Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:136/22.7BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:11/02/2022
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores: RD LPFP
TAD
INFRAÇÃO DISCIPLINAR
RELATÓRIO DO ÁRBITRO
PRESUNÇÃO DE VERACIDADE
IN DUBIO PRO REU
ÓNUS IMPUGNAÇÃO MATÉRIA DE FACTO.
Sumário:
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

K...e L..., intentaram ação arbitral no Tribunal Arbitral do Desporto, contra a Federação Portuguesa de Futebol, mais tendo indicado como contrainteressada a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, peticionando a revogação da decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (CD da FPF), de 18.04.2022, no âmbito do Processo Disciplinar n.° 69-21/22, ao qual foi apenso o P. n.º 70-21/22, que condenou o primeiro Demandante numa infração disciplinar, p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, alínea b) [Agressões], do RD LPFP21, tendo-lhe sido aplicada uma pena de sanção de suspensão de 23 (vinte e três) dias e, acessoriamente, uma pena de multa no montante de €2.870 (dois mil oitocentos e setenta euros) e, o segundo Demandante, pela prática da infração disciplinar p. e p. pelo art. 131.º, n.º 1 [Agressões] do RD LPFP21, na sanção de 68 (sessenta e oito) dias de suspensão e em multa no valor de € 1.910 (mil novecentos e dez euros).

Por acórdão de 26.07.2022, proferido no P. n.º 24/2022, o Tribunal Arbitral de Desporto (TAD) anulou «a decisão final de condenação proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol no que respeita ao Demandante K..., absolvendo-o, e mantendo a condenação aplicada ao Demandante L...

Não se conformando com o assim decidido veio a Federação Portuguesa de Futebol (FPF) interpor o presente recurso jurisdicional, no qual concluiu, em sede de alegações de recurso, como se segue - cfr. fls. 46 e ss., do SITAF:

«(…)

1. A Recorrente vem apresentar recurso da decisão proferida pelo Colégio Arbitral no âmbito do processo de ação Arbitral necessária n.º 24/2022, que declarou procedente a ação interposta pelo ora Recorrido e determinou a revogação do acórdão de 18 de abril de 2022, proferido pelo Pleno do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol - Secção Profissional, na parte em que se decidiu aplicar ao Recorrido as sanções de multa e de suspensão pela prática da infração disciplinar p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 1, al. b) [Agressões], do RD da LPFP.

2. A decisão que ora se impugna é passível de censura, porquanto existem erros graves de julgamento da matéria de facto, bem como na interpretação e aplicação do Direito.

3. A factualidade considerada não provada pelo Tribunal a quo, resulta de toda a prova documental junta aos autos, assenta no Relatório de árbitro de fls. 7, na gravação das imagens do jogo a fls. 52, na imagem de fls. 71 e também no depoimento prestado, em sede disciplinar, pelo Senhor Prof. Doutor J..., a fls. 289.

4. Atentos os elementos probatórios melhor identificados em sede de Alegações, deve ser dado como provado que:

"A) O Recorrido K...] aproximou-se, tentando encostar o seu peito, ao delegado ao jogo H..., momento em que lhe dá um pisão/calcadela, causando dor.

B) O Recorrido K..., agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo da ilicitude e punibilidade das suas condutas, porém, não se absteve de as praticar".

5. Para que se preencha o tipo da infração sub judice [art.º 145.º, n. º 1 alínea b) RDLPFP], necessário se torna que, voluntariamente e ainda que de forma meramente culposa: (i) um jogador; (ii) cometa uma agressão; (iii) que não determine lesão de especial gravidade: (iv) contra delegados ao jogo de outros clubes.

6. Os bens e interesses jurídicos protegidos estão além da integridade física e/ou saúde dos agentes desportivos, centrando-se igualmente na imagem e credibilidade das competições e na prevenção de fenómenos de violência no desporto.

7. Como acima se explanou, resulta de toda a prova junta aos autos que o Recorrido K...] aproxima-se, tentando encostar o seu peito, ao delegado ao jogo H..., momento em que lhe dá um pisão/calcadela, cauando dor.

8. Fundamental no ilícito em causa, do ponto de vista objetivo, é verificar o conceito de "agressão", nomeadamente se o mesmo é compatível ou se mostra preenchido com a matéria apurada (dar um pisão/ calcadela).

9. Atenta a factualidade que deve ser dada como provada, não temos qualquer dúvida que, devido à intensidade da conduta mantida pelo Recorrido que com a sua chuteira, com pitões de alumínio, dá um pisão no tornozelo do delegado da equipa adversária, provocando-lhe um traumatismo, pratica um comportamento disciplinarmente censurável, que não pode deixar de ser qualificado como agressão, por se mostrar suscetível de pôr em causa a integridade física do visado, como efetivamente pôs.

10. Assim, atendendo à prova produzida nos presentes autos, e atendendo ao modo como é executada a ação que voluntária e deliberadamente tomou, é de qualificar objetiva e subjetivamente a conduta do Recorrido enquanto agressão/ofensa corporal, para com o delegado ao jogo da equipa adversária.

11. E, fazendo-o de forma voluntária, livre, consciente e deliberada, sabendo da ilicitude do seu comportamento, está, consequentemente, também reunido o elemento subjetivo da infração pela qual foi condenado pelo CD da Recorrente, tendo atuado dolosamente, dado que o Recorrido quis atingir o visado, mesmo sabendo que ofenderia os valores desportivos e que não poderia adotar a conduta mantida sem incorrer na prática de infração disciplinar.

12. Assim, o Acórdão recorrido merece a maior censura e deve ser revogado, sendo substituído por outro que reconheça a legalidade e acerto da decisão proferida pelo Conselho de Disciplina, mantendo, pois, as sanções aplicadas ao Recorrido.

(…).»

Também L... interpôs recurso, no qual concluiu, em sede de alegações de recurso, nos seguintes termos - cfr. fls. 25 e ss., do SITAF:

«(…) -I-

A. O presente recurso tem por objecto o acórdão de 26 de Junho de 2022 do TAD, que confirmou a condenação do Recorrente L..., pela prática de uma infracção disciplinar p. e p. nos termos do disposto no art. 131.°-1, ex vi art. 168-1, ambos do RDLPFP, aplicando-lhe a sanção de suspensão em 68 (sessenta e oito) dias e a sanção de multa em € 1.910,00 (mil novecentos e dez euros).

B. Não pode o Recorrente conformar-se com o sentido e teor do acórdão proferido por duas ordens de razões fundamentais: em primeiro lugar existe erro manifesto na apreciação da prova; e, além do mais, a actuação do arguido não preenche materialmente o tipo legal do ilícito disciplinar de “agressões” p. e p. pelo art. 131.°-1 do RD.

-II-

C. Reportam-se estes autos ao sucedido no final do jogo n.° 12201 realizado em 11-02-2022 no Estádio do Dragão entre a Sporting Clube de Portugal - Futebol, SAD e a Futebol Clube do Porto - Futebol, SAD, a contar para a 22.a jornada da “Liga Portugal Bwin”.

D. Após o apito final ocorreu, no relvado do Estádio do Dragão, uma altercação generalizada entre o staff e jogadores de ambas as equipas, tendo sido, justamente, no meio dessa confusão que, apercebendo-se que o jogador G... tentava chegar junto de P... e de H..., o Recorrente se colocou à frente deste esticando os braços de modo a afastá-lo, empurrando-o para fora daquela zona - o que logrou conseguir!

E. Sendo precisamente isso - e apenas isso! - que resulta das imagens televisivas do encontro juntas aos autos do processo disciplinar, concretamente, minutos 00:00:13 a 00:00:18 do ficheiro vídeo a fls. 71 do processo apenso ('‘vídeo 1 ,mp4”).

F. Tudo o que, em consciência, o Recorrente pretendia era afastar o jogador da equipa adversária do epicentro dos desacatos, assim evitando que o conflito escalasse.

G. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não interpretou como se impunha a dinâmica dos acontecimentos, nem valorou rigorosamente a prova produzida em sede de audiência disciplinar.

H. A verdade é que a prova produzida - designadamente as imagens juntas aos autos a fls. 71 do processo apenso (ficheiro vídeo “vídeo l.mp4”) e as declarações tomadas ao Demandante em sede de audiência disciplinar - não permite suportar a demonstração da factualidade ínsita nos pontos 6 in fine e 7 da matéria provada. Tendo o Tribunal incorrido em manifesto erro na apreciação da prova.

