Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2414/09.1 BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:01/24/2024
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:FATURAS FALSAS
IVA
MATERIALIDADE
Sumário:I - Se a AT reuniu indícios sérios de que as transações tituladas por determinadas faturas não tiveram efetividade, revelando tais indícios que há uma probabilidade séria de não terem sido feitos os fornecimentos em causa, o ónus da prova da efetividade de tais transações é do sujeito passivo.
II - A mera menção à incorreta valoração da prova testemunhal produzida não consubstancia impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, tendo, para o efeito, de ser dado cumprimento ao disposto no art.º 640.º do CPC.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais: Subsecção tributária comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acórdão

I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio recorrer da sentença proferida a 30.06.2018, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por B..., SA (doravante Recorrida ou Impugnante), que teve por objeto o indeferimento da reclamação graciosa que versou sobre a liquidação adicional de imposto sobre o valor acrescentado (IVA) e a dos respetivos juros compensatórios, relativas ao 4.º trimestre de 2004.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nas suas alegações, a Recorrente concluiu nos seguintes termos:

“A. A questão a apreciar e a decidir no presente recurso versa unicamente sobre a legalidade da liquidação oficiosa de IVA, relativa ao período 0412T, no montante de €4.220,76 e respectivos juros compensatórios de €621,67.

B. Da leitura da sentença recorrida vislumbramos que o Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo se apoiou, essencialmente, no depoimento das testemunhas para proferir a decisão em crise, no entanto, não pode a Fazenda Pública concordar com o decidido uma vez que os factos presentes nas alíneas O) a X) do elenco probatório não logram demonstrar cabalmente a realidade das operações objecto dos autos.

C. Dispõe o artigo 19º, nº3 do CIVA que não se pode deduzir imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da factura.

D. Quando a Autoridade Tributária desconsidera faturas que reputa de falsas, aplicam-se as regras do ónus da prova do artigo 74.º da LGT, competindo à Autoridade Tributária fazer prova de que estão verificados os pressupostos legais que legitimam a sua actuação, ou seja, de que existem indícios sérios de que a operação constante da factura não corresponde à realidade, passando a recair sobre o sujeito passivo o ónus da prova da veracidade da transacção.

E. A AT não tem que demonstrar a falsidade das faturas, bastando-lhe evidenciar a consistência desse juízo, invocando factos que traduzem uma probabilidade elevada da operação referida na factura ser simulada, probabilidade elevada capaz de abalar a presunção legal de veracidade das declarações dos contribuintes e dos dados constantes da sua contabilidade, prevista no art. 75.º da LGT.

F. Considera a Fazenda Pública, em consonância com o Procuradora da República, que a Impugnante não logrou demonstrar cabalmente que as operações objecto dos autos eram reais, tendo o Meritíssimo Juiz valorado erradamente os depoimentos das testemunhas, atribuindo-lhes uma força probatória superior a toda a restante prova documental presente nos autos.
G. Ao contrário do defendido pela sociedade impugnante, ora recorrida, a Autoridade Tributária apresentou elementos que põem em causa a efetiva realização das operações: incongruência entre elementos, falta de documentos de suporte e discrepância entre as declarações dos intervenientes.

H. Atento todo o supra exposto, não podia o Meritíssimo Juiz ter valorado o depoimento das testemunhas apresentadas pela impugnante de forma a considerar a ação procedente, uma vez que o fez em detrimento de toda a prova presente nos autos em sentido contrário.

I. Nesta conformidade, deve considerar-se que a impugnante não apresentou prova da materialidade das operações constantes na fatura, não podendo o IVA constante na mesma ser deduzido, ao abrigo do n.º3 do art. 19.º do CIVA, tendo a Autoridade Tributária agido no estrito cumprimento da lei ao emitir a liquidação adicional impugnada, que deverá ser mantida no ordenamento jurídico.

J. Neste contexto, entende a Fazenda Pública que o Tribunal a quo errou no seu julgamento de facto e direito, enfermando a sentença de uma errónea apreciação dos factos relevantes para a decisão e de uma errada interpretação da lei aplicável ao caso em apreço, devendo a sentença ser revogada.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação totalmente improcedente. Porém, V. Exas. Decidindo, farão a costumada JUSTIÇA”.

