Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:973/12.0BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2021
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:IRC
PRESTAÇÕES SUPLEMENTARES
CRÉDITOS INCOBRÁVEIS
Sumário:I. As caraterísticas das prestações suplementares, designadamente o facto de não vencerem juros e de terem de ser sempre constituídas em dinheiro, fazem com que as mesmas sejam consideradas como quase capital.

II. Às perdas decorrentes de prestações suplementares não é aplicável o regime atinente aos créditos incobráveis, sendo objeto de disciplina própria, prevista, no exercício de 2008, no art.º 42.º, n.º 3, do CIRC.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 07.04.2021, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Sintra, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por P.... – S...., S.A. (doravante Recorrida ou Impugnante), que teve por objeto a autoliquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), relativa ao exercício de 2008.

Apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

I. A questão ora controvertida se cinge à discordância da Recorrida relativamente à não aceitação pela AT (em sede da reclamação graciosa interposta da autoliquidação de IRC de 2008) da qualificação como variação patrimonial negativa, nos termos previstos no artigo 45.º, n.º 3, do CIRC, do valor de € 1.035.000,00, correspondente a 50% do valor relativo ao não reembolso de prestações suplementares a participada, sendo entendimento da AT que o montante em causa se deve subsumir ao artigo 39.º do CIRC (créditos incobráveis) e, por essa razão, não preenchia os pressupostos legais para concorrer para formação do lucro tributável enquanto variação patrimonial negativa.

II. Entende a AT, aqui Recorrente, que o crédito em crise nos presentes autos foi declarado não reembolsado, por via de um processo de dissolução normal, não podendo ser considerado como custo fiscalmente dedutível, a não ser que seja declarado em processo especial de recuperação de empresa, nos termos do disposto no art.º 42.º, n.º 3, do CIRC, á data em vigor (atual art.º 45.º, n.º 3, do CIRC), que determina que seja aceite como custo fiscal metade do valor da variação patrimonial negativa apurada.

III. Mais: a Recorrida não acionou os mecanismos legais para poder obter as vantagens decorrentes do art.º 42.º, n.º 3, do CIRC, como lhe competia.

IV. Finalmente, e na esteira do o ac. do S. T. A. n.º 1077/05, de 22-02-2006 a AT, aqui Recorrente, considera que, é aos contribuintes, e não à Administração, que cabe evidenciar os custos que suportaram para obter os proveitos… estando em condições de convencer que lhe não foi possível cobrar os créditos que comprovadamente detém sobre o outro, algo que a Recorrida/Impugnante não realizou.

V. Em suma, ficou por demonstrar, por parte da Recorrida/Impugnante, a impossibilidade cobrar o seu crédito, apesar de o ter diligenciado, estando, consequentemente, perante um crédito incobrável que, por isso, constituiria uma perda.

VI. Entendemos assim que a douta sentença de que se recorre, padece de erro de julgamento, ao proceder, por um lado, a uma errada apreciação dos factos e, por outro lado, ao respetivo enquadramento jurídico, devendo o presente recurso judicial ser julgado procedente.

Termos em que, atento o exposto, deve ser:

a) Declarada a nulidade da Sentença recorrida, nos termos expostos, com os devidos efeitos ou, caso assim não se entenda, o que sem conceder se admite;

b) Ser concedido provimento ao presente Recurso Jurisdicional, por provado, revogando-se a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, para todos os devidos efeitos legais”.

A Recorrida contra-alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

“1ª) No presente processo de impugnação está em causa o regime tributário referente a perdas sofridas em relação a prestações suplementares;

2ª) As prestações suplementares constituem, para as entidades que as realizam –como a impugnante –um ativo financeiro reconhecido, contabilisticamente, com um custo de investimento financeiro na sociedade participada –Normas Contabilísticas e de Relato Financeiro nºs 13 (Interesses em Investimentos Conjuntos e Investimentos em Associadas), 15 (Investimentos em Subsidiárias e consolidação) e 27 (Instrumentos Financeiros).

