Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1814/14.0BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:09/15/2022
Relator:LURDES TOSCANO
Descritores:IRS – LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
DECLARAÇÃO FORA DE PRAZO
ANULAÇÃO DO ACTO
Sumário:I – Apresentada a declaração, a AT tinha o poder-dever de a analisar e agir em conformidade, corrigindo a liquidação oficiosa emitida, mas sem que sejam de aplicar quaisquer das limitações previstas nos n.ºs 2 e 3 do art.º 76.º, limitações essas apenas consagradas para definir os critérios a seguir ao nível das liquidações oficiosas – liquidações que são provisórias por natureza, devendo as mesmas ceder perante a declaração efectiva e correcta dos rendimentos.
II - Não é possível proceder-se à anulação parcial do acto se ela implicar uma nova liquidação.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os juízes que constituem a 1ª Subsecção da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO
A Representante da Fazenda Pública, com os demais sinais nos autos, veio, em conformidade com o artigo 282.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A......, contra a decisão de indeferimento tácito da reclamação graciosa apresentada, contra as liquidações de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares («IRS») e respetivos juros compensatórios, referentes ao exercício de 2012, no valor total de €113.610,25.

A Recorrente termina as alegações de recurso formulando as seguintes conclusões:

«A. Visa o presente recurso reagir contra a decisão proferida em 1ª Instância, que julgou procedente a Impugnação Judicial deduzida pelo sujeito passivo, que se consubstancia no indeferimento tácito da reclamação graciosa (n.º….292), apresentada contra a liquidação oficiosa de IRS …..681, do ano 2012, e respetivos juros compensatórios, no valor global de €113.610,25, que foi emitida nos termos do artigo 76.º, n.º 3, do CIRS, pelo que visa nesta sede, a recorrente Fazenda Pública, a sua revogação e substituição por decisão que considere tal impugnação improcedente, ou caso assim não seja entendido que a anulação da liquidação não seja na sua totalidade tendo em consideração os rendimentos declarados na modelo 3, apresentada pela Impugnante.

B. Nesta sede a Fazenda Pública vem dizer que, ao contrario do proferido na douta decisão, existe erro de julgamento da matéria de facto e de direito, devendo nesta sequência o Tribunal ad quem, analisar todas a questões que se passam a elencar:

C. Especificando, vem a Fazenda Pública arguir que o tribunal a quo não poderia ter procedido o pedido na sua totalidade, com a seguinte conclusão: “…em consonância com os princípios da justiça, legalidade e capacidade tributária, resulta do exposto que a AT tem a obrigação legal de proceder à correção da liquidação oficiosa de IRS com base nos elementos com relevância tributária para o ato de liquidação apresentados pela Impugnante, designadamente no que concerne às declarações descritas nos factos em 1) e 2), das quais resulta que a Impugnante deixou de fazer parte da AEM em 30-06-2011 e que passou à situação de licença sem vencimento na FMUL em 01-11-2011.”

D. A questão decidenda nos presentes autos, consiste em saber se a entrega da declaração de “substituição” do IRS de 2012, apresentada já depois da emissão da liquidação oficiosa efetuada pela AT, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 76.º do CIRS, mas ainda dentro do prazo da caducidade, poderá produzir os efeitos de anular, pelo menos parcialmente, a liquidação controvertida nos autos.

E. Nos termos do disposto no n.º 1 al. b) do CIRS, “Não tendo sido apresentada declaração, a liquidação tem por base os elementos de que a Direção-Geral dos Impostos disponha, na redacção à data dos factos”.

F. E, de acordo com o estatuído no n.º 2 do mesmo artigo “Na situação referida na alínea b) do número anterior, o rendimento líquido da categoria B determina-se em conformidade com as regras do regime simplificado de tributação, com aplicação do coeficiente mais elevado previsto no n.º 2 do artigo 31.°. “

G. Por sua vez, dispõe o n.º 3 do citado artigo que “Quando não seja apresentada a declaração, o titular dos rendimentos é notificado por carta registada para cumprir a obrigação em falta no prazo de 30 dias, findo o qual a liquidação é efetuada, não se atendendo ao disposto no artigo 70.º e sendo apenas efetuadas as deduções previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 79.º e no n.º 3 do artigo 97.º. “

H. A estruturação de tal liquidação atendeu às regras do regime simplificado expressando e aplicando-lhe o coeficiente mais elevado previsto no n.º 2 do artigo 31.º do CIRS.

