Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:992/11.4BEALM
Secção:CA
Data do Acordão:12/17/2020
Relator:DORA LUCAS NETO
Descritores:CADUCIDADE DO DIREITO DE AÇÃO;
NULIDADE/ANULABILIDADE;
RGEU;
AFASTAMENTO EDIFICAÇÕES.
Sumário:A verificar-se a violação dos normativos invocados pelo MP, por não terem sido cumpridas as distâncias entre duas edificações, a perda de iluminação natural e arejamento, tais ilegalidades, mesmo que enquadradas no direito a um ambiente de vida sadio e ecologicamente equilibrado, consagrado no art. 66º da CRP, no caso em apreço são apenas passíveis de anulação dos atos impugnados e não da sua declaração de nulidade.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

O Ministério Público, ora Recorrente, interpôs recurso jurisdicional do acórdão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada, de 09.01.2016, que julgou improcedente a reclamação para a conferência por si deduzida e manteve a decisão proferida pelo relator, que havia julgado procedente as exceções dilatórias de falta de objeto e de caducidade do direito de ação, assim absolvendo o R. e os demais Contrainteressados da instância.

Nas alegações de recurso que apresentou, culminou com as seguintes conclusões – cfr. fls. 431 e ss., ref. SITAF:

«(…) A. O Ministério Público interpôs a presente ação com fundamento na violação de direitos fundamentais inerentes à utilização da habitação contígua ao prédio licenciado, defendendo que os atos administrativos impugnados ofenderam o conteúdo essencial de direitos fundamentais, designadamente o direito à integridade física e moral e o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, previstos nos artigos 25º e 66º da Constituição da República Portuguesa.

B. O tribunal considerou que, não se encontrando o edifício habitado, apenas subsiste a invocada violação dos artigos 60º e 73º do RGEU que prescrevem sobre distâncias mínimas entre fachadas e respetivos vãos e que conduz à anulabilidade dos atos.

C. Pelo que considerou verificada a exceção de caducidade do direito de ação e, por outro lado, a exceção de falta de objeto, porquanto foi facultada habitação aos reclamantes e o prédio encontra-se desabitado.

D. Sempre se dirá que o facto de se considerar que o prédio se encontra desabitado não é suficiente para concluir que o mesmo tem ou não condições para vir a ser habitado, uma vez que o mesmo continua a possuir licença de habitação.

E. Sendo que estes, apesar de terem sido realojados, mantêm contrato de arrendamento válido, pelo que o seu direito à utilização da habitação em devidas condições de salubridade e arejamento continua afetado, o que constitui a violação de um direito fundamental garantido constitucionalmente.

F. O artigo 133 nº 2 alínea d) do CPA (vigente à data da propositura da ação) prevê o vício de nulidade, perante a ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental, pelo que se exigiria apurar, com referência à factualidade concreta, se o conteúdo essencial do direito se mostra atingido na presente situação.

G. Sendo que, conforme dispõe o artigo 58º, nº 1 do CPTA, a impugnação de atos nulos não está sujeita a prazo de impugnação e o autor no seu pedido inicial peticiona a declaração de nulidade dos atos administrativos.

H. Também não poderia considerar a existência de falta de objeto, uma vez que os direitos fundamentais que o autor considera terem sido desrespeitados são o direito à integridade física e moral e o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado previsto nos artigos 25º e 66º da CRP e não o direito a uma habitação de dimensão adequada com condições de higiene e conforto (artigo 65º da CRP).

I. O RGEU contém normas de natureza proibitiva e impositiva, que têm como destinatários todos aqueles que pretendam executar novas edificações ou quaisquer obras de construção civil, reconstrução, ampliação, alteração ou demolição das edificações e obras existentes, dentro do perímetro urbano ou zonas rurais e localidades a elas equiparadas

J. Ora, no presente estado dos autos não há elementos suficientes para decidir tais questões, pelo que sempre o conhecimento de tais exceções de caducidade do direito de ação e de falta de objeto deveria ter sido relegado para a sentença.

K. Na verdade, o disposto nos artigos 87º nº 1 b) do CPTA então vigente e 595º, nº 1, alínea b) do CPC não se coaduna com tomadas de posição que, em nome da celeridade, não permita às partes a discussão e prova, em sede de audiência, da factualidade que alegam e que poderá conduzir a soluções mais abrangentes, ainda não possíveis na fase do saneador ou, pelo menos, a um desfecho diverso daquele que ao juiz do processo pareça ser o correto nessa altura.

