Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:50/19.3BCLSB
Secção:CT
Data do Acordão:10/31/2019
Relator:ANABELA RUSSO
Descritores:ARBITRAL;
COMPETENCIA;
TRIBUNAL CENTRAL E TRIBUNAL CONSTITUCIONAL;
OMISSÃO.
Sumário:I – Tendo a questão da inconstitucionalidade, suscitada na resposta da administração tributária, sido apreciada pelo Tribunal Arbitral, ainda que de forma sintética, não se verifica omissão de pronúncia.
II – Mesmo que a fundamentação do Tribunal Arbitral na apreciação de tal questão fosse pobre, tal circunstância redundaria em erro de julgamento e não em omissão de pronúncia.

III. Tendo a Recorrente suscitado a inconstitucionalidade da norma se interpretada num determinado sentido e tendo o Tribunal Arbitral aplicado essa norma precisamente nesse sentido e declarado que não viola os princípios constitucionais nem padece de inconstitucionalidade orgânica suscitadas, o recurso para o Tribunal Constitucional está assegurado, nos termos do artigo 25.º do RJAT.

IV. Tendo as questões apreciadas e em que se suportou a decisão sido exclusivamente as invocadas pelas partes e tendo, sobre estas, sido ouvidas cada uma das partes, não existe fundamento algum para que se julgue verificado, nem no plano de facto, nem no plano de direito, violado o princípio do contraditório ou para que se entenda que a decisão proferida constitua, pelo menos nos termos e que foi perspectivada pelo legislador, de forma objectiva, uma decisão-surpresa.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acórdão

1. Relatório

1.1. A Autoridade Tributária e Aduaneira veio, ao abrigo do preceituado nos artigos 26º e 27º, ambos do Decreto-Lei nº10/2011, de 20 de Janeiro (Regime Jurídico da Arbitragem Voluntária, doravante apenas designado por RJAT), impugnar a decisão do Tribunal Arbitral proferida no processo arbitral 298/2018-T que, julgando procedente o pedido de pronúncia arbitral formulado pela T... -Vinhos, S.A., anula a decisão de indeferimento da reclamação graciosa e as liquidações de IMI nºs 2016-06..., 2016-64… e 2016-64…, referentes ao ano de 2016, e condena a Fazenda Pública a reembolsar à Impugnada a quantia indevidamente paga, acrescida de juros indemnizatórios.

1.2. No articulado inicial, resumindo a sua pretensão, formulou a Impugnante as seguintes conclusões:

«1.ª A decisão proferida pelo Tribunal Arbitral Singular constituído no CAAD que julgou procedente o pedido de pronúncia Arbitral, distribuído e autuado sob o n°298/2018-T, padece de nulidade pelo facto de ter omitido pronúncia relativamente duas questões sobre a qual se deveria pronunciar [artigo 28°/1-c), 2ª parte, do RJAT];

2.ª A Impugnante deduziu Resposta ao pedido de pronúncia Arbitral na qual suscitou a inconstitucionalidade da interpretação feita pela Impugnada, defendendo que a interpretação veiculada por aquela era desconforme aos princípios da igualdade tributária, da justiça fiscal, da capacidade contributiva, da autonomia local e da participação na decisão, a par da inconstitucionalidade orgânica, tendo posteriormente reafirmado e desenvolvido tal matéria em sede de alegações finais;

3.ª Apesar de o Tribunal Arbitral Singular ter feito referência àquela questão no "Relatório" da decisão Arbitral, certo é que verdadeiramente não a apreciou uma vez que limitou-se a afirmar o seguinte: «(...) é esta, segundo cremos, a melhor interpretação do artigo 44°nº1 n) do EBF, não se vislumbrando que tal interpretação padeça de qualquer inconstitucionalidade»,

4.ª Tal afirmação por parte do Tribunal Arbitral Singular não pode ser considerada como uma efectiva pronúncia face às questões constitucionais colocadas;

5.ª Do teor da decisão Arbitral não resulta uma palavra em torno dos princípios constitucionais da igualdade tributária, da justiça fiscal, da autonomia local e da participação na decisão, a par da inconstitucionalidade orgânica suscitada pela Impugnante;

6.ª A afirmação segundo a qual «(...) não se vislumbrando que tal interpretação padeça de qualquer inconstitucionalidade (...)», não só não constitui verdadeira pronúncia sobre a questão, como nem sequer equivale a "fundamentação pobre", representando, antes, uma clara violação do acesso ao direito e aos tribunais (o que desde já se invoca para todos os efeitos legais);

7.ª Ainda que o Tribunal Arbitral Singular tenha aderido à tese propalada pela Impugnada, permanece por conhecer se a interpretação veiculada pela Impugnada é ainda conforme aos princípios da igualdade tributária, da justiça fiscal, da capacidade contributiva, da autonomia local e da participação na decisão, a par de constitucionalmente orgânica;

8.ª No caso sub judice a Impugnante: (i) atacou a afirmação inicial da Impugnada segundo a qual o artigo 44°/1-n) do EBF não exige a classificação individual dos prédios classificados como Monumento Nacional; (ii) e apresentou ainda como razão contrária para atacar aquela afirmação inicial da Impugnada a desconformidade daquela mesma afirmação/interpretação com os princípios constitucionais da igualdade tributária, da justiça fiscal, da capacidade contributiva, da autonomia local e da participação na decisão, a par de uma inconstitucionalidade orgânica;

9.ª A razão contrária apresentada pela Impugnante não redundava num mero argumento e, menos ainda, prejudicado face à afirmação inicial, uma vez que, perante uma razão contrária assente na desconformidade constitucional da afirmação inicial dos Impugnados, se impunha ao Tribunal Arbitral Singular que sujeitasse aquela afirmação inicial ao crivo dos cinco aludidos princípios constitucionais invocados e desenvolvidos pela Impugnante, a par da inconstitucionalidade orgânica;

10ª A razão contrária apresentada pela Impugnante assumia a forma de verdadeiras questões, a saber: (i) Uma classificação generalizada de 'Monumento Nacional' é um princípio absoluto? (ii) Uma classificação generalizada de 'Monumento Nacional' sobrepõe-se sempre ao princípio da igualdade tributária? (iii) Uma classificação generalizada de 'Monumento Nacional' violará o princípio da justiça fiscal? (iv) Uma classificação generalizada de 'Monumento Nacional' sobrepor-se-á à capacidade contributiva revelada pelo património imobiliário? (v) Poderá falar-se de uma efectiva violação dos princípios da autonomia local e da participação da decisão perante uma classificação generalizada de 'Monumento Nacional'? (vi) Registar-se-á aqui uma situação de inconstitucionalidade orgânica?;

11.ª A alegada desconformidade da afirmação inicial da Impugnada com os cinco princípios constitucionais invocados pela Impugnante, a par da inconstitucionalidade orgânica, configura(va) um fundamento que pode(ria) conduzir à improcedência do pedido formulado pelos primeiros;

12.ª Também aqui a decisão Arbitral não padece de uma "mera" fundamentação lacónica ou deficiente, antes configura uma "decisão surpresa", conforme já se entendeu no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido a 2018-10-11 no âmbito do processo n°17/18.9BCLSB;

13.ª Acresce que, ao não cumprir um dos requisitos essenciais inerentes a uma decisão - i.e., a de convencer os seus destinatários - o Tribunal Arbitral Singular coartou irremediável e incompreensivelmente um dos poucos mecanismos de controlo que assistem à Impugnante: o recurso para o Tribunal Constitucional [artigo 70°/1-b) da Lei 28/82, de 15 de Novembro];

14.ª Motivos pelos quais não deve se r mantida na ordem jurídica a decisão Arbitral ora colocada em crise, devendo antes ser aquela declarada nula.

Termos em que, por todo o exposto supra e sempre com o douto suprimento de V.Exas., deve a presente Impugnação ser julgada procedente e, consequentemente, ser declarada nula a decisão Arbitral, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.»


1.3. Admitida a Impugnação e notificada a Impugnada - “T... -Vinhos, S.A.” - não foi apresentada resposta.

1.4. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta, junto deste Tribunal, notificada nos termos do disposto no artigo 146.º, nº1, do CPTA ex vi artigo 27º, nº2, do Decreto-Lei nº10/2011, de 20 de Janeiro, nada disse.

Colhidos os «Vistos» dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

2. Objecto da Impugnação das decisões Arbitrais

Como é sabido, o âmbito de intervenção do tribunal ad quem encontra-se delimitado pelas conclusões do recurso jurisdicional.

