a constitucionalização, com a revisão de 1989, da jurisdição administrativa como o complexo de tribunais incumbidos de «dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas» (art. 212º da CRP) conferiu-lhe um estatuto diferente daquele que, até então, lhe correspondia e que se encontrava plasmado no art. 4º do anterior ETAF, de 1984 (…) Na verdade, o art. 4º do ETAF de 1984 assentava numa perspectiva subalternizadora da jurisdição administrativa, incumbida de decidir as questões cuja apreciação não fosse atribuída por lei à competência de outros tribunais. Essa perspectiva tinha uma razão de ser e assentava em raízes profundas. Durante o Estado Novo, o entendimento dominante na doutrina era o de que os tribunais administrativos não eram verdadeiros tribunais, não estavam integrados no Poder Judicial, em ligação com o Ministério da Justiça. Eram órgãos independentes pertencentes ao universo da Administração Pública. Por conseguinte, a apreciação de questões de natureza administrativa que contendessem com valores considerados mais importantes para os particulares era reservada à competência dos tribunais judiciais, ditos comuns, os únicos verdadeiros tribunais e, por isso, o único garante das liberdades e da propriedade perante o Poder”.
Através da Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, foi aprovado o novo “Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais” (novo ETAF), o qual deveria, nos termos do respectivo art. 9º, entrar em vigor, em 19.02.03.
Porém, pelo art. 7º da Lei nº 4-A/2003, de 19.02, a entrada em vigor do novo ETAF foi fixada em 01.01.04.
Nos termos do artº 4º do novo ETAF que fixa o âmbito da jurisdição:
“1-Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:
(…)
g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa.”
E este exercício tanto pode ser encarado, de acordo com o que dimana do transcrito art. 22º da CRP e da própria natureza das coisas, sob o ponto de vista activo, como do seu ângulo omissivo. Ou seja: no “exercício” daquela função, tanto se compreende a actuação legiferante, como a omissão de tal actuação, uma vez que uma das formas de levar a cabo o “exercício” da função legislativa consiste em não emitir comandos legislativos, quando estes se aconselham ou impõem.
Donde que a omissão legislativa (que in casu se trata de omissão desta natureza) que fundamenta a instauração da presente acção imponha, necessariamente, que a competência, em razão da matéria, para o respectivo conhecimento deva ser atribuída aos tribunais administrativos.
Como ensina Gomes Canotilho in Constituição Dirigente e Vinculação do Legialador, 2ª ed., pág. 332, “A omissão legislativa inconstitucional significa que o legislador não «faz» algo que positivamente lhe era imposto pela constituição. Não se trata, pois, apenas de um simples negativo «não fazer»; trata-se, sim, de não fazer aquilo a que, de forma concreta e explícita, estava constitucionalmente obrigado.
Já por esta definição restritiva de omissão se pode verificar que a inconstitucionalidade por omissão, no seu estrito e rigoroso sentido, deve conexionar-se com uma exigência concreta constitucional de acção (verfassungsrechtliche Hundlungsgebote). O simples dever geral de emanação de leis não fundamenta uma omissão inconstitucional. De igual modo, as «ordens constitucionais gerais de legislar», (allgemeine Verfassungsgebote), isto é, as imposições constitucionais que contêm deveres de legislação abstractos (exemplo: as normas programáticas, os preceitos anunciadores dos fins do Estado), embora configurem deveres de acção legislativa, não estabelecem concretamente aquilo -que o legislador deve fazer para, no caso de omissão, se poder falar de silêncio legislativo inconstitucional. Aqui reside, quanto a nós, a diferença fundamental entre as imposições abstractas e as imposições constitucionais concretas: a não realização normativa das primeiras situa-nos no âmbito do «não cumprimento» das exigências constitucionais, e eventualmente, no terreno das «comportamentos ainda constitucionais», mas que tenderão (no caso de sistemático não actuar legislativo) a tornar-se «situações inconstitucionais».
Neste plano se desenvolve, em grande parte, a luta político - constitucional em torno da constituição programática. No caso das imposições constitucionais em sentido estrito, o não cumprimento é um verdadeiro caso de inconstitucionalidade: o legislador viola, por acto omissivo, o dever de actuar concretamente imposto pelas normas constitucionais.”
