Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:143/22.0BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:07/13/2023
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:CADUCIDADE DO DIREITO DE AÇÃO
NULIDADE DA LIQUIDAÇÃO
TEMPUS REGIT ACTUM
Sumário:I. Ainda que a Impugnante configure o vício que alega como nulidade, tal configuração não vincula o julgador.

II. A liquidação indevida de impostos, por erro nos seus pressupostos, não configura, per se, um ato que ofenda o conteúdo essencial de um direito fundamental, concretamente do direito de propriedade privada.

III. Quando esteja em causa a apreciação da legalidade de um ato tributário, a mesma tem de ser aferida segundo o princípio tempus regit actum.

IV. A alínea k) do n.º 1 do art.º 161.º do CPA visa salvaguardar, designadamente do ponto de vista tributário, que os atos de liquidação tenham base legal.

V. Mesmo as questões de conhecimento oficioso, que não originem nulidade, exigem, como pressuposto de partida, que o meio processual tenha sido apresentado tempestivamente.

Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I. RELATÓRIO

F. I. – S. P. S., Lda (doravante Recorrente ou Impugnante) veio recorrer da sentença proferida a 28.02.2023, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual se julgou verificada a caducidade do direito de ação e, em consequência, se absolveu a Fazenda Pública (doravante Recorrida ou FP) do pedido.

Apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“A) A douta sentença de que aqui se recorre considerou erradamente que no caso em apreço se verificava a exceção peremptória de caducidade do direito de ação. Absolvendo, consequentemente, a Fazenda Pública do Pedido.

B) Alegando para tal, o douto Tribunal a quo que “ (…) no âmbito do direito tributário tal como sucede no direito administrativo em geral, vigora o princípio do tempus regit actum, no seguimento do qual a validade de um determinado acto de liquidação de imposto deve ser aferida à luz das normas em vigor à data da sua prática.”

C) Acrescentando ainda o douto tribunal a quo “Neste contexto, não se ignora que os atos que criam obrigações pecuniárias não previstas na lei só foram, expressamente, qualificados como actos nulos no art. 161º nº 2 do CPA, na redação e renumeração que lhes foram conferidas com a aprovação e entrada em vigor do Decreto – Lei nº 4/2015, de 07.01, em 08 de Abril de 2015, nos termos do art.º 9º deste diploma legal, ou seja, muito depois da data da prática actos de liquidação adicional de IVA, objeto da presente impugnação a qual corresponde ao dia 24 de julho de 2010 (Cfr. pontos nºs 1 a 9 do probatório)”

D) Concluindo, erroneamente o douto Tribunal a quo, que a Impugnante intentou a presente impugnação judicial fora de prazo, à luz do disposto no artigo 102º nº 1 alínea a) do CPPT e do artigo 279º alíneas b) e e) do CC aplicável ex vi do art.20º nº 1 do CPPT.

E) Ora, salvo o devido respeito que é muito a decisão proferida pelo Tribunal a quo, não pode ser mantida na ordem jurídica, devendo consequentemente ser substituída por outra.

F) A Recorrente e as sociedades F. S. G., S.A., e F. H. S., Lda., pessoas coletivas números … 417 e … 594, respetivamente, celebraram entre si, um contrato de prestação de serviços, ao abrigo do qual a F. I., Lda.., se comprometia a ceder vigilantes titulares da necessária habilitação legal, àquelas sociedades, garantindo assim a primeira a prestação de serviços de vigilância e segurança. E, ao abrigo deste contrato e por conta desta cedência de pessoal a aqui Recorrente, emitiu as faturas, juntas aos presentes autos com a P.I.

G) Em causa, nas faturas, está apenas o valor dos salários, do subsídio de alimentação e dos custos com a segurança social dos trabalhadores cedidos. Contudo, foram, assim, ilegalmente, ao valor da cedência dos funcionários, acrescidos os valores de IVA.

H) Atento o entendimento, em sede do Código do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (CIVA), da cedência de pessoal, nas situações em que as entidades cedentes, que somente pretendam ser reembolsadas dos montantes despendidos relativos ao pessoal cedido, emitem a correspondente fatura, a cedência de pessoal não é considerada, para efeitos de tributação em IVA, como prestação de serviços.

I) Isto porque, no caso concreto, o montante debitado à entidade a quem foi cedido o pessoal, corresponde, comprovadamente, pura e simplesmente, ao reembolso exato das despesas com ordenados ou vencimentos, os respetivos encargos com a segurança social e quaisquer outras importâncias, obrigatoriamente suportadas pela entidade a que pertencem os trabalhadores, por força de contrato de trabalho ou outra legislação aplicável.

J) As faturas objeto dos presentes autos, não titulam matéria sujeita a tributação em sede de IVA. Pois, da breve análise das supra mencionadas faturas, constata-se que as mesmas se referem única e exclusivamente a cedência de pessoal, apesar de constar em cada uma das faturas a menção “Encargos Suportados pela F. I., Lda., relativos aos funcionários cedidos à F. S. G., S.A., - Salários líquidos; - Segurança Social; - Subsídio de Alimentação; - Encargos Fiscais;” E depois o mês de referencia, ou seja, Fevereiro 2009, Março 2009, Abril 2009, Maio 2009; Junho 2009, Julho 2009, Agosto 2009, Setembro 2009, Outubro 2009, Novembro 2009 e Dezembro 2009.

K) Constata-se ainda, que a entidade cedente, in casu a Recorrente., apenas e somente pretende ser reembolsada dos montantes despendidos relativos ao pessoal cedido.

