Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:05181/11
Secção:CT - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:06/12/2012
Relator:JOAQUIM CONDESSO
Descritores:PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO.
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA.
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO.
REGIME DO CONTRATO-PROMESSA.
EMBARGOS DE TERCEIRO.
Sumário:1. Incumbe às partes, à luz da base instrutória e das demais circunstâncias do caso, fazer a prognose da prova que será necessário produzir e requerer a produção da mesma, atendendo aos diversos meios de prova consagrados na lei, tudo levando em consideração o ónus da prova que sobre cada uma recai (cfr.artº.74, nº.1, da L.G.T.), tudo de acordo com o princípio do dispositivo que igualmente vigora no processo judicial tributário (cfr.artº.99, nº.1, da L.G.Tributária; artº.13, nº.1, do C.P.P.Tributário).
2. Segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas (cfr.artº.655, nº.1, do C.P.Civil). Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g.força probatória plena dos documentos autênticos - cfr.artº.371, do C.Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação.
3. O artº.236, do C.Civil, consagra a teoria da interpretação do negócio jurídico vigente na nossa ordem jurídica, a qual parte de uma base objectivista, levando em consideração a declaração negocial e o sentido que da mesma tem um declaratário normal. Já no que diz respeito a negócios formais, o artº.238, do C.Civil, elege, em princípio, uma perspectiva interpretativa da declaração negocial que deve ter um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento (cfr.artº.9, nº.2, do C.Civil, quanto à interpretação da lei), ainda que imperfeitamente expresso, assim consagrando uma teoria com um cunho mais objectivista no que se refere à interpretação das declarações negociais formais, normalmente apelidada pela doutrina como teoria da manifestação.
4. O artº.410, do C.Civil, consagra a noção e regime do contrato-promessa, espécie contratual que cria para o promitente uma obrigação de contratar, cujo objecto consiste numa prestação de facto, gozando apenas, em princípio, de eficácia meramente obrigacional, restrita, por conseguinte, às partes contratantes, ao invés do contrato-prometido, quando tenha por objecto a alienação ou oneração de coisa determinada, o qual goza de eficácia real. No artº.410, nº.3, do C.Civil (redacção resultante do dec.lei 379/86, de 11/11), veio o legislador exigir determinados requisitos de forma do contrato para que o mesmo possua eficácia real (cfr.artº.413, do C.Civil), sempre que estejamos perante promessa que tenha por objecto mediato um imóvel urbano.
5. A doutrina e jurisprudência são uniformes em considerar que o exercício de poderes do promitente-comprador incidente sobre o imóvel objecto do contrato prometido se configura como um mero detentor precário (cfr.artº.1253, al.c), do C.Civil), visto que adquire o “corpus” possessório, mas não adquire o “animus possidendi”, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário. Somente assim não acontece se ocorrer a inversão do título da posse, nos termos dos artºs.1263, al.d), e 1265, do C.Civil, sendo que de tal factualidade compete ao promitente-comprador fazer prova.
6. Os requisitos da dedução dos embargos de terceiro, de acordo com a lei processual tributária, são os seguintes (cfr.artº.237, do C.P.P.Tributário):
a-A tempestividade da petição de embargos;
b-A qualidade de terceiro face ao processo de execução no âmbito do qual se verificou a diligência judicial ofensiva da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da mesma diligência;
c-A ofensa da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial, que se traduza num acto de agressão patrimonial.


O relator

Joaquim Condesso
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO
X
RELATÓRIO
X
A...e B..., com os demais sinais dos autos, deduziram recurso dirigido a este Tribunal tendo por objecto sentença proferida pela Mma. Juíza do Tribunal Tributário de Lisboa, exarada a fls.127 a 135 e rectificada a fls.150 e 151 do presente processo, através da qual julgou totalmente improcedentes os embargos de terceiro intentados pelos recorrentes opondo-se a penhora de imóvel levada a efeito no âmbito da execução fiscal nº.3247-2002/101749.7 e aps., a qual corre seus termos no 2º. Serviço de Finanças de Lisboa.