A Recorrida apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

“1ª) A RFP enquanto Recorrente restringe o seu Recurso à discussão e apreciação da matéria de facto, excluindo expressamente do seu âmbito de apreciação a matéria de direito a qual nunca escreve, nem indica como lhe seria exigível – ali. a), b) e c) do nº 2 do art. 639º do CPC e ali. e) do art. 2º do CPPT.
2ª) No ponto 4º (página 3) das alegações a Recorrente escreve existir erro de julgamento, quanto à matéria de direito, porém por violação (na variante de omissão) das 3 alíneas do nº 2 do art. 639º, o Recurso não deve ser aceite (art. 641º do CPC), ou se aceite deve ser cumprido o que manda o nº 3 do art. 639º.

3ª) Patente o quadro legal processual vigente, em cédula (momento) do Recurso, por invocação da nulidade do conteúdo da sentença, permite-se a recorrida “adivinha” (enquadrar) que o senso fundamentador, do RFP se enquadrará – porque o mesmo nada fundamenta nem enquadra jurídico/processualmente – na oposição entre os fundamentos e a decisão, como mandam os normativos: - Art. 125º do CPPT e ali. c) do nº 1 do art. 615º do CPC.

4ª) Toda a matéria de facto considerada como assente (ou provada) e que consta da pág. 4 até à pág. 10 da sentença, sob as letras A a Y, não foi colocada em crise (causa) pela Recorrente que jamais utilizou o procedimento do art. 640º do CPC, pelo que, “in totum” se consolidou a mesma com caráter definitivo para este processo não sendo modificável total ou parcialmente.

5ª) A regra na apreciação da prova (toda ela: testemunhal, documental, outra) é no sistema processual Português o da livre convicção do Sr. Juiz (art. 607º Nº 5 do CPC e art. 127º do C.P. Penal), conforme a sua convicção e experiência acumulada, mas jamais com arbitrariedade ou capricho.

6ª) Nas alegações o RFP consciente e voluntariamente nos seus pontos com os nºs 3 e 8 desconsiderou parte da matéria de facto provada (mas que na situação sub judice não impugnou, nem dela recorreu), o que gera subjetivamente discricionariedade e parcialidade na apreciação exclusiva das partes que lhe convém, daí que seja ilegal tal método, com efeito na improcedência do Recurso, como se espera.

7ª) As testemunhas foram ouvidas em audiência contraditória sendo instadas pelo RFP e inquiridas pelo Sr. Juiz, tendo feito testemunhos com enorme e elevada razão de ciência e conhecimento direto do negócio (de compra e venda da sucata), pois trabalharam em tal produto nos locais inerentes a essa operação.
8ª) A prova testemunhal, embora sem expressa tipificação legal, é generalizadamente assumida e aceite pelos vários agentes judiciais como a “rainha”, em face da sua imediação, presença física, oralidade, sinais corporais (face, corpo e outros). Tudo como aqui ocorreu.

9ª) Os factos provados de O a X também têm como motivação da sua aceitação o nº das páginas do PA, escritas no final de cada um dos mesmos.

10ª) Em audiência pública e contraditória a RFP fez às testemunhas as questões que entendeu, em vista de encontrar nas mesmas eventuais hesitações, pormenores ou dúvidas, mas as respostas dadas foram inequivocamente idóneas e verdadeiras, porque todas participaram ao longo do tempo nos vários momentos deste concreto – compra, transformação, transporte e revenda - e realizado negócio (das sucatas).

11ª) Com a tese da RFP sob Recurso está patente o “thema decidendum”, porém a mesma não deixa explicação e gera contradição em vários momentos do mesmo:

a) Porque é que o valor da venda da sucata, realizada pela Impugnante, junto da Siderurgia Nacional, não foi anulada oficiosamente para efeitos de dedução, em cédula de IRC da mesma Sociedade?

b) Porque é que a RFP não levou a audiência de Inquirição das testemunhas os seus técnicos – peritos que elaboraram o Relatório da Inspeção?

c) Porque é que a RFP não valoriza a independência e seriedade da Impugnante, quanto aos atos que esta praticou (com a petição inicial, na inquirição das testemunhas e pelos requerimentos de 2/10/2014 e de 25/9/2017), no sentido de ser conhecido o movimento bancário do cheque emitido para pagamento do preço de sucata?