I. Qualificar como agressão o gesto que o Recorrente fez de empurrar o jogador da equipa visitante para fora daquela zona, impedindo-o de se envolver nos confrontos já gerados, é absolutamente ilógico, desajustado e contrário à ratio da norma e aos valores que com a mesma se pretende salvaguardar.

J. A realidade é que o Recorrente não exerceu qualquer tipo de violência sobre o jogador G..., não podendo o mero toque com as mãos no corpo daquele jogador (ainda que se apelide tal conduta de “empurrão”) ser tido como integrador do elemento típico exigido pela infracção de agressão, p. e p. no art. 131.°-1 do RD.

K. Desde logo por não se tratar de uma verdadeira agressão no sentido jurídico-disciplinar do termo - não tendo havido o emprego de força excessiva ou brutalidade - mas tão só de uma mera casualidade decorrente da altercação que se gerou no final do jogo.

L. Certo é que, o conceito de agressão para efeitos do RD - ou ofensa à integridade física no ordenamento jurídico-penal - implica um “mau trato” através do qual o atingido é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante (PAULA RIBEIRO DE FARIA, Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial, 1,2.a ed., anotação ao art. 143.°, p. 305).

M. Exigindo assim um determinado resultado: a ofensa do corpo ou da saúde de outra pessoa - não se podendo considerar existente uma ofensa ao corpo ou à saúde, onde a lesão seja insignificante ou irrelevante.

N. Da concreta configuração do contacto físico - tal qual como ele vem objectivamente descrito na matéria assente do acórdão recorrido [isto é, empurrão e colocação de mão no pescoço] - que foi de intensidade insignificante e sem quaisquer consequências (relevantes) para o corpo ou para a saúde do visado - resulta não ser a conduta do Recorrente suficiente para preencher materialmente o tipo legal do ilícito disciplinar de “agressões” p. e p. pelo art. 131.°-1 do RD.

O. E, mesmo no que concerne à conduta de “colocar as mãos no pescoço”, não pode descurar-se que o Recorrente não manteve a mão no pescoço de G... por mais de uma fracção de segundo, tendo sido, de imediato, afastado bruscamente pelo próprio jogador (cf. ficheiros vídeo juntos a fls. 88 dos autos).

P. Não resultando de qualquer elemento de prova que uma tal conduta tenha sido sequer apta a provocar dor ao visado!

Q. E, pois, flagrante a ausência de preenchimento dos elementos típicos do ilícito disciplinar imputado, nenhuma responsabilidade podendo, portanto, ser assacada ao aqui Recorrente - antes se devendo concluir pela sua absolvição.

Sem prescindir,

R. Mais se diga que nunca foi intenção do Recorrente agredir G... ou qualquer outro elemento da SCP, SAD, como nunca foi sua vontade contribuir para o inflamar dos ânimos ou para o escalar do clima violência que se gerou no final da identificada partida.

S. Certo é que, nem o descrito no Relatório do Arbitro, nem a versão trazida aos autos pelo lesado [G...] na fase de instrução do processo disciplinar, são aptos a, por si só e desacompanhados de qualquer outra prova robusta, revelar a intencionalidade do agente.

T. Não permitindo que se considere provado, para além de toda a dúvida razoável, que com a sua conduta L... quis causar dor ou molestar o corpo de G... fosse de que maneira fosse.

U. Não correspondendo à realidade dos factos que o Recorrente, deliberada ou voluntariamente, tenha colocado a mão no pescoço do jogador por forma a causar-lhe dor, e muito menos, que tenha "agido de forma livre, consciente e voluntária " desconsiderando a integridade física daquele.

V. Pelo que - ainda que venha este Tribunal a entender que o gesto do Recorrente tem, intrínseca, uma gravidade tal que necessariamente justifique a sua subsunção no conceito de "agressão” para efeitos disciplinares - o que, pelos motivos supra expostos não se consente e apenas por mero dever de patrocínio se equaciona — não há qualquer prova nos autos que permita manter a imputação ao Recorrente de uma conduta a título doloso.

W. Ficando assim necessariamente prejudicada a sua condenação pela prática da infracção disciplinar p. e p. pelo art. 131.°-1 do RD e impondo-se, como tal, a sua absolvição - o que se requer.(…)


A Recorrente FPF notificada que foi da interposição de recurso pelo Demandante L..., contra-alegou formulando as seguintes conclusões - cfr. fls. 83 e ss., do SITAF:

«(…)

1. O Recurso interposto pelo Recorrente tem por objeto a decisão Arbitral proferida no âmbito do processo n.9 24/2022 que confirmou acórdão proferido pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, no âmbito do processo disciplinar n.9 69-21/22, na parte que diz respeito à sanção aplicada ao dirigente ora Recorrente.

2. O acórdão impugnado confirmou a condenação do Recorrente na sanção de suspensão por 68 (sessenta e oito) dias e uma multa no valor de € 1.910 (mil novecentos e dez euros) pela prática da infração disciplinar p. e p. pelo 131.9-l [Agressões] do RD da LPFP 2021, decisão Arbitral da qual o Recorrente discorda.

3. Nas palavras do árbitro do jogo, o Recorrente foi expulso pelo facto de o mesmo se ter dirigido ao jogador adversário n9 25 G... numa zona do terreno de jogo onde não existia qualquer tipo de conflito visível, e ao chegar perto do referido jogador empurrou-o com o braço, sendo que esta ação/comportamento provocou uma reação violenta por parte do jogador adversário n°7 Tabata, bem como que se gerasse um conflito entre diversos elementos das duas equipas.

4. Da visualização da gravação das imagens de fls. 88 do processo disciplinar junto aos autos, é possível verificar que, quando a confusão era generalizada entre diversos elementos de ambas as equipas, o Demandante L... abeira-se do jogador da Sporting Clube de Portugal - Futebol, SAD, G... e empurra-o, com as suas mãos, no tronco. Ato contínuo coloca-lhe - pelo menos - a mão esquerda no pescoço deste e empurra-o.

5. Também as declarações de B...) no processo disciplinar vão no sentido corroborado pelas imagens e pelo próprio jogador G....

6. Nos termos do disposto no artigo 131.º, n.º 1, do RDLPFP, Agressões "[o]s dirigentes que agridam voluntariamente membros dos órgãos da estrutura desportiva, elementos da equipa de arbitragem, observadores, delegados da Liga Portugal, dirigentes ou delegados ao jogo de outros clubes, agentes de segurança pública, jogadores e treinadores são punidos com a sanção de suspensão a fixar entre o mínimo de três meses e o máximo de três anos e, acessoriamente, com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 25 UC e o máximo de 250 UC", aplicável aos delegados dos clubes por via do artigo 168.º, n.º1.

7. Nos termos do disposto no artigo 145.º n.º l alínea b) Agressões "1. São punidas nos termos das alíneas seguintes as agressões praticadas pelos jogadores contra os membros dos órgãos da estrutura desportiva, elementos da equipa de arbitragem, observadores, delegados da Liga Portugal, dirigentes ou delegados ao jogo de outros clubes, agentes de segurança pública, e treinadores: b) noutros casos de agressão, com a sanção de suspensão a fixar entre o mínimo de dois meses e o máximo de dois anos e, acessoriamente, com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 75 UC e o máximo de 375 UC."

8. Ora, condutas de "empurrões" ou "colocar mão no pescoço" ultrapassaram o nível objetivo de meras violações dos deveres gerais, constituindo tais ações, pela sua intensidade e desvalor de acção (mais graves), condutas objetivamente sancionáveis pelo tipo de agressões (p.e p. pelo artigo 131.º, n.º 1 do RD, e no artigo 145.º n.º 1 al. b) do RD.

9. Devido à intensidade da conduta mantida pelo Demandante que entrando em conflito com um jogador o empurra e depois coloca a sua mão esquerda no pescoço, causando, naturalmente, dor, pratica um comportamento disciplinarmente censurável.

10. Em suma, deve ser negado provimento ao recurso, demonstrando-se o acerto da decisão Arbitral recorrida. (…)»

Notificado da interposição de recurso pela FPF, também o Recorrido K... (P...) contra-alegou, concluindo nos seguintes termos - cfr. fls. 64 e ss., do SITAF:

«(…) -I-

A. Inconformada com o acórdão do Tribunal Arbitral, datado de 26 de Julho de 2022, na parte em que julgou procedente o pedido de arbitragem apresentado aos autos pelo Demandante, aqui Recorrido, assim revogando a decisão condenatória proferida no âmbito do processo disciplinar n.° 69-21/22, veio agora a Demandada interpor recurso dessa decisão, considerando, em suma, que “existem erros graves de julgamento da matéria de facto, bem como na interpretação e aplicação do Direito ”.

