Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:3668/23.6BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:03/19/2024
Relator:JOANA COSTA E NORA
Descritores:INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
PRESSUPOSTOS
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Sumário:I - Cabe a quem se pretenda valer da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, a demonstração da verificação dos pressupostos previstos no artigo 109.º, n.º 1, do CPTA, a qual deve assentar em factos cuja alegação se lhe impõe.
II - Para o efeito, deve o autor descrever uma situação factual de “lesão iminente e irreversível” dos direitos que invoca, não lhe bastando afirmar uma mera lesão dos mesmos.
III - A falta de verificação de tais pressupostos determina a absolvição da instância.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul:


I – RELATÓRIO

K…, nacional da Índia, residente em Portugal, intentou intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, contra o Ministério da Administração Interna. Pede a condenação da entidade demandada a decidir, no prazo de quinze dias, o pedido de concessão de autorização de residência por si apresentado. Alega, para tanto e em síntese, que: (i) Veio para Portugal em 01.10.2022, e está inscrito como contribuinte desde 06.10.2022, tendo iniciado a sua carreira contributiva em 03/2023, enquanto trabalhador subordinado ao abrigo de um contrato de trabalho a termo certo, ainda hoje desenvolvendo actividade profissional subordinada nesses termos; (ii) Em 14.10.2022, ao abrigo do artigo 88.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, apresentou manifestação de interesse junto do SEF, com vista à concessão de autorização de residência temporária com dispensa de visto para o exercício de actividade profissional subordinada, nos termos do disposto nos artigos 3.º, n.º 1, alínea x), 77.º e 88.º da referida lei e, com tal pedido, juntou os documentos legalmente previstos; (iii) O requerimento por si apresentado constituiu a entidade demandada no dever de decidir, nos termos do artigo 13.º do Código do Procedimento Administrativo, sujeito ao prazo de 90 dias, atento o disposto no artigo 82.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, prazo esse que já foi ultrapassado; (iv) A inércia da entidade demandada lança o autor numa situação de incerteza absoluta, limitadora do direito de decidir qual o rumo a dar à sua vida, pois está o mesmo indocumentado e reside ilegalmente em Portugal por não ser titular de autorização de permanência ou residência, embora aqui se mantenha a trabalhar desde 03/2023, e a pagar impostos e contribuições tal como os demais trabalhadores portugueses em idênticas condições; (v) Uma vez que o pedido formulado pelo autor se reporta a um documento de identificação, a falta de decisão por parte da Administração representa um obstáculo ao livre desenvolvimento da personalidade, nos termos do disposto no artigo 262.º, n.º 1, da Constituição; (vi) Vive de modo instável e com constante receio de uma possível expulsão, de invocar um apoio policial, caso necessite, de se deslocar livremente, de se apresentar e celebrar negócios civis básicos, de deslocar-se a um hospital, de tentar alcançar melhor trabalho, de reclamar as devidas condições para o trabalho, vivendo uma situação de profunda vulnerabilidade, devido à inércia da entidade demandada; (vii) A legalização da sua residência em Portugal é uma condição sine qua non para que consiga uma legal integração no mercado de trabalho e para que beneficie dos demais direitos dos cidadãos portuguesas, nos termos do artigo 15.