(…)
“3.7.1 — O direito à emanação de normas
O primeiro problema que se tem de enfrentar é o da configuração de um eventual direito a emanação de normas. Todos reconhecem ser líquido que o princípio do Estado de Direito e o princípio democrático exigem um sistema eficiente e global de protecção jurídica contra quaisquer actos dos poderes públicos que não estejam em conformidade com a Constituição. Ora, a protecção jurídica -global, sem lacunas pressupõe, nos casos de omissões normativas, que se possa reconhecer o direito de exigir uma actuação positiva do legislador. O reconhecimento deste direito é, porém, contestado:
a) O reconhecimento de um direito à legislação representaria uma violação do princípio da divisão de poderes e uma completa subversão da «relação de força» entre legislativo e judicial;
b) O direito à emanação de normas pressupõe um direito subjectivo dos cidadãos. A pretensão subjectiva não existiria, porém, configurada como direito objectivo à normação (O direito à normação é mais extenso que o direito à legiferação, pois abrange outros actos normativos como regulamentos);
c) Uma acção de emanação de normas só poderá reconhecer-se, quando muito, no caso de violação de direitos fundamentais por omissão legislativa;
d) A violação dos direitos fundamentais está, em geral, relacionada com a violação do princípio da igualdade, motivo pelo qual não interessaria tanto a omissão como a acção de discriminação positiva do legislador;
e) A pretensão à legislação não tem qualquer sentido, dado que ela não pode ser imediatamente exigível através dos tribunais.
Como se pode deduzir da argumentação anterior, na problemática do direito à legislação pesa sempre uma unilateral acentuação processual — a exiquibilidade judicial, o direito subjectivo ia acção — e um apodíctico «balanço de poderes» constitucional que impediria os juízes de se intrometerem na liberdade de conformação do legislador. Todavia, e começando por aqui as considerações críticas, julga-se que quando hoje se defende a pretensão à legislação e o correspondente direito de acção perante os tribunais (ou tribunal especial) não se conclui pela substituição do juiz ao legislador com a consequente emanação judicial de uma norma nem pela correcção, a título incidental, da omissão legislativa. A acção limitar-se-ia a pedir aos tribunais a «condenação» do legislador à emanação de uma norma ou a fixação do seu dever constitucional de legislar em determinado caso concreto. Afastam-se, pois, de acordo com o primado de concretização legislativa, quaisquer «mudanças de funções» ou qualquer «princípio de subsidiariedade de concretização judicial».
3.7.2. — E o direito subjectivo?
Uma pretensão de legiferação depara com as objecções mencionadas em 3.7.1, b) e c), e que fundamentalmente se traduzem na exigência de um direito subjectivo público à actividade normativa. O esquema clássico, temperado por algumas afinações recentes, pode resumir-se da seguinte maneira:
1- Existência de uma norma jurídica imperativa, isto é, uma norma jurídica de direito público que impõe ao legislador um determinado dever;
2 - Inclusão da satisfação de interesses individuais dentre os fins da norma: a norma deve dirigir-se, pelo menos, também à satisfação de interesses particulares e não exclusivamente à realização dos interesses públicos;
3- O poder jurídico do particular de defender os interesses protegidos pela norma em face dos órgãos a ela também obrigados.”
Postos estes considerandos de ordem geral que apontam para que a competência in casu será atribuível aos tribunais administrativos, cabe agora salientar que o requisito da competência do tribunal afere-se tendo em conta o pedido formulado na p.i. e pela relação jurídica subjacente ou factos concretizadores da respectiva causa de pedir. Como diz Santos Botelho, in Contencioso Administrativo, p. 151, o tribunal deve resolver "partindo da estrutura da relação jurídica em litígio e de acordo com a versão apresentada em juízo pelo autor.”
A única questão colocada no presente recurso é de saber se, o TAC de Lisboa é, ou não, materialmente competente para conhecer da pretensão da Autora, sendo certo que na decisão sob apreciação o Mº Juiz daquele tribunal se julgou materialmente incompetente em razão da matéria para apreciar a presente acção por entender que estamos perante matéria fiscal, sendo a competência material dos TTs.
Preliminarmente, diga-se que, em geral, o conceito de competência é definido como o complexo de poderes funcionais conferidos por lei a cada órgão ou cargo para o desempenho das atribuições da pessoa colectiva em que esteja integrado.
O artº 20º, nº 1 da Constituição determina que «a todos é assegurado o acesso ao direito aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos».
Consagra este preceito, além do mais, o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional que implica naturalmente a garantia de uma protecção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva.
