Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:10824/14
Secção:CA - 2º. JUÍZO
Data do Acordão:11/20/2014
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:OPOSIÇÃO A AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE, ÓNUS DA PROVA, VIDA PRIVADA
Sumário:I - As declarações para fins de atribuição, aquisição e perda da nacionalidade portuguesa, prestadas nos termos previstos no n.º 2 do artigo 32.º do Regulamento da Nacionalidade devem conter obrigatoriamente a declaração sobre os factos suscetíveis de fundamentarem a oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa (artigo 35º/1/b) do R.N.).
II - Quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adoção, deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efetiva à comunidade nacional (artigo 57º/1 do R.N.).
III - O ónus da prova em sede do previsto no artigo 9º/a) da atual Lei da Nacionalidade e no Regulamento da Nacionalidade rege-se pelo disposto na lei geral, designadamente nos artigos 342º e 343º do C.C.
IV - Nas ações de simples apreciação ou declaração negativa compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga.
V - Neste tipo de ações, o autor, M.P., não está a invocar nenhum direito (seu, substantivo), na terminologia do artigo 342º/1 do C.C.
VI - A aplicação do artigo 343º/1 do C.C. ao caso presente é confirmada pelo facto óbvio de que a tese contrária exigiria normalmente do M.P. uma prova verdadeiramente impossível, sobretudo por causa da impossibilidade jurídica e constitucional de o MP invadir a vida privada e social do interessado.
VII - A prova da ligação efetiva à comunidade nacional é necessariamente feita com base em factos pessoais, pelo que a prova tem de ser feita através de factos próprios do interessado no pedido de aquisição de nacionalidade, que foi quem invocou o direito à nacionalidade portuguesa. Exigir neste contexto a aplicação do artigo 342º/1 do C.C., além de ilegal, seria irracional ou ilógico.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

· MINISTÉRIO PÚBLICO intentou

Ação de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa contra

· M……..

*

Por acórdão, o referido tribunal decidiu julgar procedente o pedido.

*

Inconformado, o r. recorre para este Tribunal Central Administrativo Sul, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

(…)

*

O recorrido contra-alegou, concluindo:

*

O Exmº representante do Ministério Público junto deste Tribunal foi notificado para se pronunciar como previsto na lei de processo.

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência. Teremos presente o seguinte: (i) o primado do Estado democrático e social de Direito material, num contexto de uma vida política e económica submetida ao Bem Comum e à suprema e igual Dignidade de cada pessoa; (ii) os valores ético-jurídicos do ponto de vista da nossa Lei Fundamental e os princípios ou máximas estruturais vigentes, como os da Juridicidade, da Igualdade e da Proporcionalidade.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS segundo o tribunal recorrido

(…)

*

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há melhores condições para se compreender o recurso e para, de modo facilmente sindicável, apreciarmos o seu mérito.

Vejamos, pois.

1ª QUESTÃO

O recorrente invoca o seu direito à identidade pessoal, por causa dos lapsos manifestos que detetou no acórdão recorrido, onde surge como sendo “ré” e casado com um homem.

Ora, tais lapsos manifestos, erros de escrita, são ostensivos e o recorrente logo os detetou, até porque o seu nome como reu esta bem identificado no relatório e nos factos provados.

Assim, ao abrigo do artigo 614º/2 do NCPC, haverá que fazer a retificação, o que se determinará ao tribunal a quo.

2ª QUESTÃO

O recorrente reclama contra o facto de o acórdão emitido ser igual à sentença antes emitida ao abrigo do artigo 27º/1/i) do CPTA.

Mas não tem razão, porque o acórdão previsto no artigo 27º/2 do CPTA e nos artigos 652º/1/c)/3/4 e 656º do NCPC deve ser sobre o objeto do processo; e não sobre outras questões que vão além daquilo que resultou do objeto processual apreciado pelo juiz singular.

Trata-se simplesmente de fazer intervir o órgão colegial normalmente competente.

Não há, portanto, qualquer omissão de pronúncia no acórdão recorrido.