12ª) A transcrição lavrada no ponto 7 das Alegações da R.F.P. não está correta no seu 3º ponto, pois de forma consciente, a Recorrente omitiu a relevante anotação final, ali deixada pelo Sr. Procurador da República: (cfr. análise da prova testemunhal elaborada pela AT, em sede de Alegações). Ou seja, o Sr. Procurador que não esteve presente na Inquirição das Testemunhas, ficou impedido de se pronunciar sobre a valia dos testemunhos prestados. Logo reconheceu a sua impossibilidade de com certeza, segurança e autonomia lavrar parecer, de forma idónea e independente.

13ª) No exercício do ónus da prova que assumiu desde a sua petição inicial a Impugnante canalizou para os autos documentos e testemunhas adequadas a provar a verdadeira e efetiva ocorrência da operação de compra da sucata pelo preço de 26.435,26€ com inclusão do IVA no valor de 4220,76€.

IV. Do Requerimento/Pedido

Termos em que, o presente Recurso deve a final se considerado improcedente, porque não provado e assim ser mantido na íntegra o sentenciado pelo Tribunal “a quo”, com a consequente anulação da liquidação em cédula de IVA quanto a período de 0412T e aqui sob censura. Assim se fazendo a useira Justiça”.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Verifica-se erro de julgamento, em virtude de a factualidade provada não lograr demonstrar a efetividade das operações?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“ A)

A impugnante é uma sociedade anónima denominada «B..., SA» com atividade na reciclagem de sucata e de desperdícios, correspondente ao CAE 038321, foi sujeita a uma análise interna pelos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, a coberto da Ordem de Serviço n.º OI200802895, aberta na sequência da ação de inspeção à sociedade «T… Lda.»;

(não contestado)


B)

Em 29.12.2004 foi emitida pela impugnante uma Guia de Entrada de sucata n.º 200409765, à sociedade «T.... Lda.», no montante de €22.214,50 e IVA de €4.220,76;

(cfr. fls. 55 dos autos)


C)

A sucata constante da referida guia, atrás identificada, foi pesada e conferido o seu transporte através dos veículos da impugnante, desde a Quinta …. propriedade de I... N...., para o Estaleiro da impugnante na Azambuja; (cfr. fls. 50 a 62 dos autos)

D)

A pesagem da sucata e dos camiões da impugnante bem como o seu transporte foi conferida por I.. A... C... N...– intermediário na venda da referida sucata;

(cfr. fls. 49 e 50 dos autos)


E)
Em resultado da aquisição de 201.950kg de sucata, a sociedade «T.... LDA– .» com sede em Quinta...,emitiu em nome da impugnante, uma factura com o n.º3225, em 29.12.2004, no montante de €26.435,26, com IVA incluído, de €4.220,76;
(cfr. fls. 64 dos autos)
Na mesma data emitiu o respetivo recibo de quitação n.º 572, do valor atrás facturado;

(cfr. fls. 65 dos autos)


G)

Para pagamento do montante da fatura, n.º3225 de 29.12.2004, a impugnante emitiu, em 10.01.2005, um cheque n.º 4804844980, no valor de €26.435,26 à ordem da sociedade «T.... LDA– Máquinas e Acessórios Agrícolas, Lda.»;

(cfr. fls. 65 dos autos)

H)

O cheque atrás identificado foi endossado, com o carimbo da sociedade «T.... LDA–.» a uma conta do B..., n.º 2-4354817, em 13 de janeiro de 2005;

(cfr. fls. 191 do PA apenso aos autos)


I)

Em 28.03.2018 o Banco …, ao obrigo da derrogação do sigilo bancário determinado pelo Acórdão do TACS de 16.11.2017, remeteu ao tribunal a ficha de identificação dos titulares da conta n.º 2-4354817, onde foi depositado o cheque emitido pela impugnante;

(cfr. doc. de 28.03.2018 registado no tribunal n.º 377941)

J)

Do referido documento verifica-se que o cheque foi depositado numa conta pertencente a J… N… e M… D…, ele, filho do intermediário da venda da sucata, I.. A... C... N...com residência permanente, em Quinta …;

