Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:11803/15
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:02/16/2017
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:INSTÂNCIA
INTERRUÇÃO
DESERÇÃO
PRAZOS
Sumário:i) Enquanto a deserção da instância se opera, independentemente de qualquer decisão judicial, pelo mero decurso de dois anos sobre a interrupção, a interrupção da instância, diversamente, reclama a prolação de despacho que a declare.

ii) Independentemente da natureza declarativa ou constitutiva do despacho de interrupção da instância, sem que ele seja proferido não se pode considerar essa situação para qualquer efeito, designadamente para o início do prazo de deserção da instância a que se reporta o art. 291.º do Código de Processo Civil.

iii) O prazo para a deserção da instância só se poderá contar a partir da notificação do despacho que decidir a interrupção da instância.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

1. Relatório

Água do …………., Lda. e Herdeiros de ……………. (Recorrentes) recorrem para este TCAS da decisão da Mma. Juiz do TAF do Funchal que, no âmbito da acção por aqueles proposta contra o Estado Português e Região Autónoma da Madeira, na sequência de arguição de nulidade da sentença que julgou habilitados os herdeiros de José ……………….., julgou a instância extinta por deserção e inexistentes os actos praticados após a sua extinção.

Nas alegações de recurso, formulam as seguintes conclusões:

1.ª Os AA. não foram notificados de qualquer despacho de interrupção da instância.

2.ª Nos termos do art. 291° CPC, na redação em vigor até 31 de agosto de 2013, para que fosse julgada deserta a instância era necessário que se tivesse verificado a interrupção da instância e, após a interrupção, o prazo de dois anos e um dia.

3.ª A interrupção não opera «ope legis» começando-se a contar o prazo para a deserção a partir da efectiva interrupção, por trânsito em julgado do respectivo despacho que a declare como tal.

4.ª Uma vez que o despacho de interrupção da instância não tem natureza meramente declarativa.

5.ª Não houve despacho declarativo da interrupção da instância, pelo que não podia haver extinção da instância por deserção.

6.ª De tal modo que, uma vez que não havia nos autos despacho a declarar interrompida a instância, o Juiz de 1.ª instância admitiu o incidente de habilitação de herdeiros intentado em 04/05/2012, pela A. Água ………, Lda e julgou habilitados os herdeiros do A. José …………………por sentença de 10/07/2012.

7.ª Ou seja, o próprio Tribunal de 1.ª instância ao decidir o incidente de habilitação considera que embora se mostre claro quando se iniciou o prazo da suspensão, sem despacho a declarar a interrupção da instância não é possível saber com rigor quando a instância está interrompida, nem saber se a falta de impulso caracterizaria negligência notória dos sucessores do A., face à situação processual.

8.ª Deste modo deverá revogar-se o despacho recorrido, determinando-se o prosseguimento dos autos, nos termos requeridos.

9.ª O despacho ora recorrido, infringiu o disposto nos artigos 285.º, 287.º, alínea c) e 291.º do Código de Processo Civil, na redacção em vigor até 31 de Agosto de 2013.

A Região Autónoma da Madeira contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.




Após vistos, vem o processo agora à conferência para decisão.



2. Fundamentação

2. 1. Dos factos

No TAF do Funchal foram alinhados os seguintes factos:

i) Em 02/02/2009 a A. Água ………….., Ld.a, juntou aos autos certidão de óbito do coautor José …………., requerendo a suspensão da instância [cfr. doc. de fls. 1559 dos autos].

ii) Por despacho de 11/02/2009 foi declarada a suspensão da instância por força da morte de José ……………. [cfr. doc. de fls. 1572 dos autos].

iii) Do despacho de suspensão da instância foram notificados os mandatários dos Autores e dos Réus, por carta datada de 11/02/2009, enviada sob registo do correio, bem como o Procurador da República junto deste tribunal [cfr. doc. de fls. 1573, 1574 e 1592 dos autos].

iv) Por requerimento entrado neste Tribunal em 04/05/2012, veio a A. Água ………….., Ld.a requerer incidente de habilitação de herdeiros [cfr. doc. de fls. 1655 a 1666 dos autos].




