Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
Processo: | 223/19.9BELLE |
Secção: | CT |
Data do Acordão: | 09/16/2021 |
Relator: | LURDES TOSCANO |
Descritores: | NULIDADE INSUPRÍVEL DESCRIÇÃO SUMÁRIA DOS FACTOS AUTO DE NOTÍCIA |
Sumário: | I - A descrição dos factos não permite alcançar quais são os factos típicos, ilícitos e culposos imputados ao arguido já que se limita a remeter para o Auto de Notícia.
II - Esta realidade põe, claramente, em causa os direitos de defesa do recorrido pelo que a decisão da autoridade tributária que aplicou a coima padece de nulidade, nos termos do estatuído no artigo 63.º/1/b) do RGIT. |
Votação: | UNANIMIDADE |
Aditamento: |
1 |
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes que constituem a 1ª Subsecção da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul: I. RELATÓRIO A Fazenda Pública, com os sinais nos autos, veio, em conformidade com o artigo 280.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, interpor recurso da sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, de 30 de junho de 2020, a qual julgou procedente o recurso de contra-ordenação interposto por G..., ao abrigo do disposto no artigo 80.º do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), contra a decisão de aplicação de coima proferida no processo de contra-ordenação n.º 106620190600..., que correu os seus termos no Serviço de Finanças de S. Brás de Alportel, no qual lhe foi aplicada uma coima única no montante de €3.671,13, acrescida do montante de €76,50 a título de custas processuais, por infracção ao artigo 17.º, 120.º, n.º 9 do CIRC – “Omissões e inexactidões praticadas na dec. Anual de rendimentos Modº 22”, infracção punida nos termos do disposto no artigo 119.º, n.º 1 e 26.º, n.º 4 do RGIT – “Omissões e inexactidões praticadas nas declarações e outros documentos fiscalmente relevantes“e, por infracção ao artigo 27.º, n.º 1 e 41.º, n.º 1, b) do CIVA – “Falta de pagamento do imposto (T)”, infracção punida pelo artigo 114.º, n.º 2, n.º 5 a) e 26.º, n.º 4 do RGIT – “Falta entrega prest. tributária dentro do prazo (T)”. Mais, aquela sentença, fixou à causa o valor de €3.671,13 (por corresponder ao valor da coima aplicada à arguida. Não houve lugar a condenação em custas por delas estar isento o Ministério Público (cfr. artigo 522.º, n.º 1, do CPP e artigo 4.º, n.º 1, alínea a) do RCP ex vi artigos 92.º, n.º 1 do RGCO, e artigo 3.º, alínea b) do RGIT). A Recorrente termina as alegações de recurso formulando as conclusões seguintes: “I)Decidiu a Meritíssima Juiz “a quo” pela procedência dos autos de Recurso e declarou nula a decisão de aplicação da coima recorrida, e, em consequência, anulou os termos subsequentes do processo de contraordenação n.º 106620190600...; II) A douta sentença recorrida entendeu que “(…) não estando a Arguida informada das concretas condutas que lhe foram imputadas, não pode ter-se como adequadamente cumprido, na decisão de aplicação da coima recorrida, o requisito da descrição sumária dos factos, a que alude a alínea b), do n.º 1, do artigo 79.º do RGIT, enfermando a mesma, da nulidade insuprível prevista na alínea d), do n.º 1, do artigo 63.º, do mesmo diploma legal.” III) Salvo melhor e douta opinião, não pode a FP concordar com tal conclusão; IV) A questão decidenda prende-se com a alegada falta de descrição sumária dos factos, nos termos do artigo 79.º, n.º 1 alínea b) do RGIT; V)In casu, verifica-se que a arguida, ora recorrida, foi objeto de ação inspetiva ao abrigo das ordens de serviço n.º OI201601997, OI201601998 e OI201601999 conforme se dá conta do requerimento da arguida dirigido ao Chefe do Serviço de Finanças de Lagoa datado de 12 de setembro de 2017, no qual requer a redução das coimas ao abrigo do art.º 29º n.º 1 alínea c) do RGIT relativamente às infrações detetadas naquela, demonstrando ter conhecimento dos factos que deram origem aquelas infrações; VI)Por outro lado, os inspetores tributários, elaboraram o Relatório de Faltas remetido ao Serviço de Finanças competente, documento também notificado à arguida, ora recorrida, do qual constam tais elementos; VII)Tendo o respetivo Relatório de Inspeção Tributária sido notificado à arguida, ora recorrida, ficou a mesma, mais uma vez, ciente dos factos ocorridos e da tipificação das infrações cometida;. VIII)Efetuado pedido de Revisão da Matéria Trbutável, a decisão da fixação daquela nos termos do artigo 92.