(cfr. doc. de 28.03.2018 registado no tribunal n.º 377941)

K)

Em sede de inspeção tributária foi ouvido em Auto de Declarações, I.. A... C... N...que afirmou «A transação existiu e resulta de uma permuta entre mim a empresa T….. O negócio consistiu na troca de sucatas por uma máquina, várias viaturas em segunda mão e alguns pagamentos em cheques e dinheiro. As referidas viaturas em segunda mão e alguns pagamentos em cheques e dinheiro. As referidas viaturas e a máquina foram retiradas pelo Sr. S… e a sucata restante foi transportada, diversas vezes, por camiões da empresa B..., SA Reciclagem SA., a partir das minhas instalações. Os pagamentos foram sempre efetuados pelo Sr. S.... Desta forma confirmo que a transacção realizada entre as empresas T.... Lda e B..., SA Reciclagem. Não sei precisar a data exacta da operação nem o montante do negócio.»

(cfr. fls. 176 do PA apenso aos autos)


L)

Apurou ainda a inspeção tributária que o Sr. I.. A… C.. N…, com a atividade de «Manutenção ….» aberta desde 01.01.2003, afirmou ter recebido pagamentos relativos à transacção de sucatas mas não entregou qualquer declaração de rendimentos no ano de 2004 e seguintes;

(cfr. fls. 177 do PA apenso aos autos)

M)

Em resultado da ação de inspeção o relatório inspectivo concluiu da seguinte forma:

«(…)

Conclusão

Face ao acima exposto é possível concluir:

A operação é total ou parcialmente inexistente – Com os elementos disponíveis, não ficaram esclarecidas as quantidades transaccionadas (300 ou 201.950 quilos) destinatário do pagamento (a quem pertence a conta do B... onde foi depositado o cheque endossado?) as partes intervenientes (B…./T…, B…/I… /T.... Lda ou B… /I… N….) nem o local de carga (M… ou G…?).

Fatura é falsa – o documento de suporte em análise apresenta discrepâncias, quanto às quantidades, fornecedores e valor, relativamente à operação descrita por cada uma das partes.

Operação simulada – pela conjugação dos motivos referidos nos dois pontos anteriores poder-se-á afirmar que estamos perante uma operação simulada (pelo menos quanto a um dos intervenientes)

Assim a inexactidão dos elementos inscritos na fatura, faz com que tais encargos sejam considerados não devidamente documentados e, consequentemente, sejam desconsiderados para efeitos de apuramentos do lucro tributável, nos termos da línea g) do n.º1 do art.º42 do CIRC.

Em termos de IVA, fica igualmente inviabilizada a sua aceitação para efeitos fiscais, pelo que, nos termos do n.º3 do art.º19 do CIVA, deverá corrigir-se o valor deduzido já que “Não poderá deduzir-se o imposto que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da factura ou documento equivalente”.

III.1 – Correções em IVA.

Em face dos factos descritos propõe-se a correção do IVA indevidamente deduzido no período 0412T, no montante de €4.220,76. (…)»

(cfr. fls. 177 do PA apenso aos autos)


N)

Em resultado desta correção foi emitida uma liquidação oficiosa n.º 08351903, referente ao período 0412T, no montante de €4.220,76 de uma liquidação de Juros compensatórios n.º 08351904 de €621,67;

(cfr. doc. 3 e 4 juntos com a PI)


O)

O valor do preço da tonelada acordado entre a testemunha F... L...e o Sr. I.. A... C... N...foi de €110,00, valor que foi pago e debitado na conta corrente da impugnante e correspondente ao cheque emitido pela impugnante, no valor de €26.435,26, atendendo às 201 toneladas de sucata adquiridas;

(cfr. fls. 167 do PA apenso aos autos e depoimento da testemunha F... L...)


