Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:3212/07.2BELSB
Secção:CT
Data do Acordão:05/19/2022
Relator:FREDERICO MACEDO BRANCO
Descritores:DESISTÊNCIA DO PEDIDO
INDEFERIMENTO DE DESISTÊNCIA
ARTº 62º CPTA
PROSSEGUIMENTO DE AÇÃO PELO MP
Sumário:I - Ao ter sido indeferida a desistência do pedido, por alegada indisponibilidade do direito urbanístico em causa, com base em afirmação meramente conclusiva, mostra-se o referido indeferimento insuficientemente fundamentado.
Efetivamente, a natureza pública dos interesses protegidos pelas normas do RGEU, não é suficiente para qualificar os direitos individuais que se pretendem tutelar como indisponíveis.
II - O tribunal, ao invés de “obrigar” os Autores a manterem-se a Ação, com base em argumentos insuficientemente fundamentados e conclusivos, sendo caso disso, antes deveria ter suscitado a intervenção do Ministério Público, ao abrigo do Artº 62º do CPTA, no qual se estipula que “O Ministério Público pode, no exercício da ação pública, assumir a posição de autor, requerendo o seguimento de processo que, por decisão ainda não transitada, tenha terminado por desistência ou outra circunstância própria do autor.”
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul

I Relatório
O Município de Odivelas, devidamente identificado nos autos, no âmbito da ação administrativa especial intentada por C.... e cônjuge M....., tendente à “declaração de nulidade do despacho da Presidente da Câmara Municipal de Odivelas de 28/08/2017 … que aprovou as obras de construção de uma moradia unifamiliar em prédio”, não se conformando com a decisão proferida no TAC de Lisboa, em 13 de julho de 2017 que julgou a Ação parcialmente procedente, veio Recorrer em 28 de setembro de 2017.
O Recurso é interposto
a) Do Despacho que indeferiu o requerimento dos Autores de desistência do pedido, e
b) Da Sentença de 13 de julho de 2017, a que supra se aludiu
Constam do Recurso do Município as seguintes conclusões:
“II. O Despacho que indeferiu o requerimento de desistência do pedido não contém os fundamentos de Direito que justificam semelhante decisão, razão pela qual é nulo, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC.
III. Violando ainda o disposto no nº 3 do artigo 3º do CPC.
IV. A sentença recorrida padece de erro na aplicação do Direito, na medida em que a boa aplicação do artigo 73º do RGEU impõe que a decisão judicial vá no sentido de que, estando cumpridos os afastamentos previstos neste preceito, não procede o pedido formulado pelos AA.
V. Mas também porque aplica o artigo 58º do RGEU que pressupõe o incumprimento dos afastamentos legais, o que, in casu, não sucede.
VI. A sentença recorrida padece de oposição entre os fundamentos e a decisão, porquanto, reconhecendo a legalidade dos afastamentos, não pode contraditoriamente, decidir que "... tento a cave como o rés-do-chão se encontram privados da exposição solar ..."., mas também porque ao valorizar a prova testemunhal produzida pela qual se demonstrou que a fachada do prédio dos AA, porque virada a Norte está à sombra, não pode, contraditoriamente, decidir que "... tanto a cave como o rés-do-chão se encontram privados da exposição solar”.
VII. Por último, está ainda ferida de nulidade, por ausência dos fundamentos de Direito, quando decide, sem invocar norma alguma que "... tanto a cave como o rés-do-chão se encontram privados da exposição solar e a sensação de acanhamento ou afogamento do espaço alegada" e que “Sendo também, óbvio que, nessas circunstâncias a construção dos muros em altura excessiva poderá causar desvalorização da propriedade dos AA.".
Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso e revogada a sentença proferida pelo Tribunal "a quo", com o que V.Ex.as farão a costumada JUSTIÇA”.

O Recurso foi admitido por Despacho de 23 de outubro de 2017

Não foram apresentadas contra-alegações de Recurso.

O Ministério Público veio e emitir Parecer em 7 de fevereiro de 2018, afirmando, a final, que “(…) concedendo-se provimento ao recurso interposto do despacho que indeferiu o requerimento de desistência do pedido, como supra referido, deve ordenar-se a baixa dos autos tendo em vista os efeitos do art° 62° do CPTA.
Caso assim não seja decidido e se aprecie o recurso interposto da decisão de mérito proferida, tendo em consideração a fundamentação constante da mesma, não lhe deve ser concedido provimento.

