Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:10742/13
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:05/14/2015
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:CASA DE FUNÇÃO; ARRENDAMENTO; CESSÃO A TÍTULO PRECÁRIO; DIREITO DE PREFERÊNCIA
Sumário:i) A matéria de facto a considerar na elaboração da sentença deve ser aquela essencial à decisão da causa, isto é, aqueles factos que de acordo com as normas aplicáveis ao caso exerçam uma função constitutiva do direito invocado pelo autor ou, pelo contrário, tenham natureza impeditiva, modificativa ou extintiva do mesmo, de acordo com alguma das soluções plausíveis da questão de direito.

ii) A atribuição duma casa integrada no domínio privado do Estado a um funcionário, ao abrigo do regime constante das Instruções publicadas pela Direcção-Geral da Fazenda Pública, in Diário do Governo 305, II-Série, de 31.12.1956, mediante o pagamento de renda mensal, não constitui um contrato de arrendamento, mas uma cessão a título precário, livremente revogável e sujeita ao direito administrativo.

iii) A atribuição da casa de função, atenta a sua finalidade e natureza – concedida em função do interesse do Estado e a título precário –, não gera para o funcionário ocupante da mesma qualquer direito de preferência na sua alienação nos termos do disposto no art. 1091.º do C. Civil, nem a sua restituição lhe confere o direito a qualquer indemnização.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

Vitorino ……………. (Recorrente) inconformado com o Acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada que julgou improcedente a acção administrativa especial, que intentou contra a Estradas de Portugal, S.A. (Recorrida), na qual peticionou a anulação da decisão da Demandada, notificada em 27.05.2010, que determinou a restituição da casa de função que ocupa, pedindo ainda que lhe seja reconhecido o direito a permanecer na dita casa enquanto estiver ao serviço daquela, ou até ao momento em que esta lhe disponibilize outra habitação onde possa ir viver com a sua família, bem como a reconhecer-lhe o direito de preferência na aquisição daquele imóvel, nos termos da proposta concreta que apresentou.

As alegações de recurso que apresentou culminam com as seguintes conclusões:

1. O Douto Acórdão recorrida não considerou toda a matéria provada e relevante para a decisão da causa.

2. Não considerou facto relevante inserto no termo subscrito a 3 de Março de 1988, onde consta expressamente que, quanto ao mais no mesmo não estipulado observar-se-iam as disposições gerais em vigor sobre inquilinato, não o dando por provando quando o mesmo conta do documento a fls. 11 e 12 do processo administrativo.

3. Não considerou facto relevante inserto no termo subscrito a 32 [2] de Dezembro de 1994, onde consta expressamente que, quanto ao mais no mesmo não estipulado observar-se-iam as disposições gerais em vigor sobre inquilinato, não o dando por provado quando o mesmo conta do documento a fls. 9 e 10 do processo administrativo.

4. Não considerou o deliberado pelo Conselho de Administração, como regra geral, a alienação direta dos imóveis aos respetivos ocupantes (funcionários no ativo) pelo valor obtido por avaliação externa, não dando por provado quando o mesmo consta do documento a fls. 25 do processo administrativo.

5. O facto provado constante na alínea A) do Douto Acórdão recorrido deve ser completado, passando a ter a seguinte redação: "Em 3 de Março de 1988 foi subscrito um termo de entrega do qual consta, nomeadamente que o Autor estava autorizado a habitar, obrigatoriamente e no interesse exclusivo do Estado, o lado esquerdo da casa de cantoneiros denominada «..........», descrita no Mapa B do património do Estado, sob o n°40, relativa ao ano de 1985, situado no lugar da …….., freguesia da …………, concelho de Setúbal, desde Março de 1988, mediante o pagamento da renda ali indicada, e no mais, no mesmo não estipulado, observar-se-iam as disposições gerais em vigor sobre inquilinato - documento de fls. 11 e 12 do processo administrativo.".

6. O facto provado constante na alínea D) do Douto Acórdão recorrido deve ser completado, passando a ter a seguinte redação: "Em 2 de Dezembro de 1994 foi subscrito um termo de entrega do qual consta, nomeadamente, que o Autor era autorizado a habitar, obrigatoriamente e no interesse exclusivo do estado, o lado direito da casa referida em B], desde 1 de Dezembro de 1994, mediante o pagamento da renda ali indicada, e no mais, no mesmo não estipulado, observar-se-iam as disposições gerais em vigor sobre inquilinato - documento a fls. 9 e 10 do processo administrativo.".

7. Deve ser aditado um novo facto provado, designado pela alínea QA), com a seguinte redação: "Foi deliberado pelo Conselho de Administração, como regra geral, a alienação direta dos imóveis aos respetivos ocupantes (funcionários no ativo) pelo valor obtido por avaliação externa - documento a fls. 25 do processo administrativo.".

8. O Recorrido detém direito de preferência reconhecido pelas disposições gerais em vigor sobre o inquilinato, cf. o penúltimo parágrafo dos documentos a fls. 11 e 12 e 9 e 10 do procedimento administrativo, à data pela aplicação subsidiária da Lei n.° 63/77, de 25 de agosto, atual art°1091° do Código Civil e pelo representante da Recorrida que, com legitimidade e poderes para o ato, subscreveu os termos de entrega a fls, 11 e 12 e 9 e 10 do processo administrativo.

9. A Recorrida encetou contactos com vários trabalhadores ocupantes de casas de função (cf. facto assente alínea P)).

10. Apresentou-lhes propostas de vendas (cf. facto assente alínea R)),

11. Nalguns casos concretizou vendas por valores inferiores aos inicialmente pedidos [cf. facto assente alínea S))

12. A Recorrida alienou, diretamente, a outros funcionários, casas de função ocupadas pelos mesmos, pelo valor da avaliação externa.

13. A Recorrida não concedeu ao Recorrente idêntico direito, a venda da casa de função ocupada pelo mesmo, pelo valor inicialmente apresentado, o valor da avaliação externa.