º da Constituição; (viii) A omissão de decisão da entidade demandada coloca em causa o princípio da dignidade humana, bem como os seus direitos à liberdade, à livre deslocação no território nacional, à segurança, à identidade pessoal, a trabalhar, à estabilidade no trabalho e à saúde; (ix) O uso de meios cautelares é inidóneo pois uma providência antecipatória implicaria a atribuição efectiva, durante o tempo em que decorresse o processo principal, da autorização de residência, equivalendo à atribuição, de facto, do direito que só por via do processo definitivo havia de ser concedido, sobrepondo-se àquela que pudesse corresponder à do processo principal, além de que a providência cautelar, pela sua precariedade, tem um desfecho incerto e depende de uma acção principal, que poderá demorar muitos anos, e é normalmente objecto de recurso por parte da entidade demandada, o que aumenta a incerteza do autor, e o uso de um meio processual não urgente não acautelaria, em tempo útil, a situação do autor.
Admitida liminarmente a petição pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, a entidade demandada não apresentou resposta.
Foi proferida sentença a julgar improcedente a acção por a utilização do presente meio processual não se revelar indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de qualquer direito, liberdade ou garantia invocado pelo autor.
O autor interpôs o presente recurso de apelação, cujas alegações contêm as seguintes conclusões:
A) O Tribunal a quo faz uma interpretação errada da Lei, e ignora a Jurisprudência assente no STA, e no TCA Sul, sobre a idoneidade do presente instrumento legal.
B) A Intimação para a Defesa de Direitos, Liberdades e Garantias é 0 ÚNICO instrumento legal adequado para a defesa dos interesses do Recorrente; os quais estão violados.
C) Designadamente, mas não só, o Direito a uma decisão procedimental em tempo razoável (artigo 266.º, n.º 1 da CRP, e artigos 5.º, e 59.º, do CPA).
D) E, também, e uma vez que o procedimento no qual se verificou o atraso desrazoável (atraso de mais de 14 meses) diz respeito à obtenção de um documento de identificação pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade (artigo 26.º, da CRP).
E) Perante a inércia do Recorrido AIMA I.P., o Recorrente fica sem saber qual o grau de estabilidade da sua permanência em território português; o que se repercute nas decisões que tenha de tomar a nível familiar, pessoal e profissional.
F) A Intimação para a Defesa de Direitos, Liberdades e Garantias é o instrumento legal mais adequado na defesa dos valores constitucionais em jogo.
G) O uso de providência cautelar, pela sua precariedade é INCERTO no seu desfecho.
H) Depende de uma Ação Principal; que poderá - e, seguramente - demorará anos e anos.
I) Somado ao facto de o Recorrido AIMA I.P. atualmente recorrer das providências cautelares.
J) O que aumenta ainda mais a incerteza do Recorrente.
K) Existe Jurisprudência no TCA SUL assente sobre a idoneidade do presente instrumento legal.
L) E, também no STA.
M) Desde 2019 que temos uma reversão jurisprudencial.
N) O Recorrente vê ameaçada a sua identidade em território nacional, e o seu emprego, está a pagar impostos e contribuições, mas não vê reconhecidos os seus direitos.
O) O Tribunal a quo não está a acatar a posição do TCA SUL e STA.
P) Estão ultrapassados os prazos legais previstos no artigo 11.º, 1, do CPTA.
Q) Não existe tempo a perder, devendo o Recorrido AIMA I.P. ser devidamente intimado a decidir e a emitir o título de residência do Recorrente.
R) Estão violados os artigos 1.º, 13.º, 15.º, 26.º, 27.º, 36.º, 44.º, 53.º, 58.º, 59.º, 64.º, 67.º, 68.º, e 266.º, da CRP.
S) E, o artigo 109.º, do CPTA.
T) E, os artigos 77.º, 82.º, e 88.º, da Lei 23/2007.
U) Os artigos 5.º, 8.º, 10.º, 13.º, e 59.º, do CPA.
V) E, os artigos 607.º, n.º 4 (ex vi artigo 1.º, da CRP), 639.º, e 639.º, do CPC.
A entidade recorrida não respondeu à alegação do recorrente.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pugnou pela improcedência do recurso, sustentando que não se encontram verificados os pressupostos de recurso ao processo de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, reiterando a fundamentação da sentença recorrida.
Sem vistos dos juízes-adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. n.º 2 do artigo 36.º do CPTA), cumpre apreciar e decidir.