Acordando-se ainda em aditar os seguintes factos (documentalmente comprovados):

v) O processo foi remetido à conta, como constante de fls. 1610 e despacho de fls. 1629.

vi) Em 10.07.2012 foi proferida sentença de habilitação de herdeiros como constante de fls. 1685-1686.

vii) Por decisão de 21.05.2014, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, na sequência de arguição de nulidade, foi a instância declarada extinta por deserção (cfr. fls. 1711-1715).

viii) Do que foram as partes notificadas por cartas de 12.06.2014 (cfr. fls. 1717-1718 v.)




2. 1. Do direito

Assente a factualidade relevante, vejamos então do acerto da decisão recorrida que veio a declarar a deserção da instância.

Disse-se na decisão recorrida:

Verifica-se, pois, que, por despacho de 11/02/2009 foi declarada a suspensão da instância por força da morte de José …………….., nos termos do disposto no artigo 276.°, n.° 1, alínea a) do CPC, em vigor à data.

Tal despacho foi notificado às partes por carta registada com data de registo de 11/02/2009, tendo sido notificada ao Magistrado do Ministério Público nessa mesma data.

Declarada a suspensão da instância, os seus efeitos reportam-se ao momento em que foi feita a prova no processo do falecimento da parte (artigo 277.°, n.° 2, do Código de Processo Civil).

Considerando que o processo esteve parado durante mais de um ano, sem que tivesse sido notificada qualquer decisão que considere habilitados os sucessores do Autor falecido (cfr. artigo 284.°, n.° 1, alínea a) do CPC), a instância interrompeu-se um ano e um dia após a notificação, nos termos do artigo 285.° do CPC, aplicável subsidiariamente por força do artigo 1 .° do CPTA, o que se declara, dada a negligência do A. Água do ………….., Ld.a em deduzir o incidente de que dependia o seu andamento.

O despacho de interrupção da instância tem efeito meramente declarativo, a interrupção não nasce com esse despacho. Este limita-se a constatar que ela se verificou [cfr. Acórdão do STJ 48/200.C2.S1 de 21-06-2011].

Pelo que, para efeitos de deserção da instância - artigo 291º, n.º 1, do CPC - o prazo de dois anos a partir da interrupção deve contar-se do decurso de mais de um ano de paralisação por falta de diligência da parte na promoção do andamento normal do processo, o que se verifica nos presentes autos, porquanto o A. não deduziu, naquele prazo, incidente de habilitação dos herdeiros.

Assim, pelo menos desde 15/02/2010, começou a correr o prazo para efeitos de deserção da instância, o qual se viria a completar dois anos depois, isto é, em 15/02/2012.

Daqui decorre que quando a A. …………. Ld.a deduziu o incidente de habilitação de herdeiros, em 04/05/2012, já se havia produzido a deserção da instância, nos termos dos artigos 291.°, n.° 1 e n.° 4 e 287.°, alínea c) do Código de Processo Civil, com consequente extinção da mesma.

A deserção da instância não necessita, para se verificar, de despacho judicial que a declare, uma vez que a lei expressamente o dispensa, operando assim automaticamente pelo mero decurso do mencionado prazo de dois anos a contar do momento em que a instância tenha ficado interrompida. A deserção opera de direito, ope legis, e não ope judicis.

E não obsta a essa deserção o facto de se terem praticado inúmeros atos no processo como se este não tivesse findado (no caso em concreto a sentença que julgou habilitados os herdeiros de José ……………….. e todos os demais atos subsequentes).

A deserção provoca a extinção da lide, da relação processual que se materializa na ação onde o direito substantivo é exercitado. Após a extinção da instância não há mais atos processuais que se possam praticar porque não há relação processual juridicamente existente. Isto é, qualquer ato praticado depois disso é juridicamente inexistente, pois que inidóneo para produzir efeitos jurídicos.

Daí que, no caso em apreço, ocorrida a extinção da instância por deserção em fevereiro de 2012, os autos praticados desde então são inexistentes porque não têm nenhuma relação processual subjacente a eles e que os legitime.

Não produzindo tais atos qualquer efeito, pode a sua inexistência ser declarada em qualquer momento pelo juiz.

É contra ao assim decidido que os Recorrentes se insurgem, entendendo que para que fosse julgada deserta a instância era necessário que se tivesse declarado previamente a interrupção da instância e, após a interrupção, o prazo de dois anos e um dia, sendo que, nos termos da sua alegação, a interrupção não opera ope legis e que, não tendo o despacho de interrupção da instância natureza meramente declarativa, não o tendo havido, não podia haver extinção da instância por deserção. Ou seja, em síntese, entendem os Recorrentes que o despacho recorrido é ilegal por não ter existido um despacho a interromper a instância, pelo que não poderia ser extinta a instância por deserção.