3ª) As prestações suplementares não são um passivo da entidade a quem foram realizadas, constituindo, antes, capitais próprios dessas sociedades –Norma Internacional de Contabilidade nº 32 e Norma Contabilística e do Relato Financeiro nº 27;

4ª) Já no âmbito do Plano Oficial de Contabilidade, as prestações suplementares integravam, para a sociedade beneficiária, uma conta do seu capital(classe 5) e para as sociedades que efetuavam tais prestações, elas eram registadas como imobilizado financeiro;

5ª) Na medida em que as prestações suplementares são componente do capital próprio, o nº 3 do artº 45º do CIRC, de modo expresso e inequívoco, considerava que as perdas referentes a tais prestações são custo fiscal, embora, apenas, em 50%;

6ª) É, portanto, errada a qualificação feita pela Administração Tributária e, agora, em sede de recurso, pela Fazenda Pública, das prestações suplementares como um cré

7ª) A douta sentença recorrida chamou à colação o Acórdão do STA de 3/6/2020 (Processo nº 01018/09.3BELRS);

8ª) Em tal Acórdão também estava em causa o saber se a perda em prestações suplementares apuradas na dissolução da sociedade a quem tais prestações tenham sido efetuadas, relevam fiscalmente;

9ª) O Acórdão, atendendo à natureza das prestações suplementares, que não configuram um crédito, concluiu que a referida perda era, em 50%, custo fiscal, atento o artº 45º, nº 3 do CIRC;

10º) Assim, a douta sentença recorrida não merece qualquer censura.

Termos em que o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida e, assim, ser julgada procedente a impugnação, como é de

Justiça”.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Há erro de julgamento, em virtude de, no caso de não reembolso de prestações suplementares, na sequência de dissolução e liquidação da sociedade participada, ser aplicável o regime atinente aos créditos incobráveis?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

A) A impugnante é uma sociedade que se dedica à atividade de gestão de participações sociais não financeiras, com o CAE n.º 64202 – facto não controvertido e cf.

B) Em 26.05.2008 a ora impugnante apresentou a declaração anual de rendimentos Mod. 22 de IRC do exercício de 2008, na qual apurou um prejuízo fiscal no valor de € 8.567,44, em virtude do acréscimo à matéria coletável (Quadro 07, campo 225 da Dec. Mod. 22) da quantia de € 2.070.856,66 – facto não controvertido e cf. fls. 8 e 9 do processo de reclamação graciosa (RG) apenso.

C) A quantia de € 2.070.856,66, indicada no Quadro 07, campo 225 da Dec. Mod. 22 referida na alínea que antecede respeita a dois valores distintos, um de € 2.070.000,00, referente a uma perda relativa a prestações suplementares na sociedade sua participada “E… – E…, Lda.”, em virtude da sua dissolução, e outro, de € 856,66, respeitante a encargos financeiros não aceites, de acordo com o art.º 32.º, n.º 2 do EBF – facto não controvertido.

D) A declaração referida em B) ficou no estado de “declaração não liquidável” – cf. fls. 18 da RG apensa.

E) Em 05.01.2011 a ora impugnante apresentou reclamação graciosa da autoliquição mencionada em B) invocando, em síntese, que, por lapso, não aproveitou do disposto no n.º 3 do art.º 45.º do CIRC (anterior artigo 42.º), uma vez que acresceu a totalidade do custo registado com a anulação das prestações suplementares, requerendo que fosse considerado o direito à dedução do valor de € 1.035.000,00, relativo a 50% do saldo das prestações suplementares em apreço e, consequentemente, recalculado o montante do prejuízo para € 1.043.567,44 –cf. fls. 2 a 14 da RG apensa.

F) Ato impugnado: Por despacho de 31.07.2012 a reclamação graciosa referida na alínea que antecede foi indeferida com os fundamentos constantes da informação que suporta o respetivo projeto de decisão, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido e da qual resulta, além do mais, o seguinte:

“[…]

17. Havendo desta forma que avaliar, se a sua perda por não recebimento do crédito que concedeu voluntariamente, inicialmente a título de suprimentos e posteriormente sobre a forma de prestações suplementares, e em virtude da insuficiência do ativo da ECT no momento da liquidação, é dedutível fiscalmente, face às regras constantes do Código do IRC.

18. De salientar que, as prestações suplementares constituem um crédito a exigir no momento da liquidação das sociedades (comentário de Raul Ventura no art. 213.º do CSC in Sociedades por quotas - vol. 1), podendo suceder que face à insuficiência do ativo as mesmas possam não ser reembolsadas e nesta medida ser consideradas créditos incobráveis.