º da LGT (com acordo entre os peritos do sujeito passivo e da administração tributária), foi notificada ao perito da ora recorrida por carta datada de 06-12-2017 e ao Serviço de Finanças de Lagoa em 07-12-2017, via GPS, ambas insertas nos presentes autos;. XIX)Do auto de notícia que acompanhou a notificação da decisão que aplicou a coima, inserto nos autos, consta a indicação dos artigos infringidos, a indicação dos artigos punitivos, a indicação do período a que respeita a infração, a indicação do termo do prazo para o cumprimento da obrigação e a indicação do montante do imposto exigível e não entregue; X)Sendo uma das normas infringidas o artigo 27.º do CIVA, a qual regula o pagamento do imposto apurado pelo próprio sujeito passivo, norma nunca posta em causa pela douta sentença recorrida, resulta daí o conhecimento do imposto apurado pela arguida, ora recorrida; XI)Face ao exposto supra, conclui-se que todos os elementos que correspondem aos requisitos de fundamentação exigidos pelo artigo 79º, n.º 1 do RGIT foram cumpridos e dados a conhecer à arguida, ora recorrida; XII)Também da referida notificação, efetuada nos termos do art.º 79º n.º 2 do RGIT, inserta nos autos, consta a menção à possibilidade de consulta de todos os elementos quer no endereço http://www.portaldasfinancas.gov.pt quer no serviço de finanças instrutor do processo; XIII)Pelo que, a arguida, ora recorrida, dispunha de todos os elementos necessários para se aperceber dos ilícitos contraordenacionais que lhe são imputados e exercer o seu direito de defesa; XIV)Aqui se invoca o douto entendimento vertido no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 2012-10-03 no Procº 14/12.8TBSEI.C1 segundo o qual na fundamentação da decisão administrativa, no processo de contraordenação, não é de exigir o rigor formal nem a precisão descritiva que se exige numa sentença judicial; XV)Ao decidir pela procedência do pedido, incorreu a Mmª Juiz “a quo” em erro de julgamento e violou a douta sentença recorrida o disposto no artigo 79.º, n.º 1, b) do RGIT. Pelo exposto e com mui douto suprimento de V. Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, revogada a sentença recorrida como é de inteira JUSTIÇA.” **** O Ministério Público apresentou resposta, ao abrigo do artigo 413.º do Código do Processo Penal, na qual alcança as seguintes conclusões:“I- A questão a decidir é a de saber se a sentença de 30/06/2020 enferma de erro de julgamento por considerar que a decisão proferida no Processo de Contra-Ordenação nº 106620190600... não contém a descrição sumária dos factos exigida pelo art. 79º nº 1 al. b) RGIT. II- A descrição sumária dos factos imputados à Arguida na decisão que aplicou a Coima de € 3.671,13 acrescida de Custas de € 76,50 limita-se a remeter para elementos constantes de Auto de Notícia. III- Tal remissão, feita de forma tão lacónica não integra qualquer descrição factual e não permite, de todo, alcançar quais são os concretos factos típicos, ilícitos e culposos imputados à Arguida, impedindo-a de se defender adequadamente. IV- No ofício de notificação desta decisão consta a faculdade de “consultar os elementos do processo e a legislação citada na Internet, utilizando a sua senha de acesso, no endereço htpp://www.portaldasfinancas.gov.pt ou no serviço de finanças instrutor do processo” V- Todavia não poderá admitir-se, do nosso ponto de vista, que se se vá descortinar a descrição da factualidade faltosa em locais alheios ou externos à decisão (cfr. acs. TCA Sul de 06/04/2017, P. 09633/16; de 25/05/2018, P. 0644/16.9BEAVR; de 14/02/2019, P. 0368/17.0BELLE; e de 11/04/2019, P.1026/12.7BESNT), sob pena de flagrante violação das normas constitucionais constantes dos arts. 268º nº 3 e 32º nº 10 da Lei Fundamental. VI- A decisão de aplicação da Coima baseia-se na presunção de que a arguida é a responsável pela prática das contra-ordenações e omite os factos que fundamentam tal presunção. VII- Tal decisão carece por isso dos factos que fundamentam a aplicação de uma coima face aos elementos objectivos dos tipos de ilícitos contraordenacionais em causa, em flagrante violação da al. b) do nº 1 do art. 79º RGIT. VIII- Perante a inexistência de elementos