14. A recorrida violou o deliberado pelo seu Conselho de Administração, que como regra geral, fixou a alienação direta dos imóveis aos respetivos ocupantes (funcionários no ativo) pelo valor obtido por avaliação externa - documento a fls. 25 do processo administrativo.

15. A Recorrida violou o direito do Recorrente, ocupante de uma casa de função, a igual tratamento.

16. O Recorrente habita a casa dos autos desde 3 de Março de 1988 (facto provado cf. alínea B).

17. A Recorrida na sua relação com o Recorrente agiu criando-lhe a convicção de que lhe iria alienar, diretamente, a casa de função onde o mesmo reside, como o fez com muitos outros funcionários ocupantes de casas de função, gorando à final a expectativa legitimamente criada.

18. A atuação da Recorrida viciou a confiança e expectativa criada pela alienação direta das casas de função aos demais funcionários tia Recorrente, pelo preço da avaliação externa.

19. O comportamento da Recorrida violou ainda o princípio da igualdade.

20. O Douto Acórdão recorrido procedeu a uma errada aplicação do direito, violadora de princípios basilares do direito administrativo, como o princípio da boa fé, na vertente do princípio da confiança, e o princípio da igualdade, definidos no art.°6.°-A e 5.° do Código do Procedimento Administrativo.

Termos em que se requer, dignem conhecer o objeto do presente recurso, concedendo-lhe provimento e, em consequência, revogando o Douto Acórdão recorrido, substituindo-o por outro que admita como provados os facto cuja ampliação e admissão se requer, aplicando-lhes o direito justo, ou seja, anulando a decisão que determinou que o aqui Recorrente tenha que abandonar a casa de função onde habita e reconhecendo-lhe o direito de preferência na aquisição da mesma nos termos da proposta concreta que lhe foi dirigida pela Recorrida, ou seja, pela valor da avaliação externa».

A Recorrida, Estradas de Portugal, SA, contra-alegou, tendo apresentado o seguinte quadro conclusivo:


1- Não merece qualquer espécie de censura o douto Acórdão proferido de fls. 179 a 195 dos autos, resultante da correia aferição da prova testemunhal direta, depoimentos isentos prestados, imediatismo probatório e a análise conscienciosa do rol documental;

2- A decisão de alienação, eventual, futura da casa pelo valor de € 185.000,00 refere-se apenas ao lançamento do procedimento administrativo é valor de referência;

3- Não foi conferido ou previsto qualquer direito de aquisição por parte do Sr. Vitorino ………… o A., por tal valor, nunca foi considerada a alienação direta da casa ou de parte da casa, a parte dos autos;

4- A aquisição das antigas casas de funções não é realizada por procedimento de alienação direta, o modo de alienação é o leilão publicitado no sítio da EP -Estadas de Portugal, SA, colocado na Internet;

5- O A., ora Recorrente foi trabalhador supranumerário, não trabalhando em Setúbal, trabalhando à secretária em Almada, não se deslocando em serviço nem pode exercer funções de fiscal ou sequer conduzir viaturas de serviço e esteve em situação de adesão ao plano de reforma da empresa;

6- O Recorrente chegou a acordar a saída da empresa através do Plano Social de Racionalização de Quadros e recebeu elevada indemnização;

7- O Recorrente já havia anteriormente pedido a sua aposentação, ou seja, a completa desvinculação da empresa, ainda durante a pendência da ação;

8- O Recorrente aposentou-se durante a pendência da ação, o que o Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada reconheceu como aspeto fundamental fáctico para a aplicação do direito;

9- A casa, de antigos cantoneiros, dos autos é composta por duas partes, tem 2 áreas e é uma única propriedade, ocupada pela Casa de Pessoal da EP de um lado e pelo A. do outro;

10- O Recorrente ocupa e retém a casa doa autos (toda e não só a parte que lhe foi antes destinada enquanto função) pretendendo forçar a Administração;

11- Ao cessar as funções para as quais a casa lhe havia sido conexamente atribuída, o Recorrente devia entregar a casa de imediato, melhor, no tempo legalmente previsto, e apesar de instado a fazê-lo não o fez, tal como o não executou após o acordo celebrado com a empresa no âmbito da racionalização de quadros da empresa, nem sequer depois de se ter efectivamente aposentado;

12- O Recorrente não é arrendatário habitacional, não era, nunca foi e não o é certamente depois de deixar de exercer as adequadas funções diretamente conexa com a habitação da casa de função, nem o é depois de ter acordado a saída da empresa mediante indemnização, e muito menos depois de se ter aposentado;

13- O Recorrente não tem assim, nunca teve e certamente não tinha já à data da sentença, qualquer direito de preferência na compra da totalidade da casa da .........., património da EP - Estradas de Portugal, SA;

14- O recorrente tem direito de licitar a aquisição do imóvel, quando este estiver disponível no site da internet da EP - Estradas de Portugal, SA ou seja – www.estradasdeportugal.pt ou www.estradas.pt;

15- O princípio da igualdade é respeitado pela EP - Estradas de Portugal, SA e foi-o no caso concreto porque a administração tratou de modo igual o que era igual e de modo diferente o que era diferente;

16- Até fevereiro de 2010 a administração chegou a promover, até por razões de ordem social e de carência económica, a venda direta de casas aos funcionários quando as casas de função eram apenas para habitação e não duplas ou de várias finalidades;

17- A partir de fevereiro de 2010, o sistema passou a ser o de rentabilização, sempre que possível, do património imobiliário da administração rodoviária, existindo avaliações externas dos valores de referência a servirem de base para as licitações;

18- Das respostas dadas pelo douto Tribunal às 16 questões e a sua fundamentação, melhor motivação, é esclarecedora no sentido de que o valor mencionado de €185.000,00 é de mera referência, de que quando o imóvel ficar deserto será publicitada a intenção de venda do mesmo no site da empresa através de leilão e se ficar deserto o leilão então fará parte da carteira cie imóveis para venda pelo valor base;