P)

Os trabalhadores, A.. M… - operador de Máquina de Prensa de Sucata, J… M…. - Operador de Grua e Motorista e C.. F… - Motorista, em conjunto com outros colegas da impugnante que efetuaram o trabalho de preparação e enfardamento da sucata na Quinta …, bem como o seu transporte para o estaleiro da firma «B..., SA»;

(cfr. depoimento unânime das testemunhas)


Q)

O peso, em toneladas, contido nos talões é relativo ao peso do camião quando entra carregado na balança-báscula e o peso depois de descarregado, correspondendo a diferença à quantidade de sucata transportada, contendo ainda os referidos talões a data do transporte, a matrícula do camião que transportou a respetiva quantidade de sucata e ainda a identificação do vendedor da mesma;

(cfr. fls. 167 do PA apenso aos autos e depoimento da testemunha F... L...)


R)

O transporte da sucata foi efetuado, entre o mês de Março e o mês de Setembro do ano de 2004;

(cfr. fls. 198 a 200 do PA apenso aos autos e depoimento unânime das testemunhas)


S)

Em finais de 2004, a testemunha F... L...foi falar com o Sr. I…N…, levando com ele os talões do transporte da sucata comprada, para que este procedesse à emissão da fatura correspondente à transação, uma vez que tinha que fechar o exercício de 2004 e não tinha os documentos comprovativos do negócio;

(cfr. depoimento da testemunha F... L...)


T)

Só após esta conversa foram emitidas, a Guia de Entrada da Sucata n.º 200409765, a fatura 3225 e o Recibo de quitação, todos, com data de 29.12.2004;

(cfr., depoimento da testemunha F... L...)


U)

O Sr. I... N... comportava-se como sendo o proprietário da quinta de M... e da sucata que a «B..., SA» comprou sendo também conhecido na zona da sua morada como vendedor de peças de automóveis usados e desmantelados ou vendedor de ferro velho;

(cfr., depoimento das testemunhas A... M..., J... M... e C... F...)


V)

O Sr. I… N… vendia as peças de automóvel ali no terreno e não passava faturas dessas vendas;

(cfr., depoimento da testemunha C… F…)


X)

A sucata adquirida, depois de desmantelada e reciclada foi vendida à Siderurgia Nacional ao preço de €155,00 a tonelada;

(cfr., doc. 22 e depoimento unânime das testemunhas)

A petição da impugnação deu entrada no Tribunal Tributário em 10.12.2009 cf. fls. 2 dos autos”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Não se provaram outros factos com relevância para a presente decisão”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A matéria de facto, constante das alíneas do probatório foi a considerada relevante para a decisão da causa e, a formação da convicção do tribunal assentou na análise crítica dos documentos identificados e não impugnados, referenciados em cada uma das alíneas, para as folhas dos processos onde se encontram.
Quanto à alíneas O) a X) do elenco probatório, a decisão da matéria de facto teve por base o depoimento das testemunhas, F…L…, Delegado Comercial, A… M…, Motorista, Operador de Máquina de Prensa e carregamento de sucata, J… M…., Operador de Grua e Motorista de Pesados e C… F…, Motorista de Pesados todos funcionários da sociedade impugnante, tendo a sua prestação sido relevante na medida em que confirmaram ao tribunal que foi o Sr, I.. A... C... N...que contactou a sociedade impugnante, como intermediário, para a venda de material de sucata de folha preta e agiu na escolha da mesma como se fosse o seu proprietário. Relevou a afirmação da testemunha F... L... ao afirmar que o cheque foi entregue ao Sr. I… N…. porque foi ele que tratou da venda da sucata. Mais relevou o depoimento das testemunhas na medida em confirmaram que a sucata existente na Quinta de M… que foi desmantelada, prensada, enfardada e transportada pelos motoristas para o estaleiro da impugnante foi de cerca de 200 toneladas. Afirmaram ainda que, depois de ali reciclada no estaleiro e nas máquinas da impugnante foi vendida à Siderurgia Nacional. Confirmam por fim que os valores de toneladas de sucata existentes nos talões emitidos pela Báscula/Balança dos camiões correspondem à sucata retirada e indicada pelo Sr. I... N..., da qual disse não ser ele a emitir factura”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, por não ter ficado demonstrada a materialidade das operações inerentes às faturas reputadas de falsas.

Apreciando.

O IVA é um imposto plurifásico, que assenta numa estrutura de entrega e respetiva dedução, pelos vários intervenientes na cadeia, até ao consumidor final, que o suporta, sem o poder deduzir. O direito à dedução do IVA é um direito que assiste aos sujeitos passivos de IVA, desde que os bens e os serviços, a que respeita tal imposto a deduzir, sejam utilizados para os fins das próprias operações tributáveis.