19. Assim, toma-se necessário avaliar a dedutibilidade da perda à luz da cláusula geral da dedutibilidade dos custos estatuída no art. 23.º do CIRC tendo como referência o disposto no art. 41.º (ex-art 39.º) também do CIRC, visto que, ao assumirem esta condição de crédito exigível, as prestações suplementares, no caso de não serem reembolsadas no momento da liquidação da sociedade, subordinam-se ao disposto no art. 41.º (ex-art. 39.º) do CIRC.

20. Dispõe o art. 39º do CIRC com redacção à data do exercício em análise […]

21. Por outro lado, antes de se tomarem incobráveis os créditos podem assumir a condição de créditos de cobrança duvidosa devendo ser provisionáveis face áo principio contabilístico da prudência. Esta provisão está regulada nos artigos 35.º e 36.º (ex-artigos 34.º e 35.º) do CIRC.

22. Assim, relativamente aos créditos que a PTG detinha sobre a ECT, o Código permite a constituição de provisões quando estes se figurem de cobrança duvidosa mediante algumas restrições. No caso em análise esta provisão não era permitida por não ser passível de enquadramento em nenhum dos artigos mencionados. De facto, o artigo 35.º, n.º 3, alínea d) do CIRC (com a redacção à data do exercício em análise) afasta, desde logo, a possibilidade de ser considerado um crédito de cobrança duvidosa, uma vez que a participação da PTG no capital social da ECT é de 100%.

23. Assim, não sendo possível provisional o crédito, de forma que seja aceite fiscalmente, ele não pode ser deduzido como custo nos termos do referido art. 39.º do CIRC (com a redacção à data do exercício em análise).

24. Ou seja, as prestações suplementares que, conforme se demonstrou são um crédito exigível no momento da liquidação, quando não reembolsadas, apenas serão consideradas custo ou perda do exercício na medida em que tal resulte de processo especial de recuperação de empresa e proteção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência, condições estas impostas no artigo 39.º do CIRC.

25. Refira-se a este propósito a jurisprudência constante do acórdão 01077/05 de 22.02.2006 do STA: […]

26. Deste modo, não constitui um custo fiscal o crédito não reembolsado, no momento da liquidação, decorrente das prestações suplementares, quando não ocorrerem no âmbito do processo especial de recuperação de empresas e protecção de credores ou de processo de execução, falência ou insolvência, mas de processo de dissolução, não merecendo por isso enquadramento no art. 41.º (ex-art. 39.º) do CIRC.

27. Acresce que, caso a perda decorrente da incobrabilidade fosse dedutível para efeitos do apuramento do lucro tributável, ã luz do estatuído no art. 41.º (ex-art. 39.º) do CIRC, o que sucederia por exemplo, caso a liquidação ocorresse por falência, então aplicar-se-ia o art. 45.º, n.º 3 (ex-art. 42º, n.º 3) do CIRC sendo nesse caso considerada em 50% conforme pretensão do contribuinte.

28. Dito de outro modo, no caso em concreto, as perdas por não recebimento de prestações suplementares devem ser avaliadas com base no art. 41.º (ex-art. 39.º) do CIRC, isto e, apenas são dedutíveis na medida em que se verifiquem de um dos processos aí referidos.

29. Verificando-se qualquer das circunstâncias do art. 41.º (ex-art. 39.º) do CIRC e após 1 de Janeiro de 2006, em consequência da alteração aditada pela Lei n.º 60-A/2005, de 30 de Dezembro (OE 2006), estas perdas são dedutíveis apenas em 50%.

30. Não se verificando o enquadramento no art. 41.º (ex-art. 39.º) do CIRC não é necessário convocar o art. 45.º, n.º 3 (ex-art. 42.º, n.º 3) do CIRC, para não consideração como custo da perda com a incobrabilidade das prestações suplementares, no valor de € 2.070.000,00, que o contribuinte solicitou que afetasse negativamente o lucro tributável pelo valor de € 1,035.000,00.

31. Face a tudo o que aqui foi exposto não pode ser considerado para efeitos de apuramento do lucro tributável o montante de € 1.035.000,00 que o contribuinte solicitou que lhe fosse corrigido favoravelmente na declaração de rendimentos modelo 22 do exercício de 2008, correspondente a 50% da perda decorrente do não reembolso das prestações suplementares, no âmbito da liquidação da participada, de acordo com o estatuído no art. 23.º tendo em conta o disposto no art. 41.º (ex-art. 39.º) ambos do CIRC.