19- O termo de entrega da casa da .........., um dos lados só, ao Recorrente é taxativo quando afirma que tal é feito no interesse exclusivo do Estado, a título precário, por causa das funções que o funcionário á data exercia;

20- Deixando o funcionário de exercer tais específicas funções, a casa tem de ser devolvida á Administração e não o foi até ao presente;

21-Deixando o funcionário de lazer parte dos quadros da empresa, por acordo de indemnização pela saída em racionalização de quadros, ainda mais, diga-se, tem fundamento a entrega da casa dos autos;

22- Atingindo a por si desejada aposentação, para além do mencionado acordo de saída, ou seja, saindo até da função pública por motivo de aposentação, ainda mais força legal tem o dever de entregar a casa dos autos à sua legítima proprietária;

23- A nossa jurisprudência administrativa e a doutrina, que com o mais elevado respeito se dá por referida no sentido da reprodução do consignado no douto Acórdão recorrido, a fls 192 e 193, atribuem à atribuição (passe a redundância) de casa de função a natureza de uma cessão a título precário, livremente revogável e sujeita ao direito administrativo;

24- Por sua vez, o Decreto-lei n° 280/2007 de 7 de Agosto considera a devolução da casa de função sem qualquer direito a indemnização, não atribuindo qualquer tipo de preferência na aquisição do imóvel cedido em termos funcionais;

25- O valor que o Recorrente pretende ver tido por, convenientemente, fixado não o pode ser, a face da lei, porquanto esta mesma, na defesa do interesse público, prevê os valores das propostas como meras referências a operações sobre o imobiliário e o meio próprio de alienação dos imóveis é em hasta pública ou ajuste direto, quando a tal houver lugar.

Nestes termos, nos mais de Direito e com o douto suprimento de V. Exas, Venerandos Desembargadores, se requer que seja o presente recurso julgado improcedente, não merecendo acolhimento a pretensão, forçada de facto, pelo Recorrente, confirmando-se o douto Acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, isto é, reconfirmando-se a absolvição da EP - Estradas de Portugal, SA, dos pedidos formulados.



Neste Tribunal Central Administrativo, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.


Colhidos os vistos legais, importa apreciar e decidir.


I. 1. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar se:

- A decisão recorrida enferma de erro de julgamento de facto ao não ter dado como provados factos essenciais; e se

- A decisão recorrida enferma de erro de julgamento de direito ao ter concluído que ao Autor e ora Recorrente não lhe era conferido qualquer direito de preferência na aquisição da casa de função por si ocupada.


II. Fundamentação

II.1. De facto

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos, em decisão que aqui se reproduz ipsis verbis:


A)

O Autor é trabalhador da Entidade Demandada (cf. alínea A) da matéria de facto).

B)

Em 3 de Março de 1988 foi subscrito um termo de entrega do qual consta, nomeadamente, que o Autor estava autorizado a habitar, obrigatoriamente e no interesse exclusivo do Estado, o lado esquerdo da casa de cantoneiros denominada «..........», descrita no Mapa B do património do Estado, sob o nº40, relativo ao ano de 1985, situado no lugar da .........., freguesia da ……………, concelho de Setúbal, desde l de Março de 1988 e mediante o pagamento da renda ali indicada - documento de fls. 11 e 12 do processo administrativo (cf. alínea B) da matéria assente).

C)

O Autor habitou o lado esquerdo da casa referida em B) desde 3 de Março de 1988, até 2 de Dezembro de 1994 (Cf. alínea C) da matéria assente).

D)

Em 2 de Dezembro de 1994 foi subscrito um termo de entrega do qual consta, nomeadamente, que o Autor era autorizado a habitar, obrigatoriamente e no interesse exclusivo do Estado, o lado direito da casa referida em B), desde l de Dezembro de 1994 e mediante o pagamento da renda ali indicada (Cf. alínea D) da matéria assente).

E)

O Autor habita o lado direito da casa referida em B) desde 2 de Dezembro de 1994 (Cf. alínea E) da matéria assente)

F)

Nos termos de entrega referidos em B) e D) consta que a entrega "...é feita a título transitório, mediante o pagamento de uma renda mensal (...) actualizável em função da alteração do vencimento ..." (documentos de fls. 9 a 12 do processo administrativo - cf. alínea F) da matéria assente).

G)

Através de ofício datado de 20 de Maio de 2010 a Entidade Demandada comunicou ao Autor que deveria proceder à desocupação da casa no prazo de seis meses, invocando a necessidade de rentabilizar o património considerado dispensável à sua actividade, como diz ser o caso da casa do Autor e que, por deliberação de 15/04/2010, o Conselho de Administração havia decidido alienar o imóvel pelo preço de 185.000,00€ (documento de fls. 14 do processo administrativo - cf. alínea G) da matéria assente).

H)

Por carta datada de 29 de Julho de 201O, o Autor manifestou interesse em adquirir o imóvel constituído pelos lados esquerdo e direito referidos em B) e D) pelo valor de €185.000,00 (documento de fls. 26 do processo administrativo - cf. alínea H) da matéria assente).

I)

O valor referido em H) correspondia ao valor do imóvel obtido por avaliação externa, facto do qual havia sido dado conhecimento ao Autor (documentos de fls. 14 e 23 a 25 do processo administrativo - cf. alínea I) da matéria assente).

J)

O mesmo imóvel foi avaliado em € 199.346,00 pela Unidade de Desenvolvimento Imobiliário (documento de fls. 23 a 25 do processo administrativo - cf. alínea J) da matéria assente).

L)

Por carta datada de 16 de Agosto de 2010 a Entidade Demandada comunicou ao Autor a não aceitação da proposta de aquisição referida em H) e reiterou a ordem de desocupação da casa (documento de fls. 22 do processo administrativo - cf. alínea L) da matéria assente).

M)

Por carta datada de 2 de Setembro de 2010 a Entidade Demandada comunicou ao Autor, além do mais, que poderia participar no leilão através do qual a alienação do imóvel referido em H) seria efectuada -documento de fls. 16 e 17 do processo administrativo.