X
Os recorrentes terminam as alegações do recurso (cfr.fls.213 a 225 dos autos) formulando as seguintes Conclusões:
1-O preenchimento dos requisitos previstos no nº.3, do artº.410, do C.C., que compõe o regime aplicável à outorga de um contrato promessa oneroso sobre um bem imóvel, foi erradamente interpretado pelo Tribunal “a quo”;
2-Assim como não foi tomada em consideração o carácter interpretativo da vontade negocial nos termos previstos no artº.236, do C.C.;
3-Com efeito, e salvo melhor opinião, olvidou aquele Tribunal a interpretação da vontade negocial expressamente declarada, cingindo-se meramente às questões formais do negócio;
4-Por outro lado, não foram devidamente interpretadas e subsumidas ao caso as normas previstas no artº.1251, e nas alíneas a) e b), do artº.1263, do C.C.;
5-Pois, como oportunamente foi demonstrado nos autos, bem como nas alegações supra, os embargantes e ora recorrentes expuseram os fundamentos que justificam a sua referida posição nos autos, na qualidade de possuidores de direito de propriedade nos termos do artº.1251, e das alíneas a) e b), do artº.1263, do C.C.;
6-Pelo exposto o Tribunal “a quo” interpretou erradamente o nº.3, do artº.410, o artº. 1251, as alíneas a) e b), do artº.1263, e não tomou em consideração o disposto no artº. 236, todos do C.C., na medida em que;
7-Desde logo, demonstraram os embargantes que existiu a outorga de um contrato promessa de compra e venda do imóvel em causa que, embora formalmente imperfeito, foi livremente assinado por ambas as partes;
8-Houve, por isso, a manifestação da vontade de assunção de dois compromissos: o de venda do imóvel por parte da construtora “C...- Construções Urbanas, L.da.” e o de compra do mesmo imóvel por parte dos aqui recorrentes;
9-Ou seja, apesar da incompletude dos requisitos formais previstos no nº.3, do artº.410, do C.C., facto é que existe uma manifestação de vontade negocial, expressamente declarada pelas partes no contrato promessa outorgado e já junto aos autos sob o documento nº.1;
10-Entendem os ora recorrentes não ter o Tribunal “a quo” tomado em consideração a interpretação da vontade negocial expressamente manifestada, nos termos previstos no artº.236, do C.C.;
11-Ficou, aliás, cabalmente demonstrada a vontade de efectivamente transferir a propriedade, formalmente, para os aqui recorrentes, no momento em que a construtora “C...- Construções Urbanas, L.da.” outorgou a procuração irrevogável já junta aos autos sob o documento nº.2;
12-Pelo que é inequívoca a vontade negocial das partes, nos termos do já mencionado artº.236, do C.C., a qual foi totalmente desconsiderada pelo Tribunal “a quo” em detrimento do formalismo exigido pelo nº.3, do artº.410, do C.C.;
13-Naturalmente que o formalismo legal deve ser exigido e mais ainda cumprido, no entanto, não será tão ou mais relevante para a perfeição do negócio a intenção expressa e inequívoca manifestada pelos intervenientes nesse mesmo negócio jurídico?
14-Por outro lado, com a outorga e entrega da procuração irrevogável, os embargantes e ora recorrentes pagaram integralmente o preço pela aquisição do imóvel;
15-E, desde então, passaram a agir como proprietários do mesmo, ali praticando todos os actos relacionados com a actividade comercial ali desenvolvida;
16-Passaram assim, “ab initio”, a agir como verdadeiros titulares de um direito de propriedade;
17-Praticando reiteradamente ao longo de anos, com publicidade, os actos materiais correspondentes ao exercício do direito de propriedade (alínea a), do artº.1263, do C.C.);
18-O que foi, aliás, possível pois existiu uma tradição simbólica da coisa efectuada pela anterior possuidora, a “C...- Construções Urbanas, L.da.” (alínea b), do artº.1263, do C.C.);
19-Termos em que concluímos que o Tribunal “a quo” fez uma interpretação errada dos factos face às normas invocadas;
20-O Tribunal “a quo” proferiu a sua decisão desconsiderando factos, absolutamente indispensáveis para o apuramento da verdade, os quais foram devidamente provados pelos embargantes e ora recorrentes;
21-Tendo assim o Tribunal “a quo” sustentado a sua fundamentação de forma errada quer por a mesma ignorar factos determinantes, quer por não terem sido aplicadas devidamente as normas jurídicas já invocadas supra designadamente, os artºs.236, nº.3, do artº.410, artº.1251, e alíneas a) e b), do artº.1263, todos do C.C.;
22-Em suma, nos presentes autos os embargantes e ora requerentes provaram cabalmente os factos por si invocados, os quais não foram devidamente tomados em consideração, nem subsumidos correctamente às normas jurídicas invocadas, pelo que deviam os embargos de terceiro ter sido julgados procedentes por provados;
23-NESTES TERMOS, E NOS MAIS DE DIREITO, E SEMPRE COM MUI DOUTO SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS DEVERÃO AS PRESENTES ALEGAÇÕES E CONCLUSÕES, SEREM CONSIDERADAS PROCEDENTES E PROVADAS E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA, SENDO PROFERIDO NOVO ACÓRDÃO, SEGUINDO-SE OS ULTERIORES TERMOS ATÉ FINAL.