L. Ou seja, na dúvida, deve o processo prosseguir os seus normais termos, com a organização da base instrutória e passagem à fase da instrução e produção das provas, apresentando-se excecional o conhecimento antecipado de mérito e normal o seu prosseguimento para a fase de julgamento.

M. Foram violadas, por erro de interpretação, as normas constantes dos artigos 25º, 65º e 66º da CRP, 60º e 73º do RGEU, 133º nº 2 alínea d) do CPA, 58º, nº 1 e 87º nº 1 b) do CPTA e 595º, nº 1, alínea b) do CPC.

N. Pelo exposto, deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos. (…)»

O Recorrido, Município de Setúbal, contra-alegou, concluindo como se segue – cfr. fls. 463 e ss., ref. SITAF:

«(…) A) O Ministério Público A. interpôs a presente ação, com fundamento numa pretensa violação pela obra licenciada do art° 73° do R.G.E.U. e por ofensa ao direito ambiental, inerente à utilização da habitação contígua, pretensamente prejudicado pelo seu défice de arejamento, iluminação natural e exposição solar, resultante da construção do edifício cujo licenciamento é posto em causa.

B) Considerando que a pretensa diminuição dessas condições de salubridade ofenderia o “direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado”, que, na sua perspetiva, tem dignidade constitucional de um direito fundamental.

C) Ora, a existir tal direito, o titular do mesmo seria quem habitasse a casa vizinha do prédio aqui em causa, que se encontra há muito desabitada e que, pela sua antiguidade, não preenche, independentemente dos constrangimentos à sua iluminação, arejamento e insolação, consequentes à construção do prédio vizinho, as condições de habitabilidade mínima atualmente exigíveis.

D) Por outro lado, o Ministério Público, na presente ação, não vem defender um direito ambiental difuso com titulares indeterminados, mas um pretenso direito ambiental subjetivo que tinha de ter titulares concretos que, pelo que acaba de se referir, embora tenham existido, já não existem.

E) Pelo que não existe qualquer direito subjetivo - desde logo por inexistência de titulares do mesmo - a “um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado”, nem idêntico direito de titulares difusos, cuja tutela pudesse ser visada pela presente ação.

F) O que se traduzia numa carência de objeto e tinha de conduzir, necessariamente, como conduziu, à inutilidade da lide e consequente extinção da instância.

G) O Ministério Público fundamenta, em primeira linha, a impugnação do ato de licenciamento da construção promovida pela contrainteressada por pretensa ofensa ao disposto no art° 73° do R.G.E.U. por não respeitar os afastamentos em relação a vãos abertos no prédio vizinho, que seriam impostos por aquela disposição legal.

H) Nos termos do disposto no art° 135° do C.P.A., são anuláveis os atos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas para cuja violação não se preveja outra sanção.

I) É unanimemente aceite que o vício de violação de uma norma do R.G.E.U. importa a sanção da mera anulabilidade do ato.

J) Pelo que, tendo já decorrido o prazo de um ano sobre a prática do ato, prevista na alínea b) do n° 2 do art° 58° do C.P.T.A., tal ato seria já inimpugnável, mesmo que a impugnação fosse promovida, como é o caso, pelo Ministério Público.

K) Não merecendo acolhimento a tese que o Ministério Público, para fugir a tal questão, vem defender, considerando que, através da pretensa ofensa ao art° 73° do R.G.E.U., se ofenderia também o conteúdo essencial de um direito fundamental, que seria “o direito fundamental a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado”, definido no art° 66° da Constituição, pelo que o ato ofensivo seria nulo, por força do disposto na alínea d) do n° 2 do art° 133° do C.P.A..

L) Ora, é óbvio que, no presente caso, não está em causa o direito difuso fixado no art° 66° da Constituição da República, nem um direito subjetivo resultante da sua repercussão na esfera individual.

M) Aliás, o que poderia estar em causa era o direito previsto no n° 1 do art° 65° da Constituição da República a uma “habitação de dimensão adequada, condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.

N) E, no presente caso, ainda que se considerasse que a construção em causa fazia perigar tal direito fundamental de quem habitava o prédio vizinho, esse seu direito foi respeitado e efetivado através da atuação do Município que, assim, cumpriu e respeitou o dever que lhe é imposto na alínea b), do n° 2 daquela disposição constitucional.