N)

Por ofício datado de 28 de Maio de 2010 (tendo por assunto Adesão ao Plano Social- Extensão aprovada pela OS n.º12/2009/CA), e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, a Entidade Demandada informou o Autor da decisão negativa relativa ao pedido de adesão que este havia formulado (documento de fls. 13 do processo administrativo - cf. alínea N) da matéria assente).

O)

O Autor habita o lado direito da casa referida em B) dos factos assentes com a sua família (cf. resposta ao quesito lº).

P)

Em 17 de Novembro de 2011, encontrava-se registado um imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o nº2958/19920520 em nome do Autor, (cf. cópia não certificada a fls. 92/93) e um imóvel inscrito na matriz sob o artigo 4037, que tem por objecto um prédio urbano em Olhos de Água, Quinta do Anjo, concelho de Palmela (cf. documento a fls. 120) - resposta ao quesito 2º.

Q)

Relativamente a outras casas de função, a Entidade Demandada encetou contactos com os trabalhadores seus ocupantes previamente às respectivos alienações (cf. resposta ao quesito 3º).

R)

A Entidade Demandada apresentou propostas de venda das respectivas casas de função a alguns trabalhadores seus ocupantes (cf. resposta ao quesito 4º).

S)

A Entidade Demandada, nalguns casos, concretizou a venda por valores inferiores aos inicialmente pedidos (cf. resposta ao quesito 5º).

T)

A Entidade Demandada publicita actualmente, no seu sítio da Internet, os seus imóveis passíveis de aquisição através de leilão, informando que está disponível a sua carteira de imóveis para abertura de procedimento por negociação, pelo preço de referência mencionado. (Cf. resposta aos quesitos 6º e 7°).

U)

No sítio referido em T) não consta a casa habitada pelo Autor (cf. resposta ao quesito 8.º).

V)

Quando começou a utilizar a casa de função o Autor exercia funções relativas à conservação e fiscalização da rede de estradas do Distrito de Setúbal (cf. resposta ao quesito 9º).

W)

O Autor desempenha tarefas associadas ao licenciamento, na situação de supranumerário, na Delegação Regional de Setúbal, desde 7 de Julho de 2010 (cf. resposta ao quesito 10º).

X)

O Autor trabalha actualmente à secretária, executando trabalho de escritório (cf. resposta ao quesito 11.°).

Y)

O Autor já não exerce qualquer função ligada à conservação ou à fiscalização das estradas (cf. resposta ao quesito 12º).

Z)

O Autor esteve várias vezes de baixa desde 2009 (cf. resposta ao quesito 13º).

AA)

Foi feito ao Autor um exame de medicina do trabalho do qual resultou a verificação de limitações no exercício de funções profissionais (cf. resposta ao quesito 14º).

AB)

Tais limitações determinaram a impossibilidade de conduzir veículos ligeiros e de trabalhar com máquinas, assim como a necessidade de evitar estar confrontado com situações stressantes ou executar tarefas que exijam esforço de memória (cf. resposta ao quesito 15°).

AC)

O Autor não pode exercer funções de conservação e fiscalização da rede de estradas (cf. resposta ao quesito 16º).

AD)

O Autor aposentou-se em 1 de Julho de 2013 (cf. publicação no Diário da República, II Série, nº110 de 7 de Junho de 2013 (cf. documento de fls. 158/160 dos autos)».

Não se provaram quaisquer outros factos passíveis de afectar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como não provados».



II.2. De direito

O presente recurso jurisdicional vem interposto do acórdão do TAF de Almada que julgou improcedente o pedido do Autor, ora Recorrente, de anulação da decisão que determinou a restituição da casa de função onde habita, bem como a reconhecer-lhe o direito a nela permanecer enquanto estiver ao serviço da Entidade Demandada, ou que lhe seja reconhecido o direito a permanecer na dita casa de função enquanto aquela não lhe disponibilizar outra habitação para a qual possa ir viver com a sua família, sendo que, em qualquer caso, deverá ser-lhe igualmente reconhecido o direito de preferência na aquisição da mesma, nos termos da proposta concreta que dirigiu à Entidade Demandada e ora Recorrida.

Começa o Recorrente por impugnar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo entendendo que este não considerou toda a matéria provada e relevante para a decisão da causa (cfr. conclusões 2., 3., 4., 5., 6. e 7. do recurso).

Vejamos.

Nos termos do artigo 640.º do CPC (como antes sucedia no art. 685.º-B do CPC), incumbe ao recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto o ónus de especificar, sob pena de rejeição, para além dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida. Mais lhe sendo exigido, sob pena de rejeição do recurso na respectiva parte, que no caso de os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas terem sido gravados, a indicação exacta das passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos considerados relevantes.

É o que dispõe o art. 640.º do CPC, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”:

1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa -se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

(…)

Resulta pois do citado artigo 640.º do CPC a consagração de um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, o qual impende sobre o aqui Recorrente e que o mesmo satisfez. Com efeito, o Recorrente, por um lado, identificou a matéria de facto que considerou incorrectamente julgada, pretendendo o seu aditamento à factualidade provada, e, por outro, indicou qual o meio de prova (documental) que impunha decisão diversa da recorrida sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

Neste capítulo concluiu o Recorrente que: i) não foi considerou o facto relevante inserto no termo subscrito a 3 de Março de 1988, donde consta expressamente que quanto ao mais no mesmo não estipulado observar-se-iam as disposições gerais em vigor sobre inquilinato, não o dando por provando quando o mesmo consta do documento de fls. 11 e 12 do processo administrativo (conclusão 2.); ii) que não foi considerado o facto relevante inserto no termo subscrito a 2 de Dezembro de 1994, donde consta expressamente que, quanto ao mais no mesmo não estipulado observar-se-iam as disposições gerais em vigor sobre inquilinato, não o dando por provado quando o mesmo consta do documento de fls. 9 e 10 do processo administrativo (cfr. conclusão 3.); iii) que não foi considerado que o Conselho de Administração da Recorrida, como regra geral, deliberou que se deveria efectuar a alienação directa dos imóveis aos respectivos ocupantes (funcionários no activo) pelo valor obtido por avaliação externa, não dando este facto por provado quando o mesmo consta do documento a fls. 25 do processo administrativo (cfr. conclusão 4.).