B. Afigura-se, porém, que nenhuma razão assiste à Recorrente, devendo improceder na íntegra o recuso apresentado aos autos, porquanto nenhuma censura ou reparo merece o acórdão recorrido na parte em que decidiu afastar a aplicação, in casu, do normativo ínsito no art. 145.°-1, b) do RDLFPF, assim concluindo pela ausência de responsabilização disciplinar do ora Recorrido.

-II-

C. Pugna a Recorrente pela alteração da matéria de facto no seguinte sentido: que seja dado como provado que

“A) O Recorrido K...] aproximou-se, tentando encostar o seu peito, ao delegado ao jogo H..., momento em que lhe dá um pisão/calcadela, causando dor”.

D. Na tese da Recorrente, tal factualidade resulta, pois, provada pelo facto de não ter sido abalada a presunção de veracidade de que beneficiam os relatórios oficiais do jogo. Porém, o que resulta de forma expressa do Retalório do árbitro, a fls. 7, é que o Recorrido “pontapeou um diretor da equipa adversário praticando um ato de conduta violenta”.

E. Salvo devido respeito, o recurso apresentado pela Recorrente é, desde logo, contraditório nos seus próprios termos, pois que se por um lado sustenta que não ficou abalada a presunção de veracidade do Relatório do árbitro - que expressamente refere a acção de pontapear-, por outro pretende (afinal) que seja dado como provado que o Recorrido pisou/calcou H...!

F. Como bem salientou o Tribunal a quo, “é a própria Demandada que afasta o descrito no relatório do árbitro no que concerne ao “pontapé” do Demandante P... ao Delegado H..., afastando [por essa via] naturalmente a presunção de veracidade prevista no art. 13° alínea f) do RDLPFP21.”

G. Mais, cumpre não esquecer, que para além da visualização da gravação das imagens juntas aos autos ser insusceptível de demonstrar tal ocorrência - também o depoimento prestado pelo Senhor Prof. Doutor J... faz “cair por terra" tal narrativa.

H. Portanto, não só o Relatório do árbitro não é suficiente para dar como assente a existência de uma conduta violenta (rectius, um pontapé) por parte do Recorrido, como todos os demais elementos probatórios carreados aos autos infirmam uma tal realidade!

I. Certo é que, afastada que está, por razões óbvias, a presunção de veracidade de que goza o Relatório do árbitro (e, por inerência, o acto de pontapear), compulsadas as demais provas existentes nos autos é manifesto que não são as mesmas suficientes para que se consiga tampouco afirmar, com o grau de certeza necessário, que tenha existido qualquer pisão/calcadela.

J. Era à Recorrente que competia provar a possível calcadela sofrida pelo delegado H..., bem como que a mesma foi perpetrada pelo Recorrido - o que assumidamente não aconteceu. Não havendo nos presentes autos um único meio de prova que permita afirmar - para lá de toda a dúvida razoável - uma actuação culposa do Recorrido nesse sentido.

K. É que, repita-se, não existe qualquer imagem nos autos que retrate a existência da imputada agressão: não resulta patente da visualização da gravação televisiva do próprio evento (a fls. 52) qualquer pontapé ou pisadela perpetrado pelo Recorrido P..., tal como não resulta sequer esse acto de nenhuma das imagens/vídeos juntos aos autos pelo próprio interessado!!

L. Sem que esteja demonstrada e devidamente comprovada, através de robustas provas, a materialidade e autoria da infracção disciplinar fica assim comprometida qualquer condenação do arguido, que tem em seu favor a presunção de inocência.

M. A condenação do aqui Recorrido, pretendida pela Recorrente, equivaleria assim a uma decisão sem prova e contra a prova! Não podendo consentir-se que este seja punido por uma infracção que efectivamente não cometeu!

N. Pelo que, bem andou o Colégio Arbitral ao revogar a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol, absolvendo o aqui Recorrido da prática da infracção p. e p. pelo art. 145.°-1, alínea b) do RDLPFP.

O. Sem prescindir, mais se diga que, mesmo que se admitisse que, ao dar um passo em frente para “ganhar” posição sobre H..., tenha havido um contacto da perna (ou pé) do Recorrido no corpo do Delegado da SCP SAD, nunca poderia, tal conduta, ser tida como um acto de “pisar” ou “calcar” outrem e, muito menos, representar uma conduta violenta disciplinarmente relevante!

P. A verdade é que, a ter existido, esse toque do pé do Recorrido no tornozelo/pé de H... foi completamente fortuito e não intencional, tratando-se, quando muito, de um simples e ligeiro contacto que, em momento algum, assumiu a natureza de agressão.

Q. A circunstância de ter existido um contacto físico com um elemento da equipa adversária, está longe de ter de, automaticamente, implicar a imputação ao aqui Recorrido, daquela infracção disciplinar de natureza grave.

R. Desde logo por não se tratar de uma verdadeira agressão no sentido jurídico-disciplinar do termo - não tendo havido o emprego de força excessiva ou brutalidade - mas tão só de uma mera casualidade decorrente da altercação que se gerou no final do jogo.

S. Em suma, ainda que este Tribunal viesse a alterar a matéria dada como assente no sentido pretendido pela Recorrente, certo é que o Recorrido não exerceu qualquer tipo de violência sobre o Delegado ao jogo da SCP SAD, resultando, pois, evidente a ausência de preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do ilícito disciplinar p. e p. pelo art. 145.°-1, al. b), do RDLPFP.

T. Pelo que, por nenhuma responsabilidade disciplinar poder ser assacada ao aqui Recorrido, impõe-se, assim, manter na íntegra o teor e o sentido do acórdão recorrido. (…)».

A DMMP junto deste tribunal, notificada nos termos e para os efeitos do n.º 1 do art. 146.º e do n.º 2 do art. 147.º, ambos do CPTA, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso da FPF, aduzindo, em síntese, que - cfr. fls. 102 e ss., do SITAF:

«(…) o Acórdão a quo invoca a dúvida insanável não sobre a existência da agressão ao delegado H..., mas sobre a forma de agressão, a saber, ou o pontapé, como é referido no relatório do árbitro que se se presumem verdadeiros, conforme estatui o artigo 13° n° 1 alínea f) do RDLPFP21, ou o ato de pisar o calcanhar como resulta evidenciado do depoimento prestado pelo Senhor Prof. Doutor J...,”em sede disciplinar, que confrontado, pela defesa, com a fotografia de fls. 71 (junta ao PD 70-21/22), que afirmou conhecer, referiu que a ferida que a imagem revela, pelo acumulo de pele no fundo, é mais compatível com uma calcadela, não parecendo resultar de um pontapé, caso em que o movimento ascendente típico de um pontapé evidenciaria a deslocação de pele de baixo para cima. No caso, e a seu ver, a pele foi deslocada de cima para baixo, logo o traumatismo é mais compatível com uma calcadela. Questionado pela CI se a lesão que observou na fotografia pode ser compatível ou provocada por um piton de uma chuteira, afirmou que sim, que um piton de uma chuteira pode causar uma lesão do género.” (…) Em conclusão e considerando que o Acórdão a quo fez uma incorreta interpretação jurídica do princípio in dubio pro reo ao absolver o arguido K... da infração disciplinar, p. e p. pelo art. 145.°, n.° 1, al. b), do RDLPFP21, emite-se parecer no sentido de ser procedente o recurso jurisdicional da FPF e, em consequência, ser revogada nesta parte a douta decisão recorrida.»

O Recorrido P... notificado do conteúdo do douto parecer proferido pela DMMP, veio responder, alegando, em suma, que «(…) 29. (…) compulsados os presentes autos salta à vista – como, aliás, bem concluiu o Tribunal a quo – que neles não estão reunidos factos e provas suficientes que permitam concluir que o aqui Recorrido deva responder disciplinarmente pela infracção disciplinar por que havia sido condenado pelo Conselho de Disciplina.

