Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:144/21.5 BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:03/17/2022
Relator:ANA PAULA MARTINS
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA
ILÍCITO DISCIPLINAR
DIREITO DE DEFESA
Sumário:Sancionado o arguido, em sede de processo disciplinar, com base em factos que não constavam no relatório do árbitro, mas apenas em esclarecimentos complementares prestados pelo mesmo, sem que esses factos lhe tenham sido comunicados em momento prévio ao sancionamento, não se mostra devidamente assegurado o direito de defesa.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

A Federação Portuguesa de Futebol, demandada no processo nº 17/2021, no qual é demandante R…, vem recorrer do acórdão proferido, no âmbito do referido processo, em 28.09.2021, pelo Tribunal Arbitral do Desporto, que declarou procedente a acção interposta pelo ora Recorrido e determinou a revogação do acórdão proferido pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol - Secção Profissional, através do qual se condenou o arguido na sanção de 16 dias de suspensão e, acessoriamente, com a sanção de multa no valor de € 1.020, 00€ pela prática de uma infração disciplinar p. e p. pelo artigo 140.º, 9 , n.º 1, do RDLPFP20.
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Nas alegações de recurso, a recorrente Federação Portuguesa de Futebol formulou as seguintes conclusões:
“(…)
2. O Recorrido foi sancionado por, enquanto dirigente da S… SAD e, por isso, agente desportivo, ter proferido expressões para com o árbitro da partida que consubstanciam protesto ou atitude incorreta. Em concreto, o Recorrido "Entrou no terreno de jogo cerca de 1 metro protestando de braços abertos e de forma efusiva a decisão do árbitro [utilizando a expressão "Isto é 2 amarelo caralho!".
3. Entendeu o Acórdão recorrido que a decisão recorrida é ilegal, porquanto não foram assegurados ao Recorrido os seus direitos de defesa, em particular por não lhe terem sido expressamente notificados os esclarecimentos adicionais prestados pelo árbitro em causa.
4. Contudo, a decisão arbitrai padece de grave erro de julgamento, essencialmente por duas razões: i) o conteúdo essencial do sancionamento havia sido notificado por ser o constante do relatório de árbitro, algo que não foi contrariado nem modificado pelos esclarecimentos do árbitro; e ii) ainda assim, teve o Recorrido acesso ao conteúdo de tais esclarecimentos uma vez que o ficheiro correspondente foi criado e disponibilizado na mesma data da concessão de audiência prévia, na pasta respetiva.
5. Logo com a petição inicial ficou cabalmente demonstrado que o Recorrido teve, no caso concreto, a oportunidade de ser ouvido antes do sancionamento em processo sumário, tendo-o sido efetivamente e soube perfeitamente qual o enquadramento punitivo em causa, tanto que se pronunciou em sede de audiência prévia em procedimento sumário.
6. O Recorrido exerceu efetivamente o seu direito de defesa, também quanto ao facto de ter ou não dito tal expressão dirigida ao árbitro (cfr. de fls. 46 e juntando o vídeo de fls. 47 do processo administrativo). Não obstante, optou por impugnar apenas a parte da sua entrada no terreno de jogo e quanto ao protesto efusivo apenas fez menção que se comportou como os demais.
7. A audiência prévia quanto ao conteúdo essencial do comportamento sancionado foi exercida plenamente.
8. O Recorrido pediu o acesso aos autos (cfr. fls. 48), a 8 de maio de 2021, por correio eletrónico, às 15hl9, e foi-lhe concedido o acesso através de ligação, como é habitual, facultada por correio eletrónico do mesmo dia pelas 17hl8 (cfr. fls. 51), sendo que o conteúdo da pasta contém um ficheiro "PDF" precisamente com o teor do esclarecimento do árbitro (com o nome "esclarecimento"), sendo que tal ficheiro foi disponibilizado nessa pasta pelas 17hl6 desse mesmo dia, 8 de maio de 2021, ou seja, antes de ser enviado o correio eletrónico a informar que os autos estavam disponíveis (recorde-se: pelas 17hl8 do mesmo dia).