L) Nestes casos, a cedência de pessoal não é considerada para efeitos de tributação em sede de IVA, como prestação de serviços, desde que o montante debitado à entidade a quem foi cedido o pessoal, corresponda comprovadamente ao reembolso exato das despesas com ordenados ou vencimentos, os respetivos encargos com a segurança social, e quaisquer outras importâncias, obrigatoriamente suportadas pela entidade a quem pertencem os trabalhadores, por força de contrato de trabalho ou outra legislação aplicável.

M) Concomitantemente, é este o entendimento na doutrina expressa pela administração fiscal, que na sequência do despacho nº 384/99- XII, de sua Exa. o Ministro das Finanças de 13/10/1999, foi elaborado o Ofício Circulado nº 30019 de 04/05/2000, da Direção de Serviços do IVA que, tendo em vista uniformizar procedimentos, divulga a não sujeição a impostos das operações de cedência de pessoal em todas as situações em que o montante debitado comprovadamente corresponda ao reembolso exato das despesas com ordenados ou vencimentos, quotizações para a segurança social e quaisquer outras importâncias obrigatoriamente suportadas pela empresa a que pertence o trabalhador, por força de contrato ou previstas na legislação aplicável (v.g. Prémios de seguros de vida, complementos de pensões, contribuições para fundos de pensões, etc).

N) Ora, sendo este o entendimento e a obrigatoriedade desde o ano de 2000, aquando da emissão das faturas aqui em causa, 2009, e que originaram as liquidações adicionais ora impugnadas, a sociedade não devia, nem podia liquidar IVA.

O) E, isto porque, como acima descrito, as operações tituladas pelas respetivas faturas, são operações de “Cedência de Pessoal”, logo, não sujeitas a IVA.

P) Contudo, e erradamente, a sociedade emitiu a fatura e liquidou o IVA correspondente. E isto porque, à data dos factos, a mesma estava a ser alvo de um procedimento inspetivo por parte da AT, e foi a indicação dada pelos técnicos tributários que se encontravam a realizar o referido procedimento de inspeção. Ou seja, a Impugnante., emitiu as faturas com IVA, porque foi essa a informação, incorreta, que lhe foi transmitida pelos técnicos tributários, conforme se pode comprovar pelo relatório da inspeção tributária.

Q) Consequentemente, tais faturas originaram os montantes de IVA constantes das Liquidações adicionais, criando desta forma um imposto que não é devido.

R) Por conseguinte, tais liquidações deram origem a uma dívida indevida de IVA para a sociedade, e inclusive para o administrador da mesma, a quem é imputado, além do mais, a alegada prática de ilícito criminal.

S) Assim, pelo exposto, os atos de liquidação adicional encontram-se feridos de ilegalidade por assentar em pressupostos de errónea qualificação e quantificação dos rendimentos. É indubitável, que os mesmos se encontram feridos de nulidade. Nulidade, que se encontra expressamente consagrada na alínea d) e k) do artigo 161º do Código de Procedimento Administrativo (CPA).

T) Desta forma, e nos termos do disposto no nº 3 do artigo 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário permite que a Impugnação Judicial seja deduzida a todo o tempo, se o fundamento for a nulidade.

U) Ora, no caso dos presentes autos, os vícios de que padecem os atos de liquidação adicional são geradores de nulidade.

V) Pois que, não estando prevista em qualquer lei fiscal o regime de nulidade dos atos é aplicável subsidiariamente (ex vi artigo 2º alínea d) do CPPT), o artigo 161º do Código de Procedimento Administrativo, o qual prevê que “1- São nulos os atos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade”. Nomeadamente, os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental.

W) Estes, atos hão-de-ser aqueles que contendem com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

X) Nos termos do disposto na Constituição da República Portuguesa, os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental, são atos tributários feridos de nulidade, e, concomitantemente, enquadráveis no disposto no artigo 161º do CPA.

Y) In casu, a liquidação de um imposto que não é devido, é um ato nulo, pois é, indubitavelmente, violador do direito de propriedade privada (artigo 62º da Constituição da República Portuguesa), que é um dos direitos fundamentais, porque consta da enumeração da Parte I da CRP, que tem como epígrafe “Direitos e deveres fundamentais”.

Z) Acresce que, o nº 2 do artigo 161º do CPA enuncia taxativamente os atos nulos, nos quais se encontra os fundamentos elencados pela aqui Impugnante, pois que, os atos de liquidação adicional ora impugnados manterem-se no ordenamento jurídico, criam, indubitavelmente, uma obrigação pecuniária não prevista na lei.

AA) Verifica-se assim, que os vícios assacados aos atos de liquidação adicional de IVA aqui em escrutínio, geram, impreterivelmente, a sua declaração de nulidade.

BB) A nulidade, conforme é recorrentemente afirmado, constitui a forma mais grave de invalidade. Assim, o ato ferido de nulidade é ineficaz, não produzindo qualquer efeito, ab initio, é insanável, quer pelo decurso do tempo, quer pela ratificação, reforma ou conversão (Cfr. nº 2 do artigo 162º nº 1 e artigo 166º do CPTA).

CC) É suscetível de impugnação a todo o tempo e perante qualquer tribunal, e pode ser conhecida a todo o tempo por qualquer órgão administrativo e o seu reconhecimento tem natureza meramente declarativa (artigo 162º nº 2 do CPA).

DD) “A nulidade constitui a forma mais grave de invalidade, torna o ato totalmente ineficaz, é insuscetível de sanação, é impugnável a todo o tempo perante os tribunais, sendo que este conhecimento judicial concorre com o conhecimento administrativo”, Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, Processo 00007/09.2BEMDL, de 09/06/2010.