Que dizer?

Sobre a questão da natureza jurídica do despacho de interrupção da instância e seus efeitos para o processo afirmou-se no acórdão do STJ de 16.04.2002, proc. n.º 02A949, que: “(…) tendo ainda em conta que tal despacho se torna necessário para fins de eventual apuramento de caducidade face ao disposto no art. 332º, nº 2, do Cód. Civil, conclui-se que a interrupção da instância deve ser decretada por despacho judicial, sem o que não pode ter início o decurso do prazo de deserção da instância. No mesmo sentido se pode apontar o Ac. de 12/1/99 deste Supremo Tribunal (1ª Secção), in BMJ. 483-167, que, considerando embora que o despacho judicial que decrete a interrupção tem natureza declarativa, não deixa de o exigir para que a interrupção opere”.

E no acórdão do STJ de 21.06.2011, proc. n.º 48/200.C2.S1 (aliás citado na sentença recorrida), sumariou-se:

I - O despacho de interrupção da instância a que alude o art. 285.º do CPC, tem efeito meramente declarativo, já que a interrupção não nasceu com esse despacho. Este limitou-se a constatar que ela se verificou.

II - Assim, o prazo de dois anos a partir da interrupção, para efeitos de deserção da instância – art. 291.º, n.º 1, do CPC –, deve contar-se, não do despacho que a declarou, mas sim do decurso de mais de um ano de paralisação por falta de diligência da parte na promoção do andamento normal do processo.

Mais se escrevendo neste aresto o seguinte:

“(…) a lei não dispensa a prolação de despacho que declare a interrupção da instância. Fazendo-o, segundo cremos, com o objectivo de dissipar qualquer incerteza sobre o momento concreto em que foi verificada a existência dos respectivos pressupostos.

Afirma também o dito acórdão deste STJ de 20-2-2008 “interrupção da instância não opera, pois, automaticamente pelo mero decurso do prazo, antes pressupõe uma decisão judicial, a partir da qual se verifica a referida situação, projectando, a partir da verificação de uma situação processual objectiva, os seus efeitos para o futuro. Assim, a interrupção da instância pressupõe a paragem do processo por mais de um ano por negligência das partes em promover os seus termos e a existência de um despacho que a declare”.

Estabelece, por sua vez, o art. 291º nº 1 que “considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando esteja interrompida durante dois anos”.

Daqui decorre que a deserção opera sem necessidade de prolação decisão judicial que a reconheça. Basta, somente, o simples decurso do tempo para que ela se verifique. Isto é, diferentemente da interrupção actua a deserção ope legis. [sublinhado nosso]

Significa isto que verificada a interrupção da instância, declarada por despacho judicial, o decurso subsequente do prazo de dois anos conduz inevitavelmente à extinção da instância por deserção. Como se diz adequadamente no acórdão deste STJ de 12-2-2010 já referido, a deserção da instância “não necessita, para se verificar, de algum despacho judicial que a declare, uma vez que a lei expressamente o dispensa, operando ela assim automaticamente pelo mero decurso do mencionado prazo de dois anos a contar do momento em que a instância tenha ficado interrompida, mas esta, como a lei não dispensa tal despacho [a declarar a interrupção], depende de que este seja proferido, não operando, pois, de forma automática [sublinhado nosso]”.

Chegados aqui e porque os efeitos serão obviamente diversos, teremos de verificar qual a natureza do despacho que declara a instância deserta. Se constitutivo ou se, meramente, declarativo. Se se considerar ter natureza constitutiva, então só a partir do despacho, ou da sua notificação, deve correr o prazo próprio de deserção. Se se entender ter a natureza declarativa, o prazo de deserção deve contar-se desde que se mostre atingido o tempo de paragem necessário para a interrupção em consequência da falta de impulso das partes.