[…]” – cf. doc. 1 junto com a p.i.

G) A decisão que antecede foi notificada à impugnante em 08.08.2012 – cf. fls. 74 a 76 da RG apensa.

H) Em 03.09.2012 a presente impugnação remetida a este TAF – cf. fls. 2 dos autos”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Não resultam dos autos quaisquer outros factos, com relevo para a apreciação da questão prévia e mérito da causa, que importe julgar como provados ou não provados”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

A decisão da matéria de facto provada efetuou-se com base no exame dos documentos que constam dos autos e do processo administrativo apenso, referenciados em cada uma das alíneas do probatório, bem como na posição assumida pelas partes nos respetivos articulados no que respeita aos factos julgados não controvertidos”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo laborou em erro, na medida em que, em seu entender, subsume-se ao disposto no art.º 39.º do Código do IRC (CIRC), relativo aos créditos incobráveis, a situação atinente ao não reembolso de prestações suplementares, na sequência de dissolução e liquidação de sociedade participada, sendo que, in casu, não ficou demonstrado estar-se perante um crédito daquela natureza.

Vejamos.

Antes de mais, refira-se que a Recorrente termina as suas alegações, pedindo, em primeiro lugar, que seja “[d]eclarada a nulidade da Sentença recorrida, nos termos expostos”. Trata-se, no entanto, de claro lapso de escrita, porquanto não foi alegada qualquer nulidade da sentença.

Prossigamos.

Nos termos do art.º 210.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC):

“1 - Se o contrato de sociedade assim o permitir, podem os sócios deliberar que lhes sejam exigidas prestações suplementares.

2 - As prestações suplementares têm sempre dinheiro por objeto.

3 - O contrato de sociedade que permita prestações suplementares fixará:

a) O montante global das prestações suplementares;

b) Os sócios que ficam obrigados a efetuar tais prestações;

c) O critério de repartição das prestações suplementares entre os sócios a elas obrigados.

4 - A menção referida na alínea a) do número anterior é sempre essencial; faltando a menção referida na alínea b), todos os sócios são obrigados a efetuar prestações suplementares; faltando a menção referida na alínea c), a obrigação de cada sócio é proporcional à sua quota de capital.

5 - As prestações suplementares não vencem juros”.

Por seu turno, determina o art.º 211.º do mesmo diploma legal que a exigibilidade depende sempre de deliberação dos sócios, não podendo ser exigidas prestações suplementares depois de dissolvida a sociedade.

Do disposto no art.º 212.º do CSC extrai-se, designadamente, que a sociedade não pode exonerar o sócio da obrigação de efetuar prestações suplementares, sendo um direito intransmissível, nele não se podendo sub-rogar os credores da sociedade.

Cumpre ainda atentar no disposto no art.º 213.º do CSC, nos termos do qual:

“1 - As prestações suplementares só podem ser restituídas aos sócios desde que a situação líquida não fique inferior à soma do capital e da reserva legal e o respetivo sócio já tenha liberado a sua quota.

2 - A restituição das prestações suplementares depende de deliberação dos sócios.

3 - As prestações suplementares não podem ser restituídas depois de declarada a falência da sociedade.

4 - A restituição das prestações suplementares deve respeitar a igualdade entre os sócios que as tenham efetuado, sem prejuízo do disposto no n.º 1 deste artigo.

5 - Para o cálculo do montante da obrigação vigente de efetuar prestações suplementares não serão computadas as prestações restituídas”.

Deste enquadramento normativo resulta, pois, que se trata de prestações que têm de ser permitidas pelos estatutos da sociedade, sendo tal condição para que os sócios possam deliberar a sua realização, são sempre pecuniárias, não vencem juros e a sua restituição exige a salvaguarda da intangibilidade do capital social.

As caraterísticas das prestações suplementares a que nos referimos, designadamente o facto de não vencerem juros e de terem de ser sempre constituídas em dinheiro, fazem com que as mesmas sejam consideradas como quase capital. Ademais, a sua restituição depende sempre da deliberação dos sócios, que pode nem sequer vir a existir. Tal implica que, contabilisticamente, se reflita no seu reconhecimento em rubricas de capital próprio da sociedade que as recebe (ao contrário, por exemplo, dos suprimentos) – sendo, no âmbito do POC (aplicável, in casu), inscritas na conta 53.