Nas situações em que a apreciação pelo Tribunal Central Administrativo tem por objecto decisões dos tribunais arbitrais constituídos sob a égide do Regime Jurídico da Arbitragem Voluntária (doravante apenas designado por RJAT), e não obstante a opção do legislador pela qualificação do meio processual previsto para provocar essa sindicância como de “Impugnação de Decisão Arbitral”, do que se trata é, do ponto de vista substantivo, de um verdadeiro recurso com um objecto pré-definido e limitado às nulidades das sentença previstas no artigo 28º do RJAT, à violação dos princípios consagrados no artigo 16º (para que somos remetidos por aquele mesmo artigo 28º) ou, excepcionalmente, em casos justificados, com fundamento em outras nulidades processuais cujo reconhecimento se mostra imposto pela unidade e completude do sistema jurídico para que nos remete o artigo 29º do mesmo diploma legal ou que, pela sua verificação, determinam, subsequentemente, a anulação do processado, incluindo a sentença arbitral que haja sido proferida.

Posto isto, e revertendo ao caso concreto, não existem dúvidas quanto aos fundamentos da presente Impugnação Judicial se subsumirem aos que legalmente estão previstos, uma vez que, como nos é revelado pela petição, se reconduzem, num enfoque principal, ao vício de omissão de pronúncia e, num enfoque aparentemente secundário, à violação do princípio do contraditório traduzido na prolação de uma verdadeira “decisão surpresa”.

São essas questões que importa enfrentar, ou seja:

- Padece a sentença arbitral impugnada do vício de omissão de pronúncia previsto no artigo 125.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), por o Tribunal Arbitral não ter conhecido nem decidido a questão de inconstitucionalidade suscitada pela Impugnante na resposta apresentada no processo arbitral, coarctando, outrossim, um dos limitados recursos consagrados no regime especial ao abrigo do qual foi proferida?

- Em caso negativo, ainda assim, viola a sentença recorrida o princípio do contraditório, na vertente de “proibição de decisão-surpresa”?


3. A decisão arbitral possui - na parte relevante para a apreciação do objecto da presente Impugnação- o seguinte teor:

«I. RELATÓRIO
(…)
Na defesa por impugnação, invocou, em síntese:
(…)
j) O artigo 44º 1 n) do EBF, na interpretação defendida pela Requerente, é inconstitucional, quer por violação dos princípios da igualdade tributária, da justiça fiscal, da capacidade contributiva, da autonomia local e da participação na decisão, quer por padecer de inconstitucionalidade orgânica”.
(…)
II. QUESTÕES A DECIDIR
Nos presentes autos, as questões a decidir reconduzem-se (i) à apreciação da legalidade da liquidação impugnada e do (ii) direito da Requerente ao pagamento de juros indemnizatórios.
III. MATÉRIA DE FACTO:
a. Factos provados:
Com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos, deram-se como provados os seguintes factos:
1. A Requerente foi notificada da liquidação de IMI relativa ao ano de 2016, no valor total de € 57.518,35;
2. A liquidação teve por base, além do mais, a propriedade, por parte da Requerente, cios seguintes prédios, sitos no Município de Tabuaço:
Freguesia
Artigo
Desejosa
R-…
Desejosa
R-…
Valença do Douro
U-…
Valença do Douro
U-…
Valença do Douro
U-…
Valença do Douro
R-…
Valença do Douro
R-…
Valença do Douro
R-…
Valença do Douro
R-…
Valença do Douro
R-…
Valença do Douro
R-…
U. F. Barros e Santa Leocádia
R-…
U. F. Barros e Santa Leocádia
R-…


3. O IMI referente aos prédios referidos em 2) anterior ascende ao montante de €633,76;
4. A Requerente pagou o IMI liquidado respeitante ao ano de 2016, no valor total de €57. 518,35;
5. Em 12/07/2017, a Requerente apresentou reclamação graciosa contra a liquidação de IMI de 2016, na parte respeitante aos prédios a que se alude em 2) anterior;
6. A reclamação graciosa foi indeferida, por despacho de 21/03/2018;
7. Os prédios a que se alude em 2) anterior inserem-se no Alto Douro Vinhateiro, incluído na lista indicativa do Património Mundial da UNESCO, na categoria cie Paisagem Cultural;
8. Em 21/02/2017, a Direcção Regional de Cultura do Norte emitiu certidão relativa aos prédios inscritos na matriz sob os artigos R-…, R-…, R-…, U-…, U-… e U-…, certificando que os referidos prédios estão classificados como Monumento Nacional.

b. Factos não provados:
Com interesse para os autos, não existe qualquer factualidade não provada.

c. Fundamentação da matéria de facto:
A convicção sobre os factos dados como provados fundou-se na prova documental junta aos autos bem como nas alegações, não impugnadas, dos partes.

IV. SANEAMENTO:
O Tribunal Arbitral encontra-se regularmente constituído e é materialmente competente.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias, são legítimas e estão regularmente representadas.
O processo não enferma de vícios que afectem a sua validade.