EE) Para mais, como já supra alegado e sobejamente demonstrado, os atos de liquidação adicional de IVA, objeto nos presentes autos, são nulos, em virtude de criarem obrigações pecuniárias não previstas na lei, porque as operações que as originaram são operações não sujeitas a Imposto sobre o Valor Acrescentado. E ainda, porque os mesmos, ofendem o conteúdo essencial de um direito fundamental.

FF) Nesta conformidade, tendo os vícios alegados pela Impugnante, a virtualidade, de gerar nulidade dos atos tributários, a presente ação não está vinculada ao prazo previsto no artigo 102º nº 1 do CPPT, pois que, nos termos do nº 3 do mesmo dispositivo legal, verifica-se ausência de prazo para intentar impugnação judicial.

GG) Assim, e por tudo supra explanado, e provado com saciedade a nulidade de que padecem os atos de liquidação adicional, os mesmos não podem ser mantidos na ordem jurídica, tendo impreterivelmente, de ser declarados nulos, com todas as cominações legais.

HH) Devem, assim, os atos de liquidação adicional de IVA supra elencados, bem como os atos de liquidação de juros compensatórios que deles decorre ser anulados, por ilegais, o que expressamente se requer.

II)Acresce que, como já supra mencionado a aqui Impugnante, F. I. – S. P. S., Lda. foi alvo de um processo-crime pela alegada prática de crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), que culminou a final com uma condenação.

JJ) Sucede que, as faturas que deram origem às liquidações adicionais ora impugnadas, nunca foram pelas sociedades, F. S. G. S.A. e F. H. S., Lda liquidadas. Isto significa que, os valores de IVA constantes das liquidações adicionais, nunca foram pagos à sociedade F. I. – S. P. S., Lda.

KK) Assim, urge chamar à colação, o acórdão de uniformização de jurisprudência nº 8/2015 de 02 de junho, do Supremo Tribunal de Justiça, que estabelece que “A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a EUR 7500 relativa a quantias devidas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105º nº 1 e nº 2 do RGIT, se o agente as tiver, efetivamente, recebido.”

LL) No caso aqui em escrutínio, as Liquidações adicionais de IVA, que criaram uma dívida de imposto para a empresa e para o seu responsável solidário, tiveram origem em faturas pela sociedade emitidas, mas que nunca foram liquidadas àquela.

MM) Assim, a prestação tributária (IVA) não podia ser liquidada pela empresa, na medida em que tais montantes não foram sequer recebidos. Pois que, o contribuinte apenas tem a obrigação legal de liquidar quando a prestação tributária, tiver, efetivamente, sido recebida.

NN) Ora, o IVA opera pelo método de crédito de imposto, assumindo o sujeito passivo a qualidade de devedor ao Estado pelo valor do tributo que fatura aos seus clientes, nas vendas efetuadas ou nos serviços prestados em determinado período (imposto liquidado ou a favor do Estado) e, em contrapartida, é credor do Estado pelo imposto suportado nos seus inputs, no mesmo período (imposto suportado ou imposto a favor do sujeito passivo). Assim, o sujeito passivo é devedor do montante do tributo faturado (contribuinte direto) mas assume igualmente as vestes de credor do imposto nas aquisições realizadas. A entrega nos cofres do Estado resume-se ao diferencial, sendo o consumidor final quem suporta o tributo (contribuinte de facto) embora o mesmo seja entregue ao Estado pelo sujeito passivo de IVA.

OO) Como referem Jonatas Machado e Paulo Nogueira da Costa, “O IVA assenta na distinção entre IVA repercutido, IVA suportado e IVA a pagar. O IVA repercutido é adicionado na fatura emitida ao cliente; o IVA suportado corresponde ao IVA que pagamentos quando adquirimos um bem ou serviço e o IVA a pagar consiste na diferença entre o IVA repercutido e o IVA suportado.”

PP) Por outras palavras, cada empresa paga o IVA relativo ao valor por ela acrescentado ao produto na cadeia produtiva, ao passo que o consumidor paga um imposto que reflete o valor total do bem. Assim, o funcionamento do IVA é relativamente simples, o que se traduz em custos administrativos e económicos aceitáveis. Todas as empresas são sujeitos passivos de imposto, mas podem deduzir os impostos pagos nas compras de bens e serviços diretamente relacionados com a respetiva atividade nos impostos devidos pelas vendas.

QQ) O imposto devido é apurado através da dedução do IVA pago nas aquisições (necessárias ao processo de produção e distribuição) ao IVA cobrado nas operações ativas realizadas (transmissões ou prestações de serviços). O resultado final é a imputação a cada sujeito passivo da responsabilidade de entregar ao Estado o imposto sobre o valor que acrescentou ao processo de produção e distribuição.

RR) Em síntese, pode-se afirmar que o citado artigo 105º do RGIT visa situações de substituição tributária configurando um crime omissivo, de mera inatividade, em que a omissão integradora do ilícito tem a seu montante uma ação consubstanciadora numa conduta legal de prévia dedução que conduz a que o substituto se converta num depositário das quantias deduzidas, assumindo-se como um intermediário no processo de arrecadação da receita e constituindo-se na obrigação de dar o devido destino, traduzindo-se a omissão subsequente na violação da obrigação de entrega do retido.

SS) Ora, in casu, não havendo pagamento da prestação tributária por parte do consumidor, não há qualquer substituição na obrigação de entrega ao Estado. Pois que, não havendo depósito, não há depositário.

TT) Acresce que, nos termos do disposto no artigo 103º nº 3 da Constituição da República Portuguesa, “Ninguém pode ser obrigado a pagar impostos que não hajam sido criados nos termos da Constituição, que tenham natureza retroativa ou cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei.”