I. Todavia, é de salientar, conforme resulta da alínea 12) dos factos provados, que a impugnante apresentou a declaração modelo 3 de IRS do ano de 2012, em 26/02/2014, (não de substituição porque é a primeira entregue pela própria), mas fê-lo já depois de emitida a liquidação oficiosa, incluindo o anexo B, declarando, o valor de €36.879,46.

J. A apresentação de tal declaração é, manifestamente, intempestiva, nos termos do disposto nos artigos 60.º e n.º 3 do artigo 76.º do CIRS, sendo certo que, tendo a AT estruturado a liquidação sindicada, nos termos legalmente impostos, isto é, no estrito cumprimento do disposto no artigo 76.º do CIRS, agiu dentro dos seus poderes vinculados.

K. É certo que, nos termos do disposto no n.º 4 do artigo 76.º do CIRS “Em todos os casos referidos no n.º 1, a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso, dentro dos prazos e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da lei geral tributária.”

L. Todavia, estes dois artigos da LGT apenas se referem a prazos (de caducidade do direito a liquidação e seu modo de contagem), e não aos termos em que a liquidação pode ser corrigida.

M. A correção de um ato tributário pode ser obtida, nos termos do artigo 79.º, n.º 1, da LGT, através de revogação, ratificação, reforma, conversão ou retificação.

N. Pelo que, a dita norma constante do artigo 76.º, n.º.4, do CIRS, deve ser interpretada no sentido de a liquidação poder ser corrigida, antes de completado o prazo de caducidade, nos termos dos ditos artigos 78.º e 79.º, da LGT.

O. Na realidade, atendendo ao elemento teleológico da interpretação do n.º 4 do artigo 76.º do CIRS, a intenção do legislador não foi a de afastar a aplicação do n.º 2, isto é, as regras do rendimento líquido da categoria B, em conformidade com as regras do regime simplificado de tributação, sob pena de assim ser possível contornar a não entrega de declaração.

P. O que se visa com o disposto no n.º 2 do artigo 76.º do CIRS é penalizar o incumprimento e desincentivar a não entrega de declaração.

Q. Caso assim não seja considerado e sempre com o devido respeito, todos os elementos fácticos levam à conclusão que a liquidação oficiosa surgiu como consequência necessária do incumprimento negligente da contribuinte que não observou a sua obrigação declarativa, existindo mesmo um poder-dever da administração, sob pena de não se aplicar a lei de modo efetivo a todos os contribuintes, colocando em causa o principio da igualdade (artigo 55.º, da LGT).

R. No caso concreto, face à falta de apresentação da declaração modelo 3 de IRS de 2012, no prazo legal, nem depois de a recorrida haver sido expressamente notificada para o fazer, o rendimento liquido da categoria B, só poderia ter sido determinado em conformidade com as regras do regime simplificado de tributação, com aplicação do coeficiente mais elevado previsto no n.º 2 do artigo 31.º, nos termos definidos no artigo 76.º n.º 1 e 2 do CIRS.

S. Nesta conformidade, tendo a douta sentença feito errada interpretação e valoração da prova e dos factos, deverá a mesma ser anulada e proferido acórdão que considere devidamente evidenciada a negligencia por parte da Impugnante de acordo com os elementos fácticos ora apresentados, conjugados com as disposições dos artigos 31.º, n.º 2, com o disposto no artigo 76.º n.º 1 e 2 do CIRS e consequentemente devidamente fundamentada a liquidação sindicada e coerente com o estipulado na Lei.

T. Ou em ultima rácio, seja considerada a procedência do pedido apenas parcial tendo em consideração ao rendimento declarado no ponto 12) da fundamentação de facto, neste sentido, e sempre com a devida vénia, a douta Sentença exarada padece de erro de julgamento da matéria de facto e de direito, revelando uma inadequada valoração da prova documental produzida nos autos de primeira instância, sendo que, no nosso entender e salvo melhor opinião, deveria ter sido mantido o ato tributário senão na totalidade, pelo menos parcialmente.