30. Sendo indiscutível que “um ‘non liquet’ em matéria de prova resolve-se a favor do arguido por aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do ‘in dubio pro reo’ devendo a prova coligida assentar em factos que permitam um juízo de certeza, isto é, numa convicção segura, para além de toda a dúvida razoável, de que o arguido praticou os factos que lhe são imputados” (cf. Ac. TCAS de 02-06-2010, Proc. 5260/01).

31. Convicção que manifestamente não é possível alcançar no presente pleito. (…)».


Com dispensa dos vistos, atenta a natureza urgente dos autos, vem o processo à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.

I. 1. Questões a apreciar e decidir

As questões suscitadas pela Recorrente FPF, delimitadas pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, traduzem-se em apreciar e decidir se o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento na aplicação que fez do princípio in dubio por reo, na apreciação da prova produzida nos autos e, com esse fundamento, revogou a decisão do CD da FPF que condenou o arguido, ora Recorrido P..., pela prática de uma infração disciplinar p.e.p. pelo art. 145.º, n.º 1, alínea b) [Agressões], do RD LPFP21(1), tendo-lhe sido aplicada uma pena de sanção de suspensão de 23 (vinte e três) dias e, acessoriamente, uma pena de multa no montante de €2.870 (dois mil oitocentos e setenta euros).

Por seu turno, as questões suscitadas pelo Recorrente L... (LG) delimitadas pelas alegações de recurso e respetivas conclusões, traduzem-se em apreciar e decidir se a decisão recorrida incorreu em erro de julgamento de facto e de direito ao ter mantido a decisão do CD da FPF que o condenou pela prática de infração disciplinar p. e p. pelo art. 131.º, n.º 1 [Agressões] do RD LPFP21, na sanção de 68 (sessenta e oito) dias de suspensão e em multa no valor de € 1.910 (mil novecentos e dez euros).

II. Fundamentação

II.1. De Facto

A matéria de facto constante da decisão recorrida é aqui transcrita ipsis verbis - cfr. fls. 4 e ss., do SITAF:

«(…)

1) No dia 11 de fevereiro de 2022, realizou-se, no Estádio do Dragão, o jogo oficial n.° 12201 entre a Futebol Clube do Porto - Futebol SAD e a Sporting Clube de Portugal - Futebol SAD, a contar para a jornada 22 da Liga Portugal bwin.

2) O Arguido K...] é jogador da Futebol Clube do Porto - Futebol, SAD e Br...] é jogador da Sporting Clube de Portugal – Futebol SAD, tendo ambos estado inscritos na ficha técnica do jogo suprarreferido.

3) O Arguido L... [L...] esteve inscrito na ficha técnica do jogo referido supra, assumindo as funções de delegado ao jogo da Futebol Clube do Porto - Futebol, SAD.

4) A Sporting Clube de Portugal - Futebol SAD inscreveu na ficha técnica do sobredito jogo, entre outros, o jogador G... e como delegado ao jogo, H… [H...],

5) Já no final do jogo, quando se verificava, ainda no relvado, uma altercação generalizada entre diversos elementos de ambas as equipas, o Arguido K...], depois de ter estado a falar com o árbitro principal, viu aproximar-se dele o delegado ao jogo da Sporting, SAD, H..., com a mão direita estendida, e dizendo-lhe "és sempre a mesma merda", nessa altura, o arguido "afasta, dando um safanão, com a sua mão direita, o braço direito do H...".

6) Posteriormente, o Arguido L... [L...] abeirou-se do jogador da Sporting Clube de Portugal - Futebol, SAD, G... e empurrou-o, com as suas mãos, no tronco do jogador. Acto contínuo colocou a sua mão esquerda no pescoço deste, causando-lhe dor.

7) O Arguido, L..., agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo da ilicitude e punibilidade das suas condutas, porém, não se absteve de as praticar.

8) À data dos factos o cadastro do Arguido K...] evidencia antecedentes disciplinares pela prática da infração prevista e punida pelo artigo 164.° (n.°s 1, 2, 3, 4 e 7) RDLPFP; por sua vez o cadastro de L... [L...] não evidencia condenações disciplinares há mais de um ano.

J. Factos não provados

Compulsada toda a prova existente nos autos consideram-se não provados os seguintes factos:

1) O Arguido K...] aproximou-se, tentando encostar o seu peito, ao delegado ao jogo H..., momento em que lhe dá um pisão/calcadela, causando dor.

Motivação da fundamentação da matéria de facto

A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto julgada provada e não provada, para além de ter resultado da consideração conjunta e global de toda a prova produzida, resultou ainda de uma análise crítica e conjugada de todos os meios de prova coligidos e produzidos nos presentes autos, designadamente documental e testemunhal, tendo-se observado o princípio da livre apreciação da prova e tendo-se concluído que tal prova, segundo as regras de experiência, se mostrou suficiente para, além da dúvida razoável, dar por assentes os factos julgados provados e, inversamente, não dar como assente (s) aquele(s) que se julga(ram) não provado(s).»


Adita-se à matéria de facto provada, ao abrigo do art. 662.º, n.º 1, do CPC, o seguinte facto, com interesse para a decisão a proferir no âmbito do presente recurso:

9) Do acórdão do CD da FPF, impugnado que foi junto do TAD, e que está na origem do presente litígio, consta, entre o mais o seguinte – cfr. fls. 42 e ss. do suporte informativo dos P. 69-21/22 e P. 70-21/22, que correu termos junto daquela entidade:
«(…) § 2. Factos Provados
5. Já no final do jogo, quando se verificava, ainda no relvado, uma altercação generalizada entre diversos elementos de ambas as equipas, o Arguido K...], depois de ter estado a falar com o árbitro principal e no momento em que o delegado ao jogo da Sporting, SAD, H..., se aproxima dele com a sua mão direita estendida, pergunta-lhe “o que é que queres” e afasta, dando um safanão, com a sua mão direita, o braço direito do H....
6. Acto contínuo o Arguido K...] aproxima-se, tentando encostar o seu peito, ao delegado ao jogo H..., momento em que lhe dá um pisão/calcadela, causando dor.
7. Posteriormente, o Arguido L... [L...] abeira-se do jogador da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD, G... e empurra-o, com as suas mãos, no tronco do jogador. Acto contínuo coloca a sua mão esquerda no pescoço deste, causando-lhe dor.
8. Os Arguidos agiram de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo da ilicitude e punibilidade das suas condutas, porém, não se abstiveram de as praticar.»
(…)
§3. Motivação
(…)
O facto referido em 5. de §2. Factos provados, suporta-se na gravação das imagens televisivas do jogo (prova admitida ao abrigo do principio da liberdade de produção e utilização de todos os meios de prova em direito permitidos que emerge da aliena h) do artigo 13.º do RDLPFP) de fls. 71 (do PD 70-21/22, vídeo 1) e de fls. 52 (do PD 69-21/22) em concreto aos 02:16:47 onde se visualiza o jogador P... a dirigir-se ao árbitro principal da partida, e aos 02:16:55 a aproximação de H..., de mão estendida, ao jogador P..., mão que este afasta com um safanão. Em declarações no processo constantes de fls. 177-180, o jogador P... esclarece ainda que «(…) nessa altura o H... veio ter comigo e dirigiu-me palavras ofensivas (“está calado pá, vai para o caralho, não é nada”) e por isso dei um passo em direção a ele perguntando “o que é que queres” e depois de nos encostarmos, afastei-lhe o braço, com o meu braço esquerdo (sem certeza) …».
O facto referido em 6. de §2. Factos provados assenta no Relatório de árbitro de fls. 7, na gravação das imagens do jogo a fls. 52, na imagem de fls. 71 e também no depoimento prestado pelo Senhor Prof. Doutor J... que confrontado, pela defesa, com a fotografia de fls. 71 (junta ao PD 70-21/22), que afirmou conhecer, referiu que a ferida que a imagem revela, pelo acumulo de pele no fundo, é mais compatível com uma calcadela, não parecendo resultar de um pontapé, caso em que o movimento ascendente típico de um pontapé evidenciaria a deslocação de pele de baixo para cima. No caso, e a seu ver, a pele foi deslocada de cima para baixo, logo o traumatismo é mais compatível com uma calcadela. Questionado pela CI se a lesão que observou na fotografia pode ser compatível ou provocada por um piton de uma chuteira, afirmou que sim, que um pinton de uma chuteira pode causar uma lesão do género.
Nas declarações que prestou em audiência, o Arguido negou que tivesse dado um pontapé a H..., ou sequer que tenha havido um toque, pois que se o fizesse com os pitões de alumínio com que joga (com 14/15mm), teria perfurado o pé ou a perna. Em sede de inquérito também já havia negado que tivesse pontapeado o delegado da Sporting, SAD, H..., mas aí acabou por afirmar que «(…) dei um passo em direção a ele, perguntando “o que é que queres” e depois de nos encostarmos, afastei-lhe o braço (…) e que a sua intenção foi poder dar um passo em frente para sobrepor a sua posição sobre a dele e não lhe dar um pontapé.»
Já N... afirmou apenas ter existido uma aproximação física entre ambos e que não viu ter sido dado um pontapé. Que no aglomerado de gente e com as movimentações permanentes acha possível H... ter sido tocado pelo jogador P..., mas nunca de forma violenta ou intencional.
É certo que da visualização da gravação das imagens do jogo (fls 52) não é observável, porque a imagem não capta a zona das pernas, qualquer pontapé dado pelo Arguido P... a H..., mas é percetível que, no momento em que o jogador P... afasta, com a sua mão direita, o braço direito do coarguido H... e se aproxima deste, tentando encostar o seu peito, H... expressa uma atitude de surpresa e indignação, compatível com a conduta [pontapeou] referida pelo árbitro, que se encontrava próximo do local, confirmada pelo próprio e compatível também com a fotografia do tornozelo (fls. 71 do processo apenso), junta aquando do exercício do direito de audiência prévia do coarguido H... (com a qual foi confrontado o Senhor Prof. Doutor J...).
Naturalmente que competia ao Arguido, caso pretendesse abalar a presunção de veracidade de que beneficiam os relatórios oficiais do jogo, questionar, por exemplo, a perceção direta desta conduta pelo árbitro mas, a verdade, é que optou por não o fazer.
Inexistindo, por isso, razão para duvidar de que a factualidade que o árbitro relatou foi por si diretamente percecionada e, foi por esse facto que a fez constar no seu relatório, não ficou abalado, quanto a esse relatório, o seu valor probatório especial e reforçado, a sua presunção de veracidade [al. f) do artigo n.º 13º do RDLPFP.
Concluindo, não tendo o Arguido afastado a presunção de veracidade de que beneficiam os relatórios oficiais, e tendo o relatório de árbitro aludido a um ato de conduta violenta (pontapear) que causou um traumatismo, que a testemunha Senhor Prof. Doutor J... afirma ser ainda compatível com um pisão dado por jogador calçado com chuteiras de pitons de alumínio, encontra-se justificada a materialidade dada como provada no ponto 6 da matéria de facto provada.
O facto referido em 7. de §2. Factos provados, respeitante à factualidade que envolveu o Arguido L... [L...], encontra suporte no relatório de árbitro de fls. 7, nos esclarecimentos de fls. 70, imagens do jogo a fls. 88 (1.º ficheiro vídeo) e Autos de fls. 182-183 (declarações de G...) e de fls. 159-161 (declarações de Bruno Ramos).
O Arguido, em declarações prestadas em audiência disciplinar, confrontado com as imagens de fls 88,
afirmou que em nenhum momento pôs a mão no pescoço do jogador G..., admitindo que as colocou no peito com o intuito de apaziguar os ânimos.
Não obstante a prova produzida nos autos infirma tais declarações.
Nos termos descritos no Relatório de Árbitro, elaborado por ocasião do jogo objeto dos autos, é mencionado que «Entrou no terreno de jogo para provocar um conflito com um adversário.» (fls. 7). Em sede de esclarecimentos, a Comissão de Instrução Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol solicitou ao árbitro principal, J…, que concretizasse «Quais as palavras ou atos praticados pelos agentes desportivos (…) L… em que consistiram a descrição “(…) provocar um conflito com o adversário”? E qual o adversário a que se dirigiram? (fls. 70-71).
Em resposta ao solicitado, esclareceu o árbitro principal, o seguinte: «(…) Relativamente a expulsão do Sr. L... por provocar um conflito com um adversário, o mesmo sucedeu pelo seguinte facto: O Sr. L..., dirigiu-se ao jogador adversário nº 25 G... numa zona do terreno de jogo onde não existia qualquer tipo de conflito visível, e ao chegar perto do referido jogador empurrou-o com o braço, sendo que esta ação/comportamento, do Sr. L..., provocou uma reação violenta por parte do jogador adversário n°7 Tabata, bem como que se gerasse um conflito entre diversos elementos das duas equipas» (fls. 70). Inquirido na qualidade de testemunha o jogador G... (fls. 182-183), referiu, além do mais, que «(…) o Sr. L... veio em direção a mim sem que me tivesse dito nada, nem eu a ele, e agarrou-me no pescoço. Questionado de que modo é que foi agarrado no pescoço, referiu que ele chegou ao pé de mim e agarrou-me no pescoço, acho que foi com as duas mãos, mas foi um momento muito rápido, porque separaram logo e não deu para continuar a apertar, que acho que era a sua intenção (…) Questionado se o Sr. L... exerceu força ao agarrar no seu pescoço e se ficou com marcas dos dedos no seu pescoço, referiu que sim que exerceu força e que ficou um pouco vermelho. (…)».
Da visualização da gravação das imagens de fls. 88 (juntas ao PD 69-21/22), é possível verificar que, quando a confusão era generalizada entre diversos elementos de ambas as equipas, o Arguido L... abeira-se do jogador da Sporting Clube de Portugal – Futebol, SAD, G... e empurra-o, com as suas mãos, no tronco. Ato contínuo coloca-lhe - pelo menos - a mão esquerda no pescoço deste e empurra-o.
Também as declarações de B...) vão no sentido corroborado pelas imagens, ié que num primeiro momento viu a mão esquerda do Arguido L... no pescoço de G... e num segundo momento aquele vai com a mão direita para o pescoço do mesmo jogador e é quando eu o afasto, impedindo-o de o agarrar com as duas mãos.

O facto referido em 8. de §2. Factos provados relativo ao elemento subjetivo do tipo de ilícito, alicerça-se nas regras da experiência neste tipo de contexto futebolístico: quem dá pisões, coloca a mão no pescoço e empurra terceiros sabe e deseja violar os deveres impostos regulamentarmente. (…)».



Altera-se a matéria de facto provada e não provada pelo tribunal a quo, eliminando o único facto não provado no acórdão recorrido e julgando provados os seguintes factos, que acrescem aos demais factos provados supra transcritos, conforme melhor explicitaremos infra:
10) O Recorrido K...] aproximou-se, tentando encostar o seu peito, ao delegado ao jogo H..., momento em que lhe dá um pisão/calcadela, causando dor.
11) O Recorrido K..., agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo da ilicitude e punibilidade das suas condutas, porém, não se absteve de as praticar.

II.2. De Direito
Do recurso interposto pela FPF:
i) Do erro de julgamento em que incorreu o acórdão recorrido na aplicação que fez do princípio in dubio por reo em sede de apreciação da prova produzida nos autos e, com esse fundamento, revogou a decisão do CD da FPF que condenou o Recorrido P..., pela prática de uma infração disciplinar p.e.p. pelo art. 145.º, n.º 1, alínea b) [Agressões], do RD LPFP21, tendo-lhe sido aplicada uma pena de sanção de suspensão de 23 (vinte e três) dias e, acessoriamente, uma pena de multa no montante de €2.870 (dois mil oitocentos e setenta euros).
O tribunal a quo, aplicando o princípio in dubio pro reo, considerou não provado o seguinte facto:
«1. O Arguido K...] aproximou-se, tentando encostar o seu peito, ao delegado ao jogo H..., momento em que lhe dá um pisão/calcadela, causando dor.»
Resultando tal erro da fundamentação da decisão recorrida, em causa está um vício da decisão sobre a matéria de facto, enquanto vício da decisão e não de julgamento, pois que deriva do texto da decisão, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, e é aqui que se reconduz o imputado erro na aplicação que o tribunal a quo fez do princípio in dubio pro reo, como erro notório na apreciação da prova, designadamente do seguinte excerto: «(…) temos que é a própria Demandada que afasta o descrito no relatório do árbitro no que concerne ao "pontapé" do Demandante P... ao Delegado H..., afastando naturalmente a presunção de veracidade prevista no artigo 13° alínea f) do RDLPFP21.
Ora, era à Demandada que competia provar a possível calcadela sofrida pelo delegado H....
Acontece que, verificando as provas existentes nos autos não são as mesmas suficientes para que se consiga, com o grau de certeza necessário, afirmar que a "calcadela" tivesse existido, aliás como sucede com os vídeos existentes nos autos, relembrando que existiam inúmeras câmaras a filmar o jogo em causa. Neste contexto, e atendendo ao princípio "in dubio pro reo", não pode o arguido ser punido quando, efetivamente, não existe prova suficiente para o efeito.»
Vejamos porquê.