UU) Ora, incidindo a liquidação adicional sobre IVA que não foi liquidado pelo consumidor final, e que não estava obrigado a entregar nos cofres do Estado, a manutenção das liquidações adicionais ora impugnadas no ordenamento jurídico, viola, inequivocamente, o estatuído no artigo 103º nº 3 da CRP.

VV) Neste sentido, as Liquidações adicionais aqui postas em crise, não podem permanecer na ordem jurídica, nem produzirem quaisquer efeitos, primeiro porque titulam operações não sujeitas ao pagamento do imposto (IVA), segundo, porque o valor a elas correspondente não foi liquidado, pelo que, não existe qualquer obrigação legal de entrega nos cofres do Estado, porque, o mesmo não foi recebido.

WW) Acresce que, tal como já mencionado, os atos de liquidação adicional aqui postos em crise, encontram-se feridos de nulidade. Nulidade que se encontra expressamente consagrada nas alíneas d) e k) do nº 2 do artigo 161º do Código de Procedimento Administrativo (CPA).

XX) Desta forma, e nos termos do disposto no nº 3 do artigo 102º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, permite que a Impugnação Judicial seja deduzida a todo o tempo, quando o fundamento for a nulidade.

YY) Ora, no caso dos presentes autos, o vício de que padecem os atos de liquidação adicional são geradores de nulidade.

ZZ) Pelo que, a Recorrente, poderia intentar a presente ação de impugnação judicial, a todo o tempo, o que fez. Logo, não pode o Tribunal a quo, determinar que a presente impugnação foi intentada fora do prazo legal estabelecido para o fazer.

AAA) Pelo que, se impõe a anulação da sentença proferida pelo Tribunal a quo e a sua substituição por outra que considere não verificada a exceção peremptória de caducidade do direito de ação, e conheça do objeto dos presentes autos, e a final determine a nulidade dos atos de liquidação ora impugnados.

Nestes termos e nos mais de direito, sempre com o mui douto suprimento de v/ exas. deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e consequentemente, ser a sentença proferida pelo tribunal a quo, revogada e substituída por outra que considere não verificada a exceção peremptória de caducidade do direito de ação e a final determine os atos de liquidação adicional de iva ora impugnados nulos”.

A Recorrida não apresentou contra-alegações.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Com dispensa de vistos, atenta a simplicidade das questões a apreciar (art.º 657.º, n.º 4, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Verifica-se erro de julgamento, na medida em que a presente impugnação é tempestiva?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“1. No dia 24 de Julho de 2010, os serviços da administração tributária emitiram, em nome da Impugnante, a liquidação adicional de IVA n.º 10261960, relativa ao período de tributação de 09/02, no valor de € 178.484,69, cujo prazo de pagamento voluntário terminou, em 30 de Setembro de 2010 (cfr. print do sistema informático da administração tributária, de fls. 02 do 1.º volume do processo administrativo tributário integrado no SITAF, de fls. 55 a 87 dos autos – numeração do SITAF, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

2. Na mesma data, os serviços da administração tributária emitiram, em nome da Impugnante, a liquidação adicional de IVA n.º 10261962, relativa ao período de tributação de 09/03, no valor de € 171.045,72, cujo prazo de pagamento voluntário terminou, em 30 de Setembro de 2010 (cfr. print do sistema informático da administração tributária, de fls. 03 do 1.º volume do processo administrativo tributário integrado no SITAF, de fls. 55 a 87 dos autos – numeração do SITAF, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

3. Na mesma data, os serviços da administração tributária emitiram, em nome da Impugnante, a liquidação adicional de IVA n.º 10261964, relativa ao período de tributação de 09/04, no valor de € 187.578,28, cujo prazo de pagamento voluntário terminou, em 30 de Setembro de 2010 (cfr. print do sistema informático da administração tributária, de fls. 03 do 1.º volume do processo administrativo tributário integrado no SITAF, de fls. 55 a 87 dos autos – numeração do SITAF, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

4. Na mesma data, os serviços da administração tributária emitiram, em nome da Impugnante, a liquidação adicional de IVA n.º 10261966, relativa ao período de tributação de 09/05, no valor de € 187.040,79, cujo prazo de pagamento voluntário terminou, em 30 de Setembro de 2010 (cfr. print do sistema informático da administração tributária, de fls. 03 do 1.º volume do processo administrativo tributário integrado no SITAF, de fls. 55 a 87 dos autos – numeração do SITAF, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

5. Na mesma data, os serviços da administração tributária emitiram, em nome da Impugnante, a liquidação adicional de IVA n.º 10261968, relativa ao período de tributação de 09/06, no valor de € 184.066,65, cujo prazo de pagamento voluntário terminou, em 30 de Setembro de 2010 (cfr. print do sistema informático da administração tributária, de fls. 03 do 1.º volume do processo administrativo tributário integrado no SITAF, de fls. 55 a 87 dos autos – numeração do SITAF, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

6. Na mesma data, os serviços da administração tributária emitiram, em nome da Impugnante, a liquidação adicional de IVA n.º 10261970, relativa ao período de tributação de 09/07, no valor de € 227.627,35, cujo prazo de pagamento voluntário terminou, em 30 de Setembro de 2010 (cfr. print do sistema informático da administração tributária, de fls. 03 do 1.º volume do processo administrativo tributário integrado no SITAF, de fls. 55 a 87 dos autos – numeração do SITAF, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

7. Na mesma data, os serviços da administração tributária emitiram, em nome da Impugnante, a liquidação adicional de IVA n.º 10261972, relativa ao período de tributação de 09/08, no valor de € 227.654,89, cujo prazo de pagamento voluntário terminou, em 30 de Setembro de 2010 (cfr. print do sistema informático da administração tributária, de fls. 03 do 1.º volume do processo administrativo tributário integrado no SITAF, de fls. 55 a 87 dos autos – numeração do SITAF, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