factuais relativos à conduta humana que integrem o elemento objectivo das infracções cuja prática lhe é atribuída a arguida vê-se impedida de exercer cabalmente o seu direito de defesa, direito esse consagrado no art. 32º nº 10 CRP Pelos motivos expostos entende-se que a sentença recorrida aplicou correctamente o direito aos factos e deve ser confirmada. Todavia, Vªs Excias decidirão e farão a costumada JUSTIÇA.” **** Notificado, o Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo emitiu pronúncia no sentido de nada ter a promover “nos termos do art. 416º nº 1 do C.P.P., aplicável por força do disposto nos art. 3º, al. b), do R.G.I.T. e 74º nº 4 do R.G.I.M.O.S.”.**** Atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto, temos que no caso concreto, a questão fundamental a decidir é a de saber se a sentença recorrida enferma de erro de julgamento por considerar que a decisão proferida no processo de contra-ordenação nº 106620190600... não contém a descrição sumária dos factos exigida pelo art. 79º, nº 1, al.b), do RGIT.**** II. FUNDAMENTAÇÃO II.1. De facto A sentença recorrida deu por provados os seguintes factos: “A) Em 21-01-2019, no Serviço de Finanças de Lagoa, com base no relatório de faltas verificadas, na fiscalização efectuada pelos Serviços de Inspecção Tributária I, da Direcção de Finanças de Faro, a coberto da OI201601997/98/99, foi levantado “Auto de Notícia”, em nome de G..., ora Recorrente, com o seguinte teor: «Imagem no original» (…)” (cfr. fls. 19 a 21 do Documento n.º 004499810 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido); B) Com base no Auto de Notícia identificado na alínea A) supra, em 21-01-2019, foi autuado em nome da ora Recorrente, no Serviço de Finanças de Lagoa, o processo de Contra-ordenação n.º 106620190600..., por infracção ao artigo 27.º, n.º 1, e 41.º, n.º 1, b) do CIVA – “Falta de pagamento do imposto (T)”, infracção punida nos termos do disposto no artigo 114.º, n.º 2, n.º 5, a) e 26.º, n.º 4 do RGIT – “Falta entrega prest. tributária dentro prazo (T)” (cfr. fls. 2 a 3 do Documento n.º 004499810 dos autos, idem); C) Em 21-01-2019, foi proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças de Lagoa, no âmbito do processo de Contra-ordenação referido na alínea B) supra, decisão de aplicação de coima à arguida, ora Recorrente, no montante de €3.671,13, acrescida de €76,50 de custas processuais, com o seguinte teor: «Imagem no original» (cfr. fls. 31 a 32 do Documento n.º 004499810 dos autos, ibidem);” **** No que respeita a factos não provados, refere a sentença o seguinte: “Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afectar a decisão de mérito e que, por conseguinte, importe registar como não provados.”.**** A convicção do Tribunal assentou “no teor dos documentos constantes dos autos, que não foram impugnados pelas partes, nem existem indícios que ponham em causa a sua genuinidade”. ***** II.2. De Direito A Administração Tributária aplicou ao arguido « G...», a coima de € 3.671,13, pela prática de infracção prevista no artigo 17.º e 120.º, n.º 9, do CIRC – “Omissões e inexactidões praticadas na dec. anual de rendimentos Modº 22”, infracção punida pelo artigo 119.º, n.º 1 e 26.º, n.º 4 do RGIT – “Omissões e inexactidões praticadas nas declarações e outros documentos fiscalmente relevantes” e pela prática da infracção prevista no artigo 27.º, n.º 1 e 41.º, n.º 1, alínea b) do CIVA – “Falta de pagamento do imposto (T)”, infracção punida pelo artigo 114.º, n.º 2 e n.º 5, alínea a) e 26.º, n.º 4 do RGIT – “Falta entrega prest. tributária dentro prazo (T)”. O arguido impugnou judicialmente tal decisão, invocando que a decisão de aplicação de coima é nula, por violar o disposto no artigo 79º, nº 1, alíneas b) e c) do RGIT. A sentença recorrida, na parte relevante, considerou que: «No caso em apreço, a Arguida, ora Recorrente, vem acusada da prática da infracção prevista no artigo 17.º e 120.º, n.º 9, do CIRC – “Omissões e inexactidões praticadas na dec. anual de rendimentos Modº 22”, infracção punida nos termos do disposto no artigo 119.º, n.º 1 e 26.º, n.º 4 do RGIT – “Omissões e inexactidões praticadas nas declarações e outros documentos fiscalmente relevantes” e por infracção ao artigo 27.º, n.º 1 e 41.º, n.º 1, b) do CIVA – “Falta de pagamento do imposto (T)”, infracção punida pelo artigo 114.