E ASSIM FARÃO VOSSAS EXCELÊNCIAS A COSTUMADA JUSTIÇA.
X
Não foram apresentadas contra-alegações.
X
O Digno Magistrado do M. P. junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido de se negar provimento ao recurso (cfr.fls.230 e 231 dos autos).
X
Corridos os vistos legais (cfr.fls.234 do processo), vêm os autos à conferência para decisão.
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FUNDAMENTAÇÃO
X
DE FACTO
X
A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto (cfr.fls.129 a 131 dos autos):
1-Em 6 de Janeiro de 1992, foi celebrado entre os ora embargantes, A...e B..., e a executada “C...- Construções Urbanas, L.da.”, representada por D..., uma “proposta de compra” da “loja 16” do “centro comercial Sol Lisboa”, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, constando da mesma como preço do imóvel o montante de PTE 11.500.000$00 (EUR 57.361,76), mais constando da mesma ter sido recebido um “sinal” no montante de PTE 575.000$00 (EUR 2.868,09) pago através do cheque nº.7806745428, do banco “Totta & Açores”, e determinar-se o pagamento do montante de PTE 10.425.000$00 (EUR 51.999,68) com a celebração do contrato-promessa em 6 de Fevereiro de 1992, e o montante de PTE 500. 000$00 (EUR 2.493,99) com a escritura, tendo ainda sido aposta a indicação de que a “loja 16” “passou a 12” (cfr.cópia da “proposta” junta a fls.8 e 59 dos presentes autos);
2-No dia 17 de Janeiro de 1997, foi outorgada no 5º. Cartório Notarial de Lisboa pela executada “C...- Construções Urbanas, L.da.” representada por Paulo Magalhães de Paiva Meira na qualidade de gerente, uma procuração a favor dos embargantes, dando-lhes poderes desta venderem a quem entenderem podendo eles próprios ser os compradores, a fracção autónoma designada pelas letras “CZ”, correspondente à loja doze, no Piso Zero, do prédio urbano sito em Lisboa, na Avenida Duque de Loulé, números quarenta e cinco e quarenta e cinco A, da freguesia de Coração de Jesus, descrito na 5ª. Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o número 124 daquela freguesia e inscrito na respectiva matriz sob o artigo oitocentos e dezanove, mais constando da mesma tratar-se de procuração irrevogável (cfr.cópia da procuração junta a fls.9 a 12 e 60 a 63 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido);
3-Em 21 de Março de 2002, foi instaurado no 2º. Serviço de Finanças de Lisboa o processo de execução fiscal nº.3247-2002/101749.7 contra “C...- Construções Urbanas, L.da.” por dívida originada por contribuição autárquica de 2000 no montante de EUR 1.685,38 (cfr.autuação e certidão de dívida juntas a fls.2 e 3 do PEF apenso);
4-Em 2 de Junho de 2008, foram apensos ao PEF melhor identificado no ponto anterior os processos nºs.3247200201017497, 247200201037528, 3247200501060805, 3247200201101501, 324720030103T805, 3247200501073273, 3247200501143603, 3247200601074390, 3247200601163248, 3247200701068369, 3247200201064193, 3247200201111590 e 3247200301055810, ascendendo em 29 de Outubro de 2008 a dívida exequenda ao montante de EUR 24.407,96 (cfr.termo de apensação junto a fls.50 do PEF apenso; informação dos serviços exarada a fls.14 e 15 dos presentes autos);
5-Em 26 de Setembro de 2003, foi efectuada no processo de execução fiscal uma penhora sobre a fracção autónoma designada pelas letras “CZ” correspondente à loja doze, no Piso Zero, do prédio urbano sito em Lisboa, na Avenida Duque de Loulé, números quarenta e cinco e quarenta e cinco A, da freguesia de Coração de Jesus, descrito na 5ª. Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o número 124 daquela freguesia, para garantia da quantia exequenda, tendo a mesma sido registada em 30 de Setembro de 2003 (cfr.documentos juntos a fls.36 a 38 dos presentes autos; informação dos serviços exarada a fls.14 e 15 dos presentes autos);