V. DO DIREITO:
Fixada que está a matéria de facto, cumpre agora, por referência àquela, apurar o Direito aplicável.
Antes de mais, cumpre apreciar da excepção de caducidade invocada pela Requerida.
Invoca a AT que, à data da apresentação do presente pedido de pronúncia Arbitral, o direito de a Requerente reagir contra a liquidação número 2016 64… já havia caducado, atento o facto de na reclamação graciosa apresentada a Requerente apenas ter requerido a anulação das liquidações números 2016 06… e 2016 64….
A Requerente defende-se, invocando, por um lado, que na reclamação graciosa pediu a anulação não só das referidas liquidações de IMI mas também das "que venham a ser emitidas relativamente à 3ª prestação do pagamento de IMI por referência ao ano de 2016 e anos posteriores" e, por outro lado, que a liquidação de IMI cuja anulabilidade requereu não se confunde com as notas de cobrança remetidas pela AT.
No que, cremos, assiste razão à Requerente,
Não só pelo facto de, na reclamação graciosa ter também incluído no pedido a anulação da 3ª prestação de IMI, ainda não remetida à data da apresentação da reclamação, mas sobretudo pelo facto de, ao contrário do ora defendido pela AT, para o IMI não serem emitidas três liquidações mas urna liquidação com uma ou mais notas de cobrança (in casu, três).
Assim, e urna vez que a Requerente colocou em crise a liquidação de IMI relativa ao ano de 2016, dúvidas não restam de que nesse pedido estão incluídas todas as notas de cobrança do respectivo imposto, não só as já emitidas mas também as por emitir.
Por onde se verifica não ter caducado o direito da Requerente reagir contra a liquidação número 2018 64….
Conhecida a excepção de caducidade invocada, estamos, assim, em condições de conhecer do mento do pedido.
Assim,
A apreciação da invocada ilegalidade da liquidação impugnada impõe uma breve análise do regime jurídico do património cultural.
As bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural foram instituídas pela Lei nº107/2001, de 08 de Setembro (LBPC).
Nos termos do disposto no nº1 do artigo 15º da referida LBPC, “ os bens imóveis podem pertencer às categorias de monumento, conjunto ou sítio, nos termos em que tais categorias se encontram definidas no direito internacional”
A definição de tais categorias encontra-se prevista na Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural (Convenção da UNESCO de 1972), que define o que é considerado como património mundial:
Os monumentos - Obras arquitectónicas, de escultura ou de pintura monumentais, elementos de estruturas de carácter arqueológico, inscrições, grutas e grupos de elementos com valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;
Os conjuntos - Grupos de construções isoladas ou reunidos que, em virtude da sua arquitectura, unidade ou integração na paisagem têm valor universal excepcional do ponto de vista da história, da arte ou da ciência;
Os locais de interesse - Obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas, incluindo os locais de interesse arqueológico, com um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico.
Na Convenção para a Salvaguarda do Património Arquitectónico da Europa, assinada em Granada em 03/10/1985 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n°5/91 de 23 de Janeiro, prevêem-se igualmente as mesmas categorias cie imóveis, sendo que os "locais de interesse" definidos ria Convenção da UNESCO de 1972 adoptam aqui a designação de "sítios".
Continuando, determina o n° 2 do artigo 15° da LE3PC que "os bens móveis e imóveis podem ser classificados como de interesse nacional, do interesse público ou de interesse municipal".
Posto isto, em 22 de Julho de 2010, através da publicação do Aviso n°15170/2010, foi tornado publico que, em 2001, foi incluído na lista indicativa do Património Mundial da UNESCO o Alto Douro Vinhateiro, na categoria de Paisagem Cultural, englobando os concelhos de Mesão Frio, Peso da Régua, Santa Marta de Penaguião, Vila Real, Alijo, Sabrosa, Carrazeda de Ansiães, Torre de Moncorvo, Lamego, Armamar, Tabuaço, São João da Pesqueira e Vila Nova de Foz Côa.
Tal como resulta expressamente daquele aviso, a referida publicação foi efectuada "nos termos e para os efeitos do disposto no n°3 do artigo 72° do Decreto-Lei n°309/2009, de 23 de Outubro".
Nos termos do disposto no artigo 72° n°1 do referido Decreto-Lei, "a inclusão de um bom imóvel na lista indicativa do património mundial determina oficiosamente a abertura de procedimento de classificação, no grau de interesse nacional e de fixação da respectiva zona especial de protecção."
Por seu turno, prescreve o n°7 do artigo 15° da LBPC que "os bens culturais imóveis incluídos na lista do património mundial integram, para todos os efeitos e na respectiva categoria, a lista dos bens classificados como de interesse nacional” (sublinhado nosso).
Dispondo o n°3 do mesmo preceito que “para os bens imóveis classificados como de interesse nacional, sejam eles monumentos, conjuntos ou sítios, adoptar-se-á a designação «monumento nacional».
Mo mesmo sentido, prescreve o artigo 3° nº3 do DL 309/2009: "a designação de «monumento nacional» é atribuída aos bens imóveis classificados como de interesse nacional, sejam eles monumentos, conjuntos ou sítios."
Em face do exposto, dúvidas não restam de que, na sequência da sua inclusão na lista indicativa do Património Mundial da Unesco, o Alto Douro Vinhateiro é classificado como de interesse nacional – cfr. artigo 15° n°7 da LBPC.
Tratando-se de bem imóvel classificado como de interesse nacional, terá a designação de monumento nacional - cfr. artigo 15° n°3 da LBPC.
Aqui chegados, importa agora analisar se os prédios em causa nos presentes autos, que se inserem no Alto Douro Vinhateiro, beneficiam ou não da isenção de IMI prevista no artigo 44° n°1 n) do EBF.
Prevê o citado preceito que estão isentos de IMI: ”os prédios classificados como monumentos nacionais e os prédios individualmente classificados como de interesse público ou de interesse municipal, nos termos da legislação aplicável."
A isenção de IMT prevista neste preceito abrange, assim: (i) os prédios classificados como monumentos nacionais e (ii) os prédios individualmente classificados como de interesse público ou de interesse municipal.
Da simples leitura da leira da lei verifica-se que apenas é exigida a classificação individual para os prédios classificados como de interesse público ou municipal, não sendo exigida tal classificação individual para os prédios classificados como monumentos nacionais.
A este propósito, invoca a Requerida que a referência constante deste preceito a monumentos nacionais se reporta aos prédios que assim foram classificados à luz do Decreto n° 20985, de 07 de Março de 1932.
Isto porque, de acordo com a AT, a LBPC não prevê qualquer classificação de monumento nacional, como sucedia antes da sua entrada em vigor, apenas prevendo a categoria de monumento nacional.
Não é este, porém, o entendimento que defendemos.
Com efeito, pese embora o mérito dos argumentos expendidos pela AT, não pode deixar de se referir que a "classificação" de monumentos não se encontra apenas prevista na LBPC (veja-se, a titulo de exemplo, artigo 53° n° 1) mas também na própria lei fiscal - cfr. artigo 44° n°5 do EBF, que prevê a "classificação como monumentos nacionais “ (sublinhado nosso)
Ora, se a própria lei fiscal prevê esta classificação como monumentos nacionais, não se poderá defender, como pretende a AT, não existir tal classificação e muito menos que, quando o artigo 44° n°1 n) do EBF se refere a "prédios classificados como monumentos nacionais" se pretende referir à classificação instituída por legislação há muito revogada.
Tanto mais que o EBF foi objecto de sucessivas alterações, não se podendo defender que este "pormenor" da inexistência de uma classificação como monumento nacional tenha "escapado" ao legislador.
Também não colhe o argumento avançado pela Requerida de que a classificação como monumento nacional impõe a abertura de um procedimento administrativo prévio de classificação, nos termos do DL. 309/2009, de 23 de Outubro.
Isto porque, pese embora esta seja a regra, a verdade é que, quanto aos bens imóveis incluídos na lista do Património Mundial, a própria LBPC criou uma excepção, prevendo que a sua inclusão nesta lista determina, ope legis, a sua classificação como de interesse nacional, dispensando-se, assim, neste caso, o procedimento prévio de classificação,
Pelo que, a partir da entrada em vigor da LBPC, a inclusão de imóveis na lista do Património Mundial tem como efeito a sua classificação como de interesse nacional, sem necessidade de qualquer procedimento de classificação.
Sendo certo que, relativamente aos imóveis incluídos na lista do Património Mundial antes da entrada em vigor daquele DL 309/2009 (como é o caso dos autos, em que os imóveis foram incluídos na lista do Património Mundial em 2001), não há lugar a qualquer procedimento de classificação, decorrendo esta directamente da lei e apenas sendo exigida a publicação a que se alude no artigo 72° n 3 do DL 309/2009.
Por isso, em relação a estes imóveis não há lugar à comunicação da classificação a que se alude no artigo 44° n°5 do E6F, operando a isenção de IMI por mero efeito da publicação prevista no citado artigo 72° n°3 do DL 309/2009.
Sendo assim irrelevante qualquer certidão emitida pela Direcção Regional de Cultura do Norte quanto à classificação dos prédios em causa nos presentes autos como monumento nacional ou o facto de a Requerente apenas ter junto certidão respeitante a seis prédios já que, insiste-se, tal classificação decorre ope legis com a publicação do Aviso a que se alude no artigo 72° n°3 do DL 309/2009, não dependendo de qualquer procedimento administrativo de classificação.
O argumento avançado pela Requerida de que a isenção prevista no artigo 44° n°1 n) do EBF não poderia ser aplicaria pelo facto de o Alto Douro Vinhateiro não constituir um prédio mas sim uma universalidade também não pode colher.
De facto, pese embora o Alto Douro Vinhateiro não constitua qualquer prédio, a verdade é que o que estai em causa nos presentes autos é a isenção de IMI aplicável aos prédios da Requerente e inseridos no Alto Douro Vinhateiro.
E, quanto a esses prédios, dúvidas não restam sobre a sua classificação como prédios, pelo que, em face de tudo quanto ficou exposto, não poderá defender-se a não aplicação a estes prédios da isenção de IMI prevista no EBF.
Neste sentido, veja-se, entre outros, Ac. do TCA de 07DEZ2016, processo n° 1 34/1 4BEPRT , in www.dgsi.pt:
"Efectivamente, e conforme consta do artigo 15° da Lei n°107/2001, de 8 de Setembro., e do artigo 3° do Decreto-Lei n°309/2009, de 23 de Outubro, um bem classificado como de interesse nacional é designado como "monumento nacional", independentemente de se tratar de um único edifício, conjunto ou sítio, sendo claro que os imóveis que compõem o conjunto ou sítio são abrangidos por essa classificação,
O facto de poderem coexistir prédios individualmente classificados, em caso de delimitação de um conjunto ou de um sítio, nos termos do artigo 56° do Decreto-Lei n°309/2009, de 23 de Outubro, apenas tom relevo provisório para delimitar a zona de protecção desse imóvel até à publicação da classificação do conjunto ou do sítio (cfr. n° 2).
Por esse motivo se compreende que o artigo 44° do Estatuto dos Benefícios Fiscais distinga entre "prédio classificado como monumento nacional" e "prédio individualmente classificado como de interesse público ou municipal", só exigindo a individualização em relação a estas duas últimas categorias, não já a dos prédios de interesse nacional."
E esta, segundo cremos, a melhor interpretação do artigo 44° n°1 n) do EBF, não se vislumbrando que tal interpretação padeça de qualquer inconstitucionalidade, nem por violação dos princípios invocados pela Requerida, nem por inconstitucionalidade orgânica.
Aliás, é este o entendimento maioritariamente propugnado pela jurisprudência, quer deste tribunal Arbitral, quer dos tribunais superiores, não se antevendo quaisquer razões ou fundamentos para tomar decisão em sentido divergente.
Em face do exposto, conclui-se que o acto de liquidação de IMI, na parte impugnada, é ilegal, por violação do disposto no artigo 44° n° 1 n) do EBF.
Apreciada a questão da legalidade da liquidação, vejamos se a Requerente tem direito ao pagamento de juros indemnizatórios.
Quanto aos juros indemnizatórios, prescreve o número 1 do artigo 43° da LGT:
"São devidos juros indemnizatórios quando se determine, em reclamação graciosa ou impugnação judicial, que houve erro imputável aos serviços de que resulte pagamento da divida tributária em montante superior ao legalmente devido".
Considerando-se que existe erro imputável aos serviços sempre que se verifique a procedência da impugnação do ato de liquidação,
No caso dos autos, verificando-se a ilegalidade da liquidação, na parte impugnada, dúvidas não restam de ter havido erro imputável aos serviços, sendo certo que tal erro redundou no pagamento, por parte da Requerente, de dívida em montante superior ao devido.
Pelo que dúvidas não restam de que a Requerente tem direito ao pagamento de juros indemnizatórios, contados às taxas legais, desde a data do pagamento do imposto até ao seu efectivo reembolso por parte da Requerida.