II – QUESTÕES A DECIDIR

A questão que ao Tribunal cumpre solucionar é a de saber se a sentença recorrida padece de erro de julgamento por ter considerado não verificados os pressupostos de que depende o recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias.


III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida fixou os seguintes factos, que considerou provados:
“A) Em 14.10.2022, o Requerente, nacional da Índia, apresentou uma manifestação de interesse junto do SEF, destinada a obter a concessão de autorização de residência para exercício de atividade profissional subordinada (cf. documentos n.ºs 1 e 5, juntos com a petição inicial).
B) A manifestação de interesse referida na alínea anterior foi instruída com diversos documentos do Requerente, designadamente, com cópia do passaporte, cópia do contrato de trabalho, e comprovativos de inscrição na Autoridade Tributária e Aduaneira e na Segurança Social (cf. documentos de fls. 46 a 66 dos autos).
C) O SEF não proferiu decisão sobre a concessão de autorização de residência solicitada pelo Requerente, encontrando-se a manifestação de interesse referida na alínea A) supra, na situação de «Aguarda Aceitação da MI» (cf. fls. 46 e 47 dos autos).”


IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Alega o recorrente que a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, “é o único instrumento legal adequado” à defesa dos interesses que pretende fazer valer e dos valores constitucionais associados, e que um processo cautelar depende de uma acção principal, que poderá demorar anos, aos longo dos quais o mesmo se manterá num estado de incerteza. Mais alega que a jurisprudência tem vindo a decidir nesse sentido e que o Tribunal “a quo” não acatou essa jurisprudência.

A sentença recorrida julgou improcedente a acção por não estar demonstrado o pressuposto de recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, da indispensabilidade de uma célere decisão de mérito, o que fez com a seguinte fundamentação fáctico-jurídica:
“(…) o Requerente não aduziu factos que, em concreto, configurem uma situação para a qual seja necessária uma célere decisão de mérito indispensável para evitar, em tempo útil, a lesão dos direitos que invoca, tais como os direitos à segurança, à identidade pessoal, a trabalhar, à estabilidade no trabalho e à saúde.
(…)
Por outro lado, a circunstância de o Requerente estar a aguardar por uma decisão sobre o seu pedido de concessão de autorização de residência, desde 14.10.2022, não consubstancia, só por si, uma situação de urgência cuja tutela jurisdicional só possa ser assegurada, em tempo útil, através da presente intimação.
Na realidade, o Requerente na presente intimação, referindo-se à urgência do pedido, veio alegar, em abstrato, designadamente que «[p]erante a inércia do R. SEF, e conforme ditam as regras da experiência (que aqui valem como presunção judicial), o A. fica sem saber qual o grau de estabilidade da sua permanência tem território nacional; o que, fatalmente, afeta e se repercute na vida profissional, familiar e pessoal. // Não só porque, nas atuais circunstâncias, não sabe que rumo dar à sua vida // mas, também, porque vive de modo instável, e com constante receio de uma possível expulsão, ou de invocar um apoio policial; caso necessite. // Ou, de se deslocar livremente. // Ou, de se apresentar e celebrar negócios civis básicos. // Ou, de deslocar-se a um hospital. // Ou, de tentar alcançar melhor trabalho. // Ou, ainda, de reclamar as devidas condições para o trabalho que consiga angariar nessa situação. // Em resumo: é evidente que o A. vive uma situação de profunda vulnerabilidade; por força da inércia do R. SEF perante o seu Dever de Decisão. (…)» (cf. artigos 38.º a 46.º, da petição inicial). Tal significa, portanto, que o Requerente não densificou factos concretos, acompanhados do respetivo suporte probatório, aptos a configurar uma situação de urgência iminente que justifique a intimação da Entidade Requerida a proferir, de imediato, uma decisão sobre a manifestação de interesse apresentada, em 14.10.2022, junto do SEF.
(…)
Transpondo os referidos entendimentos jurisprudenciais para a situação ora em apreço, conclui-se, perante as circunstâncias do caso concreto, que a utilização do presente meio processual não se revela indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de qualquer direito, liberdade ou garantia invocado pelo Requerente.”

Vejamos.