6-Em 3 de Março de 2008, foi efectuada no processo de execução fiscal uma penhora sobre a fracção autónoma designada pelas letras “CZ” correspondente à loja doze, no Piso Zero, do prédio urbano sito em Lisboa, na Avenida Duque de Loulé, números quarenta e cinco e quarenta e cinco A, da freguesia de Coração de Jesus, descrito na 5ª. Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o número 124 daquela freguesia, para garantia da quantia exequenda, tendo a mesma sido registada na mesma data (cfr.documentos juntos a fls.36 a 38 dos presentes autos; documentos juntos a fls.33 a 35 do PEF apenso);
7-Os embargantes tomaram conhecimento das penhoras existentes sobre o imóvel melhor identificado no ponto 5 em finais de Junho de 2008 (cfr.factualidade constante do artº.8 da p.i.);
8-A petição inicial dos presentes embargos deu entrada no 2º. Serviço de Finanças de Lisboa em 14 de Julho de 2008 (cfr.carimbo de entrada aposto a fls.43 dos presentes autos; informação dos serviços exarada a fls.14 e 15 dos presentes autos).
X
A sentença recorrida considerou como factualidade não provada a seguinte: “…Inexistem factos não provados com interesse para a decisão em causa, atenta a causa de pedir…”.
X
Por sua vez, a fundamentação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida é a seguinte: “…A decisão da matéria de facto efectuou-se com base no exame dos documentes e informações oficiais constantes dos autos…”.
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ENQUADRAMENTO JURÍDICO
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Em sede de aplicação do direito, a sentença recorrida julgou totalmente improcedentes os embargos objecto dos presentes autos, tudo em virtude de não resultar provado nos autos que se tenha celebrado um contrato-promessa que tivesse por objecto o imóvel penhorado, tal como não resulta provado que tenha havido a tradição do mesmo imóvel.
X
Desde logo, se dirá que as conclusões das alegações do recurso definem, como é sabido, o respectivo objecto e consequente área de intervenção do Tribunal “ad quem”, ressalvando-se as questões que, sendo de conhecimento oficioso, encontrem nos autos os elementos necessários à sua integração (cfr.artºs.685-A, do C.P.Civil; artº.282, do C.P.P.Tributário).
Os recorrentes discordam do julgado alegando em primeiro lugar, como supra se alude, que, com a outorga e entrega da procuração irrevogável, pagaram integralmente o preço pela aquisição do imóvel e, desde então, passaram a agir como proprietários do mesmo, ali praticando todos os actos relacionados com a actividade comercial desenvolvida. Passaram assim, “ab initio”, a agir como verdadeiros titulares de um direito de propriedade. Pelo que, o Tribunal “a quo” proferiu a sua decisão desconsiderando factos absolutamente indispensáveis para o apuramento da verdade, os quais foram devidamente provados pelos embargantes e ora recorrentes (cfr.conclusões 14 a 18 e 20 a 22 do recurso). Com base em tal argumentação pretendendo, supõe-se, consubstanciar erro de julgamento de facto da sentença recorrida.
Vejamos se a decisão objecto do presente recurso padece de tal vício.
Antes de mais, dir-se-á que incumbe às partes, à luz da base instrutória e das demais circunstâncias do caso, fazer a prognose da prova que será necessário produzir e requerer a produção da mesma, atendendo aos diversos meios de prova consagrados na lei, tudo levando em consideração o ónus da prova que sobre cada uma recai (cfr.artº.74, nº.1, da L.G.T.), tudo de acordo com o princípio do dispositivo que igualmente vigora no processo judicial tributário (cfr.artº.99, nº.1, da L.G.Tributária; artº.13, nº.1, do C.P.P.Tributário).