VI. DISPOSITIVO:
Em face do exposto, decide-se:
a) julgar improcedente) a excepção de caducidade invocada pela Requerida;
b) julgar procedente o pedido de anulação do despacho cie indeferimento da reclamação graciosa e de declaração de ilegalidade e anulação parcial do acto de liquidação de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI), na parte que incidiu sobre 13 prédios, referente ao ano de 2016, no montante global de €633,76, com a consequente emulação do despacho de indeferimento e da liquidação, na parte impugnada,
c) julgar procedente o pedido de condenação da AT no pagamento do reembolso do imposto pago pela Requerente, bem como de juros indemnizatórios, calculados às taxas legais desde a data do pagamento do imposto por parte da Requerente até ao seu efectivo reembolso.

***
Fixa-se o valor do processo em €633,76, nos termos da alínea a) do nº1 do artigo 97°-A do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aplicável por força das alíneas a) e b) do n° 1 do artigo 29° do RJAT e do n°2 do artigo 3° do Regulamento de Custas nos Processos de Arbitragem Tributária. (…)»

4. Fundamentação de Direito

4.1. Deixámos já identificado no ponto 2. supra os fundamentos em que se suporta a presente Impugnação Judicial da Decisão Arbitral, sendo inquestionável que, em abstracto, se reconduzem aos que legalmente se encontram previstos no RJAT.

Considerando, no entanto, as particularidades que esses fundamentos assumem no caso concreto, importa efectuar uma definição rigorosa do especial regime sob a égide do qual o Tribunal que proferiu a decisão a sindicar foi constituído e, sobretudo, dos normativos que, nesse especial regime, e mesmo na presença das casuísticas alegações da ora Impugnante, delimitam os poderes e competências deste Tribunal Central Administrativo Sul na apreciação da validade formal das sentenças arbitrais.

Tal definição permitirá, simultaneamente, revisitando a jurisprudência que nesta matéria tem sido proferida, que se aquilate da protecção ampla que a Impugnante clama invocando doutrina e jurisprudência deste Tribunal Central.

Posto isto, e começando pelo necessário enquadramento jurídico, importa salientar que, comecemos por ter presente que a Lei de Autorização Legislativa (integrada na Lei de Orçamento de Estado de 2010) remonta a 2010 – Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, aí tendo ficado estabelecido, para o que agora mais releva, no seu artigo 124.º, que:

1 - Fica o Governo autorizado a legislar no sentido de instituir a arbitragem como forma alternativa de resolução jurisdicional de conflitos em matéria tributária.

2 - O processo arbitral tributário deve constituir um meio processual alternativo ao processo de impugnação judicial e à acção para o reconhecimento de um direito ou interesse legítimo em matéria tributária.

3 - A arbitragem tributária visa reforçar a tutela eficaz e efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos dos contribuintes, devendo ser instituída de modo a constituir um direito potestativo dos contribuintes.

4 - O âmbito da autorização prevista no presente artigo compreende, nomeadamente, as seguintes matérias:

(…)

f) A fixação dos princípios e das regras do processo arbitral tributário, em obediência ao princípio do inquisitório, do contraditório e da igualdade das partes e com dispensa de formalidades essenciais, de acordo com o princípio da autonomia dos árbitros na condução do processo;

(…)

h) A consagração, como regra, da irrecorribilidade da sentença proferida pelo tribunal arbitral, prevendo a possibilidade de recurso, para o Tribunal Constitucional, apenas nos casos e na parte em que a sentença arbitral recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou aplique norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada;

(…)

j) A definição do regime de anulação da sentença arbitral com fundamento, designadamente, na não especificação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, na oposição dos fundamentos com a decisão e na falta de pronúncia sobre questões que devessem ser apreciadas ou na pronúncia de questões que não devessem ser apreciadas pelo tribunal arbitral;(…)”.

Resulta desta Lei de Autorização, desde logo, que o que se pretendeu foi a instituição de um meio jurisdicional alternativo à impugnação judicial, que constituísse um direito potestativo do contribuinte, se regesse pelo direito constituído - vedando-se o recurso a juízos de equidade como fundamento da decisão e que ficasse consagrada a regra da irrecorribilidade da decisão.

A concretização da referida autorização legislativa, realizada através do DL n.º 10/2011, de 20 de Janeiro, sofreu, até hoje, várias alterações- determinadas pela Lei do Orçamento de Estado de 2012 (artigos 160.º e 161.º da Lei n.º 64-B/2011 e artigo 14.º da Lei n.º 20/2012 de 14 de Maio), pela Lei do Orçamento de Estado de 2013 (artigos 228.º e 229.º da Lei n.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro) e pelas Leis n.º 24/2019, de 13 de Março e 118/2019, de 17 de Setembro.

E embora nenhuma das mencionadas alterações assumam relevo especial para a questão suscitada nos autos, a última, que apenas entrará em vigor a 16 de Novembro de 2019 do corrente ano, alargando o objecto do recurso a interpor para o Supremo Tribunal Administrativo por forma a nele ficar contemplada a possibilidade de incidir sobre eventuais oposições relativas à mesma questão fundamental de direito entre acórdãos proferidos pelos Tribunais Arbitrais ou entre estes e os proferidos pelos Tribunais Centrais ou pelo Supremo Tribunal (cfr. nova redacção do artigo 25.º do RJAT introduzida pelo artigo 17.º da Lei 119/19 já citada), é um indicador claro de que o legislador completou, no limite do que entendeu necessário, as fragilidades do sistema de reavaliação das decisão de mérito dos Tribunais Arbitrais.

Daí que se deva entender, que se mantêm incólumes os objectivos então adiantados na Lei de Autorização Legislativa assumidos no preâmbulo do DL 10/2011, que a arquitectura legal visou efectivar, designadamente através de um princípio tendencialmente orientador de irrecorribilidade da decisão arbitral e a relação que, por via dessa arquitectura legal e do referido princípio, se entendeu que devia existir entre os Tribunais Arbitrais/Tribunais Estatais Administrativos e Fiscais e o Tribunal Constitucional.

No plano formal - expressão que aqui utilizamos como equivalente a fundamentos da impugnação judicial e de recurso - importa realçar que o RJAT estabelece dois meios principais e um meio subsidiário de sindicância da decisão do tribunal arbitral: nos primeiros, integram-se a impugnação e o recurso das decisões arbitrais; no segundo, o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia nas situações em que o tribunal arbitral é a última instância de decisão (em cumprimento do § 3 do artigo 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, conforme preâmbulo do Decreto-Lei n.º 10/2011, de 20 de Janeiro).

Nos termos dos artigos 27.º e 28.º do RJAT, as decisões arbitrais são susceptíveis de serem anuladas pelos Tribunais Centrais Administrativos com fundamento em não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; oposição dos fundamentos com a decisão; pronúncia indevida ou omissão de pronúncia; violação dos princípios do contraditório e da igualdade de armas nos termos em que se mostram consagrados no artigo 16.º do RJAT.

Nos termos do artigo 25.º do mesmo diploma, que estabelece o regime dos recursos sobre o mérito da pretensão, são dois os tipos de fundamentos, por sua vez determinantes da competência dos tribunais de controlo: estando em causa a recusa de aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou a aplicação de norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada, o recurso é da competência do Tribunal Constitucional (n.º 1 do referido preceito e diploma); quando esteja em causa uma alegada oposição, quanto à mesma questão fundamental de direito entre decisões arbitrais ou destas com acórdão proferido pelo Tribunal Central Administrativo ou pelo Supremo Tribunal Administrativo, o recurso é da competência do Supremo Tribunal Administrativo (n.º 2 do RJAT).