A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias “(…) pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.” - cfr. artigo 109.º, n.º 1, do CPTA. Trata-se de um meio processual sumário e principal, pois que visa a prolação de uma decisão urgente e definitiva, recortado para “situações de especial urgência (lesão iminente e irreversível de DLG)” e “destinado a conferir protecção qualificada aos direitos, liberdades e garantias, no âmbito da concretização do comando constitucional consignado no n.º 5 do artigo 20.º da CRP.” – cfr. FERNANDA MAÇÃS, “Meios Urgentes e Tutela Cautelar”, «A Nova Justiça Administrativa», Centro de Estudos Judiciários, 2006, Coimbra Editora, pp. 94 e 95. Por isso mesmo, esta intimação tem carácter excepcional, só se justificando se constituir o único meio para obstar à violação de um direito, liberdade e garantia, sendo a regra a da utilização da acção não urgente, sempre que esta, ainda que conjugada com o processo cautelar, seja apta a satisfazer a pretensão deduzida em juízo.
Nestes termos, a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, apenas pode ser utilizada quando se verifiquem os referidos pressupostos; ou seja, não só (i) que a célere emissão de uma decisão de mérito se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, mas também (ii) que, nas circunstâncias do caso, não seja possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar. Assim, cabe a quem pretenda valer-se deste meio processual alegar factos concretos idóneos ao preenchimento dos referidos pressupostos, de modo a demonstrar que a situação concreta reclama uma decisão judicial definitiva e urgente.
No que concerne ao primeiro pressuposto – o da indispensabilidade da emissão de uma célere decisão de mérito para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia -, como escrevem Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª edição, Almedina, 2017, p. 883, o seu preenchimento“(…) pressupõe que o requerente concretize na petição os seguintes aspectos: a existência de uma situação jurídica individualizada que caracterize um direito, liberdade e garantia, cujo conteúdo normativo se encontre suficientemente concretizado na CRP ou na lei para ser jurisdicionalmente exigível por esta via processual; e a ocorrência de uma situação, no caso concreto, de ameaça do direito, liberdade e garantia em causa, que só possa ser evitada através do processo urgente de intimação. Não releva, por isso, a mera invocação genérica de um direito, liberdade ou garantia: impõe-se a descrição de uma situação factual de ofensa ou preterição do direito fundamental que possa justificar, à partida, ao menos numa análise perfunctória de aparência do direito, que o tribunal venha a intimar a Administração, através de um processo célere e expedito, a adoptar uma conduta (positiva ou negativa) que permita assegurar o exercício em tempo útil desse direito.”
Quanto ao segundo pressuposto – o da impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar -, “A impossibilidade poderá resultar do facto de o juiz, para se pronunciar, ter necessariamente de ir ao fundo da questão, o que, como é sabido, lhe está vedado no âmbito dos procedimentos cautelares. Por sua vez, a insuficiência respeita à incapacidade de uma decisão provisória satisfazer as necessidades de tutela do particular, posto que estas apenas lograrão obter satisfação com uma tutela definitiva, sobre o fundo da questão. Estamos a referir-nos àquelas situações sujeitas a um período de tempo curto, ou que digam respeito a direitos que devam ser exercitados num prazo ou em datas demarcadas, maxime, questões relacionadas com eleições, actos ou comportamentos que devam ser realizados numa data fixa próxima ou num período de tempo determinado (como exames escolares ou uma frequência do ano lectivo), situações de carência pessoal ou familiar em que esteja em causa a própria sobrevivência pessoal de alguém, ou, ainda, casos relativos à situação civil ou profissional de uma pessoa.” – cfr. CATARINA SANTOS BOTELHO, “A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias: quid novum?”, O Direito, n.º 143, I, 2011, pp. 31-53.

Considerando o descrito enquadramento jurídico, cumpre aferir se se mostram verificados no caso os pressupostos de recurso ao meio processual utilizado pelo autor.