Apreciando, verifica-se que esta factualidade tem não só conexão com a matéria alegada pelo A. na p.i., como se reporta a matéria essencial para a discussão da causa. A matéria de facto a considerar na elaboração da sentença deve ser aquela essencial à decisão da causa, isto é, aqueles factos que de acordo com as normas aplicáveis ao caso exerçam uma função constitutiva do direito invocado pelo autor ou, pelo contrário, tenham natureza impeditiva, modificativa ou extintiva do mesmo, de acordo com alguma das soluções plausíveis da questão de direito (v., neste sentido, Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., 3.ª ed. revista, 2000, p. 146).

E com efeito, independentemente da sua inclusão resultar decisão diversa de mérito, certo é que se trata de factualidade necessariamente a levar em consideração na discussão da causa – aliás, na decisão recorrida são tratadas as questões da aplicabilidade supletiva do regime do arrendamento urbano e do direito de preferência alegado, devendo, por conseguinte, constar do probatório como factos provados. Sendo que na decisão recorrida, embora se tenha feito alusão aos documentos aqui referidos pelo Recorrente (cfr. B., D., F. e Q. dos factos provados), não foram os mesmos ou o seu conteúdo dados por integralmente reproduzidos.

Pelo que, procedendo o recurso nesta parte, acorda-se em alterar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, passando desta a constar a seguinte factualidade provada:

AE) Do termo de entrega referido em B) supra consta, igualmente que: “(…) Quanto ao mais aqui não estipulado, serão observadas as disposições gerais em vigor sobre inquilinato” (cfr. doc. de fls. 11-12 do processo administrativo apenso).

AF) Do termo de entrega referido em D) supra consta, igualmente que: “(…) Quanto ao mais aqui não expressamente estipulado, serão observadas as disposições gerais em vigor sobre inquilinato” (cfr. doc. de fls. 9-10 do processo administrativo apenso).

AG) Do documento de fls. 24-25 do processo administrativo apenso, elaborado pelos serviços da EP-Estradas de Portugal SA, Unidade de Desenvolvimento Imobiliário – Divisão de Gestão Operacional, e aqui dado por integralmente reproduzido, consta que: “Como regra geral, foi deliberado pelo Conselho de Administração a alienação directa dos imóveis aos respectivos ocupantes (funcionários no activo) pelo valor obtido por avaliação externa (…)”.



Estabilizada a matéria de facto, vejamos agora do acerto da decisão recorrida.

Para julgar improcedente a acção administrativa especial, exarou o acórdão recorrido a seguinte fundamentação:

“(…) face à aposentação do Autor ocorrida em l de Julho de 2013, a única questão que importa dirimir resume-se em determinar se a Entidade Demandada, Estradas de Portugal, SA, deve ser condenada a reconhecer o direito de preferência na aquisição da casa de função, nos termos da proposta concreta que o Autor dirigiu à Entidade Demandada.

Por despacho de Sua Excelência o Subsecretário de Estado do Tesouro de 14 de Dezembro de 1956 foram aprovadas as Instruções sobre a atribuição de casas do Estado a funcionários e cálculo das respectivas rendas publicadas no Diário da República, II Série, nº305, de 31 de Dezembro de 1956, aplicável às casas atribuídas depois daquela data.

Consigna aquelas "Instruções" que as casas do Estado - ou por este arrendadas -são atribuíveis aos seus funcionários a três títulos, a indicar no respectivo termo de entrega:

a) No interesse do Estado;

b) No interesse comum do Estado e do funcionário;

c) No interesse exclusivo do funcionário (conforme decorre do n° 3 daquelas Instruções).

Por seu turno, o n°20 daquelas Instruções estabelece que: "Os beneficiários das casas do Estado atribuídas nos termos destas instruções obrigam-se a despejá-las no prazo de trinta dias, quando superiormente lhe for determinado, por motivo de conveniência de serviço, exoneração, aposentação ou falecimento do titular."

Posteriormente o Decreto-Lei nº280/2007 de 7 de Agosto corporizou a reforma do regime do património imobiliário público, estabelecendo o art.23° sob a epígrafe "Cedência de Utilização" o seguinte "Os imóveis do domínio público podem ser cedidos a título precário para utilização por outras entidades públicas" (n.s 1).

No art.53º dispõe que "Os imóveis do domínio privado do Estado podem ser cedidos, a título precário, para fins de interesse público, mediante autorização do membro do Governo responsável pela área das finanças."

Na subsecção IV no art.73º sob a epígrafe "Atribuição", consigna que:

"1 - Podem ser atribuídas casas de função a funcionários, agentes e demais servidores do Estado e dos institutos públicos quando a lei lhes confira o direito a habitação por conta do Estado ou do instituto público.

2-(...)

3 - A casa de função que seja propriedade do Estado considera -se cedida, a título precário, ao serviço ou ao instituto público que a atribui, havendo lugar à aplicação, com as necessárias adaptações, do disposto nos artigos 53º a 58°"

Por seu turno o art. 75.° daquele diploma sob a epígrafe "Restituição" consagra:

"1 - A casa de função é restituída ao serviço ou ao instituto público que a atribuiu, sem lugar a retenção ou a indemnização por benfeitorias, quando ocorra uma das seguintes situações:

a) A aposentação do funcionário, agente ou servidor;

b) A exoneração ou a demissão do funcionário, agente ou servidor;

c) O falecimento do funcionário, agente ou servidor;

d) A alteração da situação profissional determinante da cessação, temporária ou definitiva, da actividade do funcionário, agente ou servidor no serviço ou no instituto público em causa;

e) A transferência do funcionário, agente ou servidor para diferente localidade.