O IVA funciona, pois, pelo método indireto subtrativo, de acordo com o qual o sujeito passivo deduz, ao imposto liquidado nos seus outputs, o imposto liquidado nos respetivos inputs. Trata-se de um reflexo do princípio da neutralidade, subjacente a este imposto, que, no que toca ao direito à dedução em específico, se reflete na necessidade de o IVA não condicionar os produtores a alterar o seu processo produtivo.

Como reflexo da mecânica do imposto, resulta do n.º 3 do art.º 19.º do CIVA que não se pode deduzir o IVA que resulte de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da fatura ou documento equivalente.
“[C]omo decorre do preâmbulo do CIVA, ao fazer intervir na recolha do imposto a generalidade dos operadores económicos, diluindo-se o seu peso por um maior número de operadores e sendo a dívida tributária de cada operador calculada pelo método do crédito do imposto, decorre daqui a importância que uma dedução indevida do imposto reveste (…). O objecto da dedução são as quotas suportadas pelos sujeitos passivos nos termos prescritos nos artigos 19 e segs. do CIVA. Ora o artigo 19 nº3 deste diploma legal exclui de dedução o imposto resultante de operação simulada ou em que seja simulado o preço constante da factura” (1) Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 14.05.2002 (Processo: 5650/01)..Por outro lado, nos termos do art.º 75.º da Lei Geral Tributária (LGT):

“1 - Presumem-se verdadeiras e de boa-fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal.

2 - A presunção referida no número anterior não se verifica quando:

a) As declarações, contabilidade ou escrita revelarem omissões, erros, inexatidões ou indícios fundados de que não refletem ou impeçam o conhecimento da matéria tributável real do sujeito passivo…”.

Cabe, pois, à administração tributária (AT) ilidir esta presunção de veracidade da contabilidade, carreando, maxime em sede de fundamentação do ato tributário, elementos suficientes para esse efeito.
É pacífico o entendimento de que, em situações como a dos autos, para efeitos designadamente do art.º 74.º, n.º 1, da LGT, a AT não tem de provar, em sede de ação inspetiva, a efetiva simulação nos termos constantes do art.º 240.º do Código Civil. É assim bastante a demonstração da existência de indícios sérios e objetivos que impliquem uma probabilidade elevada de que as operações tituladas pelas faturas não foram operações reais (2) Vejam-se, exemplificativamente, os Acórdãos do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 01.02.2016 (Processo: 0591/15), de 16.03.2016 (Processos: 0400/15, 0587/15), de 19.10.2016 (Processo: 0511/15), de 16.11.2016 (Processo: 0600/15) e de 27.02.2019 (Processo: 01424/05.2BEVIS 0292/18).. Assim, reunidos e demonstrados que estejam tais indícios, cessa a presunção de veracidade prevista no art.º 75.º da LGT, competindo ao sujeito passivo alegar e provar a efetividade das operações.

In casu, o Tribunal a quo considerou ter sido demonstrada a veracidade das operações tituladas pelas faturas, entendimento contra o qual a FP se insurge – não estando, pois, em discussão a distribuição do ónus da prova, mas tão-só se o ónus da prova a cargo da Recorrida foi cumprido.

Antes de mais, refira-se que não foi impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos previstos no art.º 640.º do CPC. O que a FP refere é que os factos provados não são de molde a sustentar a conclusão a que o Tribunal a quo chegou. Adiante refere que houve uma errada valoração da prova, sem que, no entanto, tal tenha sido feito nos termos do já citado art.º 640.º do CPC.

Como tal, do ponto de vista fático, a nossa apreciação será feita atento o constante do ponto II. do presente acórdão.

Refira-se que, sobre situação idêntica à ora em apreciação, já se pronunciou este TCAS, em Acórdão cujo objeto era a liquidação de IRC do exercício de 2004 [Acórdão de 31.10.2019 (Processo: 2403/09.6BELRS)].