8. Na mesma data, os serviços da administração tributária emitiram, em nome da Impugnante, a liquidação adicional de IVA n.º 10261974, relativa ao período de tributação de 09/09, no valor de € 17.650,86, cujo prazo de pagamento voluntário terminou, em 30 de Setembro de 2010 (cfr. print do sistema informático da administração tributária, de fls. 03 do 1.º volume do processo administrativo tributário integrado no SITAF, de fls. 55 a 87 dos autos – numeração do SITAF, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

9. No dia 24 de Janeiro de 2022, a Impugnante entregou a presente impugnação judicial, junto deste Tribunal (cfr. data aposta no comprovativo de entrega, de fls. 01 a 03 dos autos – numeração do SITAF, cujo teor se dá por integralmente reproduzido)”.

II.B. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A decisão sobre a matéria de facto dada como provada efectuou-se com base no exame dos documentos juntos aos autos e ao processo administrativo tributário integrado no SITAF, tudo conforme foi especificado a propósito de cada um dos pontos do probatório, sendo certo que nenhum desses documentos foi objecto de impugnação por qualquer uma das partes, nos termos do art. 115.º, n.º 4, do CPPT e dos arts. 444.º e 446.º do CPC, aplicáveis ex vi do art. 2.º, al. e), do CPPT”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, na medida em que, estando em causa vício que comporta a nulidade do ato, a impugnação é passível de ser apresentada a todo o tempo.

Vejamos então.

Nos termos do art.º 102.º do CPPT:

“1 - A impugnação será apresentada no prazo de três meses contados a partir dos factos seguintes:

a) Termo do prazo para pagamento voluntário das prestações tributárias legalmente notificadas ao contribuinte;

b) Notificação dos restantes atos tributários, mesmo quando não deem origem a qualquer liquidação;

c) Citação dos responsáveis subsidiários em processo de execução fiscal;

d) Formação da presunção de indeferimento tácito;

e) Notificação dos restantes atos que possam ser objeto de impugnação autónoma nos termos deste Código;

f) Conhecimento dos atos lesivos dos interesses legalmente protegidos não abrangidos nas alíneas anteriores.

2 - (Revogado.)

3 - Se o fundamento for a nulidade, a impugnação pode ser deduzida a todo o tempo.

4 - O disposto neste artigo não prejudica outros prazos especiais fixados neste Código ou noutras leis tributárias”.

O prazo em causa, de 3 meses, previsto no transcrito n.º 1 do art.º 102.º do CPPT, resultou da alteração a este código feita pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro, sendo que, até tal momento, o prazo estava definido em 90 dias.

Atento o disposto no art.º 20.º, n.º 1, do CPPT, a contagem deste prazo é feita nos termos do art.º 279.º do Código Civil, segundo o qual:

“À fixação do termo são aplicáveis, em caso de dúvida, as seguintes regras:

(…) b) Na contagem de qualquer prazo não se inclui o dia, nem a hora, se o prazo for de horas, em que ocorrer o evento a partir do qual o prazo começa a correr;

c) O prazo fixado em semanas, meses ou anos, a contar de certa data, termina às 24 horas do dia que corresponda, dentro da última semana, mês ou ano, a essa data; mas, se no último mês não existir dia correspondente, o prazo finda no último dia desse mês;

(…) e) O prazo que termine em domingo ou dia feriado transfere-se para o primeiro dia útil; aos domingos e dias feriados são equiparadas as férias judiciais, se o ato sujeito a prazo tiver de ser praticado em juízo”.

O prazo em causa é um prazo substantivo, e não processual, sendo, pois, um prazo contínuo [cfr., v.g., o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 15.01.2014 (Processo: 01534/13) e ampla jurisprudência no mesmo citada].

No caso dos autos, o Tribunal a quo considerou que tal prazo não foi respeitado.

A Recorrente, não pondo em causa que o prazo previsto no n.º 1 do art.º 102.º do CPPT não foi respeitado, insurge-se contra o julgado, por entender que, in casu, estamos perante uma situação subsumível no n.º 3 do mesmo art.º 102.º do CPPT.

Para apreciar a pretensão da Recorrente, cumpre, então, analisar a petição inicial apresentada, por forma a aferir se os vícios imputados ao ato são de molde a ter como consequência a sua nulidade.

Vejamos então.

Um determinado ato tributário, enquanto ato administrativo que é, pode padecer de vícios que refletem a respetiva ilegalidade. Os vícios de que um ato pode padecer podem ser orgânicos, formais ou materiais (cfr. a este respeito Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 2.ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 2003, pp. 382 a 403).

Atentando nos vícios de forma, os mesmos relacionam-se com a preterição de formalidades ou carência de forma legal. São exemplos de vícios de forma a preterição do direito de audição ou a falta de fundamentação (na sua vertente de externalização).

Já quanto aos vícios materiais, concretamente quanto ao vício de violação de lei, nos mesmos é relevante a substância do próprio ato e a desconformidade desta perante a lei.

Freitas do Amaral (ob. cit., pp. 392 e 393) densifica as seguintes modalidades de vício de violação de lei:

a) A falta de base legal;

b) A incerteza, ilegalidade ou impossibilidade do conteúdo do ato ou do objeto do ato;

c) A inexistência ou ilegalidade dos pressupostos relativos ao conteúdo ou ao objeto do ato;

d) A ilegalidade dos elementos acessórios incluídos pela Administração no conteúdo do ato;

e) Qualquer outra ilegalidade não reconduzível a outro vício.