9. Ou seja, o Recorrido teve oportunidade de ver e analisar os referidos esclarecimentos antes da sua pronúncia pelo que nenhuma nulidade podia ter sido assacada ao procedimento disciplinar neste caso concreto.
10. Por outro lado, os esclarecimentos apenas vêm confirmar, integralmente, o conteúdo do relatório que o árbitro havia escrito pelo que nenhuma alteração ou modificação houve nesse sentido.
11. Por todo o acima exposto, o ato punitivo sub judice proferido pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Recorrente é valido, pelo que, não merece qualquer censura, muito menos aquela que lhe foi conferida pelo Acórdão recorrido.
12. Em todo o caso, a verdade é que o Recorrido tem, nomeadamente, o dever de «manter uma conduta conforme aos princípios desportivos de lealdade, probidade, verdade e retidão em tudo o que diga respeito às relações de natureza desportiva" (artigo 19.º, n. º 1, do RDLPFP); e de "manter comportamento de urbanidade e correção entre si, bem como para com os representantes da Liga Portugal e da FPF, os árbitros e árbitros assistentes.» (artigo 51.º, n.º 1 do Regulamento de Competições da LPFP).
13. As concretas declarações são inegavelmente gravosas para o interesse público e privado da preservação das competições profissionais de futebol, na medida em que minam a pessoa do árbitro, enquanto figura de autoridade do espetáculo desportivo.
14. Atenta a particular perigosidade do tipo de condutas em apreço, designadamente pela sua potencialidade de gerar um total desrespeito pela autoridade das instituições e entidades que regulamentam, dirigem, disciplinam e gerem o futebol em Portugal, o sancionamento deste tipo de comportamentos encontra fundamento na tarefa de prevenção da violência no desporto, enquanto fator de realização do valor da ética desportiva.
15. Esta decisão vem, aliás, em linha do que já foi decidido pelo TCA Sul, no âmbito do processo 155/17. 5BCLSB, bem como inúmeros Acórdãos do TCA Sul, sendo os mais recentes os tirados nos processos 107/18.8BCLSB, 113/18.2BCLSB e 79/18.9BCLSB.
16. Também a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo tem sido unânime quanto a esta matéria. Vejam-se os Acórdãos tirados nos processos 154/19. 2BCLSB e 139/19.9BCLSB.
17. Atentando ao conteúdo das declarações proferidas pelo Recorrido, facilmente se constata que as mesmas em nada contribuem para a ética que deve vigorar no fenómeno desportivo, por imposição moral e legal, conforme supra se demonstrou, tendo as mesmas sido, e bem, disciplinarmente imputadas ao Recorrido, por referência ao disposto no artigo 140, n.º 1 do RD da LPFP.
18. Assim, o Acórdão recorrido merece a maior censura e deve ser revogado, sendo substituído por outro que reconheça a legalidade e acerto da decisão proferida pelo Conselho de Disciplina, mantendo, pois, as sanções aplicadas ao Recorrido.
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Contra-alegou R…, apresentando as seguintes conclusões:
1- A Recorrente pretende valorar factos que não resultaram provados, contudo, sem dar cumprimento ao disposto no artigo 640.° do Código de Processo Civil, motivo pelo qual tal valoração deve ser indeferida.
2- A Recorrente violou o direito de defesa e audição prévia do Recorrido, porquanto, conforme melhor se discorreu em sede de Alegações, aquando da sua notificação para que se pronunciasse sobre o objecto dos Autos, não lhe comunicou a factualidade relevante para efeitos disciplinares, não lhe comunicou as normas jurídicas alegadamente violadas e não lhe permitiu a apresentação de provas em sua defesa.