“[A] realização de prestações suplementares é uma operação neutra da perspetiva do valor do património, pelo que não terá efeitos na rubrica contabilística do capital social. Assim o é porque a sociedade não assume qualquer obrigação patrimonial perante os sócios como contrapartida da realização das prestações suplementares, mormente a título de restituição de capital ou a título de pagamento de juros. Assim, as prestações suplementares não têm a natureza de Passivo financeiro, mas de Capitais Próprios da sociedade e, nestes termos, constituem expressão do valor residual dos ativos da sociedade após a dedução dos seus passivos”(1).

Do ponto de vista fiscal, estas específicas caraterísticas têm reflexos, sendo a este respeito de chamar à colação o então art.º 42.º, n.º 3, do CIRC [redação e numeração vigente em 2008, correspondente ao art.º 45.º, n.º 3, do CIRC, vigente em 2011 (por via da renumeração operada pelo DL n.º 159/2009, de 13 de julho) e mencionado pela Recorrente], nos termos do qual:

“A diferença negativa entre as mais-valias e as menos-valias realizadas mediante a transmissão onerosa de partes de capital, incluindo a sua remição e amortização com redução de capital, bem como outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor” (sublinhado nosso).

Cumpre ainda atentar no regime atinente à dissolução, liquidação e partilha de sociedades.

Assim, nos termos do art.º 141.º do CSC:

“1 - A sociedade dissolve-se nos casos previstos no contrato e ainda:

a) Pelo decurso do prazo fixado no contrato;

b) Por deliberação dos sócios;

c) Pela realização completa do objeto contratual;

d) Pela ilicitude superveniente do objeto contratual;

e) Pela declaração de insolvência da sociedade.

2 - Nos casos de dissolução imediata previstos nas alíneas a), c) e d) do número anterior, os sócios podem deliberar, por maioria simples dos votos produzidos na assembleia, o reconhecimento da dissolução e, bem assim, pode qualquer sócio, sucessor de sócio, credor da sociedade ou credor de sócio de responsabilidade ilimitada promover a justificação notarial ou o procedimento simplificado de justificação”.

Concretamente no caso das sociedades por quotas, para efeitos de dissolução, é ainda de atentar no art.º 270.º do CSC.

Dissolvida a sociedade, a mesma entra, regra geral, imediatamente em liquidação (cfr. art.º 146.º do CSC), procedendo-se à partilha imediata, no caso de a sociedade não ter dívidas (cfr. art.º 147.º do CSC), podendo ainda a liquidação ser feita por transmissão global do ativo e passivo (cfr. art.º 148.º do CSC).

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

In casu, a Impugnante, sócia da sociedade por quotas E… – E…, Lda (doravante E…), detentora de 100% das participações sociais, tinha efetuado prestações suplementares, que, por referência ao momento da dissolução e liquidação da E...., se situavam nos 2.070.000,00 Eur. Não é controvertido que não havia ativo na E.... que permitisse a restituição das mesmas [cfr. decisão proferida em sede de reclamação graciosa – facto F)].

É face a este contexto que a Administração Tributária defende que, a partir do momento em que a sociedade é liquidada, nasce um direito de crédito relativo às prestações suplementares na esfera jurídica do sócio (cfr. ponto 18 da decisão proferida em sede de reclamação graciosa), crédito esse que, na insuficiência de ativo e para que possa ser fiscalmente dedutível, é considerado crédito incobrável, sujeito, pois, ao regime previsto no então art.º 39.º do CIRC.

Desde já se adiante que não se acompanha este entendimento.

Como já referimos supra, as prestações suplementares, pelas suas específicas caraterísticas, são uma figura de quase-capital. Daí que, do ponto de vista contabilístico, não estejam inscritas no passivo da sociedade na qual as mesmas são prestadas. Aliás, tais prestações, como referimos, não são restituídas (exceto se houver deliberação social nesse sentido, nos termos já explanados), não podendo ser exigida, por exemplo, a sua restituição contenciosa.