Em termos de formas de invalidade dos atos tributários, as mesmas podem revestir a nulidade e a anulabilidade.

Começando pela nulidade, considerando o disposto no art.º 162.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), aplicável ex vi art.º 2.º, al. c), da LGT (em sentido semelhante, v. o art.º 134.º do CPA vigente à data da emissão das liquidações impugnadas):

“1 - O ato nulo não produz quaisquer efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade.

2 - Salvo disposição legal em contrário, a nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode, também a todo o tempo, ser conhecida por qualquer autoridade e declarada pelos tribunais administrativos ou pelos órgãos administrativos competentes para a anulação” (sublinhado nosso).

Portanto, retém-se deste regime que a nulidade é a forma mais grave da invalidade, motivo pelo qual pode ser invocável ou declarada a todo o tempo.

A nulidade tem, no entanto, caráter excecional. Daí que sejam circunscritas as situações de um vício ser cominado com esta forma de invalidade.

Assim, nos termos do art.º 161.º do CPA atualmente em vigor:

“1 - São nulos os atos para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade.

2 - São, designadamente, nulos:

a) Os atos viciados de usurpação de poder;

b) Os atos estranhos às atribuições dos ministérios, ou das pessoas coletivas referidas no artigo 2.º, em que o seu autor se integre;

c) Os atos cujo objeto ou conteúdo seja impossível, ininteligível ou constitua ou seja determinado pela prática de um crime;

d) Os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental;

e) Os atos praticados com desvio de poder para fins de interesse privado;

f) Os atos praticados sob coação física ou sob coação moral;

g) Os atos que careçam em absoluto de forma legal;

h) As deliberações de órgãos colegiais tomadas tumultuosamente ou com inobservância do quorum ou da maioria legalmente exigidos;

i) Os atos que ofendam os casos julgados;

j) Os atos certificativos de factos inverídicos ou inexistentes;

k) Os atos que criem obrigações pecuniárias não previstas na lei;

l) Os atos praticados, salvo em estado de necessidade, com preterição total do procedimento legalmente exigido”.

Por seu turno, considerando o CPA em vigor à data da emissão dos atos tributários impugnados, concretamente o seu art.º 133.º:

“2 - São, designadamente, atos nulos:

a) Os atos viciados de usurpação de poder;

b) Os atos estranhos às atribuições dos ministérios ou das pessoas coletivas referidas no artigo 2.º em que o seu autor se integre;

c) Os atos cujo objeto seja impossível, ininteligível ou constitua um crime;

d) Os atos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental;

e) Os atos praticados sob coação;

f) Os atos que careçam em absoluto de forma legal;

g) As deliberações de órgãos colegiais que forem tomadas tumultuosamente ou com inobservância do quórum ou da maioria legalmente exigidos;

h) Os atos que ofendam os casos julgados;

i) Os atos consequentes de atos administrativos anteriormente anulados ou revogados, desde que não haja contrainteressados com interesse legítimo na manutenção do ato consequente”.

Já quanto à anulabilidade, a mesma é a invalidade de caráter geral, como se extrai do art.º 163.º do CPA, nos termos de cujo n.º 1 “[s]ão anuláveis os atos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou outras normas jurídicas aplicáveis, para cuja violação se não preveja outra sanção”. Em termos similares ia o art.º 135.º do CPA em vigor à data da emissão das liquidações.

Ao contrário da nulidade, a anulabilidade é sanável pelo decurso do tempo, pelo que a sua não invocação tempestiva, nos termos das leis procedimentais e processuais, determina que o vício de que padeça o ato deixe de poder ser invocado, convertendo-se o ato em ato válido.

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

Analisando a petição inicial apresentada, na mesma é invocado, em síntese:

- A Impugnante e as sociedades F. S. G., S.A., e F. H. S., Lda., celebraram, entre si, um contrato de prestação de serviços;

- Nessa sequência, a Impugnante emitiu um conjunto de faturas, que identifica;

- Tais faturas respeitam apenas ao valor dos salários, subsídio de alimentação e custos com a segurança social, tendo sido ilegalmente acrescido a tal valor o do IVA;

- As faturas em causa não titulam matéria sujeita a tributação em sede de IVA;

- Erradamente liquidou o IVA, na sequência do indicado em sede de procedimento inspetivo;

- Como tal, as liquidações padecem de vício de nulidade, por violação das alíneas d) e k) do n.º 2 do art.º 161.º do CPA.

Vejamos então.

Antes de mais, sublinhe-se que, tal como decorre do n.º 3 do art.º 5.º do CPC, o “juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”.

Como tal, ainda que a Impugnante configure o vício que alega como nulidade, tal configuração não vincula o julgador.

Partindo deste pressuposto, desde já se adiante que, ainda que a Recorrente tenha configurado o vício que relata como nulidade, na verdade o que alega são erros nos pressupostos de facto e de direito. Ou seja, e em suma, invoca que o IVA foi indevidamente liquidado, nas faturas que elenca, porquanto do que se trata é de prestações não sujeitas a tal imposto.

Concretizemos.

A liquidação indevida de impostos, nos termos explanados, não configura, per se, um ato que ofenda o conteúdo essencial de um direito fundamental, concretamente o direito de propriedade privada, previsto no art.º 62.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

A este propósito, aderimos ao entendimento que tem sido seguido pelos nossos tribunais superiores em situações similares, chamando-se à colação o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 26.06.2013 (Processo: 0231/13), onde se refere:

“O Recorrente pretende que a petição inicial foi apresentada em tempo porque sustenta que, contrariamente ao que decidiu o Juiz do Tribunal a quo, o vício que assaca às liquidações – a inexistência de facto tributário – determinaria a nulidade do acto impugnado, de acordo com o disposto no art. 133.º, n.º 2, alínea d), do CPA e, consequentemente, a sua impugnação não está sujeita a prazo, como decorre do n.º 1 do art. 58.º do CPTA.