Pelo que se peticiona o provimento do presente recurso, revogando-se a decisão ora recorrida, assim se fazendo a devida e acostumada

JUSTIÇA!»

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A Impugnante, aqui Recorrida, contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:

«A. Resulta da matéria de facto provada que:

“1) Em 30-06-2011 a Impugnante deixou de fazer parte da AEM […];

2) Em 01-11-2011 a Impugnante passou à situação de licença sem vencimento na FMUL […];

5) Em 18-01-2013 deu entrada nos serviços da AT, em nome da Impugnante, a declaração de IRS n.º …..-39, referente ao ano de 2011, constando como prestação de serviços da categoria B o valor de € 272.502,24 […];

6) Em 27-09-2013 os serviços da AT emitiram por ViaCTT, em nome da Impugnante, o ofício “Notificação sobre faltosos Modelo 3” […];

7) Em 03-10-2013 a entrega do ofício descrito em 6) foi conseguida […];

8) Em 22-01-2014 os serviços da AT emitiram em nome da Impugnante a declaração oficiosa de IRS relativa ao exercício de 2012, constando como prestação de serviços da categoria B o valor de € 389.288,91 […];

9) Em 27-01-2014 foi emitida em nome da Impugnante a liquidação de IRS n.º ….681 referente ao ano de 2012 constando como rendimento global o valor de € 272.502,24 e como valor a apagar € 109.461,55 […];

10) Em 28-01-2014 foi emitida em nome da Impugnante a liquidação de juros compensatórios n.º …..234 constando como período de tributação o ano de 2012, como valor base € 109.461,55, como taxa 4% e como valor a apagar € 2.831,00 […];

11) Na mesma data foi emitida em nome da Impugnante a liquidação de juros compensatórios de pagamentos por conta n.º ….33 constando como período de tributação o ano de 2012, como valor base € 113.256,00, como taxa 4% e como valor a apagar € 1.317,70 […];

12) Em 26-02-2014 deu entrada nos serviços da AT, em nome da Impugnante, a declaração de IRS n.º …..-62, referente ao ano de 2012, constando como prestação de serviços da categoria B o valor de € 36.879,46 […];

B. Aceitando a Recorrente a matéria de facto dada como provada pelo tribunal a qui, uma vez que não a impugnou nos termos do artigo 640.º, n.º 1 do CPC, ex vi artigo 281.º do CPPT, a mesma encontra-se estabilizada.

C. O art.º 76.º, n.º 4, do CIRS prevê especificamente, para todos os casos previstos no seu n.º 1, sem exceção, a possibilidade de a liquidação poder ser corrigida, respeitado que seja o respetivo prazo de caducidade.

D. A liquidação oficiosa emitida pela A.T. tem natureza provisória, por assentar em presunções, que poderão vir a ser ilididas, devendo as mesmas ceder perante a declaração efetiva e correta dos rendimentos (e respetivas deduções).

E. Ilidida essa presunção, a A.T., tem o dever legal de substituir a liquidação oficiosa pela liquidação resultante da declaração apresentada pela Recorrida.

F. Assim, ainda que a declaração modelo 3 de IRS seja apresentada fora do prazo legalmente previsto para o efeito, mas dentro do prazo consagrado no art.º 76.º, n.º 4, do CIRS, a A.T. tem a obrigação de a analisar e agir em conformidade, corrigindo a liquidação oficiosa emitida se for caso disso, sem que sejam de aplicar quaisquer das limitações previstas nos n.ºs 2 e 3 do art.º 76.º do CIRS, as quais definem os critérios a seguir ao nível das liquidações oficiosas.

G. Quer o n.º 2 quer o n.º 3 do art.º 76.º do CIRS expressamente referem serem aplicáveis nos casos de falta de apresentação de declaração, nada decorrendo do n.º 4 que estenda tais limitações a situações como a dos presentes autos.

H. Neste sentido, segundo Acórdão do TCASUL, datado de 14-10-2021, processo 1058/11.2BELRS, disponível em www.dgsi.pt: «A liquidação de IRS pode ser corrigida, mesmo depois de emitida liquidação oficiosa, respeitado que seja o respetivo prazo de caducidade. A liquidação oficiosa emitida pela AT tem natureza provisória, por assentar em presunções, que poderão vir a ser ilididas.»