O) Pelo que, caso o eventual desrespeito do art° 73° do R.G.E.U., que não se concede ter existido, acarretasse também uma violação do direito fundamental previsto no n° 1 do art° 65° da Constituição da República - e seria este e não o direito do art° 66° que se poderia considerar ofendido - e a violação desse direito fundamental fosse razão para a nulidade do ato, tendo tal razão deixado de existir, ficaria, assim, sem qualquer fundamento a declaração daquela pretensa nulidade.

P) Consideram-se, assim, com o devido respeito, improcedentes todas as conclusões das alegações do recurso interposto, nenhuma censura merecendo o douto acórdão proferido, que fez uma correta interpretação e aplicação da lei, devendo, como tal, ser confirmado.(…)».


Colhidos os vistos legais, importa apreciar e decidir.

I. 1. Questões a apreciar e decidir

As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em apreciar se o acórdão recorrido errou ao ter julgado verificadas, em sede de despacho saneador, as exceções de caducidade do direito de ação e de falta de objeto.

II. Fundamentação

II.1. De facto

A matéria de facto constante da sentença recorrida é aqui transcrita ipsis verbis:
«(…)
A - Em 1999-01-18, a Contrainteressada GOPP-Gestão de Obras Públicas e Particulares, SA, apresentou à entidade demandada o projeto de construção de um edifício misto de habitação coletiva e comércio a implantar na Freguesia de S. Sebastião, cfr. Doc. 2, fls. 20.
B - Em 1999-08-23 foi proferido despacho que aprovou o projeto, cfr. Doc.2, fls. 20.
C - Em 2000-08-08 foi proferido despacho que deferiu a emissão da licença de construção, tendo sido emitido o respetivo alvará n° 480/2000, cfr. Doc.1 fls. 19 e Doc. 8, fls. 28.
D - Em 2002-05-02 foi deferido o pedido de alteração do projeto de arquitetura, cfr. Doc. 3, fls. 21.
E - Em 2002-07-23 foi proferido o despacho que deferiu o pedido de alvará, cfr. Doc. 3, fls. 21.
F - Em 2001-03-22, A... apresentou reclamação dirigida ao Presidente da Câmara Municipal de Setúbal, alegando que a obra estava a ocupar uma faixa do seu terreno de 3,08 metros numa área de 77,69 m2, cfr. Doc. 10, fls. 30 e 31.
G - Em 2001-08-13, a Munícipe F..., moradora no prédio contíguo, apresentou ao R. a reclamação n° 06632, que foi indeferida por despacho de 2002-04-03, cfr. Doc.12, fls. 32 a 39.
H - Em 2003-01-28, F... e M... apresentaram ao R. o requerimento n° 642 no qual reiteravam a situação de desrespeito do afastamento mínimo entre edifícios, do qual resulta falta de salubridade e de exposição solar no prédio em que habitavam cfr. Doc. 25, fls. 41 a 47.
I - Na sequência de queixa apresentada por M..., o Provedor de Justiça emitiu a recomendação n°3-A/2007, da qual consta, por extrato, o seguinte: “…74. O que interessa é, pois, verificar se existe uma outra solução que, mantendo intocável a licença de construção concedida, salvaguarde o direito do residente no prédio vizinho a nele habitar condignamente, o mesmo é dizer, em condições de higiene e salubridade suficientes. 75. Para o efeito, não é de excluir como solução aquela que se descreve e se complementa pelo esboço da habitação do reclamante:
() 76. Tratando-se o local habitado pelo reclamante de fogo arrendado, estas intervenções sempre teriam de obter o consentimento prévio do senhorio. 77. Assim, e no caso de tal não se afigurar possível, por se desconhecer a identidade do senhorio13, ou por este não prestar a devida e necessária autorização, deverá o município de Setúbal ponderar o realojamento do munícipe/prejudicado. 78. Qualquer um destes meios apresenta-se-me como manifestamente vantajoso para o interesse público (acautelando, do mesmo passo, a defesa dos direitos do particular/prejudicado), quando comparado com a situação que se seguiria à declaração da nulidade da licença de construção com a consequente alteração da obra nos termos necessários para acautelar a salubridade da edificação confrontante, e concomitante obrigação de ressarcir todos os lesados pelos múltiplos e relevantes prejuízos que tal acção iria causar. (...)”, cfr. Doc. 28, fls. 49 a 74.