Em suma, centrando apenas a nossa atenção na distinção emergente do regime legal entre recurso a interpor para o Tribunal Constitucional e recurso a interpor para este Tribunal Central, que é a que nos importa frisar atento o teor das alegações e conclusões invocadas nesta impugnação, a que infra daremos relevo, devemos ter por seguro [para, como de forma clarividente se disse já, a questão ficar “esclarecida, visto que é possível que se venha a repetir no futuro em casos semelhantes (como, aliás, sucedeu no passado)]”, (1) que:

- no RJAT ficaram estabelecidos “dois meios duas vias de ataque” à decisão do tribunal arbitral: o recurso e a impugnação judicial;

- decorridos praticamente 9 anos da introdução no ordenamento jurídico português da regulamentação relativa à arbitragem em matéria tributária (2) e, consequentemente, da existência de um controlo jurisdicional das decisões proferidas pelos Tribunais Arbitrais neste domínio, continua a ser dominante o entendimento de que foi vontade do legislador estabelecer um elenco fechado de fundamentos de reacção às decisões dos tribunais arbitrais (3) de que decorre que essa impugnação só deve ser admitida: (i) no que concerne ao seu mérito, para o Tribunal Constitucional, nos termos do estatuído no n.º 1 do art.º 25.º, do aludido DL n.º 10/2011 e para o Supremo Tribunal Administrativo nos termos do n.º 2 da mesma disposição legal; (ii) no que respeita à sua validade formal, para este Tribunal Central, da reacção impugnatória vir suportada na falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, na oposição dos fundamentos com a decisão, na pronúncia indevida ou na omissão de pronúncia e na violação dos princípios do contraditório e da igualdade de partes, tal como delimitado pelo art.º 16.º, do mesmo diploma legal, por força do preceituado nos artigos 27.º e 28.º do mesmo diploma legal citado; (4)

- da rigorosa delimitação de fundamentos e competências consagradas no RJAT “resulta que nem o TCAS pode conhecer do mérito da pretensão, porque nesse caso estaria a invadir a esfera de competência do Tribunal Constitucional e do STA, nem estes últimos podem conhecer dos fundamentos de anulação, porque tal matéria está atribuída ao TCAS”.

Tal como devemos ter por seguro, podemos mesmo dizer, como inquestionável, que os fundamentos invocados pela Impugnante nesta Impugnação, identificados no ponto II deste acórdão, se incluem, à luz do regime descrito, nos que como tal foram eleitos pelo legislador fiscal e se inserem no âmbito da nossa competência.

4.2. Mas assistir-lhe-á razão quanto ao mérito da sua pretensão?

Neste conspecto, a nossa resposta é, relativamente a todas as questões suscitadas, negativa.

4.2.1. Começando pela primeira questão - invocado vício de omissão de pronúncia de que alegadamente padecerá a sentença arbitral - realçamos aquela que é, há anos a densificação que a jurisprudência vem fazendo e que consensualmente é aceite pela comunidade jurídica: apenas se verifica quando o juiz deixa por conhecer alguma questão que as partes tenham submetido à sua apreciação e cuja apreciação não tenha ficado prejudicada - cfr. artigo 125.º, n.º 1, do CPPT e artigos. 608.º, n.º 2, e 615, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil

É, de resto, este entendimento que também é veiculado pela doutrina que sistematicamente se debruça sobre esta questão em matéria tributária (e que se mostra absolutamente intocável pela reforma processual introduzida no nosso ordenamento em 2013, uma vez que nesta parte não houve alteração na redacção dos preceitos na parte pertinente):

«A nulidade por omissão de pronúncia só ocorre quando existe uma violação dos deveres de pronúncia do tribunal sobre questões que deva apreciar.

Na falta de norma do CPPT sobre os deveres de cognição do tribunal, há que recorrer à norma do art. 660.º, n.º 2, do CPC, em conformidade com o disposto no art. 2.º, alínea e), do CPPT.

Nesta disposição impõe-se ao juiz o dever de conhecer de todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

Se o tribunal entende que o conhecimento de uma questão está prejudicado e o declara expressamente, poderá haver erro de julgamento, se for errado o entendimento em que se baseia esse não conhecimento, mas não nulidade por omissão de pronúncia.

Esta só ocorrerá nos casos em que o tribunal, pura e simplesmente, não tome posição sobre qualquer questão sobre a qual devesse tomar posição, inclusivamente não decidindo explicitamente que não pode dela tomar conhecimento.

No entanto, mesmo que entenda não dever conhecer de determinada questão, o tribunal deve indicar as razões por que não conhece dela, pois, tratando-se de uma questão suscitada, haverá omissão de pronúncia se nada disser sobre ela». (5)

Ainda na mesma perspectiva de densificação, agora do conceito de questão, diz-nos, o mesmo autor, que “O conceito de «questões» abrange tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem (…) e que “Para se estar perante uma questão é necessário que haja a formulação do pedido de decisão relativo a matéria de facto ou de direito sobre uma concreta situação de facto ou jurídica sobre que existem divergências, formulado com base em alegadas razões de facto ou de direito (…) e que “A dispensa de tomar posição sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras conduz a o tribunal não ter de apreciar toda a matéria controvertida quando a decisão apenas de uma parte dela impõe necessariamente a decisão da causa, incidente ou recurso. (6)

Esta posição doutrinária é, sublinhe-se, um tributo à doutrina clássica amplamente difundida e à destrinça e conclusão comummente aceites de que são distintos os conceitos de “questões” e “razões” ou “argumentos” e que só a falta de apreciação das primeiras - “questões” - integra a nulidade prevista nos artigos 125.º do CPPT e 615.º, n.º 1 al. d) do CPC, ou seja, que a mera falta de discussão das “razões” ou “argumentos” invocados para concluir sobre as questões não integra a mesma nulidade da sentença. (7)
Em síntese, e como sumariado pelo Supremo Tribunal Administrativo, que, convocando a mesma doutrina, nos guiou nesta apreciação, “para que se considere suscitada uma questão em sede de recurso, não basta a referência, efectuada de passagem, nas alegações de recurso e respectivas conclusões, à violação de um princípio jurídico, exigindo-se que o recorrente individualize e concretize, de forma inequívoca, em que consiste a sua divergência com a decisão recorrida, concretizando as suas razões e formulando um pedido de decisão relativamente a uma concreta situação.” (8)

No caso concreto, não há duvida que a Recorrente suscitou a questão da inconstitucionalidade na resposta que apresentou no processo arbitral e que o fez de forma concreta, alegando factos e razões de direito das quais pretendia extrair, como extraiu, a consequência de que, a ser perfilhado o entendimento do artigo 44.º do EBF, nos termos preconizados pela ora Impugnada e pela jurisprudência por esta citada, então a a única conclusão a extrair era a inconstitucionalidade da norma, por violação dos princípios da igualdade tributária, da justiça fiscal, da capacidade contributiva, da autonomia local e da participação na decisão, bem como a sua inconstitucionalidade orgânica, como resulta claramente dos artigos 201.º a 231º da sua resposta.

Todavia, contrariamente ao por si defendido, e ainda que de forma muito sintética - ou, até, de forma muito pouco profunda, sobretudo face ao investimento que a ora Recorrente então colocou no seu articulado - o Tribunal Arbitral pronunciou-se efectivamente sobre essa questão.

Efectivamente, para além, como reconhecido pela Recorrente, de o Tribunal Arbitral ter devidamente identificado a questão no relatório, salientando que a Administração Tributária tinha, na sua resposta, invocado que “ O artigo 44º 1 n) do EBF, na interpretação defendida pela Requerente, é inconstitucional, quer por violação dos princípios da igualdade tributária, da justiça fiscal, da capacidade contributiva, da autonomia local e da participação na decisão, quer por padecer de inconstitucionalidade orgânica”, no julgamento de direito, após ter exteriorizado longamente sobre a questão jurídica - de que resulta manifestamente que perfilhava a mesma interpretação do regime normativo aplicável que a Requerente, ora Impugnada - disse claramente: “É esta, segundo cremos, a melhor interpretação do artigo 44° n°1 n) do EBF, não se vislumbrando que tal interpretação padeça de qualquer inconstitucionalidade, nem por violação dos princípios invocados pela Requerida, nem por inconstitucionalidade orgânica.
Aliás, é este o entendimento maioritariamente propugnado pela jurisprudência, quer deste tribunal Arbitral, quer dos tribunais superiores, não se antevendo quaisquer razões ou fundamentos para tomar decisão em sentido divergente.
Em face do exposto, conclui-se que o acto de liquidação de IMI, na parte impugnada, é ilegal, por violação do disposto no artigo 44° n° 1 n) do EBF.”.
Ou seja, não só se pronunciou, como o fez, afirmando que “ não vislumbrava “ a existência de inconstitucionalidades, nem por violação dos princípios invocados pela Requerida, nem por inconstitucionalidade orgânica, assumindo que nesta matéria o seu entendimento era idêntico ao que a jurisprudência dos tribunais arbitrais e os tribunais superiores estaduais perfilhavam nesta matéria.
Sublinhamos, de novo, a Recorrente desejaria, e porventura são legítimas as suas expectativas, que a decisão arbitral revelasse uma maior acuidade e um direccionamento mais especifico aos argumentos adiantados, mas o que não pode é afirmar que não houve pronúncia, que há omissão de pronúncia e violação do dever imposto nos artigos 125.º do CPPT e 608.º do CPC, por esta violação, nos termos já adiantados, implicar um total alheamento, um postergamento absoluto da questão suscitada.