I. Esta interpretação é a mais consentânea com o princípio da capacidade contributiva, que determina que a tributação seja efetuada em função dos rendimentos efetivos, princípio basilar do nosso ordenamento jurídico-tributário, previsto no art.º 104.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), segundo o qual “… [o] imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”.

J. Acresce que, interpretação em sentido distinto, como pretende a Recorrente, implicaria uma dupla penalidade, na medida em que, face ao atraso na apresentação da declaração, já é punido em sede contra-ordenacional, não havendo sustentação para se ignorar o rendimento efetivamente obtido.

K. Assim, nunca tendo a Recorrente posto em causa a veracidade dos valores declarados pela Recorrida;

L. Não tendo impugnado a decisão recorrida quanto à matéria de facto, em concreto, quanto aos factos provados 3 e 12.

M. Encontrando-se respeitado o prazo de caducidade de 4 anos no caso em apreço, uma vez que para o exercício de 2012 a declaração de correção foi apresentada em 2014.

N. Na medida em que a liquidação feita pela Recorrente, usa como referência os valores auferidos pela impugnante enquanto estava a desenvolver a sua atividade profissional, os quais não se devem aplicar a um exercício em que a Recorrida já não trabalhava para as entidades empregadoras;

O. Deve ser corrigida a liquidação de IRS, ainda que posterior à emissão da liquidação oficiosa.

P. Assim, padecendo o ato impugnado de vício, conducente à sua anulação, a Recorrida pugna pela improcedência do recurso, e consequente manutenção da decisão recorrida.

Q. Contudo

R. Além do vício conhecido na decisão recorrida, em sede de impugnação judicial foi invocada ainda a anulabilidade do ato, por preterição do exercício do direito de audição prévia;

S. Assim como a falta de fundamentação relativamente à respetiva quantificação. O que determina igualmente a ilegalidade do ato de liquidação impugnado.

T. Vícios cujo conhecimento foi considerado prejudicado pela decisão do tribunal a quo, e cujo conhecimento se requer em caso de ser julgado procedente o presente recurso.

Nestes termos e nos demais de direito que V. Exa. doutamente suprirá, requer-se que seja julgado improcedente o presente recurso, e consequentemente seja mantida da decisão recorrida.

Caso assim não se entenda, que se conheça da ilegalidade da liquidação oficiosa por preterição do exercício do direito de audição prévia e falta de fundamentação da respetiva quantificação.

Assim se fazendo a devida e costumada JUSTIÇA.»



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Notificado, o Ministério Público junto deste Tribunal Central Administrativo, emitiu parecer no sentido de improcedência do recurso.
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Com dispensa dos vistos legais, cumpre apreciar e decidir, considerando que a tal nada obsta.
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Sem prejuízo das questões que o Tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, é pelas conclusões com que a recorrente remate a sua alegação (art. 639º do C.P.C.) que se determina o âmbito de intervenção do referido tribunal.

De outro modo, constituindo o recurso um meio impugnatório de decisões judiciais, neste apenas se pode pretender, salvo questões de conhecimento oficioso, a reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo.

Assim, atento o exposto e as conclusões das alegações do recurso interposto, temos que no caso concreto, as questões fundamentais a decidir são as de saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento da matéria de facto e de direito, nomeadamente, saber se a entrega da declaração do IRS de 2012, apresentada já depois da emissão da liquidação oficiosa efectuada pela AT, ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 76º do CIRS, mas ainda dentro do prazo de caducidade, nos termos do nº 4 da mesma norma, conduz à anulação da liquidação controvertida nos autos.