º, n.º 2 e n.º 5, a) e 26.º, n.º 4 do RGIT – “Falta entrega prest. tributária dentro prazo (T)”. «Imagem no original» (…)”. Ora, a decisão recorrida, no que à descrição dos factos respeita, tem um conteúdo exactamente igual ao do auto de notícia, limitando-se, no início, a fazer a remissão para o facto de ter sido “levantado Auto de Notícia pelos seguintes factos:”, iniciando de seguida a transcrição. E termina a transcrição acrescentando a frase “Ver Auto de Notícia (Em anexo)., os quais se dão como provados.” Ora, a decisão recorrida, no segmento que indica expressamente como contendo a descrição sumária dos factos, nada descreve quanto aos factos integradores da infracção, limitando-se a transcrever, ipsis verbis, a descrição factual do Auto de Notícia e a dizer que os dá por provados, o que representa uma descrição factual por remissão para o Auto de Notícia. Todavia, ainda que se consiga perceber que a Administração quis dizer que as obrigações previstas nas normas infringidas deveriam ser cumpridas, todavia a mesma é totalmente omissa quanto à concreta inexactidão ou omissão praticada na declaração de IRC de 2013 (à concreta imputação da conduta ao agente), que justifica a sua responsabilização contra-ordenacional, pelo que nenhuma conduta vem descrita, ainda que sumariamente. Por outro lado, verifica-se também que a mesma refere a falta de pagamento de imposto (IVA), contudo a mesma não identifica qual o seu montante, o qual é determinante para a aplicação da coima, uma vez que sem essa indicação a Arguida/Recorrente não pode aferir da justeza da sua aplicação. Ora, este conteúdo sumaríssimo não permite ao arguido com base unicamente na decisão de aplicação da coima e sem recurso a outras fontes externas do acto, aperceber-se dos factos concretos em que se consubstanciaram as infracções praticadas, de modo a poder estruturar a sua defesa em termos compatíveis com o princípio constitucional da tutela judicial efectiva (cfr. artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa). Deste modo, não estando a Arguida informada das concretas condutas que lhe foram imputadas, não pode ter-se como adequadamente cumprido, na decisão de aplicação da coima recorrida, o requisito da descrição sumária dos factos, a que alude a alínea b), do n.º 1, do artigo 79.º do RGIT, enfermando a mesma, da nulidade insuprível prevista na alínea d), do n.º 1, do artigo 63.º, do mesmo diploma legal. E por ser nula a decisão recorrida, devem também anular-se os termos subsequentes do processo, nos termos do n.º 3, do artigo 63.º do RGIT.»
Inconformada, a Fazenda Pública veio interpor recurso da decisão alegando que ao decidir pela procedência do pedido, incorreu a Mmª Juiz “a quo” em erro de julgamento e violou a douta sentença recorrida o disposto no artigo 79.º, n.º 1, b) do RGIT. (conclusão de recurso XV.) Dispõe o artigo 63º, nºs 1, al. d) e 3 do RGIT que: 1 - Constituem nulidades insupríveis no processo de contra-ordenação tributário: (…) d) A falta dos requisitos legais da decisão de aplicação das coimas, incluindo a notificação do arguido. (…) 3 - As nulidades dos actos referidos no n.º 1 têm por efeito a anulação dos termos subsequentes do processo que deles dependam absolutamente, devendo, porém, aproveitar-se as peças úteis ao apuramento dos factos.
Dispõe o artigo 79º, nº1, al.b) do RGIT, sob a epígrafe Requisitos da decisão que aplica a coima, o seguinte: 1 - A decisão que aplica a coima contém: b) A descrição sumária dos factos e indicação das normas violadas e punitivas;
*** Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da 1ª Subsecção da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, devendo o processo baixar ao Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé, para que este o remeta à autoridade tributária que aplicou a coima, com vista a eventual renovação do acto sancionatório. Sem Custas. Registe e Notifique. Lisboa, 16 de Setembro de 2021
(1) Neste sentido, decidem os Arestos do Supremo Tribunal Administrativo de 18/02/2009, processo n.º 1120/08, e de 08/07/2009, processo n.º 361/09, ambos disponíveis em www.dgsi.pt (2) Acórdão do TCAS de 11/04/2019, Proc. 1026/12.7BESNT, disponível em www.dgsi.pt (3) Acórdão do STA, proferido em 28/04/2010, Proc. 0270/10, disponível em www.dgsi.pt. |