2 - Verificando -se qualquer das situações previstas no número anterior e mantendo -se a ocupação da casa de função, deve o serviço ou o instituto público que a atribuiu notificar o ocupante para a restituir no prazo de 90 dias.

3 - (...)".

O art.83.° do mesmo diploma determina que "quando a venda se realize por hasta pública os titulares dos direitos de preferência são notificados (...) do dia, da hora e do local da realização da hasta pública para exercerem o seu direito (...)".

Atento o quadro normativo acima enunciado, cumpre agora apreciar se assiste direito ao Autor do direito de preferência na aquisição da casa de função que lhe foi atribuída, nos termos da proposta concreta que dirigiu à Entidade Demandada.

Ora, conforme decorre do termo de entrega indicado nas alíneas B) e D) do probatório, a casa de função que o Autor habita, foi atribuída no interesse exclusivo do Estado, a título precário, mediante o pagamento de determinado valor mensal.

Com efeito, a casa foi-lhe atribuída atendendo às funções que tinha à altura, como técnico - adjunto de conservação de 1ª classe, exercendo funções relativas à conservação e fiscalização da rede de estradas do Distrito de Setúbal, razões essas que assim justificavam a atribuição de uma casa de função (cf. alínea V) do probatório), pelo menos até 6 de Julho de 2010 (cf. alínea W) do probatório).

Assim, atendendo a que o Autor deixou de exercer tais funções, foi determinado pela Entidade Demandada que ao Autor não lhe era conferido qualquer direito a permanecer na casa depois de cessar as funções que determinaram a atribuição da mesma casa, Porém, por razões de saúde, a partir de determinado momento, o Autor deixou de exercer tais funções (cf. alíneas W), X) e Y) do probatório), questão essa que não se encontra em análise face à aposentação do Autor, sendo que actualmente se encontra aposentado (cf. alínea AD) do probatório).

Vem, no entanto, o Autor convocar o art.83º do Decreto-Lei nº280/2007, de 7 de Agosto, para que lhe seja reconhecido o direito de preferência na aquisição da casa de função, sem contudo mencionar a que título é que o Autor possui o direito legal de preferência a que se arroga. Efectivamente, a lei não prevê que o autor tenha qualquer direito de preferência na aquisição da casa de função, nem o Autor logrou demonstrar que tal direito lhe assistia.

Efectivamente, os direitos/obrigações legais de preferência jogam, em geral, entre titulares de direitos reais, como por exemplo, os constantes nos arts. 1380.° (terrenos confinantes), 1535.° (direito de superfície), art. 1555.° (servidões legais), ou em caso de arrendamento conforme decorre do 1091.° todos do Código Civil.

Nos presentes autos, estamos perante uma cedência precária, a título oneroso, mediante o pagamento de uma renda mensal, no interesse, neste caso, da Entidade Patronal, de um imóvel pertencente a este, não configurando qualquer contrato de arrendamento, nem sujeita às normas que regulam as relações entre senhorio e arrendatário, muito embora ocorram semelhanças de estrutura com a locação, mormente a transferência da coisa e a constituição a favor do cessionário/arrendatário de poderes de uso e fruição.

A este respeito, sufragamos o entendimento vertido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 18 de Novembro de 1997, Proc. 038501 (sumário), que refere: "A atribuição duma casa integrada no domínio privado do Estado a um funcionário, de acordo com o despacho de 10/12/57, mediante o pagamento duma renda, não constitui um contrato de arrendamento, mas uma cessão a título precário, livremente revogável e sujeito ao direito administrativo."

Face à aposentação do Autor, deixa de existir justificação quando o interesse deixe de subsistir, e a situação que esteve na origem da cedência deixe de ocorrer. A atribuição de uma casa de função "como acto precário, tudo se passa na prática, como se esta, na prossecução dos interesses que se propõe alcançar, não tivessem de considerar nenhuns poderes estranhos, ou seja, como se esses actos não fossem constitutivos" (Cf. Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, 10ª Edição, tomo I, Coimbra, 1973, pág. 457; J.M. Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, I, Lisboa, 1982, pág. 501).

O Autor detinha perfeito conhecimento que teria que entregar a casa no estado em que a mesma se encontrava à data do seu termo, face à cessão temporária desse bem, que cessou como se referiu com a aposentação deste, sendo afastado ab initio o carácter de definitividade, insusceptível de criar direitos para aquele que beneficia da casa de função, especialmente não configura qualquer direito de preferência na sua aquisição, e permitindo ao cessionário que ordene a desocupação do bem cedido quando a razão justificativa da cedência deixe de subsistir.

Conforme resulta do Decreto-Lei nº280/2007, de 7 de Agosto a restituição da casa de função não confere qualquer direito a indemnização (cf decorre do art.58º, nº3, aplicável por força do art.73°, nº3 do mesmo diploma), nem decorre dos diplomas acima enunciados que o Autor possua qualquer direito de preferência na aquisição do imóvel.

A entidade demandada tem apenas o poder de ceder a titulo precário determinados bens de que é proprietária, considerando a necessidade dos bens para os fins a que estão institucionalmente afectados, bem como o poder de recuperar esses bens desde que observado o formalismo estabelecido legalmente para a sua alienação, conferindo ao Autor, como qualquer outro interessado, o direito a apresentar proposta e a adquirir a casa de função.

Cumpre ainda nesta sede referir que o valor que foi dado a conhecer ao Autor, configura um valor de "referência às operações imobiliárias (...) não podendo da utilização do procedimento da hasta pública ou do ajuste directo resultar um valor de venda inferior a esse valor" (cf. decorre do art. 108º daquele Diploma).

Neste aspecto, nem se diga, como ensaiou o Autor que o valor que lhe foi dado a conhecer, será o valor que foi atribuído por uma determinada entidade e será o valor pelo qual o bem vai ser vendido, como valor base de licitação, e não como o valor final de aquisição, que poderá ocorrer ou não, consoante os valores propostos.