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II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. De facto

A sentença recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:


«Compulsados os autos e analisada a prova produzida, com relevância para a decisão da causa consideram-se provados os seguintes factos:

1) Em 30-06-2011 a Impugnante deixou de fazer parte da AEM (cf. declaração a fls. 83 do SITAF e depoimento de Mário Miguel Coelho da Silva Rosa);

2) Em 01-11-2011 a Impugnante passou à situação de licença sem vencimento na FMUL (cf. declaração a fls. 82 do SITAF e depoimento de J......);

3) No ano de 2012 a Impugnante emitiu três recibos verdes no valor total de € 36.879,46 (cf. recibos a págs. 33 dos autos);

4) No ano de 2012 a Impugnante não efetuou pagamentos por conta (cf. notas de cobrança a págs. 87 a 93 do PA apenso aos autos);

5) Em 18-01-2013 deu entrada nos serviços da AT, em nome da Impugnante, a declaração de IRS n.º 1503-2011-J342-39, referente ao ano de 2011, constando como prestação de serviços da categoria B o valor de € 272.502,24 (cf. lista e declaração a fls. 76 e 154 a 155 do PA apenso aos autos);

6) Em 27-09-2013 os serviços da AT emitiram por ViaCTT, em nome da Impugnante, o ofício “Notificação sobre faltosos Modelo 3” (cf. registo a fls. 21 e 23 do PA da reclamação graciosa apenso aos autos);

7) Em 03-10-2013 a entrega do ofício descrito em 6) foi conseguida (cf. registo a fls. 24 do PA da reclamação graciosa apenso aos autos);

8) Em 22-01-2014 os serviços da AT emitiram em nome da Impugnante a declaração oficiosa de IRS relativa ao exercício de 2012, constando como prestação de serviços da categoria B o valor de € 389.288,91 (cf. declaração a fls. 78 e 79 do PA apenso aos autos);

9) Em 27-01-2014 foi emitida em nome da Impugnante a liquidação de IRS n.º 2014 5000018681 referente ao ano de 2012 constando como rendimento global o valor de € 272.502,24 e como valor a apagar € 109.461,55 (cf. demonstração a fls. 52 do PA apenso aos autos);

10) Em 28-01-2014 foi emitida em nome da Impugnante a liquidação de juros compensatórios n.º 2014 15234 constando como período de tributação o ano de 2012, como valor base € 109.461,55, como taxa 4% e como valor a apagar € 2.831,00 (cf. liquidação a fls. 96 do PA apenso aos autos);

11) Na mesma data foi emitida em nome da Impugnante a liquidação de juros compensatórios de pagamnetos por conta n.º …..33 constando como período de tributação o ano de 2012, como valor base € 113.256,00, como taxa 4% e como valor a apagar € 1.317,70 (cf. liquidação a fls. 97 do PA apenso aos autos);

12) Em 26-02-2014 deu entrada nos serviços da AT, em nome da Impugnante, a declaração de IRS n.º …..-62, referente ao ano de 2012, constando como prestação de serviços da categoria B o valor de € 36.879,46 (cf. declaração a fls. 82 a 85 do PA apenso aos autos);

13) Em 02-04-2014 deu entrada nos serviços da AT um requerimentos em nome da Impugnante do qual se extrai ter em vista a reclamação graciosa das liquidações descritas em 9), 10) e 11) (cf. requerimento a págs. 2 a 7 do PA da reclamação graciosa apenso aos autos);

14) Em 08-08-2014 deram os presentes autos entrada neste Tribunal (cf. registo do SITAF);»

Factos não provados

«Não foram alegados quaisquer outros factos passíveis de afetar a decisão de mérito, em face das possíveis soluções de direito, e que, por conseguinte, importe registar como provados ou não provados.»


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Motivação da matéria de facto

«A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto dada como provada, conforme discriminado nos vários pontos do probatório, resulta dos factos alegados pelas partes e da análise dos documentos por estas juntos, que não foram impugnados, dando-se por integralmente reproduzido o teor dos mesmos bem como o do PA apenso aos autos.

O depoimento das testemunhas M...... e J...... foram consistentes entre si e com os documentos jutos aos autos, havendo sido prestados com segurança e assertividade.

Efetivamente as testemunhas demonstraram ter conhecimento direto dos factos que se deram como provados, tanto por serem colegas de trabalho da Impugnante, como também por terem uma relação de amizade, pelo que serviram para fixar os factos constantes dos pontos 1) e 2).»


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II.2. De Direito

Em sede de aplicação de direito, a sentença recorrida julgou procedente a presente impugnação pelo que, em consequência, determinou a anulação das liquidações de IRS e juros compensatórios do ano de 2012, emitidas em nome da impugnante.