Refira-se, igualmente, que, segundo o princípio da livre apreciação da prova, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e de acordo com a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas (cfr.artº.655, nº.1, do C.P.Civil). Somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g.força probatória plena dos documentos autênticos - cfr.artº.371, do C.Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação (cfr.Prof. Alberto dos Reis, C.P.Civil anotado, IV, Coimbra Editora, 1987, pág.566 e seg.; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.660 e seg.).
No caso “sub judice”, atenta a factualidade constante dos nºs.1 e 2 do probatório, é óbvia a inexistência de prova do pagamento integral do preço por parte dos embargantes no que diz respeito à aquisição da fracção autónoma designada pelas letras “CZ”, correspondente à loja doze, no Piso Zero, do prédio urbano sito em Lisboa, na Avenida Duque de Loulé, números quarenta e cinco e quarenta e cinco A, da freguesia de Coração de Jesus, descrito na 5ª. Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o número 124 daquela freguesia e inscrito na respectiva matriz sob o artigo oitocentos e dezanove. Pelo contrário, somente foi efectuada prova do pagamento de um sinal no montante de PTE 575.000$00 (EUR 2.868,09), através do cheque nº.7806745428, sacado sobre o banco “Totta & Açores”, sendo que o montante total do preço acordado para a venda do imóvel se cifrava em PTE 11.500.000$00 (EUR 57.361,76), atento o conteúdo do nº.1 da matéria de facto provada. No que diz respeito à outorga da procuração irrevogável (cfr.nº.2 do probatório), não se retira de tal documento e, por consequência, da factualidade provada, que a celebração deste acordo tenha implicado o pagamento do preço integral do imóvel que constitui objecto mediato de tal procuração. Apenas são concedidos poderes de venda do imóvel, em nome da sociedade mandante (cfr.documento junto a fls.9 a 12 dos presentes autos). Por último, igualmente não consta da matéria de facto provada qualquer factualidade relativa ao exercício de poderes possessórios em nome próprio e com características causais (actuação por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de qualquer outro direito real de gozo), sendo tais poderes incidentes sobre o dito imóvel. E relembre-se que competia aos embargantes/recorrentes a prova da factualidade acabada de examinar (cfr.artº.342, nº.1, do C.Civil).
Em conclusão, a sentença recorrida não padece de qualquer erro de julgamento de facto atenta a prova, essencialmente documental, produzida no presente processo.
Os recorrentes discordam do julgado alegando, igualmente, que o Tribunal “a quo” interpretou e aplicou erradamente ao caso dos autos as normas jurídicas constantes dos artºs.236, nº.3, do artº.410, artº.1251, e alíneas a) e b), do artº.1263, todos do C.Civil (cfr.conclusões 1 a 13, 21 e 22 do recurso). Com base em tal argumentação pretendendo, supõe-se, consubstanciar erro de julgamento de direito da sentença recorrida.
Examinemos se a decisão recorrida comporta tal pecha.
A essência dos direitos relacionados com as coisas - dos direitos reais de gozo e de alguns direitos reais de garantia e direitos pessoais - consiste na faculdade de sobre elas exercer poderes de retenção, de uso, de fruição e de transformação. Todos estes direitos têm por finalidade a utilização económica das coisas, das vantagens que das coisas se podem obter, sendo pelo exercício daqueles poderes que a utilização se realiza (cfr.Manuel Rodrigues, A Posse, Estudo de Direito Civil Português, 4ª.edição prefaciada por Fernando Luso Soares, Almedina, 1996, pág.7).
Nos termos da lei civil substantiva o possuidor que veja a sua posse sobre determinada coisa ofendida por diligência ordenada judicialmente pode defender a mesma mediante a proposição de embargos de terceiro (cfr.artº.1285, do C.Civil).