Tendo isso presente, o certo é que, a política conformadora do Estado social levou a Administração a invadir os campos mais insuspeitados da actividade individual, tornando os cidadãos cada vez mais dependentes das suas prestações.
Falida a concepção liberal em que se defendia a abstenção do Estado como forma de protecção do cidadão, hoje, adversamente, reclama-se a sua intervenção na vida económica, social e cultural, de forma a criar as condições indispen­sáveis à realização do homem.
O Estado social implica, pois, a existência de uma Administração «constitutiva» ou «conformadora» em ordem à realização de uma ideia de justiça social, extirpando os resquícios de uma Administração eminentemente absten­cionista e «agressiva» típica do Estado anterior, o que acarreta, incontornavelmente, a omnipresença da Administração na vida social e a proliferação de situações em que esta pode colidir com os direitos e interesses do cidadão, com o consequente aumento da conflitualidade.
No reverso, cresce um sentimento generalizado da necessidade de reforço das garantias dos administrados e, na esfera do político, nota-se uma pulverização e democratização do poder com alterações na estrutura organizativa da Administração Pública.
Assim se justificam os movimentos de descentralização e desconcentração das competências administrativas, com a inevitável multiplicação dos órgãos capazes de praticarem actos definiti­vos os quais deixaram, assim, de ser atributo dos poucos órgãos supremos que mereciam um maior crédito quanto à responsabilidade e ao cuidado na obser­vância da legalidade nas suas decisões.
Todavia, se é certo que a fragmentação do poder implicou que a Administração deixasse de ter o monopólio da titularidade e gestão dos interesses gerais, dando origem a que dentro do próprio Estado surgissem novos entes públicos que configu­ram outros tantos centros autónomos de decisão e de poder que concorrem para a realização do interesse público, também o é que no exterior do aparelho estadual se assiste à gestão de interesses colectivos por entes que não fazem parte do complexo orgânico da Administração.
Daí que a Administração e os entes, que não fazem parte do complexo orgânico da Administração mas procedem à gestão de interesses colectivos, esteja agora mais vinculada ao direito, já que não só tem de cumprir as condições e os limi­tes expressamente fixados na lei, mas também tem de respeitar princípios jurídicos fundamentais, nomeadamente os princípios da imparcialidade, da igualdade, da justiça e da proporcionalidade, ou seja, a Administração, no seu todo, está submetida ao princípio da juridicidade, concepção que traduz com mais rigor a sua vinculação ao direito do que o tradicional princípio da legalidade.
Ora, no Estado social e democrático, os textos constitucionais, reagindo contra uma concepção puramente retórica dos direi­tos fundamentais, consagraram direitos liberdades e garantias eficazes por si mes­mos e vinculativos para todos os poderes públicos e privados e privados.
Todavia, a efectividade do seu reconhecimento exige uma protecção jurisdicional imediata sem a qual as declarações constitucionais não passam de figuras retóricas, de tex­tos declamatórios que formulam ideários, mas não atribuem nem protegem direitos.
Nesse sentido, há que reconhecer e impor mudanças nas relações entre a Administração e os administrados de modo a que se reduza a superioridade da Administração perante o cidadão que deixa de ser mero destinatário da acção administrativa, transmutando-se em sujeito de direitos que a Administração, como qualquer outro poder do Estado, ou privado actuando no âmbito do interesse público, tem de respeitar.
A Administração apresenta-se, segundo esta visão, como um poder autónomo, mas em paridade institucional com os outros poderes, direccionado à realização em concreto do interesse público mediante a prática de actos dotados de poder de imperium, de força de autoridade em que, todavia, as exigências de celeridade e eficiência da sua actuação perdem a natureza de valor absoluto, para, casuisticamente, serem conciliadas com os limites postos pelos direitos fundamentais do cidadão e os prin­cípios constitucionais.
Em vista do caso concreto, entre os direitos fundamentais recolhidos na lei fundamental, há a destacar a consagração do direito à tutela judicial efectiva que visa alcançar um controlo integral e pleno da actividade administrativa como o principal instrumento de defesa dos par­ticulares face à Administração.
Mas isso não era compatível com um contencioso de tipo puramente impugnatório face à multiplicação e complexificação de modos de conduta da Administração que atrás já se assinalaram, quando é certo que tradicionalmente o processo contencioso foi perspectivado e estruturado à luz da configuração bilateral da relação jurídico - administrativa, e a complexidade das tarefas do estado social atestam um aumento crescente das relações jurídicas poligonais.