Isto, em síntese, porque considera que o referido acto «ofende inequivocamente o conteúdo essencial de um direito fundamental, dado que a inexistência de factos tributários susceptíveis de suportar a liquidação de IVA em causa qualifica aquele acto como lesivo de direitos e interesses legalmente protegidos» e, por isso, «integra a categoria de actos nulos».

Salvo o devido respeito, não tem razão.

É certo que os actos que enfermem de vício para que esteja prevista a sanção da nulidade podem ser impugnados a todo o tempo, como resulta do preceituado no art. 102.º, n.º 3, do CPPT (O art. 102.º, n.º 1, alínea a), do CPPT, estipula: «Se o fundamento for a nulidade, a impugnação pode ser deduzida a todo o tempo».), em consonância com o disposto no art. 134.º, n.º 2, do CPA (O art. 134.º, n.º 2, do CPA, diz: «A nulidade é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e pode ser declarada, também a todo o tempo, por qualquer órgão administrativo ou por qualquer tribunal».) e no art. 58.º, n.º 1, do CPTA (O art. 58.º, n.º 1, do CPTA, dispõe: «A impugnação de actos nulos ou inexistentes não está sujeita a prazo».).

No entanto, o invocado vício de inexistência de facto tributário não tem como consequência a nulidade do acto, mas a mera anulabilidade.

Como este Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a afirmar unânime e repetidamente, por regra os vícios dos actos tributários são fundamento da sua anulabilidade, só implicando a sua nulidade quando se verifique a falta de qualquer dos elementos essenciais do acto ou quando houver lei que expressamente preveja esta forma de invalidade (arts. 133.º e 135.º do CPA) (Neste sentido, entre muitos outros e por mais recentes, os seguintes acórdãos desta Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

- de 22 de Março de 2011, proferido no processo n.º 749/10 (…);

- de 25 de Maio de 2011, proferido no processo n.º 91/11 (…);

- de 21 de Setembro de 2011, proferido no processo n.º 63/11 (…);

- de 2 de Novembro de 2011, proferido no processo n.º 158/11(…);.

Vide MÁRIO DE AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, vol. I, pág. 247, que afirmam: «a nulidade constitui o regime de excepção, ao passo que a anulabilidade é o regime regra. É o que se depreende do disposto no artigo 135.º do CPA, segundo o qual são anuláveis os “actos administrativos praticados com ofensa dos princípios ou normas jurídicas aplicáveis para cuja violação se não preveja outra sanção”».).

Dispõe, por sua vez art. 133.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), do CPA são nulos os actos a que falte qualquer dos elementos essenciais ou para os quais a lei comine expressamente essa forma de invalidade, nomeadamente os actos que ofendam o conteúdo essencial de um direito fundamental.

É com este argumento da ofensa do conteúdo essencial de um direito fundamental que o Recorrente sustenta que a consequência da inexistência de facto tributário é a nulidade e, por isso, que a impugnação pode ser deduzida a todo o tempo.

Não lhe assiste razão. Os actos que ofendem um direito fundamental hão-de ser aqueles que contendem com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos; não aqueles que contendem apenas com o princípio da legalidade, como sucede no caso dos autos.

Na verdade, como este Supremo Tribunal Administrativo tem vindo a afirmar, o acto de liquidação praticado apesar da (alegada) inexistência de facto tributário é meramente anulável, na medida em que não viola o conteúdo essencial do direito fundamental à propriedade privada, mas apenas o princípio da legalidade tributária .

O vício imputado pelo ora Recorrente ao acto tributário impugnado não integra senão o vício de erro sobre os pressupostos de direito por errada interpretação ou aplicação das normas de incidência.

Estamos, pois, claramente perante a alegação de vício gerador de mera anulabilidade, não sendo, consequentemente, aplicável ao caso sub judice o disposto no art. 102.º, n.º 3, do CPPT ou o n.º 3 do art. 58.º do CPTA[sublinhados nossos; mais recentemente, v. os Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 31.05.2017 (Processo: 0975/16) e de 22.06.2022 (Processo: 02464/19.0BELRS) e deste TCAS, de 24.03.2022 (Processo: 2464/19.0BELRS)]

Como tal, o alegado configura-se como um eventual erro sobre os pressupostos de facto e de direito, vício que é cominado com a anulabilidade e não com a nulidade, nos termos explanados na jurisprudência mencionada.

Também não se trata, por outro lado, de situação em que seja de chamar à colação o disposto no art.º 161.º, n.º 1, al. k), do CPA, por várias ordens de razão.

Antes de mais, é de sublinhar que esta alínea k) representou uma inovação do CPA aprovado pelo DL n.º 4/2015, de 07 de janeiro, face à redação constante do CPA aprovado pelo DL n.º 442/91, de 15 de novembro.

Ou seja, à data da emissão das liquidações impugnadas (2010), estava em vigor a redação do CPA que não contemplava previsão idêntica à constante do CPA de 2015.

Como é referido pelo Tribunal a quo, em matéria de procedimento administrativo, há que apelar ao princípio tempus regit actum.

“[Q]uando esteja em causa a apreciação da legalidade de um acto administrativo, esta terá de ser aferida segundo o princípio tempus regit actum, pelo que haverá de ter em consideração apenas os pressupostos de facto e de direito existentes à data da prática do acto” (Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Dicionário de Contencioso Administrativo, Almedina, Coimbra, p. 413).

Logo, não se pode chamar à colação uma invalidade que a lei não previa como tal à data da prática do ato.