3- Conforme melhor se detalhou em sede de Alegações, são inconstitucionais os artigos 214.° e 257.° e seguintes do Regulamento Disciplinar da LPFP, o Comunicado da Direcção da FPF 344 de 11 de Fevereiro de 2021 e o Comunicado do Conselho de Disciplina da FPF 345 de 11 de Fevereiro de 2021, quando interpretados no sentido de que a entidade sancionatória se encontra dispensada de, antes de aplicar uma sanção disciplinar ao Arguido em processo disciplinar desportivo, o notificar para efeitos de exercício do seu direito de defesa (audição prévia), permitindo-lhe, nomeadamente, invocar os argumentos que lhe aprouver alegar em sua defesa e, ainda, possibilitando a produção da prova que este entender ser necessária e suficiente a ilidir a presunção decorrente do relatório do árbitro ou delegado, por violação do disposto no n.° 10 do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa.
4- A Recorrente omitiu, aquando da notificação para exercício de um direito de defesa meramente formal e não consubstanciado, factos e matéria probatória relevante para a boa decisão da causa.
5- Não obstante ser, alegadamente, possuidora de um documento contendo esclarecimentos prestados pelo Árbitro da partida, a Recorrente omitiu a notificação desse documento na pasta partilhada por via da qual procedeu à disponibilização dos Autos,
6- A Recorrente apenas adicionou tal elemento em momento posterior ao download dos ficheiros que compunham o processo por parte dos Mandatários do Recorrido, sendo que não informou de que tinham sido adicionados ficheiros em momento posterior, impendindo, dessa forma e com a sua consulta, que o Recorrido tivesse acesso ao documento em tempo útil para que sobre ele se pronunciasse.
7- A matéria cuja notificação a Recorrente deliberadamente omitiu é relevante para o mérito do Autos, pois é ela que consubstancia a imputação objectiva do ilícito ao Recorrido, pelo que carecia de ser objecto de pronúncia por parte deste último.
8- O Relatório da Equipa de Arbitragem não se afigura, in casu, como elemento válido e hábil a criar no julgador uma convicção sobre os factos do mesmo constantes, desde logo, porquanto, no que respeita aos movimentos do Recorrido, é desmentido pelas imagens televisivas que mostram claramente que este não entrou dentro do terreno de jogo (contrariamente ao que se afirma no dito relatório).
9- Resulta da prova produzida nos Autos, nomeadamente o depoimento da testemunha D…, que o Recorrido não adoptou uma conduta diferente da dos demais agentes desportivos presentes nos bancos de ambas as equipas.
10- A liberdade de expressão é um direito fundamental consagrado no artigo 37.° da Constituição da República Portuguesa (CRP), que prevê no n.° 1 que "todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio (...) sem impedimentos nem discriminações ” ,
11- A existência de base factual para a emissão da opinião por parte do Recorrido é decisiva para o aferimento da legitimidade do exercício da sua liberdade de expressão. Aliás, em conformidade com esse entendimento, o TEDH, no seu Acórdão de 23/07/2007, proferido no caso Almeida Azevedo c. Portugal, considerou que as instâncias nacionais deveriam ter apurado os factos subjacentes aos juízos de valor que haviam sido formulados pelo requerente. E, como o demonstram as diversas notícias juntas aos autos e a realização de buscas por parte da Polícia Judiciária na residência do assistente, o arguido tinha motivos e suporte factual para a crítica que formulou.
12- Como refere o Relatório do Árbitro, a única atitude adoptada pelo arguido traduziu-se em “protesta[r] de braços abertos e de forma efusiva a decisão do arbitro ” , sendo certo que os protestos do Recorrido tiveram por base falta efectivamente cometida sobre jogador da S… SAD e assinalada pelo árbitro, ainda que não tenha aplicado critério disciplinar uniforme com o que havia feito até ao momento e continuou a fazer em seguida.
13- É, pois, legítimo que o Recorrido, perante falta dura efectivamente ocorrida e assinalada pelo árbitro, mostre descontentamento e indignação, seja pelo risco para a integridade física de jogador da S… SAD, seja pela influência que a falta poderia ter no desenrolar da partida, contanto que tal reacção espontânea de indignação não extravasasse, como não extravasou, os limites do respeito devido para com demais agentes desportivos. E a verdade é que não há no Relatório do Árbitro qualquer facto concreto que impute ao Recorrido a prática de qualquer comportamento ilícito e censurável.