A recente jurisprudência deste STJ tem, segundo cremos de forma tendencialmente unânime, vindo a considerar a natureza de tal despacho como meramente declarativa. Isto porque com a prolação do despacho visa-se determinar e declarar se o prazo em causa já decorreu, fazendo-se, simultaneamente, o juízo sobre a falta de diligência das partes na promoção do andamento normal do processo. Por outras palavras, esse despacho tem o carácter meramente declarativo, e não constitutivo, pois não determina a interrupção, limitando-se a constatar que esta se verificou por ter havido inércia negligente durante mais de um ano da parte onerada com o impulso processual. Neste sentido refere o dito acórdão deste STJ de 12-2-2009 que o despacho de interrupção “limita-se a declarar a verificação dos requisitos da interrupção, e consequentemente a declarar esta”. Isto porque, como se diz no mesmo aresto, “não constituindo ele, pois a lei não o declara como tal, elemento constitutivo do instituto da interrupção da instância, nem sendo ele consequentemente o ponto de partida para contagem do prazo de interrupção de dois anos conducente à deserção e durante o qual o recorrente a podia ter feito cessar nos termos do art.º 286º do C.P.C.: o ponto de partida é constituído pelo próprio termo do prazo conducente à interrupção”.

Quer dizer, tendo o despacho de interrupção da instância a natureza declarativa, somente afirma que a interrupção se produziu, não significando que só na data da sua prolação essa interrupção tenha ocorrido. O ponto de partida para a contagem do prazo da deserção é constituído pelo termo do prazo que gera a interrupção. Como se refere em feliz síntese no acórdão deste STJ de 15-6-2004 (www.dgsi.pt/jstj.nsf) “a interrupção da instância significa, pois, que, por negligência da parte, o processo esteve parado durante mais de um ano; a deserção significa que essa paragem se prolongou por mais dois anos”.

A posição que se aceita e agora se expressa é a que melhor se adequa e se harmoniza com o sistema de interrupção e deserção da instância que, segundo Alberto Reis visa a necessidade da “boa ordem dos serviços”, de se não manterem indefinidamente parados nos tribunais inúmeros processos em relação aos quais as próprias partes se desinteressaram. Neste sentido afirma-se, no acórdão deste STJ 17-6-2004 (www.dgsi.pt/jstj.nsf), que “isto mesmo explica que, hoje, quando o ritmo de vida é muito mais intenso e a procura judicial mais forte, o legislador tenha descido o prazo para a ocorrência da deserção de cinco (Cod. P.Civil de 1961) para dois anos (Código actual)”. Assim, não faz sentido que um juiz, perante inúmeros processos parados há mais de um ano por falta negligente de impulso da parte interessada, tenha de declarar, de forma constitutiva, a interrupção da instância, desaproveitando-se todo o período excedente de paralisação ocorrida.

(…)

O prazo de dois anos a partir da interrupção (para efeitos de deserção da instância), deve contar-se não do despacho que a declarou, mas sim do decurso de mais de um ano de paralisação por falta de diligência da parte na promoção do andamento normal do processo.

Nesta conformidade, a interrupção da instância teria ocorrido em (…) (isto é, um ano e um dia após a notificação à exequente do despacho de sustação da execução), sendo que a deserção da mesma instância se teria verificado em (…) (ou seja, após dois anos de interrupção da instância). Porém, como para a deserção haverá necessidade da declaração (prévia) da interrupção, teremos, no caso, de considerar que a instância ficou deserta em 12-02-2009, com o trânsito em julgado do despacho que verificou a interrupção da instância.[sublinhados nossos].”

Ou seja, de acordo com o decorrente da Jurisprudência citada, o despacho que declare a interrupção da instância tem efectivamente carácter meramente declarativo, e não constitutivo, pois não determina a interrupção, antes se limitando a constatar que esta se verificou – por isso a “declara” -, porventura até muito antes da sua prolação (por ter havido inércia negligente durante mais de um ano da parte onerada com o impulso processual). Porém, a interrupção da instância, também por pressupor um juízo sobre a falta de diligência da parte onerada com o impulso processual em promover os termos do processo, não opera de forma automática (v., ainda, o acórdão do STJ de 12.02.2009, proc. n.º 09A0150), implicando a necessidade de um despacho judicial que, após um ano e um dia pelo menos de paragem do processo, a declare, e de que a parte interessada pode recorrer.

Donde, como se concluiu no citado acórdão do STJ de 12.02.2009, a interrupção da instância “não necessita, para se verificar, de algum despacho judicial que a declare, uma vez que a lei expressamente o dispensa, operando ela assim automaticamente pelo mero decurso do mencionado prazo de dois anos a contar do momento em que a instância tenha ficado interrompida, mas esta, como a lei não dispensa tal despacho, depende de que este seja proferido, não operando, pois, de forma automática. O que aliás se justifica por a interrupção da instância ter por pressuposto não só o decurso do prazo de um ano e um dia mas também um juízo sobre a falta de diligência da parte onerada com o impulso processual em promover os termos do processo durante tal período, juízo esse que a parte pode rebater, após notificada do mesmo despacho, nomeadamente mediante recurso se for admissível” [sublinhado nosso].