Em face de tudo quanto precedentemente resulta expendido, a lei não atribui ao Autor qualquer direito de preferência na aquisição da casa de função, podendo apenas apresentar proposta de aquisição, tal como os demais interessados, em cumprimento com as disposições gerais de venda dos imóveis cuja propriedade não seja necessária à prossecução de fins de interesse público.

Em face do que precedentemente resulta expendido, e prejudicadas demais considerações, a presente acção apenas pode ser julgada improcedente, o que a final de determina.

O assim decidido, podemos já adiantar, é de manter.

A entrega da casa de função ao ora Recorrente foi efectuada a título precário como devidamente explicitado pelo Tribunal a quo. Apesar do pagamento de uma renda, trata-se de uma cessão a título precário, livremente revogável e sujeita ao direito administrativo, feita no interesse exclusivo do Estado e por causa das funções que o funcionário exerça (exercia). Na verdade, dos “termo de entrega” da casa em questão ao ora Recorrente consta expressamente que essa entrega – cessão – é feita no interesse exclusivo do Estado, a título transitório, devendo nela aquele funcionário habitar obrigatoriamente.

O regime jurídico que regula a ocupação desta casa de função está contido nas instruções publicadas pela Direcção-Geral da Fazenda Pública, in Diário do Governo, n.º 305, II Série, de 31 de Dezembro de 1956.

Com efeito, de acordo com o artigo 20.º das aludidas “instruções”: “Os beneficiários das casas do Estado atribuídas nos termos destas Instruções obrigam-se a despejá-las no prazo de trinta dias, quando superiormente lhes for determinado, por motivo de conveniência de serviço, exoneração, aposentação ou falecimento do seu titular". Ora, daqui terá que concluir-se que dado o ora Recorrente se encontrar na situação de aposentado, como provado em AD) supra, impender sobre o mesmo o dever de desocupar a casa assim que cesse o motivo que levou à sua atribuição; a saber, a circunstância de ser funcionário do Estado e se reconhecer a necessidade de, por motivos de interesse público, lhes ser atribuída uma casa de função, interesse que já não se verifica quando o funcionário se aposenta (cfr. neste sentido, em caso similar ao dos autos, o ac. deste TCAS de 6.11.2014, proc. n.º 6885/10). Está-se, assim, perante regime que afasta o consagrado no Regime do Arrendamento Urbano, face ao teor do artigo 20.º das supra referidas instruções.

Continuando, o art. 74.º do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de Agosto, que procedeu à reforma do património imobiliário público, a propósito da utilização da casa de função estabelece o seguinte:


Utilização

1 - Na casa de função, além do funcionário, agente ou servidor utilizador, apenas podem residir o cônjuge ou pessoa que com ele viva em união de facto ou em situação de economia comum os seus parentes e afins em linha recta ou até ao 3.º grau da linha colateral e, bem assim, as pessoas relativamente às quais, por força de lei, de decisão judicial ou de negócio jurídico que não respeite directamente à habitação, haja obrigação de convivência ou de alimentos.

2 - É proibida a afectação da casa de função a qualquer outro fim, gratuito ou oneroso, diferente da mera habitação das pessoas a que se refere o número anterior.

3 - O funcionário, agente ou servidor utilizador deve manter e restituir a casa de função no estado em que lhe foi atribuída, sem prejuízo das deteriorações inerentes à sua prudente utilização, sob pena de incorrer em responsabilidade nos termos gerais de direito.

4 - As despesas de reparação extraordinária da casa de função são da responsabilidade do serviço ou do instituto público que a tenha atribuído, salvo se resultantes de uma má utilização do imóvel.

E o art. 75.º do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de Agosto, que versa sobre a restituição da casa de função estabelece o seguinte:


Restituição

1 - A casa de função é restituída ao serviço ou ao instituto público que a atribuiu, sem lugar a retenção ou a indemnização por benfeitorias, quando ocorra uma das seguintes situações:

a) A aposentação do funcionário, agente ou servidor;

b) A exoneração ou a demissão do funcionário, agente ou servidor;

c) O falecimento do funcionário, agente ou servidor;

d) A alteração da situação profissional determinante da cessação, temporária ou definitiva, da actividade do funcionário, agente ou servidor no serviço ou no instituto público em causa;

e) A transferência do funcionário, agente ou servidor para diferente localidade.

2 - Verificando-se qualquer das situações previstas no número anterior e mantendo-se a ocupação da casa de função, deve o serviço ou o instituto público que a atribuiu notificar o ocupante para a restituir no prazo de 90 dias.

3 - Caso ocorra o falecimento do funcionário, agente ou servidor e as pessoas mencionadas no n.º 1 do artigo anterior residam na casa de função e não possuam outra habitação, o prazo para a restituição é de um ano.

4 - Decorridos os prazos previstos nos números anteriores sem que a casa de função tenha sido restituída, deve o ministro responsável pelo serviço ou pelo instituto público que atribuiu a casa de função determinar o despejo imediato, sem dependência de acção judicial, observando-se com as devidas adaptações no disposto no artigo seguinte.

5 - Nas situações previstas nos n.os 2 e 3, fica o ocupante sujeito aos deveres estabelecidos na presente subsecção, incluindo o do pagamento da compensação.

Sendo que nas suas disposições finais, o aludido diploma legal apenas prevê a existência de indemnização nos “contratos de arrendamento habitacionais celebrados antes da vigência do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, e nos contratos de arrendamento não habitacionais celebrados antes da vigência do Decreto-Lei n.º 257/95, de 30 de Setembro,” (art. 125.º), dele se subtraindo as casa de função (art. 127.º).

Por fim, a propósito do direito de preferência, o que o art. 83.º deste Decreto-Lei n.º 280/2007, prevê é o seguinte:


Preferência

1 - Quando a venda se realize por hasta pública, os titulares dos direitos de preferência são notificados pela Direcção-Geral do Tesouro e Finanças ou pelas direcções de finanças ou serviços de finanças competentes do dia, da hora e do local da realização da hasta pública para exercerem o seu direito, querendo, no acto da praça, terminada a licitação, nos termos da lei.