J - A presente ação foi interposta, em 2011-12-23, cfr. petição inicial remetida por via eletrónica.

K - O prédio onde habitava F... e M... encontra-se desabitado (acordo).»

II.2. De direito

i) Do erro de julgamento em que incorreu a decisão recorrida ao ter julgado verificadas, em sede de despacho saneador, as exceções de caducidade do direito de ação e por carência de objeto.

Sobre esta matéria, o discurso fundamentador da decisão recorrida foi o seguinte:

«(…) O Ministério Público interpõe a presente ação, através da qual pede, a declaração de nulidade do despacho de 1999-08-23 que aprovou o projeto de arquitetura e do despacho de 2000-08-08 que deferiu a emissão da licença de construção que deu origem ao alvará n° 480/2000, do despacho de 2002-05-02 que deferiu o pedido de alteração do projeto de arquitetura e do consequente despacho de 2002-07-23 que deferiu o pedido de alvará. Mais vem pedir a demolição do edificado.

Alega que:

- houve várias reclamações durante a construção do edifício que foram indeferidas, a pretexto de se tratar de “litígio jurídico privado”;

- os atos impugnados contrariam os artigos 60° e 73° do RGEU que prescrevem sobre distâncias mínimas, entre fachadas e respetivos vãos, imposições que se justificam pela necessidade de salvaguardar a salubridade do interior dos edifícios, permitindo o arejamento, iluminação naturais e exposição solar, dos compartimentos de habitação, servidos pelos vãos abertos nas fachadas e de proteger a intimidade da vida familiar, da visualização por estranhos.

- os atos sob impugnação afrontam o conteúdo essencial dos direitos fundamentais à integridade física e moral e o direito fundamental de natureza análoga, atinente a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, previstos nos artigos 25° e 66° da CRP e por referência ao artigo 9° n°1 da Lei de Bases do Ambiente.

(…)

Os direitos fundamentais atribuem posições jurídicas subjetivas aos seus titulares e tal como vem referido pelo Município de Setúbal, a estar em causa, na presente ação, um direito fundamental, seria o direito constitucional previsto no artigo 65° da CRP, ou seja, o direito a uma habitação de dimensão adequada com condições de higiene e conforto.

Porém, ao que resulta dos autos, esse direito já foi satisfeito pelo Município de Setúbal, ao facultar outra habitação a F... e M..., em conformidade com a recomendação da Provedoria de Justiça.

Além de que, ao que vem também alegado, o prédio onde viviam os queixosos encontra- se desabitado.

E sendo assim, o direito à habitação dos titulares dos direitos afetados encontra-se satisfeito.

Efetivamente, não está em causa a violação de qualquer norma destinada à preservação do meio ambiente, ou o conteúdo essencial dos direitos fundamentais à integridade física e moral, nem o direito fundamental de natureza análoga, atinente a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, previstos nos artigos 25° e 66° da CRP e por referência ao artigo 9° n°1 da Lei de Bases do Ambiente, porquanto, a questão em discussão não respeita à defesa de um direito ambiental difuso com titulares indeterminados mas a um pretenso direito ambiental subjetivo que tinha titulares concretos e que deixou de ter, na medida em que o prédio afetado ficou desabitado.

Deste modo e porque não subsiste nenhum outro direito fundamental que possa alicerçar a presente ação, a mesma carece de objeto como veio invocado pelo Município de Setúbal.

Na verdade, não se encontrando o edifício habitado apenas subsiste a invocada violação dos artigos 60° e 73° do RGEU que prescrevem sobre distâncias mínimas, entre fachadas e respetivos vãos e que conduz à anulabilidade dos atos.

A perfilhar-se o entendimento apresentado pelo Ministério Público, quando alega ser irrelevante que os inquilinos dos dois pisos deixassem de habitar o prédio, porquanto o prédio de habitação prejudicado com o licenciamento subsiste, e permanecem faltas de arejamento, exposição solar, iluminação e vista da paisagem, para quem quer que seja, com consequências, ao nível da salubridade e higiene mínimas habitacionais, tal equivaleria a considerar que a violação dos artigos 60° e 73° do RGEU, conduziria, inelutavelmente, à nulidade, porque sempre estaria em causa a alegada violação de um direito fundamental, designadamente, o alegado direito a um ambiente sadio.