3ª QUESTÃO

«O estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do matrimónio» (cfr. o artigo 3º/1 da LN: Lei 37/81, com ultima alteração pela Lei Org. 2/2006; e o artigo 14º do RN).

É o caso do ora recorrente: brasileiro, nascido e residente no Brasil, filho de pais brasileiros, casado com uma portuguesa em 2010.

Segundo o artigo 9º da atual LN, «constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa:

a) A inexistência de ligação efetiva à comunidade nacional;

b) A condenação, com trânsito em julgado da sentença, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa;

c) O exercício de funções públicas sem carácter predominantemente técnico ou a prestação de serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro».

«As declarações para fins de atribuição, aquisição e perda da nacionalidade portuguesa, prestadas nos termos previstos no n.º 2 do artigo 32.º devem conter obrigatoriamente a declaração sobre os factos suscetíveis de fundamentarem a oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa» (artigo 35º/1/b) do RN).

«As declarações e os requerimentos para efeitos de nacionalidade são instruídos com os documentos necessários para a prova das circunstâncias de que dependa a atribuição, aquisição ou perda da nacionalidade portuguesa e com os demais documentos necessários para a prática dos correspondentes atos de registo civil obrigatório» (artigo 37º/1 do RN).

«Quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adoção, deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efetiva à comunidade nacional» (artigo 57º/1 do RN).

Ora, neste recurso a questão essencial reporta-se ao ónus da prova em sede do previsto no artigo 9º/a) da atual Lei da Nacionalidade e no Regulamento da Nacionalidade (DL 237-A/2006).

Face ao teor das normas citadas, não temos a mínima dúvida de que este processo contencioso é uma ação declarativa de simples apreciação negativa (artigo 10º/3/a) do NCPC), por isso sujeita ao imposto no artigo 343º/1 do CC, que dispõe sabiamente que nas ações de simples apreciação ou declaração negativa compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (cfr., sobre esta importante matéria, P. LIMA/A. VARELA, C.C.Anot., I, notas aos artigos 342º e 343º; MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, V, 2011, capítulo VII; RITA LYNCE DE FARIA, A Inversão do Ónus da Prova no Direito Civil Português, Lisboa, Lex, 2001).

Note-se, aliás, que aqui o autor, MP, não está a invocar nenhum direito (seu, substantivo), na terminologia do artigo 342º/1 do CC.

A aplicação do artigo 343º/1 do CC é ainda mais justificada pelo facto óbvio de que a tese contrária exigiria normalmente do MP uma prova verdadeiramente impossível, sobretudo por causa da impossibilidade jurídica e constitucional de o MP invadir a vida privada e social do interessado. A prova da ligação efetiva à comunidade nacional é necessariamente feita com base em factos pessoais, pelo que a prova tem de ser feita através de factos próprios do interessado no pedido de aquisição de nacionalidade, que foi quem invocou o direito à nacionalidade portuguesa. Exigir neste contexto a aplicação do artigo 342º/1 do CC, além de ilegal, seria irracional ou ilógico.

Portanto, interpretando as leis como manda o artigo 9º do CC, conclui-se que decorre do artigo 343º/1 do CC, das 2 normas referidas da LN e das 4 normas referidas do RN que, nas ações de oposição à aquisição de nacionalidade portuguesa com fundamento na al. a) do artigo 9º da LN, é o réu quem tem o ónus de provar a factualidade integrante da pretensão que o interessado quis fazer valer junto das autoridades administrativas portuguesas.

De tal pretensão faz parte, como requisito, a existência de ligação efetiva à comunidade nacional; a disciplina pormenorizada contida no RN é muito clara nesse sentido. E, adjetivamente, os artigos 343º/1 do CC e 9º/a) da LN comprovam-no.