2 - Os municípios gozam do direito de preferência na alienação, por hasta pública, dos imóveis sitos no respetivo concelho, sendo esse direito exercido pelo preço e demais condições resultantes da venda.

3 - Sendo a venda realizada por negociação, com publicação prévia de anúncio, ou por ajuste directo, a Direcção-Geral do Tesouro e Finanças notifica os titulares de direitos de preferência do projecto de venda e das cláusulas do respectivo contrato, nos termos da lei.

Como se vê, do regime legal que acabámos de transcrever resulta que a entrega da casa de função ao ora Recorrente foi, como se disse já, efectuada a título precário, feita no interesse exclusivo do Estado e por causa das funções que o funcionário exercia, estando a sua cessação regulada no transcrito art. 75.º do Decreto-Lei n.º 280/2007, de 7 de Agosto. Diploma que não prevê, para a restituição das casas de função, qualquer tipo de indemnização, nem qualquer atribuição de direito de preferência ao funcionário, agente ou servidor ocupante da mesma (pelo contrário, estabelece cominações no caso da falta da restituição atempada da casa). Enfim, do título – termo de ocupação (de 1994, como de 1988) – detido pelo ora Recorrente, não só não vem estipulado qualquer direito de preferência, como do mesmo aquele não é susceptível de ser gerado, tendo presente o quadro legal traçado.

E face ao regime imperativo vigente, tendo presente o título jurídico em causa, o qual estabelece para as casas de funções apenas a mera ocupação/atribuição precária, de nenhum passo se poderá prevalecer o Recorrente da remissão supletiva para o regime do arrendamento urbano, designadamente no que respeitar a um eventual direito de preferência na alienação do imóvel ocupado. Na verdade, como alegado pela Recorrida, é incontornável que o Recorrente não tem um contrato de arrendamento para habitação, tinha sim – e apenas, diremos nós – o direito a habitar na casa de função enquanto desenvolvesse os deveres funcionais inerentes, o que desde há bastante tempo deixou de acontecer”.

Acresce que o art. 1091.º do C. Civil, cuja aplicação o Recorrente reivindica para fundar o direito de preferência de que se arroga, refere-se ao direito de preferência do “arrendatário”, pressupondo, portanto, a existência de um contrato de arrendamento. Situação que, como demonstrado, não existe na situação em presença. Donde, também por esta via se mostra possível de sustentar um qualquer direito de preferência na alienação da dita casa de função.

Assim, atenta a natureza e finalidade da atribuição da casa de função, a qual, como amplamente esclarecido, não constitui qualquer arrendamento urbano, não existe qualquer direito de preferência na sua alienação. Preferência legal essa que o regime imperativo de referência não prevê (pelo menos para os ocupantes das casas de função).

Alega ainda o Recorrente que o acto administrativo que determina a restituição da casa de função é violador do princípio da igualdade. Mas também por este prisma não lhe assiste razão.

Com efeito, apesar de a Recorrida ter anteriormente concretizado directamente vendas de casas de função a seus trabalhadores, certo é que dessa actuação não resulta violado o princípio da igualdade. Desde logo a deliberação do Conselho de Administração invocada pelo Recorrente adoptou como regra geral a alienação directa dos imóveis aos respectivos ocupantes, funcionários no activo; circunstância que não se verifica no caso dos autos, uma vez que o Recorrente se encontra aposentado desde 1 de Julho de 2013. E certo é que, como referido pela Recorrida nas suas contra-alegações, sempre o ora Recorrente poderá licitar o imóvel em condições de igualdade com todos os demais interessados.

De igual passo não se prefigura a alegada violação do princípio da confiança, dado que, para além do que se acabou de dizer – situação de aposentação do Recorrente – a actuação administrativa prévia não pode considerar-se auto-vinculante, até pela míngua de factualidade que versa sobre esta questão. Exigindo o princípio da protecção da confiança que as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas, não se verifica esse pressuposto, no caso dos autos, não vindo demonstrada a existência de uma expectativa juridicamente fundada. Sendo que, importa reiterar, o regime legal elege efectivamente a hasta pública como modalidade de alienação.

Em suma, no que a esta parte do recurso se refere, não vem indiciado um comportamento – que se pressupõe reiterado e perante iguais circunstâncias – por parte da Recorrida, susceptível de gerar no Recorrente uma legítima convicção de que a casa de função ocupada lhe seria directa vendida, bem como não resulta do título detido nem das normas legais aplicáveis qualquer garantia para si no sentido de que a alienação se faria por adjudicação directa.

Razões pelas quais improcede o recurso.



III. Conclusões

Sumariando:

i) A matéria de facto a considerar na elaboração da sentença deve ser aquela essencial à decisão da causa, isto é, aqueles factos que de acordo com as normas aplicáveis ao caso exerçam uma função constitutiva do direito invocado pelo autor ou, pelo contrário, tenham natureza impeditiva, modificativa ou extintiva do mesmo, de acordo com alguma das soluções plausíveis da questão de direito.

ii) A atribuição duma casa integrada no domínio privado do Estado a um funcionário, ao abrigo do regime constante das Instruções publicadas pela Direcção-Geral da Fazenda Pública, in Diário do Governo 305, II-Série, de 31.12.1956, mediante o pagamento de renda mensal, não constitui um contrato de arrendamento, mas uma cessão a título precário, livremente revogável e sujeito ao direito administrativo.

iii) A atribuição da casa de função, atenta a sua finalidade e natureza – concedida em função do interesse do Estado e a título precário –, não gera para o funcionário ocupante da mesma qualquer direito de preferência na sua alienação nos termos do disposto no art. 1091.º do C. Civil, nem a sua restituição lhe confere o direito a qualquer indemnização.



IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 14 de Maio de 2015

Pedro Marchão Marques

Conceição Silvestre

Cristina Santos