Mas não é assim.

E isto porque, a violação dos artigos 60° e 73° do RGEU conduz à mera anulabilidade dos atos pelo que, nos termos do artigo 58° n°2 alínea a) do CPTA, tendo os atos impugnados sido praticados em 1999, 2000 e 2002 e tendo a presente ação administrativa especial sido interposta em 2011 é manifestamente extemporânea, por ter caducado o direito de ação.

Em conclusão e prejudicadas demais considerações, a exceção da falta de objeto deve ser julgada procedente porquanto foi facultada habitação aos queixosos e o prédio encontra-se desabitado e bem assim, a exceção da caducidade do direito de ação deve ser julgada procedente porquanto o pedido alicerçado na violação das normas dos artigos 60° e 73° do RGEU apenas pode conduzir à anulabilidade dos atos impugnados.(…)».

Desde já se adianta que a decisão recorrida é para manter. Vejamos porquê.

O acórdão recorrido começou por qualificar o desvalor imputado ao ato impugnado como mera anulabilidade e não nulidade, uma vez que vem invocada a violação de normas do RGEU. Este segmento da decisão recorrida é inteiramente de subscrever – no mesmo sentido veja-se, por exemplo, o ac. do TCAN, de 02.03.2012, P. 00473/09.6BEPNF, no qual se sumariou:

«I - Mesmo a verificar-se a violação dos normativos invocados pela recorrente, por alegadamente não terem sido cumpridas as distâncias entre as duas edificações, a perda de iluminação natural e arejamento, tais ilegalidades mesmo que enquadradas no direito a um ambiente de vida sadio e ecologicamente equilibrado (artº 66º da CRP) são apenas passíveis de anulação dos actos impugnados e nunca da sua declaração de nulidade.

II – E assim sendo, verifica-se a caducidade do direito de acção se a mesma foi intentada após o prazo de 3 meses previsto na al. b), do nº 2, do artº 58º do CPTA.»

E de cuja fundamentação decorre, e aqui se transcreve, por inteiramente aplicável ao caso em apreço, o seguinte [tendo presente que em ambos os casos vigorava ainda o CPA1991, pelo que as normas jurídicas infra citadas são-no por referência a este diploma]: «(…) A recorrente, neste recurso, versa somente matéria de direito, pretendendo que as ilegalidades apontadas ao acto impugnado sejam enquadradas nas figura jurídica da nulidade, para desta forma lograr ver tempestiva a apresentação em juízo da presente acção.

(…) Apenas pretende que a alegada violação dos artºs 58º, 59º, 63º e 73º do RGEU [referentes aos afastamentos legalmente exigidos, ao arejamento, iluminação natural e exposição solar], sejam considerados violação de direitos fundamentais ou análogos, designadamente do direito ao ambiente e qualidade de vida consagrado no artº 66º da CRP e deste modo, passíveis de gerar a nulidade do acto impugnado (…).

Porém, e como decidido na decisão recorrida, as ilegalidades apontadas, a procederem, apenas originariam a mera anulabilidade do despacho impugnado e nunca a sua nulidade, bastando para tanto ter em conta o disposto nos artºs 133º e 135º do CPA.

Com efeito, a sanção que recai sobre um acto administrativo inválido é da sua anulabilidade (artº 135º do CPA), só ocorrendo nulidade quando lhe faltar um dos seus elementos essenciais ou quando a lei expressamente o sancione com essa forma de invalidade (artº 133º do CPA).

O que significa que só são nulos dois tipos de actos administrativos:

a) os especificamente indicados na lei – os enumerados no nº 2 do citado artº 133º ou noutro preceito legal.

b) os que o são pela sua própria natureza, isto é, aqueles a que falta um dos seus elementos essenciais.

E esta opção do legislador é perfeitamente compreensível se atentarmos que o regime da nulidade (que gera a absoluta incapacidade de produzir efeitos e a possibilidade da sua impugnação judicial a todo o tempo) tem de ser conciliado com os princípios da certeza e da estabilidade, fundamentais na actividade e nas relações administrativas, de molde a não pôr em causa a eficácia e segurança desta actividade da administração com os seus administrados.

E porque assim é, a nulidade apenas se verifica quando existir norma que expressamente a declare.