No âmbito do direito disciplinar desportivo, atenta natureza sancionatória do processo e o disposto no art. 16.º, n.º 1 do RD LPFP que, sob a epígrafe «Direito subsidiário», dispõe que «[n]a determinação da responsabilidade disciplinar é subsidiariamente aplicável o disposto no Código Penal e, na tramitação do respetivo procedimento, as regras constantes do Código de Procedimento Administrativo e, subsequentemente, do Código de Processo Penal, com as necessárias adaptações», rege o princípio da livre apreciação de prova, que deverá ser apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do juiz, salvo quando a lei dispuser diferentemente – cfr. art. 127.º do CPP.

Esta apreciação, assim, surge legalmente condicionada, ex vi art. 16.º, n.º 2, do mesmo RD, pelos relatórios oficiais e declarações complementares das equipas de arbitragem e dos delegados da LPFP, ao estabelecer-se, na alínea f) do art. 13.º do RD LPFP que rege, sob a epígrafe «Princípios fundamentais do procedimento disciplinar», que os factos presenciados pelas equipas de arbitragem e pelos delegados da FPF no exercício de funções, constantes das declarações e relatórios de jogo, gozam de uma presunção de veracidade, ilidível, pois que pode ser «fundadamente posta em causa» - cfr. alínea f) in fine, do citado art. 13.º.

Neste sentido, a jurisprudência dos tribunais superiores, da qual se cita, a titulo de exemplo, o ac. do STA, P. 043/19.0BCLSB, de 05.11.2020, e no qual se sumariou que «II - A presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e dos relatórios da equipa de arbitragem e dos delegados da Federação Portuguesa de Futebol que tenham sido por eles percecionados, estabelecida pelo art. 206º nº 1 do RD/FPF-2016 (norma idêntica à do art. 13.º, al. f), do RD/LPFP), conferindo ao arguido a possibilidade de abalar os fundamentos em que ela se sustenta mediante a mera contraprova dos factos presumidos, não infringe os comandos constitucionais insertos nos arts. 2º, 20º, nº 4 e 32º nºs 2 e 10 da CRP e os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.».

Atentando na fundamentação do acórdão recorrido, sobre a questão que identificou como sendo a questão a decidir, a saber, «1. O Demandante P... não praticou qualquer ato de conduta violenta?», respondeu o tribunal a quo nos seguintes termos: «(…) O Demandante P... foi condenado pela prática de uma infração disciplinar, p. e p. pelo art. 145.°, n.° 1, al. b) [Agressões], do RD LPFP, tendo-lhe sido aplicada uma pena de sanção de suspensão de 23 (vinte e três) dias e acessoriamente, uma pena de multa no montante de € 2.870 (dois mil oitocentos e setenta euros).

Nos termos do disposto no artigo 145.° n.° 1 alínea b) (Agressões):

"1. São punidas nos termos das alíneas seguintes as agressões praticadas pelos jogadores contra os membros dos órgãos da estrutura desportiva, elementos da equipa de arbitragem, observadores, delegados da Liga Portugal, dirigentes ou delegados ao jogo de outros clubes, agentes de segurança pública, e treinadores:

b) noutros casos de agressão, com a sanção de suspensão a fixar entre o mínimo de dois meses e o máximo de dois anos e, acessoriamente, com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 75 UC e o máximo de 375 UC."

Começando com o safanão que o Demandante P... deu com sua mão direita, no braço direito do H..., o mesmo não tem qualquer relevância disciplinar, não carecendo de grandes explicações.(1 - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08-06-2005, Proc. 0510382, no sentido de que "Não comete um crime de ofensa a integridade física quem puxa outrem pelos ombros de dentro de um automóvel".)

No relatório do árbitro, a fls. 7, o motivo da expulsão foi: ''Pontapeou um diretor da equipa adversária praticando um ato de conduta violenta".

O relatório do árbitro tem presunção de veracidade, nos termos do artigo 13° alinea f) do RDLPFP21:

"O procedimento disciplinar regulado no presente Regulamento obedece aos seguintes princípios fundamentais:

f) presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga Portugal e dos autos de flagrante delito lavrados pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa;"

O árbitro referiu taxativamente que o Demandante P...: "Pontapeou um diretor da equipa adversária praticando um ato de conduta violenta".

No entanto,

A testemunha, Senhor Prof. Doutor J..., disse: "confrontado, pela defesa, com a fotografia de fls. 71 (junta ao PD 70- 21/22), que afirmou conhecer, referiu que a ferida que a imagem revela, pelo acumulo de pele no fundo, é mais compatível com uma calcadela, não parecendo resultar de um pontapé, caso em que o movimento ascendente típico de um pontapé evidenciaria a deslocação de pele de baixo para cima. No caso, e a seu ver, a pele foi deslocada de cima para baixo, logo o traumatismo é mais compatível com uma calcadela."(…)

Na gravação das imagens do jogo a fls. 52, é impossível verificar a calcadela do Demandante P..., aliás, foi isso mesmo reconhecido pela Ilustre Mandatária da Demandada nas alegações finais.

Chegados aqui, temos que é a própria Demandada que afasta o descrito no relatório do árbitro no que concerne ao "pontapé" do Demandante P... ao Delegado H..., afastando naturalmente a presunção de veracidade prevista no artigo 13° alínea f) do RDLPFP21.

Ora, era à Demandada que competia provar a possível calcadela sofrida pelo delegado H....

Acontece que, verificando as provas existentes nos autos não são as mesmas suficientes para que se consiga, com o grau de certeza necessário, afirmar que a "calcadela" tivesse existido, aliás como sucede com os vídeos existentes nos autos, relembrando que existiam inúmeras câmaras a filmar o jogo em causa.

Neste contexto, e atendendo ao princípio "in dubio pro reo", não pode o arguido ser punido quando, efetivamente, não existe prova suficiente para o efeito.

Atendendo ao acima descrito, revoga-se a decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da FPFP que condenou o Demandante K....».

Contra o assim decidido, insurge-se a Recorrente FPF e, desde já se adianta, que com inteira razão. Vejamos porquê.

Controvertida não está a prova produzida nos autos, pois que o tribunal a quo e a Recorrente, partem dos mesmos meios de prova, chegando, porém, a conclusões diferentes, fazendo apelo, o tribunal a quo, ao princípio in dubiu pro reo.

E é aqui que a divergência surge.

O acórdão recorrido entendeu que, de acordo com a prova produzida nos autos, designadamente, a prova testemunhal – testemunho do Dr. Carlos Noronha – e a ausência de imagens precisas sobre a agressão em causa – pontapé/calcadela – alegadamente perpetrada pelo Recorrido, a presunção de veracidade do relatório do árbitro do jogo teria sido ilidida, razão pela qual entendeu ser de aplicar o princípio in dubio por reu e absolver o arguido, ora Recorrido.

Aduz ainda que foi a própria Recorrente FPF que afastou o descrito no relatório do árbitro no que concerne ao pontapé, assim «afastando naturalmente a presunção de veracidade prevista no artigo 13° alínea f) do RDLPFP21», para depois concluir que era a si que competiria provar a ocorrência da atuação do arguido, ora Recorrido, por calcadela, na agressão do delegado de jogo.

Porém, resulta dos autos que do invocado relatório do árbitro do jogo, consta que o Demandante «pontapeou um director da equipa adversária, praticando um ato de conduta violenta», (sublinhado nosso), assim, e ao contrário do que se concluiu no acórdão recorrido, entende este tribunal de recurso que da prova produzida nos autos o que ficou abalado foi a concreta conduta violenta perpetrada, se um pontapé, se uma calcadela, mas não que qualquer uma destas condutas tenha existido, razão pela qual não se pode acompanhar a conclusão a que chegou o tribunal a quo de que, através da prova produzida nos autos, abalada ficou a presunção de veracidade do relatório do árbitro, e que, nesse pressuposto, se justifica a aplicação do princípio in dubio por reo no que se refere à prática e autoria de uma conduta violenta por parte do Recorrido.