14- Não existindo qualquer facto concreto no Relatório do Árbitro que configure qualquer comportamento ilícito por parte do Recorrido, a condenação em 16 dias de suspensão afigura-se como compressão excessiva e injustificada ao direito do Recorrido ao pensamento e à indignação constitucionalmente consagrados no artigo 26.° da Constituição.
15- A expressão alegadamente proferida não tem qualquer dignidade punitiva.
16. Improcede, pois, o Recurso Interposto.
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O Ministério Público junto deste Tribunal, regularmente notificado nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 146º e 147°, do CPTA, não emitiu parecer.
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Sem vistos, atento o carácter urgente dos autos, mas com prévia divulgação do projecto de acórdão pelos Senhores Juízes Desembargadores Adjuntos, o processo vem submetido à Conferência.
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II – OBJECTO DO RECURSO

A questão objecto do presente recurso consiste em aferir se o acórdão do Tribunal Arbitral de Desporto padece de erro de julgamento de direito ao decidir que não foi assegurado ao ora Recorrido o seu direito de defesa no âmbito de processo disciplinar.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
De Facto:
O TAD considerou provados os seguintes factos:
1. O Demandante era, à data dos factos, vogal do conselho de administração da S…, SAD.
2. No dia 6 de maio de 2021, no estádio S…, em Lisboa, realizou-se o jogo n.° 13….. (2….01.2…), entre a S… SAD e a F… SAD, a contar para a 31. “jornada da Liga N….
3. A equipa de arbitragem designada e que conduziu o mencionado jogo foi composta pelos seguintes elementos: Árbitro: A…; Assistente 1: R…; Assistente 2: P…; 4.° Árbitro: J…; VAR: J…; AVAR: T….
4. Ao minuto 81' do sobredito jogo, o Recorrente, delegado ao jogo da S… SAD, foi admoestado com cartão vermelho.
5. O árbitro fez constar do respetivo Relatório, na parte relativa à admoestação do Recorrente, o seguinte: “protestando de braços abertos e de forma efusiva a decisão do árbitro”.
6. Em esclarecimento complementar àquele relatório, o árbitro declarou que o Recorrente dirigiu em simultâneo com aqueles gestos as seguintes palavras: “Isto é 2 amarelo caralho!”;
7. No dia 7 de Maio de 2021, por email enviado às 9h34, foi o arguido notificado pela comissão de instrução disciplinar para “dizer por escrito, querendo, o que se lhe oferecer sobre a factualidade a si respeitante presente nos relatórios oficiais quanto ao jogo oficial em que interveio.”
8. No dia 7 de Maio de 2021, por email enviado às 10h00, foi solicitado ao árbitro A… que viesse prestar os seguintes esclarecimentos à comissão de instrução disciplinar: “1 - Que palavras e gestos, em concreto, foram dirigidos/utilizados por aquele agente desportivo em direção à equipa de arbitragem?”
9. No dia 7 de Maio de 2021, por email enviado às 10h03, foi respondido pelo árbitro: “Bom dia, Segue o presente para informar : “ Isto é 2 amarelo caralho! ” Atentamente ”.
10. Tendo exclusivamente presente a factualidade descrita no Relatório de Árbitro, e após a concessão de prazo para o exercício do direito de audição prévia, o Recorrente impugnou que tivesse entrado no terreno de jogo, sustentando que os seus protestos foram idênticos aos de outros agentes desportivos (e estes não tendo sido sancionados), tendo juntado um ficheiro vídeo.
11. O Recorrente veio a ser posteriormente sancionado, por decisão sumária proferida no dia 8 de maio de 2021, em formação restrita, publicitada no Comunicado Oficial n.° 371 da LPFP, da mesma data, com 16 (dezasseis) dias de suspensão e multa no valor de € 1 020,00 (mil e vinte euros), nos termos do artigo 140°, n.°s 1 e 2, do RD LPFP (protestos contra a equipa de arbitragem) e tido acesso ao conteúdo dos autos para efeitos de interposição de recurso.