Os Autores, aqui Recorridos, vieram a pronunciar-se face ao Parecer do Ministério Público, concluindo que “(…) deve o Réu/recorrente Município de Odivelas ser julgado parte ilegítima para recorrer do despacho de fls. 295 v°, não se conhecendo, em consequência, do recurso interposto nessa parte; quando assim se não entenda, deve ser julgada improcedente a arguição da sua nulidade, sendo certo que o mesmo decidiu em conformidade com a lei.”
Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.
II - Questões a apreciar
As questões a apreciar resultam da necessidade de verificar desde logo, predominantemente, se o Despacho que indeferiu o pedido de desistência do pedido dos Autores será nulo, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA.

III – Fundamentação de Facto
O Tribunal a quo, considerou a seguinte factualidade:
A) Pela inscrição G200….. 26, de 27 de abril de 2005 foi registada, na Conservatória do registo Predial de Odivelas, a favor de C.... e M..... (ora AA) a aquisição de terreno para construção, sito em Famões, Rua Sousa carvalho, correspondente ao Lote 1…, que confronta do Norte com lote 1…, do Sul com lote 1.., do Nascente com lote 1… e do Poente com Rua Sousa Carvalho.
B) Pela inscrição nº G-AP 23, de 12 de Dezembro de 2005, foi registada na Conservatória do registo Predial de Odivelas, a favor de J..... e A.....(ou CI), a aquisição provisória por natureza, convertida em definitiva pela inscrição AP 116 de 23 de Janeiro de 2005, do terreno para construção, sito em Famões, Rua Sousa Carvalho, correspondente ao lote 1…, que confronta do Norte com lote 1.., do Sul com lote 1.., do Nascente com lote 1… e do Poente com Rua Sousa Carvalho.
C) Os terrenos para construção identificados em A) e B) integram-se no Bairro Encosta do Mourigo e encontram-se abrangidos pelo alvará de loteamento nº 9/2001, com o teor constantes de fls 28 e 36 dos autos, que se dá por inteiramente reproduzido.
D) Foi aprovado regulamento do alvará de loteamento referido em C), constante de fls 58, dos autos, cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais e do qual consta, designadamente:
“1 – Este regulamento aplica-se a toda a área abrangida pelo estudo (…).
3 – Em princípio as novas construções deverão apresentar as seguintes características:
- Nº de pisos: 2 ou 2+c/v, quando o desnível do terreno o justificar. (…).
- Afastamentos mínimos de construção aos limites do lote 3 m. a tardoz recomendado 5 m. (…).
3.1 – As exceções a estes valores são apenas as indicadas no quadro de lotes e na Planta de síntese (…).
4 – Os muros de vedação dos lotes não podem exceder 1,50 m, devendo ser garantida a sua transparência a partir de 0,90 m de altura, quando confinam com a via pública (…).”
10 – Poderão aceitar-se soluções em contravenção com o presente regulamento em projetos arquitetónicos especiais quando devidamente justificados e aceites pela Câmara Municipal …”.
E) O CI marido apresentou, juntos dos Serviços do município de Odivelas (ou R), requerimento datado de 21 de março de 2006 e recebido a 30 de março de 2006, de autorização de operações urbanísticas, para obra de edificação, do terreno identificado em B), que deu origem ao processo nº 8775/OP/GI, instruído com os documentos constantes de fls 1 a 49 do processo administrativo, que se dão por integralmente reproduzidos.
F) O CI marido apresentou, juntos dos serviços do R, para instruir o processo administrativo referido em E):
1. Em 9 de Junho de 2006, os documentos constantes de fls 54 a 59 do processo administrativo, que se dão integralmente por reproduzidos;
2. Em 30 de Novembro de 2006, os documentos constantes de fls 65 a 81, do processo administrativo, que se dão por inteiramente reproduzidos;
3. Em 27 de Abril de 2007, os documentos constantes de fls 93 a 218, do processo administrativo, que se dão por inteiramente reproduzidos;
4. Em 3 de Maio de 2007, os documentos constantes de fls 220 a 227, do processo administrativo, que se dão por reproduzidos;
5. Em 29 de Maio de 2007, os documentos constantes de fls 230 a 294, do processo administrativo que se dão por reproduzidos.
G) Do processo administrativo referido em E) constam ainda os seguintes documentos:
1. Ficha urbanimétrica e informações sobre ela proferidas, a 26 de setembro de 2006 e 16 de novembro de 2006, constantes de fls 62 e 63, do processo administrativos, que se dão por reproduzidas;
2. Informação da DGOU/DRU/Arq, R…, nº 111/RD/DRU/07, de 26 de fevereiro de 2007, constantes de fls 89 e 90, do processo administrativo, que se dá por inteiramente reproduzido;
3. Projetos de águas e esgotos, constantes de fls 296 a 339, do processo administrativo, que se dão por reproduzidos.
H) No âmbito do procedimento iniciado pelo requerimento referido em E) foi emitida informação nº 155/JC/DRU/07, da DGOU/DRU/Arq J....., datada de 6 de agosto de 2007, constantes de fls 358 a 361, do processo administrativo, com o seguinte teor:
(Dá-se por reproduzido Documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º nº 6 CPC)
I) Em 17 de Agosto de 2007, foi emitido despacho do chefe de Divisão – DRU:
J) Em 17 de Agosto de 2007, foi emitido despacho do diretor do DGOU:
K) A 28 de Agosto de 2007 foi emitido despacho do Presidente da Câmara de Odivelas:
L) A 26 de Setembro de 2007, foi emitido o alvará de construção nº 345/2007, da Câmara Municipal de Odivelas, constante de fls 396, do processo administrativo, que se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, onde consta, designadamente, o seguinte:
(Dá-se por reproduzido Documento fac-similado constante da decisão de 1ª Instância – Artº 663º nº 6 CPC)
M) A construção aprovada para o lote identificado em B) tem projetadas, na sua fachada lateral direita, uma porta e várias janelas;
N) No terreno identificado em A) os AA construíram uma moradia unifamiliar destinada a habitação, composta de dois pisos acima da cota da soleira e um piso abaixo da cota da soleira;
O) O logradouro à volta da moradia identificada em A), correspondente ao lote 151, não é horizontal e a diferença entre o nível do passeio da Rua Sousa Carvalho (cota 197,12) e o plano mais baixo junto ao muro que demarca o prédio junto ao lote 1… (cota 194,62) é de 2,50 metros;
P) O logradouro do terreno identificado em A) do lado do lote 1…, acompanha o declive natural do terreno, em mais de metade da sua extensão, uma rampa que dá acesso à cave;
Q) O muro de vedação do terreno referido em A) é constituído por quatro patamares distintos, acompanha o declive referido em P) e tem uma altura variável entre 1,25 metros e 1,88 metros;
R) O perfil natural do terreno do lote 1… tem um andamento sensivelmente igual ao do lote 1…;
S) A implantação do edifício no lote 1…, ao nível da cave, está projetada cerca de 0,70 metros acima do nível da cave do lote 1…:
i) A cota do pavimento da cave (garagem) do lote 1… é de 194,63 metros;
ii) A cota do pavimento cave (garagem) do lote 1… é de 195,32 metros.
T) De acordo com o desenho nº 08A – Alçado Principal e Lateral Direito pertencente ao projeto aprovado -, o projeto prevê na faixa contígua ao lote 1…, o aterro do terreno natural, numa altura variável entre 0,5 metros e 3,0 metros acima do perfil natural do terreno;
U) De acordo com o desenho nº 10 – Muros – Plantas, Corte e Alçado, pertencente ao projeto aprovado – a altura do muro projetado para a estrema do lote 1… varia entre 2,0 metros e 4,5 metros relativamente ao perfil do terreno natural desenhado;
V) A altura do muro construído na estrema do lote 152 que confina com o lote 1…, medida no levantamento topográfico, relativamente à cota do logradouro contíguo no lote 151 varia entre 1,96m junto à Rua Sousa carvalho e 4,48m na zona mais alta;
W) A altura do muro construído na estrema do lote 152 que confina com o lote 151, medida no levantamento topográfico, relativamente à cota do logradouro contíguo no lote 1…, varia ente 1,96 metros junto à Rua sousa carvalho e 4,48 metros na zona mais alta;
X) O muro de vedação referido em U) tem uma altura superior à da janela existente na cave;
Y) O muro de vedação referido em U) relativamente à janela existente no rés-do-chão, a parte superior da janela fica a 0,27 cm acima do topo do muro e a parte inferior 0,46 m abaixo do topo do muro;
Z) O projeto aprovado e a que se refere o alvará mencionando em L), designadamente o desenho nº 2A – Planta de implantação e Perfil, entregue na CM em 30/11/2006, (anexo IV) permite que, em duas esquinas do lado do logradouro do Lote 1…, a distância seja inferior a 3,0 m; na esquina junto ao pilar central 2,95 m e na esquina das traseiras 2,90 m;
AA) De acordo com o desenho nº 2A, o afastamento da fachada principal ao limite do lote, na empena que confina com a Rua Sousa carvalho é de 3,0 m; a zona de menor afastamento refere-se a um telheiro existente na fachada e não à empena do edifício;
BB) De acordo com o projeto licenciado, designadamente o desenho nº 2A, o afastamento da fachada principal ao limite do lote, na empena que confina com a Rua Sousa Carvalho é de 3,0 m; a zona de menor afastamento 1,80 m refere-se a um telheiro existente na fachada;
CC) O afastamento da fachada da moradia construída no lote 1…., ao limite do lote que confina com a Rua Sousa Carvalho, varia entre 2,87m e 3,47m e o afastamento do limite do telheiro varia entre 1,65m e 1,68 m;
DD) A Rua Sousa Carvalho tem uma inclinação no sentido Sul/Norte: sobe cerca de 0,5m entre o eixo do lote 1… e o eixo do lote 1…. (sentido sul/norte);
EE) O perfil do terreno natural do lote 152 apresenta um desnível de cerca de 3 metros, semelhante ao desnível existente no logradouro na moradia do lote 1….