Por outro lado, acrescente-se, tal alínea k) visa salvaguardar, designadamente do ponto de vista tributário, que os atos de liquidação tenham base legal.

Como referido por Fausto de Quadros et al. (Comentários à revisão do Código do Procedimento Administrativo, Almedina, Coimbra, 2016, p. 324) “[a] alínea k) (…) [dá] assim expressão e merecido relevo a uma regra constitucional nos termos da qual os actos de imposição pela Administração de uma obrigação pecuniária aos particulares, designadamente a liquidação de um tributo (imposto, taxa ou outra contribuição), têm como pressuposto necessário a respectiva base legal impositiva”.

Escreveu-se, a este propósito, no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 10.03.2021 (Processo: 0781/16.0BEBRG 0216/18):

“O acto não é nulo por estarem errados os seus fundamentos de facto ou de direito. O acto é nulo, à luz do quadro legal citado, quando lhe falte algum dos seus elementos essenciais ou nas situações em que o próprio legislador de forma expressa deixe decretada tal nulidade.

Como nos ensina há muito a doutrina (…), “A sanção geral da invalidade do ato administrativo desconforme com o ordenamento jurídico, por ofensa ou dos princípios gerais de direito ou de normas jurídicas escritas constitucionais, comunitárias, legais ou regulamentares, ou, ainda, por ofensa de vinculações derivadas de ato jurídico ou contrato administrativo anterior é a da anulabilidade.

Compreende-se a regra: ela decorre dos tópicos caracterizadores da posição da Administração e do modelo de relação que se estabelece entre ela e os cidadãos nos sistemas ditos de administração executiva. Contraria tal modelo um regime regra de nulidade, que implica a improdutividade automática imediata do ato administrativo — correspondendo, por isso, a um enfraquecimento da posição da Administração, que não poderia executar o ato nem pretender que os seus destinatários lhe obedeçam. Considera-se, então, mais ajustado, num sistema como o nosso, o princípio de que os atos ilegais são anuláveis, permitindo a eficácia (provisória, pelo menos) do ato e impondo ao interessado o ónus de pôr em movimento o sistema de garantias para fazer valer essa invalidade”. (Mário Esteves de Oliveira, Pedro Costa Gonçalves e J. Pacheco de Amorim, Código do Procedimento Administrativo, 2ª Edição, pág. 565)

Ora, contrariamente ao que afirma o Recorrente, não está em causa nenhum acto criador de um imposto legalmente não previsto. Está em causa um acto praticado pela Administração Tributária, a impor ao Recorrente o pagamento de um determinado valor, com fundamento num imposto criado por lei (Imposto de Selo, vigente no ordenamento jurídico desde a entrada em vigor da Lei 150/99, de 11 de Setembro), na interpretação que fez dos factos que apurou e na conclusão que extraiu de que esse pagamento era exigível.

E, nessa medida, é indiscutível que estamos perante um acto que, se eivado de erro sobre os pressupostos de facto (ou de direito), pode e deve ser anulado”.

Ou seja, ainda que fosse aplicável a nova disciplina, o alegado não se configura como uma falta de base legal, porquanto estamos perante liquidações de IVA, imposto previsto em diploma legal.

Mais uma vez reiteramos, o invocado configura-se, sim, como um alegado erro nos pressupostos de direito e de facto, o que, sendo uma invalidade que pode ser assacada a qualquer ato de liquidação, é cominada com a anulabilidade, nos termos já referidos.

Ou seja, bem andou o Tribunal a quo ao considerar que a impugnação era intempestiva, pois há muito decorreram os então 90 dias para impugnar, previstos no art.º 102.º do CPPT.

Finalmente, quanto ao alegado sobre a eventual violação do art.º 103.º, n.º 3, da CRP, veja-se que, rigorosamente, a Recorrente não põe em causa o decidido pelo Tribunal a quo. Com efeito, a impugnação é intempestiva, por nada ter sido alegado que configure eventual nulidade do ato. O que a Recorrente configura como violação do disposto no art.º 103.º, n.º 3, da CRP, em concreto é apenas conducente à eventual anulabilidade da liquidação [cfr. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 10.01.2007 (Processo: 0459/06) e Jorge Lopes de Sousa, in Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, Vol. III, 6.ª edição, Áreas Editora, Lisboa, 2011, p. 445]; mesmo as questões de conhecimento oficioso, que não originem nulidade, exigem, como pressuposto de partida, que o meio processual tenha sido apresentado tempestivamente [cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 14.10.2020 (Processo: 01/18.2BEPDL) e de 20.06.2018 (Processo: 0748/15)]. Esta foi a decisão proferida pelo Tribunal a quo, não foi posta em causa pela Recorrente. Acrescente-se, ademais, que, em bom rigor, tal alegação encontra já resposta no que referimos a propósito do disposto na al. k) do art.º 161.º do CPA: não estamos perante liquidação de imposto que não esteja previsto na lei, ainda que possa eventualmente haver erro nos pressupostos da sua liquidação.

Logo, não assiste razão à Recorrente.

Vencida a Recorrente é a mesma responsável pelas custas (art.º 527.º do CPC).

Cumpre, no entanto, atento o valor dos autos, considerar o disposto no art.º 6.º, n.º 7, do RCP.

Assim, nos termos desta disposição legal, “[n]as causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.

No caso, considerando quer a conduta das partes, quer a complexidade das questões, entende-se dever haver lugar à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no art.º 6.º, n.º 7, do RCP.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente, com dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte em que exceda os 275.000,00 Eur.;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 13 de julho de 2023

(Tânia Meireles da Cunha)

(Ana Cristina Carvalho)
(Lurdes Toscano)