12. No mapa das sanções aplicadas divulgado pelo Conselho de Disciplina da FPFP, de 8 de Maio de 2021, consta o seguinte relativamente à sanção aplicada ao arguido:
"(Protestos contra a equipa de arbitragem - «Entrou no terreno de jogo cerca de 1 metro protestando de braços abertos e de forma efusiva a decisão do árbitro [utilizando a expressão "Isto é 2 amarelo caralho!"]” - Conforme o descrito no relatório do árbitro e nos esclarecimentos complementares prestados pelo mesmo)
(Ex vi art.° 140.°, n.° 1 e art.° 168.°, n.° 1, ambos do RDLPFP
(Reincidência - Ex vi art.° 54.°, n.° 1 do RDLPFP - Conforme o cadastro do agente desportivo)
(Montante das multas - Ex. vi art. 36.° n.° 1 e 2 do RDLPFP)
(O arguido foi notificado dos relatórios oficiais do jogo no dia 07/05/2021, dos quais consta que o agente desportivo foi expulso por – “Entrou no terreno de jogo cerca de 1 metro protestando de braços abertos e de forma efusiva a decisão do arbitro ” . O arguido apresentou alegações no dia 08/05/2021, acompanhados de imagens vídeo, argumentando, em síntese, que o arguido não entrou em terreno de jogo. Analisada a defesa apresentada, este Conselho de Disciplina - Secção Profissional entende que não se vislumbra indiciado abato suficiente à credibilidade probatória reforçada de que gozam aqueles relatórios oficiais no que respeita às afirmações imputadas ao agente desportivo R… relevantes para o efeito do preenchimento do ilícito disciplinar de Protestos contra a Equipa de Arbitragem, com as consequências disciplinares previstas no RDLPFP).
13. Em sede de Recurso Hierárquico Impróprio, o Recorrente arguiu a nulidade da decisão do Conselho de Disciplina, com base no facto de esse órgão não ter dado ao arguido a oportunidade de ser ouvido e defender-se sobre a alegada utilização da expressão “Isto é 2
amarelo, caralho”, expressão essa que utilizou para o condenar e sancionar com pena de 16 dias de suspensão, invocando a violação do direito de audiência e de defesa previstos nos artigos 32°, n.° 10, da Constituição e 13.°, al. d), do RD LPFP
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No que tange aos factos não provados, consta do acórdão recorrido que “Com relevo para a apreciação e decisão destes autos, não há factos que não se tenham provado.”
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De Direito

No dia 08.05.2021, a Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, em formação restrita, condenou R…, o ora Recorrido, na sanção de 16 (dezasseis) dias de suspensão e, acessoriamente, com a sanção de multa no valor de € 1.020,00€ pela prática de uma infração disciplinar p. e p. pelo artigo 140.º do RDLPFP 20, por factos ocorridos no jogo nº 13…, entre o S… e a F… SAD, realizado no dia 06.05.2021, a contar para a 31º jornada da Liga N….
Por acórdão, de 10.05.2021, do Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol - Secção Profissional, proferido no âmbito do recurso hierárquico impróprio (que correu termos com o nº 3…/21) interposto pelo ora Recorrente, foi confirmada a decisão disciplinar.
O aludido regulamento (RDLPFP 20) disciplina os poderes disciplinares de natureza pública exercidos no âmbito das competições de futebol organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (Liga Portugal).
O seu artigo 140º, epigrafado “Protestos contra a equipa de arbitragem”, estabelece que “Os dirigentes que, por ocasião dos jogos oficiais, protestarem ou adotarem atitude incorreta para com os elementos da equipa de arbitragem são punidos com a sanção de suspensão a fixar entre o mínimo de oito dias e o máximo de três meses e, acessoriamente, com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC.” (nº 1); Em caso de reincidência, os limites mínimo e máximo da sanção acessória de multa são elevados para o dobro. (nº 2).
Em concreto, o ora Recorrido foi sancionado por, enquanto dirigente da S… - Futebol SAD, ter entrado “no terreno de jogo cerca de 1 metro protestando de braços abertos e de forma efusiva a decisão do árbitro (utilizando a expressão “Isto é 2 amarelo caralho!”).