IV – Do Direito
Desde logo, e por forma a permitir uma mais eficaz visualização daquilo que se discorreu em 1ª instância, infra se transcreverá o essencial do discurso fundamentador da decisão recorrida.
“Pretendem os AA que seja declarada a nulidade do despacho de 28 de Agosto de 2007, do presidente da Câmara de Odivelas, proferido no âmbito do processo nº 97…., que aprovou as obras de construção de uma moradia unifamiliar, no terreno para construção, sito em Famões, Rua Sousa Carvalho, correspondente ao lote 1…, que confronta do Norte com lote 1…, do Sul com lote 1.., do Nascente com lote 1… e do Poente com Rua Sousa Carvalho, propriedade dos aqui CI que se integra no Bairro da Encosta do Mourigo.
Alegam, em síntese que o despacho do Presidente da Câmara de Odivelas, que aqui se impugna é nulo:
a) Violação do alvará de loteamento quanto ás características do muro de suporte – artº 68º al a) do RGEU, ou seja, o muro de vedação projetado para a estrema do lote 1… tem uma altura superior a 1,50m;
b) Violação dos nºs 3 e 4 do regulamento do Alvará de loteamento nº 9/2001 e artº 73º do RGEU, por a parte lateral direita e a fachada principal do lote 1… não distarem 3,0 m da extrema do lote 1… e da extrema que confina com a Rua sousa carvalho.
(…)
Invocam ainda, os AA, nesta parte a violação do ponto 4, do Regulamento do alvará do loteamento nº 9/2001, que dispõe que: Os muros de vedação dos lotes não podem exceder 1,50 m, devendo ser garantida a sua transparência a partir de 0,90 m de altura, quando confinam com a via pública (…).”
Cremos, no entanto, sem razão, atendendo a que este ponto faz referência aos muros “quando confinam com a via pública”.
Sendo de concluir que tanto a cave como o rés-do-chão se encontram privados da exposição solar e a sensação de acanhamento ou afogamento do espaço alegada, embora as testemunhas do Réu venham referir que dado que a fachada, onde se situam as janelas, estar virada a Norte está à sombra.
Sendo também, óbvio que, nessas circunstâncias a construção dos muros em altura excessiva poderá causar desvalorização da propriedade dos AA.
Que, nos termos do artº 68º al a) do DL nº 555/99, de 16-12, com a redação dada pelo DL nº 177/2001, de 04-06 é um ato nulo, nulidade que, ora se declara.
Sendo de julgar, parcialmente procedente a ação nesta parte.”