Este estado de coisas impôs o aperfeiçoamento e adaptação dos meios processuais do Con­tencioso no sentido de uma plena juris­dição e abertura para as mais variadas formas de acção administrativa com a inevitável desvalorização do acto administrativo como figura nuclear do contencioso administrativo e a relativização da importância que esse acto desempe­nha na dogmática clássica do direito administrativo, quer no plano do direito adjectivo, quer no do direito substantivo.
Respiga-se, a tal propósito, gomes canotilho, cfr. «Procedi­mento Administrativo e defesa do ambiente», RLJ, 123 (1990/91), p. 136 ss: «é tempo de se perguntar se o 'eixo' do direito administrativo deve continuar a ser o acto administrativo ou se é metódica e cientificamente mais frutuoso deslocar esse 'eixo' para as relações jurídico - administrativas e para a fenomenologia procedimental do desenvolvimento da acção administrativa».
Tendo em conta os precedentes considerandos diga-se que, no âmbito da pessoa colectiva Estado e no quadro da clássica divisão de poderes ou funções - legislativas, administrativas e jurisdicional -, a questão da competência em apreço recorta-se, entre nós, na área jurisdicional, isto é, face às diversas ordens de tribunais.
A questão da competência jurisdicional para o efeito de saber se a relação do recorrente e recorrida tem uma natureza originariamente na totalidade, e parcialmente na actualidade, de direito público coloca-se perante o ramo da alternativa de uma de duas ordens de tribunais - judiciais e administrativos.
Aos referidos tribunais - órgãos de soberania - compete administrar justiça em nome do povo (artigo 205°, n° 1, da CRP).
Os conceitos de jurisdição e de competência traduzem realidades conexas mas distintas, significando o primeiro o poder de julgar genericamente atribuído, na organização do Estado, ao conjunto de tribunais, e o último a medida de jurisdição legalmente atribuída a cada um deles.
A medida de jurisdição de cada um dos tribunais, ou seja, a sua competência é susceptível de variar em razão da matéria, do valor, da hierarquia e do território (artigo 13°, n°1, da Lei n° 38/87, de 23 de Dezembro - LOTJ).
No caso em apreço só releva a divisão interna do poder jurisdicional pelas diferentes categorias de tribunais segundo o critério da natureza da matéria dos litígios, isto é, a vertente da competência material.
A competência em razão da matéria fragmenta-se pelas diversas categorias de tribunais à luz do chamado princípio da especialização inspirado na ideia de vantagem de atribuir a determinados órgãos jurisdicionais o conhecimento de questões reguladas por específicas áreas de direito em razão da sua vastidão ou especificidade.
Compete-lhes, segundo a referida matriz constitucional, o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenha por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (artigo 214°, n° 3, da CRP).
Em desenvolvimento do estatuído nos artigos 211°, n° 1, alínea b), e 214°, n° 3, da CRP foram publicados o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais - ETAF -, aprovado pelo Decreto-Lei n° 129/84, de 27 de Abril, e a Lei de Processo nos Tribunais Administrativos - LPTA -, aprovada pelo Decreto-Lei n° 267/85, de 16 de Julho e, depois, o CPTA.
A jurisdição administrativa e fiscal é exercida por tribunais administrativos e fiscais, com o estatuto de órgãos de soberania com competência para administrar justiça em nome do povo (artigo 1° do ETAF).
Incumbe-lhes, em sede de administração da justiça, assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas (artigo 3° do ETAF).
A expressão "contencioso administrativo "é utilizada pelas leis em pelo menos cinco sentidos distintos - orgânico, funcional, material, instrumental e normativo - a maioria deles sem grande rigor.
No presente caso releva o sentido material da expressão contencioso administrativo isto é, "o conjunto de litígios entre a Administração Pública e os particulares, que hajam de ser solucionados pelos tribunais administrativos com aplicação do Direito Administrativo”.
No quadro da competência material dos tribunais administrativos distingue-se entre o contencioso por natureza ou essencial e o contencioso por atribuição ou acidental, abrangendo o primeiro os actos e regulamentos administrativos e o último os contratos administrativos, a responsabilidade da administração, os direitos e interesses legítimos e as questões eleitorais (artigos 51°, alíneas a) a d), e) f), g) e h), do ETAF).
O contencioso administrativo por natureza ou essencial constitui a garantia dos particulares contra o exercício ilegal por via unilateral do poder administrativo.