Também a questão decidenda foi já tratada no STA, concretamente no que respeita ao termo inicial para a contagem do prazo para efeitos da deserção, tendo presente o disposto no art. 291.º do CPC (na redacção aplicável). No acórdão do STA de 17.03.2010, proc. n.º 82/10, fazendo eco da vasta jurisprudência dos tribunais superiores existente sobre a matéria, acabou por concluir-se que, regra geral, o prazo de dois anos previsto no art. 291.º do CPC, apenas se conta da notificação do despacho que decidir a interrupção da instância. Posição que assentou no seguinte discurso fundamentador:

“(…) para ser justo que o autor perca o direito por efeito da sua inércia, é necessário que essa perda seja exclusivamente uma consequência da sua conduta, nomeadamente que não seja atribuível, exclusivamente ou não, a uma omissão do próprio Tribunal.

Na verdade, vigora no nosso direito processual um princípio geral, que aflora explicitamente no n.º 6 do art. 161.º e no n.º 3 do art. 198.º do CPC e é emanação do princípio constitucional da justiça, nos termos do qual os interessados não podem ser prejudicados por erros ou omissões das entidades públicas a quem está legalmente confiada a tramitação dos processos judiciais.

Relativamente a processos que se encontrem sem movimentação por inércia das partes, colocando-se a possibilidade de ser declarada a interrupção da instância quando se completar um ano e um dia de paragem, o dever da secretaria judicial é apresentar o processo ao juiz, para apreciar se deve ou não ser declarada a interrupção, no prazo de cinco dias (arts. 161.º, n.º 1, e 166.º, n.º 1, do CPC) e o despacho respectivo deve ser proferido no prazo geral de 10 dias (art. 153.º, n.º 1, do CPC).

A ser observada esta tramitação, com a notificação do despacho que declarar interrompida a instância, o autor ficará a saber que o Tribunal fez um juízo positivo sobre a imputação da paragem do processo a negligência das partes, podendo reagir fazendo cessar a interrupção, nos termos do art. 286.º do CPC. Aliás, sendo a interrupção e deserção da instância explicadas pelo presumível desinteresse das partes relativamente ao processo, a necessidade de prolação de um despacho declarando a interrupção da instância, afastando a extinção da instância automática, por mero decurso do tempo, tem precisamente como justificação alertar as partes para a hipótese dessa extinção, dando-lhes possibilidade de obstarem a ela, caso o seu interesse no processo se mantenha [sublinhados nossos].

Ora, não é justo que seja o autor a sofrer o resultado negativo de uma actuação deficiente dos serviços de justiça, que é de considerar, à face das regras da vida e da experiência comum, como uma condição desse resultado e está com ele conexionada, em termos de causalidade adequada.

Por outro lado, o art. 291.º, n.º 1, ao determinar a extinção da instância por deserção decorridos dois anos após a interrupção da instância evidencia uma intenção legislativa de que a negligência das partes em promover o andamento do processo, que justifica a interrupção, não tenha como efeito directo e imediato a deserção. De resto, a extinção da instância tem potencialidade para afectar negativamente a esfera jurídica do autor (e, eventualmente, também a do réu, como evidencia a condição de admissibilidade da extinção da instância por desistência, prevista no art. 296.º do CPC), pelo que o princípio do direito à defesa judicial dos direitos que aflora no art. 20.º, n.º 1, da CRP, que tem como corolário a proibição de decisões-surpresa, não pode dispensar que se proporcione às partes, antes de a extinção ser declarada, a possibilidade de se pronunciarem sobre a verificação ou não dos pressupostos de que ela depende, possibilidade essa que, em face da desnecessidade de despacho a declarar a extinção (art. 291.º, n.º 1, do CPC) só é proporcionada pela notificação, antes de ocorrer a extinção, do despacho que declara a interrupção, que é susceptível de impugnação.

(…)

Ora, a tese que defende que o despacho que declara a interrupção da instância tem natureza meramente declarativa, fixando retroactivamente a data da interrupção de acordo com o juízo que nele se fizer sobre o início da paragem do processo por negligência das partes, conduziria a que a deserção pudesse ocorrer imediatamente após esta apreciação jurisdicional, bastando, para tanto, que o despacho apenas fosse proferido mais de três anos sobre a data que se viesse a entender ser aquele em que se iniciou o comportamento negligente, o que está em dissonância com a intenção legislativa, subjacente àquele art. 291.º, n.º 1.