Inconformada, a Fazenda Pública veio interpor recurso da referida decisão alegando erro de julgamento da matéria de facto e de direito, revelando uma inadequada valoração da prova documental.

Vejamos.

- Do erro de julgamento da matéria de facto

Embora a recorrente venha alegar erro de julgamento da matéria de facto, a verdade é que não concretiza qual a matéria de facto que entende ter sido erradamente julgada.

Considerando o disposto no art.º 640.º do CPC, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão.(1)

Melhor dizendo, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­-se-lhe os ónus previstos no art. 640º do CPC, nomeadamente, o ónus de especificar, sob pena de rejeição.

Ora, no presente recurso, verifica-se que tais ónus não foram cumpridos, pelo que não se irá proceder à apreciação do alegado erro da matéria de facto.

Quanto à alegação de errada interpretação e valoração da prova e dos factos, invocada na conclusão de recurso S., do mesmo modo, a recorrente não concretiza nem especifica a prova e os factos que entende mal valorados, sendo que julgamos que pretende insurgir-se contra as consequências jurídicas a que a factualidade provada nos autos (e não impugnada pela recorrente) conduziu.

Termos em que improcede a presente alegação.

- Do erro de julgamento da matéria de direito

Na sentença recorrida fundamentou-se, em síntese, da seguinte forma:

«Todavia, em consonância com os princípios da justiça, legalidade e capacidade tributária, resulta do exposto que a AT tem a obrigação legal de proceder à correção da liquidação oficiosa de IRS com base nos elementos com relevância tributária para o ato de liquidação apresentados pela Impugnante, designadamente no que concerne às declarações descritas nos factos em 1) e 2), das quais resulta que a Impugnante deixou de fazer parte da AEM em 30-06-2011 e que passou à situação de licença sem vencimento na FMUL em 01-11-2011.

Há, pois, que concluir, na senda da jurisprudência e doutrina citadas, a AT não deveria ter descurado a declaração apresentada em conformidade com a possibilidade contemplada no n.º 4 do artigo 76.º do CIRS, incorrendo, nessa medida, num vício de violação de lei, motivo pelo qual as liquidações impugnadas não se podem manter.»

A recorrente discorda do decidido, alegando que conforme resulta da alínea 12) dos factos provados, que a impugnante apresentou a declaração modelo 3 de IRS do ano de 2012, em 26/02/2014, mas fê-lo já depois de emitida a liquidação oficiosa, incluindo o anexo B, declarando, o valor de €36.879,46. A apresentação de tal declaração é, manifestamente, intempestiva, nos termos do disposto nos artigos 60.º e n.º 3 do artigo 76.º do CIRS, sendo certo que, tendo a AT estruturado a liquidação sindicada, nos termos legalmente impostos, isto é, no estrito cumprimento do disposto no artigo 76.º do CIRS, agiu dentro dos seus poderes vinculados. [conclusões de recurso I. e J.]

Vejamos o que dispõe o art. 76º do CIRS:

“1 - A liquidação do IRS processa-se nos termos seguintes:

a) Tendo sido apresentada a declaração até 30 dias após o termo do prazo legal, a liquidação tem por objecto o rendimento colectável determinado com base nos elementos declarados, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 65.º;

b) Não tendo sido apresentada declaração, a liquidação tem por base os elementos de que a Direcção-Geral dos Impostos disponha;

c) Sendo superior ao que resulta dos elementos a que se refere a alínea anterior, considera-se a totalidade do rendimento líquido da categoria B obtido pelo titular do rendimento no ano mais próximo que se encontre determinado, quando não tenha sido declarada a respectiva cessação de actividade.

2 - Na situação referida na alínea b) do número anterior, o rendimento líquido da categoria B determina-se em conformidade com as regras do regime simplificado de tributação, com aplicação do coeficiente mais elevado previsto no n.º 2 do artigo 31.º.

3 - Quando não seja apresentada declaração, o titular dos rendimentos é notificado por carta registada para cumprir a obrigação em falta no prazo de 30 dias, findo o qual a liquidação é efectuada, não se atendendo ao disposto no artigo 70.º e sendo apenas efectuadas as deduções previstas na alínea a) do n.º 1 do artigo 79.º e no n.º 3 do artigo 97.º.