Na senda do Acórdão deste TCAS de 18.01.2005, no Recurso nº 108/04, os tribunais comuns não dispõem de competência em razão da matéria para conhecerem dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativa e fiscais, a qual se radica na ordem de tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
É que, sempre na senda do citado aresto, por força de norma constitucional, a competência para julgar as acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, radica-se nos tribunais administrativos e fiscais – art.º 212.º n.º3 da CRP – que não nos tribunais comuns, exercendo estes a sua jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais – art.º 211.º n.º1 da mesma CRP.
Na respectiva pirâmide legislativa, no degrau imediatamente inferior, as leis orgânicas das respectivas ordens de tribunais, vêm secundar aquelas normas constitucionais, desenvolvendo-as, no sentido programado por aquelas.
Assim, a competência em razão da matéria dos tribunais comuns ou judiciais é para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional – art.º 18.º da LOTJ na redacção introduzida pela Lei n.º 105/2003, de 10 de Dezembro – enquanto que aos tribunais administrativos e fiscais é atribuída a competência para dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais – art.º 1.º do ETAF, na redacção da Lei n.º 107-D/2003, de 31 de Dezembro.
A jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é genericamente definida pelo n.º 3 do art. 212.º da C.R.P., em que se estabelece que «compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais», norma esta que adoptou, no essencial, a regra que já constava do art. 3.º do ETAF e ficou contida na parte final do artigo 1º da Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro.
Sendo a jurisdição dos tribunais judiciais constitucionalmente definida por exclusão, conforme preceitua o art. 211.º, n.º 1, da CRP (disposição esta que é reproduzida, na sua essência, no art. 18.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais - Lei 3/99, de 13 de Janeiro, doravante LOFTJ).
De acordo como o art. 18° da LOFTJ e 66.° CPC, as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional são da competência dos tribunais judiciais.
E, pela voz da doutrina, não se olvida o pensamento de MANUEL DE ANDRADE, in Noções Elementares de Processo Civil, 1979, página 91, que nos ensina ser a competência dos tribunais aferida em função dos termos em que a acção é proposta, «seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina REDENTI – “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”, é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes.»
«A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão» (Obra e local citados).
Este entendimento está, aliás, em sintonia com o direito que a todos os cidadãos é garantido de acederem aos tribunais com o escopo de verem apreciados os direitos de que se arrogam (n.º1 do artigo 20º da Lex Fundamentalis) e foi de há muito aceite, no essencial, pelo STJ , STA e Tribunal de Conflitos (veja-se, entre outros, os Acs. do T. Conflitos, de 31.01.91, AD 361 e de 6-7-93 (Conflito nº 253); do STJ, de 03.02.87, in BM 364º-591, de 202-90. BMJ 394º-453, de 12.01.94 e do STA, de 09.03.89,Rec. 25084, de 13.05.93, Rec. 31478, de 27.01.94, Rec. 32278, de 28.05.96, Rec. 39911, de 26.09.96, Rec. 267, de 27.11.96,Rec. 39544, de 19.02.97, Rec. 39589, de 24.11.98, Rec. 43737 de 03.03.99, Rec. 40222, de 23.03.99, Rec. 43973, de 26.05.99, Rec. 40648, de 13.10.99, Rec. 44068, de 26.09.00, Rec. 46024, de 06.07.00. Rec. 46161, de 03.10.00, Rec. 356 e de 11.07.00, Rec. 318).
Temos, assim, que a competência do tribunal se afere face à pretensão formulada pelo autor na petição inicial, traduzida no binómio pedido/causa de pedir, ou seja, face ao «quid disputatum» e não ao «quid decisum», isto é, dito por outras palavras, a competência determina-se pelo pedido do Autor, irrelevando qualquer tipo de indagação acerca do seu mérito.
É consabido que aos tribunais administrativos incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito das relações jurídicas administrativas, sendo certo que lhes é retirada competência para conhecimento de acções que tenham por objecto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja pessoa de direito público.
É, pois, à luz da doutrina e jurisprudência citada, bem como das referidas normas delimitadoras da competência da jurisdição administrativa e da dos tribunais judiciais, que cumpre decidir se o conhecimento da presente acção incumbe aos tribunais administrativos propriamente ditos ou aos tribunais tributários, sendo pacífico que ambos integram a “jurisdição” administrativa na acepção sobejamente supra explicitada.