Antes de mais, àquele que lança mão de uma intimação para protecção de direito, liberdades e garantias, cabe alegar factos que traduzam uma situação de indispensabilidade de uma tutela definitiva urgente, o que, naturalmente, se associa à demonstração da insuficiência de tutela através de uma acção administrativa, de natureza não urgente, ainda que associada ao decretamento de uma providência cautelar. Dependendo a utilização de tal meio processual da verificação de pressupostos legalmente definidos, a demonstração dessa verificação cabe a quem do mesmo se pretenda valer, devendo tal revelação assentar em factos cuja alegação se lhe impõe.
Ora, o recorrente limita-se a alegar que deu entrada do seu pedido para concessão de autorização de residência, ao abrigo do artigo 88.º, n.º 2 da Lei n.º 23/2007 de 04 de Julho, através de manifestação de interesse apresentada junto da entidade demandada, em 14.10.2022, tendo entrado legalmente em território nacional e apresentado toda a documentação legal exigida para o efeito junto do SEF, não tendo o seu pedido sido, até à data, objecto de decisão. Mais alega que se encontra numa situação de incerteza absoluta, limitadora do direito de decidir qual o rumo a dar à sua vida, pois reside em Portugal sem dispor de autorização de residência para o efeito, embora aqui se mantenha a trabalhar desde 03/2023, e a pagar impostos e contribuições tal como os demais trabalhadores portugueses em idênticas condições, vivendo, assim, de modo instável, numa profunda vulnerabilidade, e com constante receio de uma possível expulsão, de invocar um apoio policial, caso necessite, de se deslocar livremente, de se apresentar e celebrar negócios civis básicos, de deslocar-se a um hospital, de tentar alcançar melhor trabalho, de reclamar as devidas condições para o trabalho. Neste cenário, e em virtude da omissão de decisão do seu pedido de autorização de residência, invoca (i) a violação do dever de decisão que impende sobre a entidade demandada, nos termos do artigo 82.º da referida lei e do artigo 13.º do Código do Procedimento Administrativo, (ii) a violação dos seus direitos à segurança no emprego, à vida familiar, à liberdade e à segurança, à identidade pessoal, e à protecção da saúde, consagrados, respectivamente, nos artigos 53.º, 36.º, 27.º, 26.º e 64.º da Constituição da República Portuguesa, (iii) a violação do princípio da equiparação ou do tratamento nacional, previsto no artigo 15.º, n.º 1, da Constituição.
Todavia, não concretiza minimamente a ameaça de tais direitos, de modo a aferir-se da necessidade de uma tutela definitiva urgente. Efectivamente, o autor recorrente não descreve uma situação factual de “lesão iminente e irreversível” dos direitos que invoca – necessária ao preenchimento dos pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias -, limitando-se a afirmar uma mera lesão dos mesmos, não sendo possível extrair da sua alegação qualquer urgência para o recorrente na concessão de autorização de residência. Tal carência de alegação factual basta, só por si, para concluir pela falta de verificação dos pressupostos de recurso a este meio processual, atendendo a que tais pressupostos carecem de concretização, não sendo aferíveis em geral e abstracto, antes casuisticamente, em face de uma determinada e específica situação individual e concreta.
Nas conclusões das suas alegações, veio o recorrente afirmar que a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, “é o único instrumento legal adequado” à defesa dos interesses que pretende fazer valer e dos valores constitucionais associados. Todavia, trata-se de uma mera – e extemporânea – conclusão sem qualquer substracto factual. Mais refere que um processo cautelar depende de uma acção principal, que poderá demorar anos, aos longo dos quais a mesma se manterá num estado de incerteza. Mas tal constatação desconsidera, em absoluto, a tutela que o processo cautelar assegura.
De todo o modo, sempre se dirá que, atentos os contornos factuais alegados, a situação de facto descrita pelo autor recorrente é susceptível de ser acautelada com a adopção de uma providência cautelar que intime a entidade demandada a emitir um título de residência provisório, de modo a permitir que o autor permaneça, de modo regular, em Portugal até ser proferida decisão em acção principal de condenação a decidir o pedido de autorização de residência, não se mostrando, assim, imprescindível, nem sequer necessário, que se decida definitivamente com carácter urgente se o autor tem direito à emissão de autorização de residência.
Tal decretamento, para além de suficiente para tutela dos direitos cuja violação o recorrente invoca, não põe em causa o regime de entrada, permanência, saída e afastamento de cidadãos estrangeiros do território português, constante da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, considerando que a entidade a quem cabe decidir o pedido de autorização de residência não se pronunciou ainda sobre o preenchimento das condições legalmente previstas para a concessão de tal autorização.
Ante o exposto, nem se revela indispensável a emissão de uma decisão de mérito urgente para assegurar o exercício, em tempo útil, dos direitos que o autor invoca, nem é impossível ou insuficiente para o efeito o decretamento de uma providência cautelar, pelo que não se mostram verificados os pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias.
Contudo, a falta de verificação de tais pressupostos determina a absolvição da instância, e não a improcedência do pedido, como se decidiu na sentença recorrida. Com efeito, não podendo o pedido ser julgado improcedente se não chegou a ser apreciado, constituindo a falta de verificação dos pressupostos de recurso ao processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, excepção dilatória inominada que, como tal, obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância – cfr. artigo 89.º, n.º 2, do CPTA.
Por fim, insurgindo-se o recorrente contra a falta de “acatamento”, por parte do Tribunal a quo, da jurisprudência que invoca para sustentar a idoneidade da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias no caso em apreço, cabe referir que o sentido de tal jurisprudência não é independente da factualidade alegada em cada uma das situações concretas a que se reporta (antes sendo por ela condicionada). Acresce que a “jurisprudência” – correspondente ao conjunto de decisões dos tribunais de recurso – não tem, no nosso sistema jurídico, força vinculativa fora do processo a que respeita. Nos termos do n.º 1 do artigo 4.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que estabelece as normas de enquadramento e de organização do sistema judiciário, aplicável aos tribunais administrativos por força do artigo 7.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, “Os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores.”, donde se retira que tal dever de acatamento apenas opera no próprio processo a que respeita.

Termos em que se impõe julgar improcedentes os fundamentos de recurso invocados.
*
Sem custas, nos termos do artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do Regulamento das Custas Processuais.


V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da Subsecção comum da Secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, absolver a entidade demandada da instância.

Sem custas.


Lisboa, 19 de Março de 2024

Joana Costa e Nora (Relatora)
Carlos Araújo
Lina Costa