A posse pode ser definida como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (cfr.artº.1251, do C.Civil), tendo como elementos constitutivos uma componente objectiva ou material (“corpus”) e outra subjectiva ou intencional (“animus”), de acordo com a melhor doutrina, assim se consagrando a concepção subjectivista do referido instituto (cfr.artº.1253, al.a), do C.Civil; Manuel Rodrigues, A Posse, Estudo de Direito Civil Português, 4ª.edição prefaciada por Fernando Luso Soares, Almedina, 1996, pág.88 e seg.; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil anotado, Coimbra Editora, 2ª. edição, 1987, III, pág.5). Portanto, para que exista posse é necessário alguma coisa mais do que o simples poder de facto exercido sobre a coisa; tem que haver, por parte do detentor, a intenção (“animus”) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa. E só esta, a posse efectiva e causal, que se traduz pelos mencionados elementos objectivo e subjectivo, pode fundamentar, regra geral, os embargos de terceiro (cfr.Alberto dos Reis, Processos Especiais, I, Coimbra Editora, 1982, pág.406; Jorge Duarte Pinheiro, Fase Introdutória dos Embargos de Terceiro, Almedina, 1992, pág.39; ac.S.T.J., 28/11/75, B.M.J.251, pág.135; ac.R.Lisboa, 18/4/91, C.J., 1991, II, pág.180).
No actual Código de Processo Civil, aprovado pelo dec.lei 329-A/95, de 12/12, os embargos de terceiro deixaram de ter a natureza de processo especial, passando a ser configurados como modalidade do incidente de oposição, ampliando-se os pressupostos da sua admissibilidade, assim deixando de estar ligados, necessariamente, à defesa da posse do embargante. Isto é, face a este novo regime, o embargante, através dos embargos, além da posse, pode defender qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial, que se traduza num acto de agressão patrimonial (cfr.artºs.351 e seg., do C.P.Civil; relatório constante do dec.lei 329-A/95, de 12/12).
Os requisitos da dedução dos embargos de terceiro, de acordo com a lei processual tributária, são os seguintes (cfr.artº.237, do C.P.P.Tributário; ac.S.T.A.-2ª.Secção, 18/1/95, rec.18307, ap.D.R., 31/7/97, pág.175 e seg.; A. José de Sousa e J. da Silva Paixão, Código de Processo Tributário anotado e comentado, 3ª. edição, 1997, pág.670 e seg.; Jorge Lopes de Sousa, C.P.P.Tributário anotado e comentado, II volume, Áreas Editora, 5ª. edição, 2007, pág.123 e seg.):
1-A tempestividade da petição de embargos;
2-A qualidade de terceiro face ao processo de execução no âmbito do qual se verificou a diligência judicial ofensiva da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da mesma diligência;
3-A ofensa da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial, que se traduza num acto de agressão patrimonial.
No processo vertente é o exame do terceiro requisito que está em causa.
Em primeiro lugar, chamam à colação os recorrentes o artº.236, do C.Civil.
A norma em causa consagra a teoria da interpretação do negócio jurídico vigente na nossa ordem jurídica, a qual parte de uma base objectivista, levando em consideração a declaração negocial e o sentido que da mesma tem um declaratário normal. Já no que diz respeito a negócios formais, o artº.238, do C.Civil, elege, em princípio, uma perspectiva interpretativa da declaração negocial que deve ter um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento (cfr.artº.9, nº.2, do C.Civil, quanto à interpretação da lei), ainda que imperfeitamente expresso. O artº.238, do C.Civil consagra uma teoria com um cunho mais objectivista no que se refere à interpretação das declarações negociais formais, normalmente apelidada pela doutrina como teoria da manifestação (cfr.Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª. edição, Coimbra Editora, 1989, pág.444 e seg.; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol.I, 3ª. edição, Coimbra Editora, 1982, pág.222 e seg.).
No caso “sub judice”, não vislumbra o Tribunal como possa a sentença recorrida ter violado o regime disposto no artº.236, do C.Civil, quando nos encontramos perante negócios formais (a proposta de compra constante do nº.1 do probatório; a procuração irrevogável fixada no nº.2 do probatório), os quais devem ser interpretados de acordo com as regras previstas no citado artº.238, do C.Civil.
Pelo contrário, a interpretação produzida pela sentença recorrida em relação aos negócios jurídicos constantes dos nºs.1 e 2 do probatório é objectiva e correcta, assim não podendo retirar-se dos mesmos aquilo que neles não se encontra consagrado (v.g.o pagamento total do preço acordado para a venda do imóvel).
De seguida, fazem os recorrentes menção do artº.410, nº.3, do C.Civil.