Atenta a identidade das questões objeto de ambos os recursos, seguimos de perto a fundamentação do referido aresto, de onde se extrai:

“[A] questão é, logrou ou não a Recorrida provar a materialidade das operações?
Para o Tribunal Tributário de Lisboa a resposta é afirmativa, por a Recorrida ter logrado provar toda a factualidade vertida na petição inicial tendente a realizar tal demonstração, ou seja, que tinha sido contactada por I.. A... C... N...para vender uma determinada quantidade de sucata e que na sequência desse contacto o seu delegado comercial se tinha deslocado ao local onde se encontrava a sucata a adquirir (Quinta de M….), tendo sido na presença desse fornecedor, e após analisada a sucata e avaliada a mesma, que tinha sido acordado o preço por tonelada da referida mercadoria e que a sucata por si possuída resultava de um negócio (permuta) realizada entre este e uma terceira empresa ("T…") que envolvia a troca de sucata por uma máquina, várias viaturas em segunda mão e alguns pagamentos em cheque e dinheiro e que a factura não seria, por essa razão, emitida por si.

Segundo o Tribunal a quo, concorreram ainda decisivamente para a sua conclusão de veracidade da operação, o facto de se ter provado que foram funcionários da Recorrida, a mando e sob orientação do referido I… N… que tinham retirado, desmantelado e enfardado a sucata de folha preta constante da Guia de Entrada n.° 200409765, a qual traduz fielmente a quantidade de sucata adquirida e transportada para o estaleiro da sociedade B…. S.A. E que a Guia de Entrada da sucata, a factura e o recibo de quitação foram formalmente emitidos por uma sociedade de nome "T.... LDA- Máquinas e Acessórios Agrícolas, Lda.", antes da emissão do cheque, à ordem daquela, para pagamento da referida sucata (cheque do B… n.º4804844980, no valor de €26.435,26 à ordem da sociedade «T.... LDA, Lda.»), todos no mesmo dia, 29.12.2004, na sequencia de insistências da Recorrida para que a mesma fosse emitida já que necessitava de "fechar o ano" e necessitava da respectiva factura para a contabilidade.
Por fim, deu-se ainda especial enfoque na sentença recorrida ao facto de ter ficado provado que esse cheque tinha efectivamente sido emitido pela Recorrida, à ordem daquela sociedade e debitado da sua conta e ao facto de ter sido insistentemente pedido por aquela - ao longo da instrução da reclamação graciosa e em sede judicial - que fosse apurado qual o destino do valor debitado, o que só veio a ser alcançado após o Tribunal a quo ter requerido a este Tribunal Central a derrogação do sigilo fiscal e que permitiu confirmar que aquele cheque tinha sido endossado com carimbo da T.... LDA e uma assinatura do gerente desta e, posteriormente, levado a crédito de conta titulada pelo filho do referido fornecedor de facto/intermediário (conta bancária pertencente ao Banco …. n.º 2-4354817) e contabilizado na conta corrente da Impugnante (conta do … 0007.0019.00474630006.77).

(…)

Entendeu, ainda assim, o Tribunal a quo, não desconsiderar os fundamentos invocados pela Administração Tributária na resposta apresentada e que a levavam a concluir pela simulação da factura, que identificou e desvalorizou com um discurso que, em resumo nosso, se traduziu no seguinte: "No entanto, em sede de inspecção tributária à sociedade «T.... LDA» através de auto de declarações do alegado gerente da mesma, Sr. S… P…., este afirmou em relação à factura em causa n.º 3225 emitida à impugnante, que «(...) a mesma não corresponde à realidade, não foram vendidos por mim, mais do que trezentos quilos de sucata e não foí recebido o valor do cheque correspondente. A rubrica no verso do cheque não corresponde à minha que era o gerente da firma.(...)» (Cf fls. 202 do PA apenso aos autos)

Atenta a contradição de informações concluíram os SIT que se tratou de uma operação simulada, razão pela qual o valor da factura emitida pela «T.... LDA.» não podia ser deduzido (…);

Não se conformando com a correcção efectuada, a impugnante veio requer, em sede de impugnação judicial, que fosse revelada a identificação do destinatário do cheque uma vez que o mesmo havia sido descontado numa conta do BPI da qual não se sabia a identidade do seu titular.