Vejamos então.
A referência à relação jurídico-administrativa mostra que, na delimitação da competência dos tribunais administrativos, o legislador perfilhou um critério material, partindo da natureza administrativa ou não da relação jurídica subjacente mas, abandona-a por a considerar insuficiente, vindo a acolher o ensinamento sufragado pela doutrina e jurisprudência, acima mencionada, segundo a qual o tribunal materialmente competente para conhecer a pretensão do A., deve aferir-se em face “ do teor desta pretensão e dos fundamentos em que se estriba”, irrelevando qualquer indagação acerca do seu mérito, e “sendo igualmente certo que o tribunal não está vinculado às qualificações jurídicas efectuadas pelo requerente ou autor”.
Como se disse e é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações, nos termos dos artigos 144º nº 2 e 146º nº 4 do CPTA e dos artigos 5º, 608º nº 2, 635º nºs 4 e 5 e 639º do CPC novo (aprovado pela Lei n.º 41/013, de 26 de Junho) ex vi dos artigos 1º e 140º do CPTA (correspondentes aos artigos 660º nº 2, 664º, 684º nºs 3 e 4 e 690º do CPC antigo).
No caso, em face dos termos em que foram enunciadas as conclusões de recurso pelas recorrentes, a questão que cumpre decidir e que é, de resto, de cognição oficiosa, subsume-se a saber se a decisão vertida no despacho-saneador proferido pelo Mmº Juiz do Tribunal a quo pela qual julgou procedente a excepção de incompetência material dos tribunais administrativos para conhecerem do pedido formulado na acção (que havia sido suscitada pelo recorrente, réu na acção, defendendo que a mesma pertence aos tribunais tributários em face da natureza fiscal da questão em dissídio) e assim declarou o tribunal (administrativo) incompetente em razão da matéria, incorreu em erro de julgamento, por a competência em razão da matéria pertencer aos tribunais tributários em face da natureza fiscal da questão a decidir.
Como se deu nota acima, o Mº Juiz a quo fundamentou a sua decisão sobre a incompetência material, sintetizando a pretensão de o réu ser absolvido da instância em virtude de se tratar de matéria reservada ao Tribunal Tributário.
No contencioso administrativo vigora o princípio da suficiência da jurisdição administrativa, da devolução facultativa ou da suficiência discricionária da jurisdição administrativa, ou seja, o princípio desta jurisdição poder decidir todas as questões necessárias à decisão das questões que constituam o objecto das acções da sua competência, mesmo que, para o efeito, seja necessário decidir questões para cujo conhecimento (autónomo) seja competente outra jurisdição.
Por assim ser, afigura-se- nos que no caso vertente e por tudo quanto já se deixou dito, julgamos não haver dúvida quanto à competência do tribunal administrativo relativamente à alegada “omissão legislativa” do Estado, no âmbito de relação administrativa-tributária pelo que, sendo essa a relação fundamental que está em causa na presente acção, à qual estão acopolados raciocínios quanto à “legalidade dos actos tributários” mas que nada têm a ver com o cumprimento de obrigação tributária, não sendo de convocar aqui o disposto no art.º 96º, nº 1, do CPC que prevê que o tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa.
Donde que o tribunal administrativo é o competente, em razão da matéria para o conhecimento da questão principal ou fundamental pela autora submetida ao escrutínio judicial, porquanto, tendo em conta os termos da relação jurídica controvertida configurados pela Autora será também ele o competente para o conhecimento das restantes questões conexas ou dependentes deduzidas na petição inicial e, outrossim, das questões deduzidas pelo réu nas respectivas contestações em sua defesa, ainda que para umas e outras, enquanto isoladamente consideradas, pudesse até não ser competente o foro administrativo.
Enfim, não vale aqui a asserção contida no brocardo latino de que Accessorium sequitur principal, antes sendo de extrair a conclusão de que a questão tributária constitui mera deriva e subordinação, podendo ser conhecida na presente acção, nela se restringindo o efeito do julgado - art.º 96.º, nº 2, do CPC.
Nos termos do artigo 13º do CPTA “o âmbito da jurisdição administrativa e a competência dos tribunais, em qualquer das suas espécies, é de ordem pública e o seu conhecimento precede o de qualquer outra matéria”.
E nos termos do artigo 97º nº 1 do CPC novo (aprovado pela Lei nº 41/2013), ex vi do artigo 1º do CPTA a incompetência absoluta “deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.”