Vejamos:
No que aqui releva, os Autores intentaram ação administrativa especial contra o Município de Odivelas, tendente à declaração de nulidade do despacho do presidente da Câmara Municipal de Odivelas, de 28/08/2007 que aprovou a obra de construção de uma moradia unifamiliar no prédio dos contrainteressados.

Há, no entanto, uma questão prévia à decisão relativa ao mérito da Ação decidida em 1ª Instância, e que se prende com a circunstância dos Autores terem vindo a desistir do pedido, o que foi indeferido pelo Tribunal a quo.

Com efeito, em 15 de novembro de 2016 vieram os Autores “desistir do pedido formulado nos presente autos, requerendo em conformidade a declaração de extinção da instância, nos termos do disposto nos artºs 277º, al d), 283º, nº 1, 285º, nº 1 286º nº 2 e 290º, nº 1, todos do NCPC, aplicável ex vi do Artº 5º da Lei 41/2013, de 26/6, e do Artº 1º do CPTA.”

Correspondentemente, em 17 de novembro de 2016 foi proferido despacho, igualmente aqui recorrido, no qual e no que aqui releva, se decidiu o seguinte:
Os Autores vêm desistir do pedido por requerimento entrado a 15 de novembro de 2016.
E neste caso, importa saber se as normas do RGEU sobre afastamentos e altura das edificações urbanas podem ser objeto de desistência.
Certamente que não. Estas normas constituem na esfera jurídica dos particulares direitos indisponíveis e, por outro lado, ultrapassam os titulares desses mesmos direitos num dado momento.
Não se tratando de direitos disponíveis a desistência do pedido não é admissível.”

Após a prolação de decisão final, no qual o tribunal a quo decidiu julgar a Ação parcialmente procedente, veio o Município de Odivelas Recorrer, nomeadamente, do referido Despacho que indeferiu a desistência do pedido, tendo discorrido o seguinte:
“Por requerimento de 15.11.2016, os AA desistiram do pedido.
Sucede que, por Despacho, o Meritíssimo Juiz de Direito do Tribunal "a quo" indeferiu o pedido, com o singelo fundamento de que as normas do RGEU sobre afastamentos constituem na esfera jurídica dos particulares direitos indisponíveis que os ultrapassam e que por isso que não admitem desistência.
Ora, sucede que o sobredito Despacho não contém os fundamentos de Direito que justificam semelhante decisão, limitando-se a um enunciado apriorístico e simples, desprovido do necessário desenvolvimento e da obrigatória remissão para a concreta norma legal que o sustente.
Nem da leitura, ainda que muito atenta, do Despacho se alcança a razão de ser da alegada indisponibilidade dos direitos que integram a esfera jurídica dos AA.
Mas, admitindo, num esforço interpretativo, que o Digno Magistrado, se referia ao eventual interesse público das normas supostamente violadas, então seria obrigatório fazer intervir o Ministério Público que detém, nos termos legais, a função de zelar pelo primado daquele interesse.
O que não foi feito.
Assim, e face ao exposto, a conclusão inevitável é a de que o recorrido Despacho é nulo, por força da disciplina prevista na alínea b) do n^ 1 do artigo 615º do CPC.
Acresce que o Tribunal "a quo", previamente à prolação do Despacho recorrido que decidiu sobre uma questão de Direito, não concedeu ao ora Recorrente a possibilidade de se pronunciar, assim violando o disposto no n^ 3 do artigo 3º do CPC.
O que inquina a sentença.”

No que aqui releva, concluiu-se ainda no referido Recurso:
“O presente recurso tem por objeto:
a) Do douto Despacho que indeferiu o requerimento de desistência do pedido;
(…)
I. O Despacho que indeferiu o requerimento de desistência do pedido não contém os fundamentos de Direito que justificam semelhante decisão, razão pela qual é nulo, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 615º do CPC.
II. Violando ainda o disposto no nº 3 do artigo 3º do CPC.”