Neste propósito, sendo basilar para a descoberta da verdade material a identificação do destinatário do montante da transacção da sucata em causa nos presentes autos, o tribunal, ao abrigo do disposto no art.º 13 do CPPT, requereu ao Tribunal Central Administrativo Sul a derrogação do sigilo bancário dos titulares do conta onde foi depositado o cheque emitido pela impugnante para pagar a sucata adquirida.

Após a prolação do acórdão veio o B….., identificar os titulares da conta identificada no endosso do cheque do B….. n.º 4804844980.
Verifica-se das fichas, ora juntas aos autos a 28.03.2018 que, os titulares da conta são são J…. N… e M……..D………, ele, filho de I.. A... C... N...com residência permanente, em Quinta …..

Em face do exposto e da prova produzida nos autos, entende o tribunal que a impugnante logrou demonstrar que a operação de compra de sucata foi efectivamente realizada nos termos supra descritos.

Mais logrou a impugnante demonstrar, em face da identificação da sociedade emitente da factura ter efectuado o pagamento por meío de cheque emitido à ordem da sociedade «T.... LDA.» como lhe competia, entregando o cheque à pessoa que intermediou o negócio, o Sr. I… N….. Por outro lado, através da informação do B… verifica-se que o montante de transacção não entrou em conta da esfera jurídica da sociedade «T.... LDA.» daí o seu sócio gerente não ter conhecimento do referido pagamento.

Neste conspecto, entende o tribunal que não tendo sido a sociedade «T.... LDA.» a contactar a impugnante para a venda da sucata, mas o Sr. I… N… e, tendo sido este a efectuar a venda e a receber o pagamento da mesma, não pode a sociedade impugnante ficar prejudicada na sua esfera jurídica tributária por acordo ou negócios, entre aquela sociedade e o Sr. I… N….

O facto é que ficou demonstrada a materialidade e a indispensabilidade das operações constantes da factura (…), bem como provado nos autos que a impugnante procedeu ao pagamento acordado da tonelagem de sucata adquirida (…)».

A conclusão a que o Tribunal a quo chegou não merece, em nosso entender, censura. (…)
Não errou no relevo atribuído aos factos apurados - especialmente aos por si destacados e constantes do probatório, aqui incluídos os das alíneas O) a X) conjugados com os demais que se evidenciaram igualmente, nem na conclusão de facto que deles extraiu por, da conjugação da referida factualidade, ser inevitável concluir-se que a transacção comercial realizada entre a Recorrida e o fornecedor de facto foi real, isto é, que houve um efectivo fornecimento/aquisição, transporte, recebimento e pagamento da mercadoria.

Ou seja, face à prova produzida - que, distintamente do que pretende fazer crer a Recorrente, não se cingiu à prova testemunhal, antes se louvou em diversos documentos cuja valoração se mostra devidamente fundamentada -, não só foram afastados os indícios elencados pela Administração Tributária no relatório, quer os relativos às quantidades transaccionadas e às discrepâncias no que a estas respeita, quer o destinatário do pagamento, designadamente a quem pertence a conta do B… onde foi depositado o cheque endossado, as partes intervenientes, bem como o local de carga e de descarga da mesma mercadoria. Em suma, ficou demonstrado todo o circuito, quer da mercadoria, quer dos pagamentos, que permite concluir pela demonstração da efectividade da operação.

Não errou ao entender que a referida aquisição onerosa, por ter sido realizada no e para o desenvolvimento da sua actividade comercial, constitui um custo e como tal deve ser fiscalmente relevado.

Por um lado, porque o legislador fiscal considerou constituírem "Gastos", os que comprovadamente são indispensáveis para a realização dos rendimentos sujeitos a imposto ou para a manutenção da fonte produtora" e ficou provado que a aquisição da sucata pela Recorrida foi realizada no âmbito e para o desenvolvimento da sua actividade comercial”.

Considerando este entendimento, a que aderimos, e atendendo ao facto de a correção em crise se centrar exclusivamente no disposto no art.º 19.º, n.º 3, do CIVA, conclui-se, em consonância, inexistir razão à Recorrente, dado ter ficado provada a efetividade das operações em causa.

IV. DECISÃO
Face ao exposto, acorda-se em conferência na Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 24 de janeiro de 2024

(Tânia Meireles da Cunha)

(Vital Lopes)

(Jorge Cortês)