Assim, é de adoptar, em geral, a tese jurisprudencial contrária à adoptada no despacho recorrido, sendo de entender que o prazo de dois anos previsto no art. 291.º do CPC, apenas se conta da notificação do despacho que decidir a interrupção da instância..”

Ainda assim, não deixa o STA de referir:

6 – De qualquer modo, mesmo que se entenda que o despacho que declara a interrupção da instância tem natureza meramente declarativa, o início do período de interrupção dependerá do juízo que nele se faça sobre essa negligência, não estando esta necessariamente associada ao momento em que o processo parou.

Na verdade, depois da paragem do processo, por qualquer motivo, para as partes a agirem diligentemente não é exigível que, imediatamente (maxime, logo no dia seguinte), promovam o andamento do processo, apenas podendo concluir-se pela existência de negligência depois de um período, mais ou menos curto, que será o presumivelmente necessário, à face das regras da experiência e das circunstâncias do caso, para um interveniente processual normalmente diligente, dar satisfação às exigências que permitem o prosseguimento do processo.

Por isso, mesmo que se entenda que o despacho que declara a interrupção da instância retroage os seus efeitos à data em que se iniciou a negligência, é decisivo para determinar o início do prazo de dois anos previsto no art. 291.º, n.º 1, do CPC, que no despacho em que se declara a interrupção se indique qual é o momento em que se considera que a omissão das partes passou a dever ser qualificada como negligente.

Estabelecidas estas linhas dogmáticas de análise, é tempo de enfrentar o caso concreto.

Desde logo, como nota o Recorrido, o despacho em causa, datado de 21.05.2014, declarou – ainda que não inserido no seu dispositivo - interrompida a instância nos seguintes termos: “Considerando que o processo esteve parado durante mais de um ano, sem que tivesse sido notificada qualquer decisão que considere habilitados os sucessores do Autor falecido (cfr. artigo 282º, n.º 1, alínea a) do CPC, a instância interrompeu-se um ano e um dia após a notificação (…), o que se declara, dada a negligência do A. Água do Porto Santo, Lda em deduzir o incidente de que dependia o seu andamento.” Tal apresenta-se manifesto, isento de dúvida, bastando ler o despacho em causa na sua integralidade.

Entendeu-se, pois, na decisão recorrida que se podia qualificar como negligente a actuação das partes e que se considerava que essa negligência perdurava há um ano e um dia. Isto é, desde a notificação efectuada por carta registada de 11-02-2009 (cfr. ii) e iii) do probatório), pois é esse o período de tempo necessário para a interrupção ocorrer. E, considerando o que se vem de dizer, então temos que a interrupção ocorreu em 15.02.2010, aliás como afirmado na decisão recorrida (p. 4 da mesma).

Ou seja, recolocando a questão nos termos adjectivos que reputamos por correctos, a decisão agora impugnada tem vários segmentos:

i) O primeiro que declara a interrupção da instância (desde 15.02.2010);

ii) O segundo que declara a deserção da instância (desde 15.02.2012); e, consequentemente,

iii) Um terceiro que dá procedência à arguida nulidade e declara a inexistência dos actos praticados após a extinção da instância.

Despacho esse notificado por cartas de 12.06.2014, como por nós dado por assente.

Perante isto apresenta-se como seguro que o apontado despacho transitou em julgado na parte que declarou a interrupção da instância, por ausência de atempada impugnação, ficando esgotado o poder jurisdicional sobre essa matéria.

Para todos os efeitos existe na ordem jurídica uma interrupção da instância declarada e válida, a qual estabelece a data de 15.02.2010, como termo inicial para a contagem do prazo de deserção.

Como se depreende das conclusões de recurso e da leitura exaustiva da alegação recursória, a decisão recorrida apenas é objecto de recurso na parte que declarou a extinção da instância por deserção, e dos efeitos dessa extinção para o processo, pelo que é apenas esta – rectius, os segmentos decisórios supra identificados em ii) e iii) - que é objecto do presente recurso jurisdicional (e nem sequer se pode equacionar que tal é feito implicitamente, uma vez que da causa de pedir patenteada no recurso, nada é possível extrair nesse sentido).