E isto, por duas ordens de razões.

Em primeiro lugar, porque a conduta violenta sob escrutínio está retratada através de uma expressa referência que lhe é feita no relatório do árbitro – cfr. fundamentação da decisão recorrida supra transcrita.

E, em segundo lugar, porque da prova produzida nos autos, não contestada, continua a resultar que o Recorrido teve uma conduta violenta para com um delegado de jogo da outra equipa, conduta essa que, pese embora no relatório do árbitro se tenha referido como tendo sido um pontapé, da prova testemunhal produzida resultou que a marca na pele do agredido seria mais consentânea com uma calcadela – cfr. matéria de facto e respetiva motivação não controvertida.

Assim, onde divergem, o acórdão recorrido e a decisão do CD da FPF impugnada que foi junto daquele tribunal arbitral, é apenas no seguinte:

O CD da FPF, com base nos mesmíssimos meios de prova, considerou que «5. Já no final do jogo, quando se verificava, ainda no relvado, uma altercação generalizada entre diversos elementos de ambas as equipas, o Arguido K...], depois de ter estado a falar com o árbitro principal e no momento em que o delegado ao jogo da Sporting, SAD, H..., se aproxima dele com a sua mão direita estendida, pergunta-lhe “o que é que queres” e afasta, dando um safanão, com a sua mão direita, o braço direito do H.... 6. Acto contínuo o Arguido K...] aproxima-se, tentando encostar o seu peito, ao delegado ao jogo H..., momento em que lhe dá um pisão/calcadela, causando dor» - cfr. facto constante da alínea A) supra e respetiva motivação – e, o acórdão recorrido, que «era à Demandada que competia provar a possível calcadela sofrida pelo delegado H.... Acontece que, verificando as provas existentes nos autos não são as mesmas suficientes para que se consiga, com o grau de certeza necessário, afirmar que a "calcadela" tivesse existido, aliás como sucede com os vídeos existentes nos autos, relembrando que existiam inúmeras câmaras a filmar o jogo em causa. Neste contexto, e atendendo ao princípio "in dúbio pro reo", não pode o arguido ser punido quando, efetivamente, não existe prova suficiente para o efeito» - cfr. fundamentação da decisão recorrida.

Ora, e tal como aduz a DMMP junto deste tribunal, é nosso entendimento que o acórdão recorrido «(…) invoca a dúvida insanável não sobre a existência da agressão ao delegado H..., mas sobre a forma de agressão, a saber, ou o pontapé, como é referido no relatório do árbitro que se se presumem verdadeiros, conforme estatui o artigo 13° n° 1 alínea f) do RDLPFP21, ou o ato de pisar o calcanhar como resulta evidenciado do depoimento prestado pelo Senhor Prof. Doutor J...,”em sede disciplinar, que confrontado, pela defesa, com a fotografia de fls. 71 (junta ao PD 70-21/22), que afirmou conhecer, referiu que a ferida que a imagem revela, pelo acumulo de pele no fundo, é mais compatível com uma calcadela, não parecendo resultar de um pontapé, caso em que o movimento ascendente típico de um pontapé evidenciaria a deslocação de pele de baixo para cima. No caso, e a seu ver, a pele foi deslocada de cima para baixo, logo o traumatismo é mais compatível com uma calcadela. Questionado pela CI se a lesão que observou na fotografia pode ser compatível ou provocada por um piton de uma chuteira, afirmou que sim, que um piton de uma chuteira pode causar uma lesão do género. ”

Salvo o devido respeito e sempre no contexto de análise jurídica dos princípios enformadores, não se pode concluir pela dúvida insanável sobre o facto agressivo quando as lesões apresentadas na vítima, como sua consequência direta e necessária, devidamente documentadas por fotografia e examinadas por perito médico, apenas podem questionar o relatório do árbitro sobre a verificação de um pontapé, mas não a agressão ao delegado H....

Quando muito, poderia questionar-se uma alteração dos factos descritos no relatório do árbitro, mas nunca a conduta agressiva do arguido K....

O Acórdão a quo desvalorizou toda a prova produzida que confirma o comportamento agressivo do arguido para com o delegado do jogo, não sendo discutível que o mesmo afastou o braço e encostou o seu corpo ao corpo do delegado do jogo durante a altercação, estabelecendo necessariamente o nexo de causalidade adequado entre a agressão e as lesões apresentadas e devidamente documentadas e avaliadas por perito médico. (…).»

Dada a presunção de veracidade prevista no art. 13° alínea f) do RD LPFP21, não é a mera circunstância de poderem existir relatos diversos em relação ao sucedido – pontapé/calcadela - que pode conduzir, forçosamente, à ocorrência de dúvida relevante sobre a atuação agressiva perpetrada pelo arguido, ora Recorrido.

Esta dúvida relevante só se verificará se o julgador não puder, em termos de convicção, dar prevalência a uma das versões, sendo que, no caso, as duas versões – a do relatório do arbitro de jogo e o testemunho do Dr. Carlos Noronha – coincidem quanto à ocorrência da agressão, e impõe-se a prevalência do que consta do relatório do árbitro, sobre a autoria da mesma, por não ter sido elidida, nesta parte, a respetiva presunção de veracidade – cfr. art. 13.º, alínea f), do RD LPFP.

Neste pressuposto, e face a todo o exposto, entendemos que o tribunal a quo não podia dar como não provado o facto n.º 1 [O Arguido K...] aproximou-se, tentando encostar o seu peito, ao delegado ao jogo H..., momento em que lhe dá um pisão/calcadela, causando dor], ao abrigo do princípio in dubio pro reo, devendo dar-se como provados os factos que antes constavam da decisão do CD da FPF, de 18.04.2022, e que legitimam a consequente condenação do arguido P..., ora Recorrido, pela prática de um ilícito disciplinar de agressões p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, alínea b), do RD LPFP21.

Perante o que, a matéria de facto provada é alterada para que da mesma passe a constar:

“10) O Recorrido K...] aproximou-se, tentando encostar o seu peito, ao delegado ao jogo H..., momento em que lhe dá um pisão/calcadela, causando dor.

11) O Recorrido K..., agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo da ilicitude e punibilidade das suas condutas, porém, não se absteve de as praticar

E assim se concede provimento o recurso interposto pela Recorrente FPF e se revoga, nesta parte, o acórdão recorrido, julgando, em consequência, a ação arbitral improcedente e se mantem a decisão do CD da FPF de 18.04.2022, que condenou o arguido P..., ora Recorrido, pela prática de um ilícito disciplinar de agressões p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, alínea b), do RD LPFP21.

Do recurso interposto pelo Recorrente L....

i) Do erro manifesto em que incorreu o acórdão recorrido na apreciação da prova e na conclusão de que a conduta do arguido preenche o tipo legal do ilícito disciplinar de agressões p. e p. pelo art. 131.°, n.º 1, do RD da LPFP21.

Pretende o Recorrente impugnar a decisão que recaiu sobre a matéria de facto, tendo aduzido, para o efeito, em sede de conclusões de recurso, o seguinte:

«D. Após o apito final ocorreu, no relvado do Estádio do Dragão, uma altercação generalizada entre o staff e jogadores de ambas as equipas, tendo sido, justamente, no meio dessa confusão que, apercebendo-se que o jogador G... tentava chegar junto de P... e de H..., o Recorrente se colocou à frente deste esticando os braços de modo a afastá-lo, empurrando-o para fora daquela zona - o que logrou conseguir!

E. Sendo precisamente isso - e apenas isso! - que resulta das imagens televisivas do encontro juntas aos autos do processo disciplinar, concretamente, minutos 00:00:13 a 00:00:18 do ficheiro vídeo a fls. 71 do processo apenso ('‘vídeo 1 ,mp4”).

F. Tudo o que, em consciência, o Recorrente pretendia era afastar o jogador da equipa adversária do epicentro dos desacatos, assim evitando que o conflito escalasse.

G. Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não interpretou como se impunha a dinâmica dos acontecimentos, nem valorou rigorosamente a prova produzida em sede de audiência disciplinar.

H. A verdade é que a prova produzida - designadamente as imagens juntas aos autos a fls. 71 do processo apenso (ficheiro vídeo “vídeo l.mp4”) e as declarações tomadas ao Demandante em sede de audiência disciplinar - não permite suportar a demonstração da factualidade ínsita nos pontos 6 in fine e 7 da matéria provada. Tendo o Tribunal incorrido em manifesto erro na apreciação da prova.»