A circunstância de a sociedade ser dissolvida não altera as caraterísticas das prestações suplementares a que nos referimos. Tal não invalida o entendimento de Raul Ventura, citado na reclamação graciosa, no sentido de que, quando a sociedade é liquidada, havendo ativo e tendo já sido satisfeitos os credores sociais, o seu valor deve ser restituído aos sócios que as tenham prestado(2) (como também o deverá ser o valor da entrada, caso haja ativo suficiente – cfr. art.º 156.º, n.º 2, do CSC). Com efeito, só naquele momento concreto de liquidação e partilha se poderá falar no nascimento de um direito de crédito na esfera do sócio.

No entanto, para efeitos de regime fiscal, não se pode ignorar que as prestações suplementares, na sua origem, não se configuram nem têm subjacente qualquer direito de crédito, como já deixamos sublinhado supra.

Ora, todo o regime fiscal dos créditos, seja em termos de constituição de provisões ou em termos de definição das situações de créditos incobráveis, está configurado para os casos em que o crédito é reconhecido ou existe como tal desde a sua origem.

Ou seja, é um crédito originariamente configurado como tal que permite a realização de diligências para a sua cobrança ou que permite o despoletar de um processo de insolvência, por exemplo.

Ora, nada disso acontece no caso das prestações suplementares, como não acontece com as entradas de capital, não se podendo desconsiderar as suas especificidades, não obstante ser configurável a sua restituição em sede de partilha e sendo apenas e nessa medida configuráveis como créditos decorrentes da própria circunstância de a sociedade ter sido dissolvida.

Aliás, o legislador fiscal, ciente de tais distinções, consagrou um regime específico aplicável a estas situações, no já mencionado art.º 42.º, n.º 3, do CIRC (nos termos do qual, reiteramos, “… outras perdas ou variações patrimoniais negativas relativas a partes de capital ou outras componentes do capital próprio, designadamente prestações suplementares, concorrem para a formação do lucro tributável em apenas metade do seu valor”), não equiparando estas perdas a créditos incobráveis nem fazendo depender a aplicação deste regime da reunião dos pressupostos previstos no art.º 39.º do CIRC.

Este entendimento encontra acolhimento quer em jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo [cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 03.06.2020 (Processo: 01018/09.3BELRS 0342/17)], quer deste TCAS [cfr. o nosso Acórdão de 04.06.2020 – Processo: 1343/10.0BELRS (processo no qual a relatora e o 2.º adjunto intervieram nas mesmas qualidades)].

Refere-se no mencionado Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo:

“Não pode acolher-se a tese da AT de que a parte das prestações suplementares não amortizadas com a operação de dissolução possa ser reconduzida à categoria dos créditos incobráveis, (…) uma vez que (…) a restituição (…) depende de a situação líquida [da sociedade] não ficar inferior à soma do capital e da reserva legal e o respectivo sócio já ter liberado a sua quota (artigo 213.º, n.º 1 CSC). Existe, neste ponto, maior proximidade das prestações suplementares com o capital social do que com os créditos dos sócios sobre a sociedade…”.

Como tal, considera-se que não é in casu aplicável o regime relativo aos créditos incobráveis, não sendo, por esse motivo, exigível à Impugnante que a falta de reembolso seja declarada em processo especial de recuperação de empresa, ao contrário do que defende a FP.

Assim sendo, improcede a pretensão da Recorrente.

Nos termos do art.º 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais (RCP), “[n]as causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.

No caso, considerando quer a conduta das partes, que se revelou sem mácula, quer a circunstância de a questão suscitada já ter sido tratada nos nossos tribunais superiores, entende-se dever haver lugar à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no art.º 6.º, n.º 7, do RCP.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente, com dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte em que exceda os 275.000,00 Eur.;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 30 de setembro de 2021


[A relatora consigna e atesta que, nos termos do disposto no art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 01 de maio, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores Susana Barreto e Vital Lopes]

Tânia Meireles da Cunha

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(1)Marta Correia Rocha de Sampaio Pinto, Os Aumentos de Capital nas Sociedades por Quotas por Conversão dos Créditos dos Sócios, Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, 2018, p. 19.
(2)Cfr. Raul Ventura, Sociedades por Quotas, Vol. I, 2.ª Ed., 4.ª Reimpressão, Coimbra, Almedina, 2007, pp. 272 e 273.