4 - Em todos os casos previstos no n.º 1, a liquidação pode ser corrigida, se for caso disso, dentro dos prazos e nos termos previstos nos artigos 45.º e 46.º da lei geral tributária.”.

A questão controvertida, nos presentes autos, prende-se com a interpretação do art. 76º, nomeadamente, do nº 4, do CIRS, em que a recorrente diverge do entendimento da sentença recorrida.

Entende a recorrente que os artigos 45º e 46º da Lei Geral Tributária de que fala o nº 4 do art. 76º do CIRS apenas se referem a prazos (de caducidade do direito a liquidação e seu modo de contagem), e não aos termos em que a liquidação pode ser corrigida. A correção de um ato tributário pode ser obtida, nos termos do artigo 79.º, n.º 1, da LGT, através de revogação, ratificação, reforma, conversão ou retificação. Pelo que, a dita norma constante do artigo 76.º, n.º.4, do CIRS, deve ser interpretada no sentido de a liquidação poder ser corrigida, antes de completado o prazo de caducidade, nos termos dos ditos artigos 78.º e 79.º, da LGT. [conclusões de recurso L. a N.]

Não concordamos com o alegado pela recorrente.

A questão em apreço nestes autos já foi tratada pela Jurisprudência dos Tribunais Superiores, nomeadamente, por Acórdão deste TCAS de 14/10/2021, Proc. 1058/11.2BELRS, disponível em www.dgsi.pt, onde se apreciou e decidiu caso semelhante, e de onde se extrai a seguinte fundamentação:

«Com efeito, e independentemente de o Recorrente não ter apresentado a declaração de rendimentos dentro do prazo legalmente previsto para o efeito, tal não significa que não deve ser considerada, no seu todo, a declaração de rendimentos apresentada, ainda que fora do prazo legal (desde que respeitado, desde logo, o prazo de caducidade do direito à liquidação). Isto independentemente de a mesma não gozar de presunção de veracidade, uma vez que, não obstante esta circunstância, no caso dos autos de modo algum a AT pôs em causa o declarado, limitando-se a entender não ser admissível a consideração de parte dos valores nos termos assinalados.

Na verdade, não se entende que a consideração do teor da declaração apresentada fora de prazo esteja limitada aos termos dos n.ºs 2 e 3 do art.º 76.º - isto sem prejuízo de a AT poder pôr em causa a correção dos elementos constantes daquela declaração, o que não sucedeu in casu.

Como já se referiu supra, o art.º 76.º, n.º 4, do CIRS prevê especificamente, para todos os casos previstos no n.º 1, sem exceção, a possibilidade de a liquidação poder ser corrigida, respeitado que seja o respetivo prazo de caducidade.

Portanto, apresentada a declaração mencionada em 7. do probatório, a AT tinha o poder-dever de a analisar e agir em conformidade, corrigindo a liquidação oficiosa emitida, mas sem que sejam de aplicar quaisquer das limitações previstas nos n.ºs 2 e 3 do art.º 76.º, limitações essas apenas consagradas para definir os critérios a seguir ao nível das liquidações oficiosas – liquidações que, como referimos, são provisórias por natureza, devendo as mesmas ceder perante a declaração efetiva e correta dos rendimentos (e respetivas deduções).

Aliás, quer o n.º 2 quer o n.º 3 do art.º 76.º expressamente referem serem aplicáveis nos casos de falta de apresentação de declaração, nada decorrendo do n.º 4 que estenda tais limitações em situações como a dos autos.

Trata-se, aliás, da interpretação mais consentânea com o princípio da capacidade contributiva, princípio basilar do nosso ordenamento jurídico-tributário.

Com efeito, dispõe o art.º 104.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que “… [o] imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar”, ou seja, prevê o princípio da capacidade contributiva, que determina que a tributação seja efetuada em função dos rendimentos efetivos.

Interpretação em sentido distinto, como refere o Recorrente na sua petição, implicaria uma dupla penalidade, na medida em que, face ao atraso na apresentação da declaração, já é punido em sede contraordenacional, não havendo sustentação para se ignorar o rendimento efetivamente obtido.

Aliás, reiteramos, a AT em momento algum põe em causa a adesão à realidade dos valores declarados.