O preceito mencionado consagra a noção e regime do contrato-promessa, espécie contratual que cria para o promitente uma obrigação de contratar, cujo objecto consiste numa prestação de facto, gozando apenas, em princípio, de eficácia meramente obrigacional, restrita, por conseguinte, às partes contratantes, ao invés do contrato-prometido, quando tenha por objecto a alienação ou oneração de coisa determinada, o qual goza de eficácia real. No artº.410, nº.3, do C.Civil (redacção resultante do dec.lei 379/86, de 11/11), veio o legislador exigir determinados requisitos de forma do contrato para que o mesmo possua eficácia real (cfr.artº.413, do C.Civil), sempre que estejamos perante promessa que tenha por objecto mediato um imóvel urbano (cfr.João de Matos Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol.I, 7ª. edição, Almedina, 1991, pág.310 e seg.).
Voltando ao caso dos autos, atento o probatório é de concluir que não foi efectuada prova de que os embargantes tenham celebrado qualquer contrato-promessa tendo por objecto o imóvel em causa. É que o documento junto e denominado “proposta de compra”, não identifica adequadamente o imóvel e não obedece aos requisitos formais impostos pelo disposto no artº.410, nº.3, do C.Civil, sendo certo ainda que no próprio documento se remete para um contrato-promessa a celebrar e com o qual deve ser pago um parte do preço, a saber, o montante de EUR 51.999,68 (cfr.nº.1 da matéria de facto provada).
Concluindo, não resulta provado nos autos que tenha sido celebrado qualquer contrato-promessa (e muito menos com eficácia real) relativo à fracção autónoma devidamente identificada no nº.2 da matéria de facto provada, a qual viria a ser penhorada no âmbito do processo de execução fiscal de que os presentes embargos constituem apenso.
Por outro lado, mas não de somenos importância, os embargantes não provam que tenha ocorrido a tradição do imóvel, que nele exercem a sua actividade comercial e, muito menos, com a intenção de agirem como beneficiários de um direito de propriedade, sendo certo que no caso tal ónus incidia sobre os recorrente conforme mencionado supra.
Mais se dirá que, mesmo havendo prova da tradição do bem imóvel em causa para os recorrentes, ainda assim a doutrina e jurisprudência são uniformes em considerar que o exercício de poderes do promitente-comprador neste caso se configura como um mero detentor precário (cfr.artº.1253, al.c), do C.Civil), visto que adquire o “corpus” possessório, mas não adquire o “animus possidendi”, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário. Somente assim não acontece se ocorrer a inversão do título da posse, nos termos dos artºs.1263, al.d), e 1265, do C.Civil, sendo que de tal factualidade compete ao promitente-comprador fazer prova, no caso dos autos, aos embargantes/recorrentes (cfr.ac.S.T.A.-2ª.Secção, 10/2/2010, rec.1117/09; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 5/5/2009, proc. 2966/09; ac.T.C.A.Sul-2ª.Secção, 22/6/2010, proc.3882/10; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol.III, 2ª. edição, Coimbra Editora, 1987, pág.6 e seg.).
Por último, igualmente não pode defender-se que o facto de ter sido outorgada uma procuração emitida em nome e no interesse dos embargantes e por conseguinte irrevogável, nesta lhes sendo concedidos poderes, inclusive para celebrar o negócio consigo mesmos, tem a virtualidade de “transmitir” o direito de propriedade, nem de, por si só, demonstrar terem os embargantes a posse efectiva e causal sobre o imóvel e praticada com a intenção de exercer em nome próprio os direitos do respectivo proprietário.
Em conclusão, não fizeram os recorrentes prova da ofensa da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial de penhora levada a efeito no âmbito da execução fiscal nº.3247-2002/101749.7 e aps., que se traduza num acto de agressão patrimonial e seja susceptível de defesa através de embargos de terceiro.
Sem necessidade de mais amplas ponderações, julga-se improcedente também este fundamento do recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida, embora com a presente fundamentação, a qual não padece dos vícios que lhe são assacados pelos recorrentes, ao que se procederá na parte dispositiva deste acórdão.
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DISPOSITIVO
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Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA a qual, em consequência, se mantém na ordem jurídica.
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Condenam-se os recorrentes em custas.
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Registe.
Notifique.
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Lisboa, 12 de Junho de 2012



(Joaquim Condesso - Relator)

(Lucas Martins - 1º. Adjunto)

(Gomes Correia - 2º. Adjunto)