Inconformado, a ora Recorrido apresentou pedido de arbitragem junto do Tribunal Arbitral de Desporto e este, por acórdão proferido, a 28.09.2021, por unanimidade, julgou procedente o pedido de revogação do acórdão.
Foi esta a fundamentação de direito gizada pelo TAD:
“Nos termos da alínea f) do artigo 13.° do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, um dos princípios fundamentais do procedimento disciplinar é o da “presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga Portugal e dos autos de flagrante delito lavrados pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa”. Ainda nos termos das alíneas d) e h) do mesmo artigo, constituem também princípios fundamentais, no mesmo âmbito, os da "observância dos direitos de audiência e de defesa do arguido, nos termos previstos no presente Regulamento” e da "liberdade de produção e utilização de todos os meios de prova em direito permitidos, incluindo garantia de acesso do arguido, em 24 horas, às gravações resultantes dos sistemas de comunicação da equipa de arbitragem, quando se proceda por factos por esta relatados ou presenciados, com
exceção das comunicações entre o árbitro principal e o VAR".
Por sua vez, no artigo 16.° do mesmo Regulamento estabelece-se: "1. Na determinação da responsabilidade disciplinar é subsidiariamente aplicável o disposto no Código Penal e, na tramitação do respetivo procedimento, as regras constantes do Código de Procedimento Administrativo e, subsequentemente, do Código de Processo Penal, com as necessárias adaptações. 2. A aplicação subsidiária de quaisquer normas ao procedimento disciplinar regulado no presente título tem de respeitar os princípios consagrados no artigo 13.°".
Da análise das normas em causa resulta que existe uma presunção, ilidível, de veracidade dos factos constantes do relatório da equipa de arbitragem - mas também resulta, inequivocamente, que essa presunção pode ser ilidida, desde que fundadamente.
Assim, caberá a quem quiser afastar o funcionamento da presunção produzir ou utilizar todos os meios de prova em Direito permitidos.
Apesar de se estar, in casu, perante um processo sumário, relativamente ao qual o artigo 214.° do RDLPFP dispensava a faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, o Tribunal Constitucional julgou “inconstitucional a norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar, no âmbito do processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.° do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional; julga inútil a apreciação da conformidade constitucional da norma do procedimento disciplinar sumário, que estabelece a presunção inilídível da veracidade dos factos constantes dos relatórios dos árbitros e do delegado da Liga, resultante da interpretação conjugada do artigo 13.°, alínea f), com o artigo 214.°, ambos do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional ” . Cfr. o acórdão do TC n.° 594/2020, in dgsi.pt.
Pode assim afirmar-se a essencialidade, também no âmbito da justiça desportiva, do direito de defesa. De resto, vai nesse sentido a recente alteração do referido artigo 214.° do RDLPFP, que tem actualmente a seguinte redacção:
Artigo 214º
Obrigatoriedade de audição do arguido
A aplicação de qualquer sanção disciplinar é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido.
Concretamente, o arguido foi sancionado com base nos seguintes factos: "(Protestos contra a equipa de arbitragem - «Entrou no terreno de jogo cerca de 1 metro protestando de braços abertos e de forma efusiva a decisão do árbitro [utilizando a expressão "Isto é 2 amarelo caralho!"]" - Conforme o descrito no relatório do árbitro e nos esclarecimentos complementares prestados pelo mesmo)".
Logo, para que o Demandante pudesse defender-se cabalmente em sede de processo disciplinar, teria de ter sido confrontado, quando ouvido, com o facto de lhe ser imputado, no esclarecimento ulteriormente prestado pelo árbitro A…, que teria proferido a expressão “Isto é 2 amarelo caralho ” no âmbito dos protestos à equipa de arbitragem que lhe eram imputados - sobretudo porque este facto, que lhe era imputado, fundamentou também a decisão tomada e determinou também a sanção aplicada.
Em conclusão, se o artigo 13.°, alínea f), do Regulamento Disciplinar da LPFP autoriza o afastamento da presunção de veracidade dos factos constantes no relatório da equipa de arbitragem, quando ela seja fundadamente posta em causa, cabe assegurar aos arguidos, como caberia ter sido assegurado ao Demandado, aquando da sua audição em processo disciplinar, o recurso aos meios de defesa que lhes permitam, eventualmente, valer-se dessa possibilidade: pôr em causa aquela presumida veracidade.