Diz a Recorrente, adiantando a possibilidade de à sua tese se colocarem obstáculos de dogmática jurídica, que a forma “pobre” como a questão foi apreciada é inaceitável, que é muito mais de que uma “mera” e “ pobre fundamentação”, e que, a aceitar-se que a expressão “ não se vislumbra a existência de quaisquer inconstitucionalidades” substancia uma pronúncia, sobretudo quando são suscitadas e desenvolvidas questões constitucionais de relevo ao longo de 31 artigos, que o Tribunal, «passe a expressão - “atira para canto”» está encontrada a “fórmula mágica”, “para que a figura de omissão de pronúncia rapidamente entre na categoria da espécie processual em vias de extinção”.

Convoca, ainda, em abono da sua tese, uma anotação ao artigo 125.º do CPPT de Jorge Lopes de Sousa: ““Na verdade, este entendimento, levado ao extremo, conduziria a que fosse considerado cumprido o dever de pronúncia sempre que perante a imputação de quaisquer ilegalidades a um acto tributário o tribunal se limitasse a dizer que não vislumbrava qualquer ilegalidade ou que perante um pedido de reconhecimento de um direito se dissesse apenas que não se vislumbrava que o autor tivesse o direito, consequências estas que não parecem compagináveis com as exigências constitucionais do acesso ao direito e aos tribunais (art. 20.°, n.B 1, da CRP), que não pode ser reduzido ao direito de apresentar petições aos tribunais, antes em de assumir a dimensão de um direito a ver apreciadas pelo tribunal as questões colocadas, desde que não existam obstáculos legais a essa apreciação.” (9)

E termina alegando que “Ainda que o Tribunal Arbitral Singular tenha aderido à tese propalada pela Impugnada, permanece por conhecer se a interpretação veiculada pela Impugnada é ainda conforme aos princípios da igualdade tributária, da justiça fiscal, da capacidade contributiva, da autonomia local e da participação na decisão, a par de constitucionalmente orgânica”.

Vejamos, por partes, porque são de improceder estas alegações.

São de improceder, desde logo, porque, como deixámos já claro, quer pela transcrição integral da decisão, quer pela interpretação que dela fazemos, o Tribunal Arbitral não se limitou a dizer que não se vislumbravam quaisquer inconstitucionalidades. Afirmou claramente - após ter expressado o seu entendimento sobre a interpretação dos factos e do regime jurídico em apreço, refutando a argumentação da Recorrente e perfilhando claramente a interpretação veiculada pela Recorrida no seu requerimento inicial - que não se vislumbrava que se verificassem as inconstitucionalidades expressamente invocadas pela Recorrente, quer quanto à violação dos princípios cuja violação era suscitada, quer quanto à inconstitucionalidade orgânica, remetendo, de forma global, é verdade, para a jurisprudência publicada dos tribunais arbitrais e dos tribunais estaduais.

Em segundo lugar, porque, no limite, mesmo que aceitássemos como correcta a qualificação como “pobre” da fundamentação adiantada, a mesma traduziria, sempre, isso mesmo, uma menos rigorosa ou deficiente fundamentação e não uma omissão de pronúncia e é sabido, deixámos ab initio bem identificados os limites da nossa competência, os quais não incluem, o erro de julgamento ou, se preferirmos, o acerto jurídico da decisão e muito menos a qualidade jurídica da peça processual em que essa decisão traduz.

Aliás, incindindo agora a nossa atenção na doutrina convocada e se bem a interpretamos - e este é já o terceiro aspecto que importa realçar contra a argumentação adiantada - na anotação em questão, que reconhecemos ter sido feita em sede de análise e densificação do dever de pronúncia, o próprio autor reconhece que é preciso ter cuidado quando esta fórmula é utilizada.

Note-se, como a Recorrente também deve ter reparado, que o trecho seleccionado e vertido nas suas alegações - que cuidamos de transcrever na parte em que a Recorrente o fez - surge seccionado e descontextualizado.

Essa anotação, vertida em nota de rodapé na obra referida, surge como comentário crítico a um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo em que foi suscitada exactamente a questão de omissão de pronúncia em relação a uma questão de inconstitucionalidade e em que o julgador tinha igualmente afirmado que se não vislumbrava a verificação da inconstitucionalidade por violação do artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa - acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 12 de Março de 2003, proferido no processo n.º 275/03 (não lográmos encontrar qualquer aresto publicado com a data de 14 de Maio de 2003 que tenha sido proferido no processo n.º 276/03, tendo concluído que, ou se trata de mero lapso da anotação ou de aresto de conteúdo idêntico não publicado até ao momento).

Nesse julgamento, também o Supremo Tribunal Administrativo - perante um discurso jurídico reduzido ao seguinte:Um apontamento final para apontar não vislumbrarmos neste entendimento (similar ao que esteve na base das decisões proferidas pelas autoridades administrativas) qualquer desconformidade com os preceitos constitucionais, maxime, os vertidos nos artºs. 2º (princípio da confiança) e 103º, n. 3, da CRP” - entendeu que “ É, pois, patente que houve pronúncia do Mm. Juiz sobre tal questão de alegada inconstitucionalidade”, razão pela qual não era de reconhecer razão à então Recorrente.

De todo o modo, insistimos, o autor citado não toma uma posição peremptória, alertando para o perigo de um entendimento desta natureza e para o facto de uma conclusão deste tipo, se desprovida de uma análise casuística, poder conduzir, “levado ao extremo”, a que fosse julgado cumprido o dever de pronúncia em situações em que apenas aparentemente ele existe.

No corpo principal da anotação, todavia, o mesmo autor também não deixa de alertar para as situações em que o Tribunal, abordando a questão, o faz, porém, em termos extremamente lacónicos, “situações em que não haverá nulidade por omissão de pronúncia, embora possa ocorrer nulidade por deficiência de fundamentação”.

Aliás, será também este, em bom rigor, mesmo que inconscientemente, o entendimento da Recorrente, já que o alegado no artigo 42.º da sua petição inicial a coloca em absoluto alinhamento com o que terminamos de dizer, ao aí defender que “Pois bem, tendo a Impugnante suscitado no decurso do processo arbitral a inconstitucionalidade em torno da interpretação veiculada pela Impugnada, impunha-se que o Tribunal Arbitral Singular, ao decidir como veio a decidir, justificasse a razão ou as razões à luz das quais não foi, a seu ver, ofendida a lei fundamental do país”.

No caso, porém, não cremos que estejamos perante omissão de pronúncia, que inquestionavelmente existiu, pelas razões já apontadas, especialmente face ao contexto em que a apreciação surge na sentença -, nem perante uma absoluta falta de fundamentação, razão pela qual, mesmo que se entendesse que a este Tribunal Central, face às competências que lhe estão atribuídas pelo RJAT, está vedada a alteração da qualificação jurídica da nulidade invocada - e não é esse o nosso entendimento, sempre estaria votada ao insucesso, nesta parte, a pretensão da Impugnante.

Uma quarta e última nota se impõe no que respeita às alegações da Recorrente, agora no que respeita ao cerceamento que alegadamente decorre de uma apreciação e decisão da questão da conformidade constitucional do artigo 44.º do EBF, nos termos em que esta foi realizada pelo Tribunal Arbitral.

Diz a Recorrente que, a aceitarmos que houve uma efectiva pronúncia, fica incompreensível e irremediavelmente coarctado um dos poucos mecanismos de controlo que assistem à Impugnante: o recurso para o Tribunal Constitucional.

Salvo o devido respeito, mais uma vez não tem razão.

O recurso para o Tribunal Constitucional está assegurado no artigo 25.º do RJAT nos termos que deixámos expressos, sendo admissível sempre que o Tribunal Arbitral aplique norma cuja desconformidade com a Lei Fundamental tenha sido suscitada no processo. Ou seja, tendo a Recorrente suscitado a inconstitucionalidade da norma se interpretada num determinado sentido e tendo o Tribunal Arbitral aplicado essa norma precisamente nesse sentido e declarado que não viola os princípios constitucionais nem padece de inconstitucionalidade orgânica suscitadas, carece de sentido a alegação da Recorrente. Aliás, esse cerceamento ao recurso para o Tribunal Constitucional tem sido o argumento de reforço que este Tribunal Central Administrativo Sul, designadamente em acórdãos relatados pela ora relatora, tem avançado para defender uma rigorosa distinção entre “argumento” e “questão” neste tipo de acção - Impugnações de Decisão Arbitral -, revelando estar tão atento aos objectivos da introdução deste regime especial no nosso ordenamento jurídico e ao escrupuloso respeito pelos limites das competências que lhe estão impostas nesta matéria, mas igualmente atento à observância dos deveres processuais que recaem sobre os Tribunais Arbitrais, incluindo no que respeita ao dever de pronúncia sobre as questões que lhes são colocadas, sendo que, e em conclusão, em termos processuais, nenhuma censura é devida à sentença arbitral.