Desta forma, repetimos, os actos nulos são por natureza aqueles a que falta qualquer um dos seus elementos essenciais, como resulta do disposto no nº 1, do artº 133º do CPA, considerando-se estes elementos essenciais, como aqueles aspectos que integram o conceito de acto administrativo contido no artº 120º do mesmo diploma legal.

Daí que se afirme que a sanção da nulidade só deve ser aplicada aos actos administrativos que, por carecerem dos seus elementos constitutivos, só formalmente têm essa aparência e a todos aqueles que sejam ofensivos dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagradas [cfr. al. d), do nº 2, do art.º 133º do CPA].

(…)

Com efeito, mesmo a verificar-se a violação dos normativos invocados pela recorrente, por alegadamente não terem sido cumpridas as distâncias entre as duas edificações, a perda de iluminação natural e arejamento, tais ilegalidades mesmo que enquadradas no direito a um ambiente de vida sadio e ecologicamente equilibrado (artº 66º da CRP) são apenas passíveis de anulação dos actos impugnados e nunca da sua declaração de nulidade.

Na verdade, se dúvidas não existem quanto à previsão legal da al. d), do nº 2 do artº 133º do CPA e de que a mesma é extensível à violação de direitos, liberdades e garantias do Título II da Parte I da CRP, bem como, aos direitos de carácter análogo àqueles incluídos no texto constitucional, ou em norma de direito internacional ou comunitário ou ainda em lei ordinária, o caso dos autos não tem aqui enquadramento legal.

Com efeito, como referem alguns autores, o que o legislador pretendeu, foi tutelar o chamado “núcleo duro” destes direitos, consagrando deste modo o artº 133º, nº 2, al. d) do CPA.

(…) Mas, caso a violação do direito fundamental não atinja o seu "conteúdo essencial" ou o seu "núcleo duro", então a sanção adequada será a anulabilidade.

Atento o supra exposto e tendo em consideração que os direitos que a recorrente alega que se encontram postergados, não preenchem este “núcleo duro”, nem tão pouco se podem enquadrar nos denominados direitos análogos, temos que não pode a eventual violação dos mesmos gerar a nulidade pretendida, para desta forma, obter a tempestividade da acção (sublinhados nossos).

A doutrina que dimana do aresto supra citado e transcrito é inteiramente aplicável ao caso em apreço, a saber, quanto ao entendimento de que a violação dos invocados art.s 60° e 73° do RGEU gera apenas a anulabilidade do ato impugnado e de a alegada violação do art. 66º da CRP, que consagra um direito fundamental a um ambiente de vida sadio e ecologicamente equilibrado, se reconduzir também ao mesmo desvalor jurídico por três ordens de razões:

i) não estarmos perante uma violação do “núcleo essencial” desse direito fundamental, na medida em que os beneficiários desse direito fundamental já não estão a ser afetados pela alegada violação do seu direito, pois já não habitam o prédio em causa. Ao exigir-se, nos termos do art. 133º, n.º 2, alínea d), do CPA1991, que um direito fundamental seja lesado no seu núcleo essencial, significa que a lesão deve ter alguma dimensão, pois, só desse modo, os atos que o violem serão nulos.

ii) o A., Ministério Público, embora possa intentar ações públicas para defesa de direitos fundamentais – ao abrigo do art. 9.º, n.º 2, do CPTA2002, em vigor à data de propositura da ação -, onde uma eventual violação ao direito ao ambiente se enquadra (1), no presente caso decorre da leitura da petição inicial – cfr. art. 1.º a 45.º onde elenca os factos que deram origem à ação – que o A. assume a violação do alegado direito ao ambiente de interessados concretos, que identifica como “reclamantes”, reclamantes esses cuja situação de vida e de facto está resolvida, tendo sido recolocados. O A., ora Recorrente, Ministério Público, não fez nos autos uma defesa geral e abstrata de um direito fundamental ao ambiente, mas sim uma defesa concreta, cuja violação, face a todo o exposto, não pode considerar-se que afetou o núcleo essencial do direito fundamental dos reclamantes que pretendia proteger.

Por esse motivo, não é que a ação não tenha objeto – como se decidiu no acórdão recorrido - mas sim que a violação do direito fundamental invocada na ação não afetando o seu núcleo essencial, que estava umbilicalmente ligado aos reclamantes enquanto concretos lesados – cfr. art.s 1.º a 45.º da petição inicial – não gera a nulidade dos atos impugnados.