Ora, embora ao Demandante, enquanto arguido no processo disciplinar, tenha sido dada a possibilidade de se pronunciar quanto aos factos constantes no relatório da equipa de arbitragem, não lhe foi dada essa possibilidade, nesse processo, relativamente ao facto novo trazido pelo esclarecimento do árbitro A…, embora este facto novo, não sujeito a audição do arguido, tenha sido considerado na fundamentação da decisão que determinou a sua condenação nas sanções supra referidas.
Uma vez que aquela possibilidade foi posta em causa, considera-se ter sido negado ao Demandante o direito de defesa. O acórdão recorrido, nos pontos 29 a 31, não considera ter havido violação do direito de defesa, por considerar que o facto novo trazido ao processo disciplinar se reconduz integralmente à factualidade constante do relatório do árbitro ("no relatório de árbitro constava expressamente que o mesmo havia protestado efusivamente de braços no ar entrando no terreno de jogo"). Violou, assim, os artigos 2.°, 9.°, alínea b) e 32.°, n.° 10, da CRP.
Deste modo, não tendo sido assegurado o direito fundamental de defesa do Demandante no processo disciplinar, nem tido esse vício sido considerado no acórdão recorrido, a sua preterição é subsumível ao artigo 161.°, n.° 2, alínea d) do Código do Procedimento Administrativo e, consequentemente, determinante de nulidade. Esta nulidade, invocável a todo o tempo, é de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 162.°, n.°s 1 e 2 do mesmo Código do Procedimento Administrativo.
Atento tudo o supra explanado, considera-se, assim, nulo o acórdão recorrido, ficando prejudicada a apreciação das restantes questões de Direito suscitadas.
A ora Recorrente Federação Portuguesa de Futebol imputa ao referido acórdão erro de julgamento, essencialmente por duas razões: i) o conteúdo essencial do sancionamento havia sido notificado por ser o constante do relatório de árbitro, algo que não foi contrariado nem modificado pelos esclarecimentos do árbitro; e ii) ainda assim, teve o Recorrido acesso ao conteúdo de tais esclarecimentos uma vez que o ficheiro correspondente foi criado e disponibilizado na mesma data da concessão de audiência prévia, na pasta respetiva.
Adiante-se que concordamos integralmente com a decisão tomada pelo TAD, não podendo proceder os fundamentos de recurso apresentados.
Primeiramente, cabe assinalar que, nos presentes autos, não se discute se, em processo sumário, a aplicação de qualquer sanção disciplinar deve ou não ser precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido. É aceite por todos os intervenientes que deve ser.
De resto, como vem referido pelas partes e pelo acórdão recorrido, o Tribunal Constitucional julgou já inconstitucional, por violação do direito de audiência e de defesa consagrado no artigo 32º, nº 10 da CRP, a norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar, no âmbito do processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional. – cfr. acórdão n.º 594/2020, de 10.11.2020 (processo n.º 49/20, e acórdão nº 742/2020, de 10.12.2020 (proc. nº 506/20).
O dissídio entre as partes reside em saber se esse direito de defesa foi efectivamente assegurado ao arguido, em particular por não lhe terem sido comunicados os esclarecimentos adicionais prestados pelo árbitro.
Ora, para que haja um real exercício do direito de defesa é necessário que ao arguido seja dado conhecimento, antes da prolação da decisão de aplicação da sanção, dos factos que lhe são imputados para que o mesmo, querendo, apresente a sua versão ou posição.
No caso, ao arguido foi dada a oportunidade de se pronunciar quanto aos factos constantes do relatório da equipa de arbitragem (facto provado 5). Já o mesmo não sucedeu relativamente ao esclarecimento posteriormente prestado pelo árbitro A… (factos provados 6 e 9).