O posicionamento que adoptamos e através do qual procuramos responder aos argumentos invocados pela Recorrente, é, se bem vemos, o que vem sendo a interpretação do referido preceito - fundamentos e competência de apreciação do recurso - difundido pela doutrina.

Na verdade, aceita-se e somos sensíveis à argumentação invocada pela Recorrente, tanto mais que, é sabido, a própria questão da conformidade constitucional do regime de recurso previstos no RJAT - mormente no campo dos recursos de constitucionalidade, na sua relação entre a regra (de princípio) de irrecorribilidade da decisão com o conjunto de fundamentos que podem ser invocados perante o Tribunal Constitucional e o seu modo de interposição e de preenchimento do pressuposto de legitimidade - constitui matéria controversa desde a discussão pública do Projecto de Lei, (10)

Porém, embora a doutrina reconheça queEm termos sistémicos (…)não se encontra nenhum regime tão restritivo, em matéria de recorribilidade de decisões arbitrais, como o que vigora no RJAT: nem quanto a outras situações de arbitragem de litígios públicos, nem no que se reporta à arbitragem privada. Repare-se que o que se está a questionar não é o regime isoladamente considerado nem a possibilidade de renúncia ao regime de recursos. O que se realça é que, no domínio de impugnações de decisões jurisdicionais, um regime de irrecorribilidade tão estrito não encontra paralelo: nem no plano da impugnação das decisões judiciais em matéria tributária, nem no plano das decisões arbitrais em matéria administrativa, nem sequer no plano das decisões arbitrais em questões privadas (tratando-se, quanto a estes dois últimos casos, atualmente, do mesmo regime impugnatório)” e sublinhe a necessidade de se “discutir a validade constitucional do regime de irrecorribilidade consagrado no RJAT, atento o ponderoso interesse público subjacente a qualquer litígio tributário”, não hesita em afirmar, igualmente de forma clara, como não podia deixar de ser face ao regime consagrado no RJAT, que é admissível a interposição de recurso de constitucionalidade da decisão arbitral na parte em que recuse a aplicação de qualquer norma com fundamento na sua inconstitucionalidade ou que aplique norma cuja inconstitucionalidade tenha sido suscitada, evidenciando que o artigo 25.º do RJAT acolheu expressamente os fundamentos do recurso de constitucionalidade previstos nas alíneas a) e b) dos artigos 280.º, n.° 1 da Constituição, e 70.º, n.° 1, alíneas a) e b) da Lei do Tribunal Constitucional. (11)

4.2.2. No que respeita à segunda questão - violação do princípio do contraditório na vertente de “proibição de decisão-surpresa” - confessamos a nossa dificuldade em entender nesta parte o raciocínio da Recorrente.

Na verdade, por muito que perscrutemos toda a petição, a única referência que lográmos encontrar é a que está vertida na 12.ª conclusão: “a decisão Arbitral não padece de uma "mera" fundamentação lacónica ou deficiente, antes configura uma "decisão surpresa", conforme já se entendeu no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul proferido a 2018-10-11 no âmbito do processo n°17/18.9BCLSB;”.

De todo o modo, cumpre-nos dizer que a violação do princípio do contraditório, com a consequente emissão, por força dessa violação, de uma decisão totalmente surpresa para a ora Impugnante, constitui, comprovada que seja, fundamento de anulação do julgado arbitral atenta a previsão do artigo 16.º do RJAT, para a qual somos remetidos expressamente pelo legislador no artigo 27.º do mesmo diploma legal.

Densificando do ponto de vista jurisprudencial e doutrinal, de forma muito resumida, esse fundamento, salientamos duas breves notas essenciais.

A primeira prende-se com o princípio do contraditório que constitui, como é sabido, um princípio estruturante do ordenamento jurídico português pelo qual é assegurado às partes a participação efectiva no desenvolvimento de todo o litígio, isto é, assegurada a possibilidade da parte influenciar a formação da decisão na parte relativa à matéria de facto, em sede probatória (instrução e conclusões passíveis de serem extraídas dessa produção), e em sede estritamente jurídica ou de direito.

«No plano da alegação [introdução dos factos principais da causa], «o princípio do contraditório exige que os factos alegados por uma [das partes] (como causa de pedir ou fundamento de excepção) possam pela outra ser contraditados (por impugnação ou por excepção), sendo assim concedida a ambas, em igualdade, a faculdade de sobre todos eles se pronunciarem». No plano da prova, «o princípio do contraditório exige que às partes seja, em igualdade, facultada a proposição de todos os meios probatórios potencialmente relevantes para o apuramento da realidade dos factos (principais ou instrumentais) da causa, que lhes seja consentido fazê-lo até ao momento em que melhor possam decidir da sua conveniência, tidas em conta, porém, as necessidades de andamento do processo, que a produção ou admissão da prova tenha lugar com audiência contraditória de ambas as partes e que estas possam pronunciar-se sobre a apreciação das provas produzidas por si, pelo adversário ou pelo tribunal».

Por fim, no plano de Direito e alegações finais, o exercício do contraditório exige que a parte se possa pronunciar e argumentar juridicamente sobre todas as questões e diligências de prova realizada, desenvolvendo perante o Tribunal o seu próprio juízo final, de facto e direito, sustentador do sentido da decisão que tem por firme que deva ser o alcançado e proferido no processo. (12)

A segunda nota reporta-se à alegada proibição de decisão-surpresa, importando colocar em relevo que embora a Impugnante a tenha de alguma forma autonomizado, a sua invocação está correlacionada com a referida violação do princípio do contraditório de que constitui, pelo menos na maior parte das situações, mera decorrência.

Efectivamente, os artigos 3º e 4º do actual Código de Processo Civil - cujo teor, no essencial, foi introduzido no ordenamento jurídico português pelo Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro, e aperfeiçoado pelo Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro ainda na vigência do Código de Processo Civil revogado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho -, consagram o princípio do contraditório, o primeiro em geral e na vertente proibitiva da decisão-surpresa e o segundo no aspecto da alegação dos factos da causa.

«Resultam estes preceitos duma concepção moderna do contraditório, mais ampla do que a do direito anterior». (13) «Não se trata já apenas de, formulado um pedido ou tomada uma posição por uma parte, ser dada à contraparte a oportunidade de se pronunciar antes de qualquer decisão e de, oferecida uma prova por uma parte, ter a parte contrária o direito de se pronunciar sobre a sua admissão ou de controlar a sua produção». (14) «Este direito à fiscalização recíproca das partes ao longo do processo é hoje entendido como corolário duma concepção mais geral da contraditoriedade, como garantia da participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, directa ou indirecta, com o objecto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão». (15)

«No plano das questões de direito, veio a revisão proibir a decisão-surpresa, isto é, a decisão baseada em fundamento que não tenha sido previamente considerado pelas partes». (16) «Esta vertente do princípio [do contraditório] tem fundamentalmente aplicação às questões de conhecimento oficioso que as partes não tenham suscitado, pois as que estejam na disponibilidade exclusiva das partes, tal como as que sejam oficiosamente cognoscíveis mas na realidade tenham sido levantadas por uma das partes, são naturalmente objecto de discussão antes da decisão, sem que o facto de a parte que as não tenha levantado não ter exercido o direito de resposta (desde que este lhe tenha sido facultado) implique falta de contraditoriedade». (17) «Antes de decidir com base em questão (de direito material ou de direito processual) de conhecimento oficioso que as partes não tenham considerado, o juiz deve convidá-las a sobre ela se pronunciarem, seja qual for a fase do processo em que tal ocorra (despacho saneador, sentença, instância de recurso)». (18) «A omissão do convite às partes para tomarem posição sobre a questão oficiosamente levantada gera nulidade, a apreciar nos termos gerais do art. 201º». (19)

Mas, ainda assim, «não deve ter (…) lugar o convite para discutir uma questão de direito quando as partes, embora não a tenham invocado expressamente nem referido o preceito legal aplicável, implicitamente a tiveram em conta sem sombra de dúvida, designadamente por ter sido apresentada uma versão fáctica não contrariada que manifestamente não consentia outra qualificação» (20), já que o citado art. 3º, nº 3, do CPC ressalva expressamente da proibição da decisão-surpresa os casos de manifesta desnecessidade.