À luz daqueles normativos e como já ex abundantis se demonstrou atrás, o critério de determinação da jurisdição competente é o critério material da relação jurídica subjacente ao litígio.
Para além dos demais tribunais superiores, são órgãos da jurisdição administrativa e fiscal os Tribunais Administrativos de Circulo e os Tribunais Tributários, os quais podem funcionar agregados, adoptando, nesse caso, a designação de Tribunal Administrativo e Fiscal, conforme resulta do disposto no artigo 9º do ETAF.
Conforme dispõe o nº 1 do artigo 44º do ETAF é da competência dos Tribunais Administrativos de Circulo conhecer, em primeira instância, de todos os processos do âmbito da jurisdição administrativa (com excepção daqueles cuja competência, em primeiro grau de jurisdição, esteja reservada aos tribunais superiores).
E em conformidade com o disposto no nº 1 do artigo 49º do ETAF (na versão anterior às alterações que lhe foram introduzidas pela Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro, em vigor à data em que a ação foi instaurada) é da competência dos Tribunais Tributários conhecer, entre o demais:
“a) Das ações de impugnação:
i) Dos atos de liquidação de receitas fiscais estaduais, regionais ou locais, e parafiscais, incluindo o indeferimento total ou parcial de reclamações desses atos;
ii) Dos atos de fixação dos valores patrimoniais e dos actos de determinação de matéria tributável suscetíveis de impugnação judicial autónoma;
iii) Dos atos praticados pela entidade competente nos processos de execução fiscal;
iv) Dos atos administrativos respeitantes a questões fiscais que não sejam atribuídos à competência de outros tribunais;
b) Da impugnação de decisões de aplicação de coimas e sanções acessórias em matéria fiscal;
c) Das ações destinadas a obter o reconhecimento de direitos ou interesses legalmente protegidos em matéria fiscal;
d) Dos incidentes, embargos de terceiro, verificação e graduação de créditos, anulação da venda, oposições e impugnação de atos lesivos, bem como de todas as questões relativas à legitimidade dos responsáveis subsidiários, levantadas nos processos de execução fiscal;
e) Dos seguintes pedidos:
i) De declaração da ilegalidade de normas administrativas de âmbito regional ou local, emitidas em matéria fiscal;
ii) De produção antecipada de prova, formulados em processo neles pendente ou a instaurar em qualquer tribunal tributário;
iii) De providências cautelares para garantia de créditos fiscais;
iv) De providências cautelares relativas aos atos administrativos impugnados ou impugnáveis e às normas referidas na subalínea i) desta alínea;
v) De execução das suas decisões;
vi) De intimação de qualquer autoridade fiscal para facultar a consulta de documentos ou processos, passar certidões e prestar informações;
f) Das demais matérias que lhes sejam deferidas por lei.”
Importando evidenciar que na situação dos autos a questão em dissídio, relativamente à qual o recorrente manifestou discordância, interpondo o presente recurso, é a de saber se os tribunais administrativos são os competentes em razão da matéria para conhecer o pedido formulado pela autora na acção no que tange não às regras de incidência e dos valores considerados devidos e pagos pela Autora a título de impostos, mas a “omissão legislativa” do Estado que conduziu a uma tal tributação em desrespeito da legislação comunitária.
Ora tal como já se expendeu supra a tal respeito, deve entender-se por “questão fiscal”, de harmonia com a jurisprudência firmada pelo STA, “aquela que, de qualquer forma, imediata ou mediata, faça apelo à interpretação e aplicação de norma de direito fiscal com atinência ao exercício da função tributária da Administração ou à obtenção de receitas destinadas à satisfação de encargos públicos”. Sendo assim “questão fiscal” aquela que emerge de resolução autoritária que imponha o pagamento de prestações pecuniárias com vista à satisfação de encargos públicos dos respetivos entes impositivos (cfr. Casalta Nabais in, “Direito Fiscal”, 2.ª edição, pág. 366). Ou, por outras palavras, está-se perante “questão fiscal” “quando a mesma diga respeito à interpretação e aplicação de normas legais de natureza tributária, ou seja, se refira a uma resolução autoritária que negue direito a não pagamento ou que imponha o pagamento de qualquer prestação pecuniária com vista à obtenção de receitas destinadas à satisfação dos encargos públicos do Estado ou de outras pessoas coletivas públicas, bem como o conjunto de relações jurídicas que com elas estejam objetivamente conexas ou teleologicamente subordinadas” (vide, Acórdão do TCA Norte de 25/11/2011, Proc. 02750/10.4BEPRT, in www.dgsi.pt/jtcan).