Mas o que se vem de dizer não resolve a questão jurídica de fundo; uma coisa é a interrupção propriamente dita, a outra é a contagem do prazo para a deserção. É que, mesmo considerando que a interrupção se verificou em 15.02.2010, importa tomar posição sobre a divergência acerca de quando se começa a contar o prazo de 2 anos previsto no art. 291.º, n.º 1, do CPC. Ou seja: automaticamente a partir da data da interrupção, como prazo unitário, ou após a notificação da decisão que a declara?

Neste ponto, importa recordar que enquanto a interrupção da instância pressupõe a paragem do processo por mais de um ano, por negligência das partes em promover os seus termos, bem como um despacho que a declare (art. 285º do CPC na redacção aplicável), a deserção da instância ocorre logo que decorram dois anos sobre a data da interrupção da instância, independentemente de despacho judicial (art.291º, n.º 1, do CPC). O que vale por dizer que, enquanto a interrupção da instância se produz ope judicis, pois que depende de acto do juiz, a deserção da instância produz-se ope legis, pois que é independente de despacho judicial.

Nessa medida, como se disse em acórdão da Relação de Lisboa de 16.10.2012, proc. n.º 812/1995.L1-7: “Seja como for, estamos com o citado Acórdão do STJ, de 28/2/08, quando aí se diz: «Independentemente da natureza declarativa ou constitutiva do despacho de interrupção da instância, sem que ele seja proferido não se pode considerar essa situação para qualquer efeito, designadamente para o início do prazo de deserção da instância a que se reporta o art.291º do Código de Processo Civil». E, também, quando aí se refere que: «A interrupção da instância não opera, pois, automaticamente pelo mero decurso do prazo, antes pressupõe uma decisão judicial, a partir da qual se verifica a referida situação, projectando, a partir da verificação de uma situação processual objectiva, os seus efeitos para o futuro».

Consideramos, deste modo, que o prazo para a deserção da instância só se poderá contar a partir do despacho que declarou interrompida a instância. Além do mais, existem razões de certeza e segurança jurídicas que reclamam se perfilhe tal entendimento.

E é esse também o nosso entendimento, o qual se mostra de acordo com a jurisprudência do STA citada e, do nosso ponto de vista, é o mais adequado ao princípio constitucional da tutela judicial efectiva, consagrado no art. 20.º da CRP e que, em termos amplos, garante o direito de acesso aos tribunais, conjugado com o princípio do pro actione (que favorece a decisão do fundo, do mérito da causa). Por outro lado, julgamos que a solução que se advoga, se impõe por razões de certeza e segurança jurídicas. Não é admissível que tal despacho de interrupção da instância seja dado simultaneamente com a deserção da instância.

Por isso a decisão recorrida, proferida em 21-05-2014, notificada por carta de 12.06.2014, em que se entendeu que a deserção da instância ocorreu em 15.02.2012, nessa parte não pode manter-se, devendo os autos baixar ao tribunal a quo e prosseguir em conformidade. É que enquanto não for proferido (e transitar) despacho a declarar interrompida a instância, as partes podem promover o seu andamento, o que no ínterim já fizeram. Para além de que não se completou o período de tempo necessário para ocorrer a deserção da instância, pois a partir da notificação do despacho em causa, foi tempestivamente interposto recurso do mesmo (em 29.07.2014), sendo que a posterior paragem da tramitação do processo não pode imputar-se a negligência das partes.



3. Conclusões:

Em conclusão, sobre a questão decidenda,:

i) Enquanto a deserção da instância se opera, independentemente de qualquer decisão judicial, pelo mero decurso de dois anos sobre a interrupção, a interrupção da instância, diversamente, reclama a prolação de despacho que a declare.

ii) Independentemente da natureza declarativa ou constitutiva do despacho de interrupção da instância, sem que ele seja proferido não se pode considerar essa situação para qualquer efeito, designadamente para o início do prazo de deserção da instância a que se reporta o art. 291.º do Código de Processo Civil.

iii) O prazo para a deserção da instância só se poderá contar a partir da notificação do despacho que decidir a interrupção da instância.



4. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a decisão recorrida e ordenar a baixa dos autos ao TAF do Funchal a fim de os autos prosseguirem ulteriores termos.

Custas pelos Recorridos.

Lisboa, 16 de Fevereiro de 2017


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Pedro Marchão Marques


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Conceição Silvestre


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Cristina Santos