Posto isto, e revertendo ao caso concreto, não temos dúvidas em afirmar – porque tal resulta linearmente do processo arbitral, cuja consulta digital consultamos minuciosamente, e a própria sentença, ao descrever minuciosamente toda a tramitação processual e ao identificar exaustivamente todos os fundamentos vertidos nos articulados e os vários requerimentos elaborados, não deixa de o reconhecer - que a única excepção suscitada pela nos autos foi a excepção de caducidade do direito de acção, que foi de facto decidida pelo Tribunal, tendo previamente sido dado à Recorrida a oportunidade para se pronunciar.

E também resulta do processo arbitral que foram observadas, passo a passo, as regras processuais em termos de notificações legalmente exigíveis.

E, nessa medida, não lográmos encontrar fundamento algum para que seja acolhida a pretensão da Recorrente de anular a decisão arbitral por violação do princípio do contraditório.

Acresce que, o acórdão deste Tribunal Central citado, reporta-se efectivamente a um caso em que, por violação do princípio do contraditório e com base no reconhecimento de existência de uma decisão surpresa, foi anulado o acórdão arbitral.

Acontece porém que, como bem se vê da sua leitura, a questão aí tratada, o circunstancialismo fáctico que suportou a decisão e que determinou que então se tivesse julgado que estavam verificados os pressupostos de direito de que estava dependente a procedência do pedido de anulação do julgamento arbitral é distinta daquela cuja apreciação ora enfrentamos.

Efectivamente, no caso julgado a que se reporta o processo em referência deste Tribunal Central, é claramente referido (21) que o Tribunal Arbitral não fez qualquer referência no relatório a que a questão da inconstitucionalidade tinha sido suscitada pela Administração Tributária, não a equacionou enquanto questão a decidir e, o que é efectivamente relevante (já que, como é obvio, a falta de menção no relatório e a sua não enunciação como questão a decidir não suportaria uma verificação da nulidade da sentença por omissão de pronúncia desde que a final a apreciação e julgasse) a questão da inconstitucionalidade não foi objecto de qualquer apreciação, isto é, sobre essa questão, como disse a então Recorrente/Administração Tributária nas suas alegações de Impugnação Judicial da Decisão Arbitral, não lhe dispensou qualquer palavra ou sobre ela teceu qualquer referência.

Não há, pois, pelas razões já apontadas, qualquer identidade de situações que legitime a convocação desse aresto para sustentar e almejar idêntica decisão de anulação nestes autos.

Em suma: porque as questões apreciadas e em que se suportou a decisão foram exclusivamente as invocada pelas partes e sobre estas, cada uma das partes, na medida do que legalmente lhes está reconhecido, foram ouvidas, não existe fundamento algum para que se julgue verificado, nem no plano de facto, nem no plano de direito, violado o princípio do contraditório ou para que se entenda que a decisão proferida constitua, pelo menos nos termos e que foi perspectivada pelo legislador, de forma objectiva, uma decisão-surpresa.

E, consequentemente, há que julgar improcedente a presente Impugnação da Decisão Arbitral.


V- Decisão
Face ao exposto, acordam, em conferência, os Juízes da 2ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul, em julgar integralmente improcedente a presente Impugnação de Decisão Arbitral.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 31 de Outubro de 2019

(Anabela Russo)

(Vital Lopes)

(Cristina Flora)

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(1) Cfr. Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 30 de Novembro de 2014, proferido no processo n.º 6952/13, integralmente disponível em www.dgsi.pt

(2) O regime jurídico de arbitragem em matéria tributária, introduzido no ordenamento jurídico pelo Decreto-Lei nº 10/2011, de 20 de Janeiro de 2011, entrou em vigor no dia 25 de Janeiro de 2011.

(3) No sentido de uma defesa de “elenco fechado” e interpretação restritiva do mesmo, a inúmera jurisprudência deste Tribunal, integralmente disponível em www.dgsi.pt, citando-se, a título meramente exemplificativo, os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul proferidos nos processos n.º 5921/12, 5203/11, de 19-2-2013, 7647/14, de 18-9-2014, 6208/12, de 22-1-2015 e 8542/15, de 19-2-2015, que ao longo do tempo se foram sucedendo mantendo intacta a perspectiva legal perfilhada.

(4) Cfr. Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 19-2-2013 (proferido no processo n.º 5203/11) e de 21-5-2013 (proferido no processo n.º 5922/12). Veja-se, ainda, na doutrina, em igual sentido, Jorge Lopes de Sousa, “Comentário ao Regime Jurídico da Arbitragem Tributária, Guia da Arbitragem Tributária”, Almedina, 2013, pág.234 e seguintes.

(5) Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume II, anotação 10 a) ao art. 125.º, pág. 363.

(6) Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume II, anotação 10 a) ao art. 125.º, págs. 363-364.

(7) Neste sentido, vide, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume V, Coimbra Editora, 1984, págs. 53 a 56 e 142 e seguintes e Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 690.

(8) Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 3 de Abril de 2013, proferido no processo n.º 948/12, integralmente disponível em www.dgsi.pt

(9) Código de Procedimento e Processo Tributário anotado e comentado, Áreas Editora, 6.ª edição, volume II, anotação 10 a) ao art. 125.º, págs. 364-365

(10) Entre outros, Paulo Otero et al. (orgs.), Algumas preocupações sobre o regime da arbitragem tributária, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Saldanha Sanches, Coimbra: Coimbra Editora, 2011; Jorge Lopes de Sousa, Alguns problemas sobre o regime da arbitragem tributária e em Breve nota sobre a implementação da arbitragem tributária, CAAD - Newsletter, Outubro de 2011; J. Casalta Nabais et al. (orgs.), Sustentabilidade fiscal em tempos de crise, Coimbra: Almedina, 2011 e Pedro Costa Gonçalves, Administração pública e arbitragem - em especial, o princípio da irrecorribilidade de sentenças arbitrais, Estudos de Homenagem a António Barbosa de Melo, Coimbra, Almedina, 2013.

(11) Teresa Violante, A arbitragem tributária e o recurso de constitucionalidade, Revista do Ministério Público, n.º 145, pág. 101-152.

(12) Neste sentido segue a doutrina, conforme se pode ver na obra de Mariana França Gouveia, “Curso de Resolução Alternativa de Litígios”, Almedina, 2011, p. 154 e José Lebre de Freitas em “Introdução ao Processo Civil”, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2009,p. 109. A nível da jurisprudência, e de forma mais recente, o já citado Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 22-1-2015, proferido no processo n.º6208/12.

(13) LEBRE DE FREITAS-JOÃO REDINHA-RUI PINTO in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 1999, p. 6.

(14) LEBRE DE FREITAS-JOÃO REDINHA-RUI PINTO in ob. e vol. citt., pp. 7-8.

(15) LEBRE DE FREITAS-JOÃO REDINHA-RUI PINTO in ob. e vol. citt., p. 8.

(16) LEBRE DE FREITAS-JOÃO REDINHA-RUI PINTO in ob. e vol. citt., p. 9.

(17) LEBRE DE FREITAS-JOÃO REDINHA-RUI PINTO ibidem.

(18) LEBRE DE FREITAS-JOÃO REDINHA-RUI PINTO ibidem.

(19) LEBRE DE FREITAS-JOÃO REDINHA-RUI PINTO ibidem.

(20) LEBRE DE FREITAS-JOÃO REDINHA-RUI PINTO in ob. e vol. citt., pág. 10.

(21) «”In casu", do exame do processo arbitral deve retirar-se que a entidade ora impugnante apresentou resposta que se encontra junta a fls.63 a 110 dos autos (contendo 243 artigos), na qual, além do mais, suscita a questão da interpretação veiculada pelo impugnado, incidente sobre a liquidação de I.M.I. objecto do processo, violar os princípios da igualdade tributária, da justiça fiscal, da capacidade contributiva, da autonomia local e da participação na decisão, a par de padecer de inconstitucionalidade orgânica (cfr.artºs.207 a 243 da resposta).Do exame da decisão arbitral objecto da presente impugnação e cuja cópia se encontra a fls.39 a 47 dos presentes autos, deve concluir-se que na fundamentação de direito de tal peça processual não se faz qualquer referência, e muito menos se examina e decide, a mencionada questão suscitada pelo impugnante na resposta e causa da alegada omissão de pronúncia, sendo que o conhecimento da mesma não se encontra prejudicado pela resolução das demais questões examinadas pelo Tribunal Arbitral (…)”.