Portanto, o presente litígio não é relativo a uma “questão fiscal”, na tese ampliativa defendida pela jurisprudência, segunda a qual questões fiscais são “as que exigem a interpretação e aplicação de quaisquer normas de Direito Fiscal substantivo ou adjetivo para a resolução de questões sobre matérias respeitantes ao exercício da função tributária da Administração Pública” (cfr. Ac. do Pleno do STA de 12.11.2009, proc. n.º 0366/09).
Ora, como é manifesto, a presente acção não envolve directamente a interpretação e aplicação de disposições de direito fiscal, ou que se situem no campo da actividade tributária. A acção não tem por objecto um ato tributário ou o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido em matéria fiscal, mas a satisfação de um crédito emergente de um contrato administrativo.
Portanto, não estamos perante uma decorrência de relação jurídica fiscal visto não estar em discussão a legalidade da interpretação e aplicação de disposições de direito fiscal, ou que se situa no campo da actividade tributária, impondo-se neste âmbito a revogação do julgado aqui sindicado.
No despacho-saneador o Mmº Juiz do Tribunal a quo considerou o tribunal administrativo materialmente competente para conhecer e decidir a causa.
Não pode todavia manter-se tal decisão, pelos fundamentos atrás expostos face aos quais se tem que concluir que não se trata de questão fiscal, ou seja, de litígio a dirimir pelos tribunais tributários.
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Não obstante o vem dito, não poderão extrair-se as consequências pretendidas pela Autora e ora Recorrente por via da procedência do recurso, quais sejam:
a)- que este TCAS conheça do mérito da causa ex vi do disposto no artigo 149.º n.º 2 do CPTA, eventualmente por via da utilização do mecanismo do reenvio supra judicial nos termos supra sugeridos;
b)- que o TCAS condene o Estado ao pagamento de indemnização civil extracontratual dos danos causados à A. por actos legislativos contrários ao direito comunitário, no montante de €1.233.377,88, acrescidos de juros à taxa legal vencidos, no montante de €478.212,71, e de juros vincendos;
c)-Subsidiariamente, em caso de não procedência do pedido supra, que o TCAS condene o Estado por Enriquecimento Sem Causa, à devolução dos montantes ilegalmente retidos na fonte à A. no montante de €1.233.377,88, acrescidos de juros à taxa legal vencidos, no montante de €478.212,71, e de juros vincendos.”
É que, em perfeita consonância com o ponto de vista do Recorrido Estado Português, não é aplicável o disposto no art. 149.° do CPTA, porquanto, revogada a decisão de absolvição da instância, o conhecimento do pedido envolve, necessariamente, a elaboração de uma base instrutória, carecendo da necessária base de facto para poder definir o direito, não estando o TCA Sul habilitado a proferir qualquer decisão em substituição da decisão ora em recurso sob pena da postergação de um grau de jurisdição.
É que, como bem denota o Recorrido nas suas contra-alegações, não se trata de apenas de uma questão de direito, uma vez que foram impugnados os danos e respectivo montante na contestação do Réu/Recorrido Estado Português, para além do mais nos seus art.s 119.° a 123.°, 129.° e 134.º a 157.º da referida peça processual.
Inequivocamente, o uso deste poder processual, pelo TCA previsto no n.° 2 do art. 149.°, n°2 do CPTA, pressupõe que o processo se encontre saneado e condensado e que se encontrem elaborada a base instrutória e admitidos os requerimentos de prova, ou que por uma lado que as partes tenham acordado em dispensar a produção de prova, o que não é manifestamente o caso.
Pelo que, por via da procedência do recurso deverão os autos baixar à 1ª instância para o efeito de serem praticados os correspondentes actos processuais.

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4.- DECISÃO

Nestes termos, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal em conceder provimento ao recurso jurisdicional, revogando-se a decisão proferida no despacho-saneador, declarando-se competente em razão da matéria o tribunal administrativo de círculo de Lisboa para apreciar e decidir a pretensão ao qual devem os autos baixar para os fins supra precisados.

Sem custas por isenção legal do recorrido.


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Lisboa,04 de Outubro de 2017
José Gomes Correia
Paulo Pereira Gouveia
Carlos Araújo