Não foram apresentadas Contra-alegações de Recurso, não obstante o Ministério Público nesta instância tenha emitido Parecer, no qual, e no que aqui releva, se pronunciou no sentido de dever ser concedido provimento ao recurso interposto do despacho que indeferiu o requerimento de desistência do pedido, como supra referido, deve ordenar-se a baixa dos autos tendo em vista os efeitos do art° 62° do CPTA.”

No que concerne à admissibilidade e viabilidade do recurso interposto do despacho que indeferiu a desistência o pedido, apresentado pelo Município, uma vez que a sua procedência inviabiliza, prejudica e condiciona incontornavelmente o conhecimento do recurso interposto da decisão proferida sobre o mérito da ação, importa que desde já se emita pronuncia face ao mesmo.

A questão prende-se, desde logo, com a circunstância dos Autores, enquanto destinatários do controvertido Despacho, não terem interposto Recurso do mesmo, impondo-se, assim, verificar se o Município de Odivelas foi prejudicado no desenvolvimento da lide com tal indeferimento, a ponto de obter assim, legitimidade para recorrer do mesmo.

Tal como defendido pelo Ministério Público no seu Parecer, entende-se dever ser assegurada ao Município legitimidade recursiva face ao referido Despacho, uma vez que o mesmo, determinando em sua consequência, o conhecimento do mérito da ação, veio a assegurar-lhe a obtenção da necessária legitimidade, nos termos do nº 4 do Artº 141º do CPTA, uma vez que ficou potencialmente “direta e efetivamente prejudicado”.

Tal como recursivamente suscitado, decorre do referido Despacho que o mesmo patenteia uma manifesta Falta de Fundamentação, refugiando-se em afirmações meramente conclusivas, sem suporte normativo algum.

Na realidade, ao ter sido indeferida a desistência do pedido, por alegada indisponibilidade do direito urbanístico em causa, nada se diz quanto à natureza jurídica dos direitos em causa e por que razão tal direito seria indisponível, a ponto de inviabilizar a desistência do pedido.

Efetivamente, a natureza pública dos interesses protegidos pelas normas do RGEU, não é suficiente para qualificar os direitos individuais que se pretendem tutelar como indisponiveis.

O Despacho Recorrido mostra-se desde logo nulo à luz do Artº 615º nº 1 alínea b) do CPC que impõe tal consequência às decisões que não especifiquem os fundamentos de facto e de direito que as justifiquem, sendo que o Artº 613º nº 3 do mesmo CPC estende tal consequência “com as necessárias adaptações aos despachos”.

Acresce que, independentemente de estarmos, ou não, perante um direito indisponível, tendo o tribunal decidido como decidiu, sempre teria de ter facultado o contraditório às contrapartes.

Aqui chegados, importa concluir que o tribunal a quo, ao invés de “obrigar” os Autores a manter a Ação, com base em argumentos insuficientemente fundamentados e conclusivos, sendo caso disso, antes deveria ter recorrido ao estatuído no Artº 62º do CPTA, no qual se estipula o seguinte:
“O Ministério Público pode, no exercício da ação pública, assumir a posição de autor, requerendo o seguimento de processo que, por decisão ainda não transitada, tenha terminado por desistência ou outra circunstância própria do autor.”

Assim, verificadas as insuficiências do Despacho Recorrido, o que determina que fique prejudicada a análise da Sentença proferida, determinar-se-á a baixa dos Autos à 1ª Instância a fim de que seja acionado o instituto previsto no referido artº 62º do CPTA de modo a que, perante a requerida desistência do pedido por parte dos Autores, seja dada vista ao Ministério Público, por forma a que este, querendo, possa requerer o prosseguimento da Ação, assumindo-se como Autor.

* * *

Deste modo, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Julgar procedente o Recurso relativo ao Despacho que indeferiu o requerimento de desistência do pedido, revogando-se o mesmo, mais se determinando a baixa dos autos ao Tribunal a quo, no qual será dada vista ao Ministério Público, para os efeitos referidos.
b) Julgar prejudicada a análise do Recurso relativo à Sentença.

Sem Custas, atenta a inexistência de contra-alegações de Recurso.

Lisboa, 19 de maio de 2022
Frederico de Frias Macedo Branco

Alda Nunes

Lina Costa