Não há, assim, qualquer ilegalidade nesta interpretação, com referência à atual LN e aos artigos 32º/2 («Salvo tratando-se de atribuição de nacionalidade mediante inscrição de nascimento no registo civil português, as declarações referidas no número anterior podem ainda constar de impresso, de modelo a aprovar por despacho do diretor-geral dos Registos e do Notariado, podendo ser apresentadas nas extensões da Conservatória dos Registos Centrais ou enviadas, por correio, para a mesma Conservatória, ou por via eletrónica, nas condições que vierem a ser fixadas por portaria do Ministro da Justiça») ou 57º(1) do RN de 2006.

Finalmente, sublinhemos ainda que a aquisição da nacionalidade por via do casamento não se inclui entre os casos que, por força do artigo 6.º/1 da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade (que o Estado Português ratificou em 2000), devam corresponder a uma aquisição da nacionalidade automática. De acordo com os artigos 3.º/1 e 6.º/4 da citada Convenção, o ordenamento jurídico português deve prever a aquisição da nacionalidade por parte do cônjuge do nacional, mas tal aquisição deverá respeitar os requisitos estabelecidos para o efeito no direito interno.

4ª QUESTÃO

Finalmente, o recorrente invoca uma vaga violação dos artigos 13º e 18º da Constituição, na interpretação acabada de referir sobre o artigo 9º/a), porque seria diferente do tratamento dado ao seu progenitor sobre o mesmo assunto.

Ora, sendo certo que não há qualquer factualidade concreta provada sobre esta questão, a verdade é que, se o progenitor do recorrente, em situação igual, obteve a nacionalidade, isso só quererá dizer que foi cometida uma ilegalidade. Esta não deve propagar-se a este caso. Não há, obviamente, tutela jurídica sob a égide da igualdade quando a situação de referência é ilegal ou ilegítima.

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III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com o disposto nos artigos 202º e 205º da Constituição, acordam os Juizes do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.

Mais se decide, ao abrigo do artigo 614º/2 do NCPC, a retificação dos erros materiais constantes do acórdão recorrido, quando se refere ao réu como ré e como casado com um homem.

Custas a cargo do recorrente.

(Acórdão processado com recurso a meios informáticos, tendo sido revisto e rubricado pelo relator)

Lisboa, 20-11-2014

Paulo H. Pereira Gouveia (relator)

Esperança Mealha (em substituição)

Cristina Santos

1) 1 - Quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adoção, deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efetiva à comunidade nacional e sobre o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 2 do artigo anterior.
2 - Excetua-se do disposto no número anterior a aquisição da nacionalidade por parte de quem a tenha perdido, no domínio do direito anterior, por efeito do casamento ou da aquisição voluntária de nacionalidade estrangeira.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, o interessado deve:
a) Apresentar certificados do registo criminal, emitidos pelos serviços competentes do país da naturalidade e da nacionalidade, bem como dos países onde tenha tido e tenha residência;
b) Apresentar documentos que comprovem a natureza das funções públicas ou do serviço militar prestados a Estado estrangeiro, sendo caso disso.
4 - A declaração é, ainda, instruída com certificado do registo criminal português sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do n.º 7 do artigo 37.º
5 - O conservador ou o oficial dos registos pode, mediante requerimento do interessado, fundamentado na impossibilidade prática de apresentação dos documentos referidos na alínea a) do n.º 3, dispensar a sua junção, desde que não existam indícios da verificação do fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade, que esses documentos se destinavam a comprovar.
6 - A Conservatória dos Registos Centrais deve solicitar as informações necessárias às entidades referidas no n.º 5 do artigo 27.º, sendo aplicável o disposto nos n.os 6 e 7 do mesmo artigo.
7 - Sempre que o conservador dos Registos Centrais ou qualquer outra entidade tiver conhecimento de factos suscetíveis de fundamentarem a oposição à aquisição da nacionalidade, por efeito da vontade ou por adoção, deve participá-los ao Ministério Público, junto do competente tribunal administrativo e fiscal, remetendo-lhe todos os elementos de que dispuser.
8 - O Ministério Público deve deduzir oposição nos tribunais administrativos e fiscais quando receba a participação prevista no número anterior.