Como tal, assiste razão ao Recorrente, padecendo o ato impugnado de vício, conducente à sua anulação.»

Concordamos inteiramente com a fundamentação do Acórdao supra citado, que fazemos nossa.

Por sua vez, no Acórdão do STA, de 05/12/2018, Proc. 0220/11.2BEVIS 0286/18, escreveu-se que «o disposto no artº 76º nº 4 do CIRS, vigente à data dos factos, que alguma razão de ser, na harmonia do sistema legislativo, há-de ter (…) [, a] nosso ver possibilita/impõe à Administração Tributária a correcção da liquidação oficiosa por si elaborada quando seja suprida pelo sujeito passivo a sua falta declarativa dentro dos prazos ali previstos».

Pelo que forçoso é concluir que não assiste razão à recorrente, pois que, apresentada a declaração mencionada no ponto 12. do probatório, a AT tinha o poder-dever de a analisar e agir em conformidade, corrigindo a liquidação oficiosa emitida, mas sem que sejam de aplicar quaisquer das limitações previstas nos n.ºs 2 e 3 do art.º 76.º, limitações essas apenas consagradas para definir os critérios a seguir ao nível das liquidações oficiosas – liquidações que, como referimos, são provisórias por natureza, devendo as mesmas ceder perante a declaração efectiva e correcta dos rendimentos.

Por último, vem a recorrente, em ultima rácio, invocar que seja considerada a procedência parcial do pedido tendo em consideração o rendimento declarado na modelo 3, apresentada pela impugnante, cfr. ponto 12. do probatório [conclusões de recurso A. e T.]
Segundo julgamos perceber, a recorrente entende que tendo a impugnante declarado rendimentos sujeitos a imposto não haveria lugar à anulação total da liquidação mas sim à anulação parcial da liquidação.
Adiante-se, desde já, que não assiste razão à recorrente.
Não é possível proceder-se à anulação parcial do acto se ela implicar uma nova liquidação.

Neste sentido, veja-se o Acórdão do STA de 27/11/2013, Proc. 079/13, disponível em www.dgsi.pt, onde decidindo em caso em que estava em causa uma liquidação de IRS, decidiu do modo seguinte:
«4.2. Há, portanto, casos em que a anulação parcial da liquidação não é possível.
É o que se passa, por exemplo, quando a AT tenha calculado a matéria colectável por métodos presuntivos, supondo uma determinada margem de lucro, e o juiz concluir pela inexistência de razões bastantes para a opção por essa margem de lucro, ficando, por isso, na “dúvida quanto à quantificação efectuada”. Nesta situação, não lhe resta senão anular totalmente a liquidação (cfr. o referido aresto do STA, de 26/3/03, rec. 1973/02).

Ou quando, como sucede no caso vertente, a anulação parcial, interferindo com a incidência objectiva (e até subjectiva) dos próprios rendimentos (os auferidos pelo impugnante marido na C………………. não tinham, por força da mencionada Convenção, que ser declarados em Portugal) e com as taxas aplicáveis (quer por efeito da alteração de escalões, quer da consequente alteração dos montantes para aplicação do coeficiente conjugal), implique, necessariamente, uma nova liquidação.
Não pode, portanto, no caso vertente, afirmar-se que a liquidação impugnada seja defeituosa apenas quanto à tributação da parte dos rendimentos auferidos no Brasil e que, por isso, deva ser anulada apenas nessa parte e se mantenha quanto aos demais rendimentos, ou seja, que a anulação parcial da liquidação apenas produzirá um efeito constitutivo traduzido na eliminação de determinada matéria colectável e implicando apenas uma pronúncia administrativa meramente declarativa destinada a certificar o montante em que ficou reduzida a liquidação por força da anulação.
E, assim sendo, o recurso deve improceder.»

Termos em que improcede na totalidade o presente recurso, e se mantém a sentença recorrida na ordem jurídica.

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III – DECISÃO

Termos em que, acordam os Juízes da 1ª Subsecção da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, e em consequência, manter a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente.

Registe e notifique.

Lisboa, 15 de Setembro de 2022

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[Lurdes Toscano]

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[Maria Cardoso]

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[Hélia Gameiro Silva]




(1) Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169.