Não estando violado esse núcleo, pois que não existe nenhuma consequência que se mantenha como lesiva, desabitado que está o imóvel em apreço – cfr. alínea k) da matéria de facto - a manter-se – e é essa a situação dos autos -, em causa está, apenas, anulabilidade dos atos impugnados, e não a sua nulidade.

Avancemos.

Os atos impugnados foram praticados entre 1999 e 2002 – cfr. alíneas B) a E) da matéria de facto.

A ação deu entrada em juízo em 2011 – cfr. alínea J) da matéria de facto.

O Ministério Público, quando pretende impugnar atos anuláveis, deverá fazê-lo no prazo de um ano a contar da data da prática do ato – cfr. art. 58.º, n.º 2, alínea a), e art 59.º, n.º 6, ambos do CPTA2002, em vigor à data em que a ação deu entrada em juízo.

Assim, imperioso se torna negar provimento ao recurso e manter o acórdão recorrido, que absolveu o R. Município de Setúbal, da instância, porém, dando apenas por verificada a exceção dilatória de caducidade do direito de ação, nos termos do art. 89.º, n.º 1, alínea h), do CPTA2002.

Por fim, carece também o Recorrente de razão quando alega que a decisão proferida não podia ter sido tomada em sede de despacho saneador – cfr. conclusão constante da alínea K) das alegações de recurso – importando chamar aqui à colação a doutrina que dimana da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo sobre esta questão, citada em recente acórdão (2), inteiramente aplicável ao caso em apreço:

(Acórdão do Pleno da Secção do CA de 13/10/2004, 0424/02): «I – O conhecimento da extemporaneidade do recurso contencioso tem precedência sobre a apreciação “de meritis”; II – Se o recorrente assevera que os vícios por si arguidos acarretam a nulidade do acto, deve a extemporaneidade do recurso averiguar-se através da formulação de um juízo hipotético, sob forma condicional, em que se determine qual é, na eventualidade de os vícios existirem, a forma de invalidade que lhes corresponde; VI – Assente que a hipotética existência dos vícios invocados pelas recorrentes, encarados segundo as únicas perspectivas em que eles são minimamente possíveis, só poderá acarretar a anulação do acto contenciosamente recorrido, e assente que o recurso contencioso foi interposto mais de dois anos depois de as recorrentes terem sido notificadas do acto, há que rejeitar o recurso contencioso, por extemporaneidade na sua interposição».

No mesmo sentido, o Acórdão de 14/12/2005 (0807/05): «III – assente que a hipotética existência dos vícios invocados, encarados segundo a única perspectiva possível e adequada (e não na perspectiva erradamente delineada pelo recorrente, e que o tribunal não tem que atender), só poderão acarretar a anulação do acto contenciosamente recorrido, é inequívoco, face à inobservância do prazo legal de interposição do recurso, que este é intempestivo e deve ser rejeitado».

E no Acórdão do Pleno da Secção do CA de 16/12/2004 (0620/04): «II – Para aferir da tempestividade do recurso, o tribunal deve atender à situação de facto tal como vem descrita na petição de recurso, mas não está vinculado à qualificação jurídica que o recorrente faz dos vícios invocados, nem da sanção que lhe corresponde» - no mesmo sentido, os Acórdãos de 20/3/1997 (035961) e de 14/1/1998 (037002).

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da secção do contencioso administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento a recurso e manter a decisão recorrida embora com fundamentação não inteiramente coincidente.

Sem Custas, atenta a isenção subjetiva do Recorrente (art. 4.º, n.º 1, alínea a), do RCP).

Lisboa, 17.12.2020.

Dora Lucas Neto

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A relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.°- A do Decreto-Lei n.° 10- A/2020, de 13.03., aditado pelo art. 3.° do Decreto-Lei n.° 20/2020, de 01.05., têm voto de conformidade com o presente acórdão os senhores magistrados integrantes da formação de julgamento, os Senhores Desembargadores Pedro Nuno Figueiredo e Ana Cristina Lameira.

(1) Neste sentido, v. GOMES CANOTILHO, in Estudos sobre Direitos Fundamentais, Coimbra Editora, 2004, pgs.183/189; JORGE MIRANDA, in Manual de Direito Constitucional, Tomo IV, pg. 65 e ss.
(2) P. 01846/17.6BEPRT, de 09.01.2020, disponível em www.dgsi.pt