Assim, assegurado o direito de defesa quanto à seguinte factualidade: a entrada no terreno de jogo cerca de 1 metro, protestando de braços abertos e de forma efusiva a decisão do árbitro; veio o arguido a ser sancionado pelo cometimento daquela factualidade, acrescida desta outra: utilizando a expressão “Isto é 2 amarelo caralho!”
Não teve o arguido oportunidade de apresentar defesa no que tange ao uso de tal expressão.
Argumenta a Recorrente que o Recorrido pediu o acesso aos autos a 8 de maio de 2021, por correio eletrónico, às 15h19, e foi-lhe concedido o acesso através de ligação, como é habitual, facultada por correio eletrónico do mesmo dia pelas 17h18, sendo que o conteúdo da pasta contém um ficheiro "PDF" precisamente com o teor do esclarecimento do árbitro (com o nome "esclarecimento"), sendo que tal ficheiro foi disponibilizado nessa pasta pelas 17hl6 desse mesmo dia, 8 de maio de 2021, ou seja, antes de ser enviado o correio eletrónico a informar que os autos estavam disponíveis (recorde-se: pelas 17h18 do mesmo dia).
Porém, sem razão.
Pretende a Recorrente valer-se de factos que não integram o elenco dos factos provados. E fá-lo sem impugnar a decisão da matéria de facto, mormente nos termos do artigo 640º do CPC.
Acresce que tal factualidade se refere a momento posterior ao sancionamento, aquando do acesso aos autos com vista à preparação do recurso hierárquico impróprio.
Ora, o que foi decidido pelo TAD – e bem – é que não foi assegurado o direito de defesa em momento anterior ao sancionamento.
E, neste tocante, a factualidade apurada não deixa dúvidas. O uso da expressão em causa não integra os elementos facultados ao arguido para que este pudesse pronunciar-se previamente. Consta nomeadamente do ponto 10 dos factos provados que o arguido exerceu o seu direito de audiência prévia “Tendo exclusivamente presente a factualidade descrita no Relatório de Árbitro” e não o esclarecimento posterior prestado pelo árbitro de onde emerge o alegado uso da expressão em causa.
De resto, o acórdão do Pleno assume que o arguido não foi notificado do conteúdo daquele esclarecimento quando, no ponto 30, afirma que “apesar de não ter sido notificado do conteúdo daquele esclarecimento a verdade e em rigor é que no relatório de árbitro constava expressamente que o mesmo havia protestado efusivamente de braços no ar entrando no terreno de jogo.”
Por outro lado, argumenta a Recorrente que “os esclarecimentos apenas vêm confirmar, integralmente, o conteúdo do relatório que o árbitro havia escrito pelo que nenhuma alteração ou modificação houve nesse sentido.”
Não podemos estar mais em desacordo.
A alteração ao conteúdo do relatório da equipa de arbitragem é evidente. Estamos perante facto novo que assumiu fundamental relevância na decisão punitiva, ainda que não tenha como efeito a imputação de novo ilícito – integrando-se igualmente no artigo 140º (protestos contra a equipa de arbitragem).
Com efeito, compulsada a decisão punitiva da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol e bem assim as peças processuais apresentadas, pela FPF, quer no TAD, quer neste Tribunal, é manifesto que o sancionamento se ficou a dever também – e diríamos até especialmente - ao uso da expressão em causa.
Não havendo uma acusação propriamente dita, é necessário que ao arguido seja dado conhecimento, de forma clara, dos factos que lhe são imputados, isto é, do concreto comportamento, alegadamente adoptado pelo arguido, que se pretende sancionar.
Assim sendo, é forçoso concluir que não foi devidamente assegurado, no âmbito do processo disciplinar em causa, o direito de defesa do arguido, ora Recorrido.
Em consequência, improcede o presente recurso, mantendo-se o acórdão do TAD na ordem jurídica
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IV - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que compõem este Tribunal em negar provimento ao recurso, mantendo o acórdão do Tribunal Arbitral de Desporto. *
Custas pela Recorrente, nos termos do art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Registe e notifique.
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Lisboa, 17 de Março de 2022

Ana Paula Martins
Carlos Araújo
Frederico Macedo Branco