Sobre a impugnação da matéria de facto que pretende, como decorre das conclusões que antecedem, sobre o Recorrente impende o ónus de especificação imposto pelo art. 640.º do CPC, pois que o recurso da decisão sobre a matéria de facto não pressupõe a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados.

E é precisamente porque o recurso em que se impugna a decisão sobre a matéria de facto, não constitui um novo julgamento do objeto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, que se impõe ao recorrente um ónus, o de proceder a uma tríplice especificação, tal como decorre do citado art. 640.º do CPC, a saber:

«1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Ind...ndentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.».

Neste pressuposto, e retomando o caso em apreço, e sendo certo que a especificação dos concretos pontos de facto se traduz na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados – cfr. alínea a) do n.º 1 do art. 640.º transcrito supra – e que o Recorrente identifica como sendo os factos n.º 6 in fine e n.º 7 da matéria de facto.

E que, a especificação das concretas provas só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida – alínea b) do n.º 1 do art. 640.º transcrito supra – ao que acresce que, tendo havido gravação das provas, essas especificações devam ser feitas com referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens das gravações em que se funda a impugnação, não bastando a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes - n.º 2 do art. 640.º, do CPC.

Imperioso se torna concluir que tal ónus foi incumprido pelo Recorrente quanto à referência genérica que fez das declarações que prestou em sede de audiência disciplinar – cfr. alínea H) das conclusões – e que, pese embora tenha identificado os minutos 00:00:13 a 00:00:18 do ficheiro vídeo a fls. 71 do processo apenso ('‘vídeo 1 ,mp4”) – cfr. alínea E) das conclusões – tratando-se de uma imagem de vídeo, da mesma não se consegue extrair o sentido decisório que pretende ver imposto por este tribunal de recurso, de que, através da sua atuação, o que o Recorrente pretendia era afastar o jogador da equipa adversária do epicentro dos desacatos, assim evitando que o conflito escalasse – cfr. alíneas D) e G) das conclusões.

Nestes termos, e sem necessidade de mais amplas considerações, imperioso se torna julgar improcedente a impugnação do julgamento sobre a matéria de facto.

Imputa ainda o Recorrente dois erros de julgamento ao acórdão recorrido, um deles, por ter considerado preenchido o tipo legal da infração prevista no art. 131.º do RD LPFP21 – cfr. alíneas N) e ss. das conclusões de recurso - e, o outro, por ter dado por verificado o dolo – cfr. alíneas V) e ss. das conclusões de recurso.

Vejamos.

O tribunal a quo, respondendo à pergunta que havia enunciado no texto da decisão, sobre se «(…)2. A conduta do Demandante L... não é suficiente para preencher materialmente o tipo legal do ilícito disciplinar de "agressões" p. e p. pelo art. 131.°-l do RDLPFP.?», concluiu nos seguintes termos:

«(…) Nos termos do disposto no artigo 131.° n.° 1 (Agressões):

”[o]s dirigentes que agridam voluntariamente membros dos órgãos da estrutura desportiva, elementos da equipa de arbitragem, observadores, delegados da Liga Portugal, dirigentes ou delegados ao jogo de outros clubes, agentes de segurança pública, jogadores e treinadores são punidos com a sanção de suspensão a fixar entre o mínimo de três meses e o máximo de três anos e, acessoriamente, com a sanção de multa de montante a fixar entre o mínimo de 25 UC e o máximo de 250 UC".

Por outro lado, o artigo 168.°, n.° 1 do RD, dispõe que "[o]s delegados dos clubes, os treinadores e os auxiliares técnicos que pratiquem as infrações previstas nos artigos 128.° a 141.° são punidos com as respetivas sanções neles previstas".

No relatório do árbitro, a fls. 7, o motivo da expulsão foi: "Entrou no terreno de jogo para provocar um conflito com um adversário."

Em sede de esclarecimentos, a Comissão de Instrução Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol solicitou ao árbitro principal, J..., que afirmou que "O Sr. L..., dirigiu-se ao jogador adversário n° 25 G... numa zona do terreno de jogo onde não existia qualquer tipo de conflito visível, e ao chegar perto do referido jogador empurrou-o com o braço, sendo que esta ação/comportamento, do Sr. L..., provocou uma reação violenta por parte do jogador adversário n°7 Tabata, bem como que se gerasse um conflito entre diversos elementos das duas equipas", a fls. 70.

Da visualização da gravação das imagens de fls. 88 (juntas ao PD 69- 21/22), é possível verificar que, quando a confusão era generalizada entre diversos elementos de ambas as equipas, o Arguido L... abeirou-se do jogador da Sporting Clube de Portugal - Futebol, SAD, G... e empurrou-o, com as suas mãos, no tronco. Ato contínuo colocou-lhe - pelo menos - a mão esquerda no pescoço deste e empurrou-o. (…)»

Sendo que, da matéria de facto provada no acórdão recorrido, consta:

«6) Posteriormente, o Arguido L... [L...] abeirou-se do jogador da Sporting Clube de Portugal - Futebol, SAD, G... e empurrou-o, com as suas mãos, no tronco do jogador. Acto contínuo colocou a sua mão esquerda no pescoço deste, causando-lhe dor.

7) O Arguido, L..., agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo da ilicitude e punibilidade das suas condutas, porém, não se absteve de as praticar.»

Do exposto resulta que a prova produzida nos autos infirma a pretensão impugnatório do Recorrente nos presentes autos, sendo que a prova do facto n.º 7, referente ao elemento subjetivo do tipo de ilícito, surge alicerçada em regras da experiência comum, designadamente que «a conduta de "colocar a mão no pescoço" ultrapassou o nível objetivo de mera violação dos deveres gerais, constituindo tal ação, pela sua intensidade e desvalor da ação (mais grave), conduta objetivamente sancionável pelo tipo de agressões (p.e p. pelo artigo 131.°, n.° 1 do RDLPFP21.

A intensidade da conduta mantida pelo Demandante L..., que entrando em conflito com um jogador, colocou a sua mão esquerda no pescoço do mesmo, constitui um comportamento disciplinarmente censurável.

Colocar a mão no pescoço de uma pessoa é naturalmente censurável e naturalmente é alvo de dor por quem sofre a agressão, existindo uma conduta a título doloso.»

Regras de experiência comum que foram devidamente enquadradas neste tipo de contexto futebolístico, e das quais decorre que quem coloca a mão no pescoço e empurra terceiros sabe que está a violar, e quer fazê-lo, os deveres impostos regulamentarmente.

Conclui assim, este tribunal de recurso que a atuação do Recorrente L… preenche os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito previsto e punido no art. 131.º n.º 1 do RD LPFP21, pois que enquanto dirigente, no contexto de final de jogo descrito nos factos provados, depois de empurrar com as suas mãos o peito de um jogador, agarra com a mão esquerda, de forma agressiva, o seu pescoço.

Improcedendo, face a todo o exposto, o recurso interposto.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da secção do contencioso administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em:

a) conceder provimento ao recuso interposto pela Recorrente FPF e, em consequência:

- revogar o acórdão recorrido na parte que lhe concerne, alterando o elenco dos factos provados nos termos sobreditos; e

- julgar improcedente a ação arbitral.

b) negar provimento ao recurso interposto pelo Recorrente L....

Custas pelo Recorrido K… e pelo Recorrente L..., em partes iguais.

Lisboa, 02.11.2022

Dora Lucas Neto

Pedro Nuno Figueiredo

Ana Cristina Lameira

(1) Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional (RD LPF), aprovado na Assembleia Geral Extraordinária de 27 de Junho de 2011, com as alterações aprovadas nas Assembleias Gerais Extraordinárias de 14 de dezembro de 2011, 21 de maio de 2012, 06 e 28 de junho de 2012, 27 de junho de 2013, 19 e 29 de junho de 2015, 08 de junho de 2016, 15 de junho de 2016 e 29 de maio, 13 de junho de 2017, 29 de dezembro de 2017, 13 de junho de 2018, 29 de junho de 2018, 22 de Maio de 2019, 28 de julho de 2020 e 02 de junho de 2021, ratificado na reunião da Assembleia Geral da FPF de 05 de julho de 2021, cujo texto se encontra disponível, na íntegra, na página oficial on line da Federação Portuguesa de Futebol (FPP).