Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:835/08.6BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:07/08/2021
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:AUDIÇÃO PRÉVIA
LIQUIDAÇÃO OFICIOSA
PROCEDIMENTO URGENTE
TEORIA DO APROVEITAMENTO DO ATO
Sumário:I – Na falta de apresentação de declaração de rendimentos no prazo legal, a AT procede à liquidação oficiosa nos termos do disposto no artigo 83.º do CIRC, com base na matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada.
II - O artigo 60.º da LGT impõe que, neste caso, se faculte ao contribuinte a oportunidade de exercer o seu direito de audição prévia.
III-As situações de liquidação oficiosa não podem ser enquadradas como liquidações efetuadas com base na declaração do contribuinte, donde, com subsunção normativa no artigo 60.º, nº2, alínea a), da LGT, cuja fórmula deve ser interpretada com o alcance de apenas dispensar a audição quando a liquidação for efetuada em sintonia com a posição que decorre da declaração do contribuinte, nos aspetos factuais e jurídicos.
IV-Não é pelo facto de o contribuinte não cumprir com um dever declarativo a que está legalmente vinculado, que legitima a AT a desrespeitar o direito de participação na definição da sua situação tributária, quando em nenhum momento prévio à emissão da liquidação foi chamado a pronunciar-se.
V- O procedimento não é passível de qualificação como urgente, não se encontrando, igualmente, fundamentos objetivos de justificação na própria urgência da prolação da decisão, desde logo, atendendo à natureza e aos prazos consignados no artigo 83.º do CIRC. A situação de urgência que é definidora, donde decisiva, para a dispensa de audiência dos interessados, ocorre apenas quando haja de se prosseguir determinada finalidade pública em que o fator tempo se apresente como elemento determinante e constitutivo e seja impossível ou, pelo menos, muito difícil, cumpri-la através da observância dos procedimentos normais.
VI-Apelando, às circunstâncias concretas da realidade em apreço, não é possível concluir-se, inexoravelmente, que a audição do contribuinte -devidamente esclarecida e munida de todos os elementos e requisitos legais- no procedimento não tinha a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, conduzindo a um resultado diferente, porquanto da intervenção do contribuinte no procedimento da liquidação oficiosa sempre poderia resultar uma alteração dos termos em que a matéria coletável foi determinada pela AT.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
I-RELATÓRIO

O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (doravante Recorrente), veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, no âmbito do processo de impugnação judicial deduzido contra o ato de indeferimento tácito da reclamação graciosa, apresentado contra a liquidação oficiosa de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), referente ao exercício de 2005, no valor de €26.380,92.

A Recorrente apresentou alegações, tendo concluído da seguinte forma:

I. O thema decidendum no âmbito dos presentes autos de recurso consiste em aferir se a liquidação impugnada padece de vício de violação de lei por falta de audição prévia.

II. Em relação ao exercício de 2005, aqui em causa, de acordo com a matéria de facto fixada no ponto 2, a impugnante não apresentou o modelo 22 IRC a que estava obrigada.

III. E, quando assim sucede, a AT procede à liquidação oficiosa do imposto devido tendo por base a totalidade da matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada (artigo 83.º, n.º 1, alínea b) do CIRC).

IV. A Administração Tributária atuou assim exclusivamente no âmbito de poderes vinculados, porquanto a liquidação de IRC ora em crise, foi efetuada por imposição legal, nos termos da alínea b) do nº 1 do art.º 83.º do CIRC, pelo facto de a ora recorrida não ter apresentado a declaração anual de rendimentos para efeitos deste imposto, como lhe competia nos termos dos artigos 89.º do mesmo Código.

V. Nestas situações as liquidações oficiosas efetuadas também têm por base as declarações do contribuinte relativamente ao último exercício em que este apresentou as respetivas declarações pelo que, não havendo aqui nenhum elemento ou facto novo, não se justifica a audição prévia do contribuinte.

VI. Dado que a Administração Tributária, por imposição legal se substituiu à impugnante/recorrida, tal facto, para efeitos de dispensa do direito de audição nos termos do nº 2 do art.º 60º da LGT, deverá ser equiparado aos casos em que a liquidação se efetua com base na declaração do contribuinte.

VII. Sendo, no entanto, inquestionável a existência na esfera jurídica dos contribuintes, do direito a serem ouvidos e a pronunciarem-se nos procedimentos que lhes digam respeito, antes de tomada a decisão final, devendo ser informados do sentido dela, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 267.º, nº 5 da CRP, art.ºs 8º e 100.º do CPA, art.º 60.º da LGT e art.º 45.º do CPPT.

VIII. Atendendo a que a própria lei prevê casos de dispensa e até de inexistência do direito de audição, haverá que averiguar se teria efetivamente que ter lugar, no caso concreto, já que, do ponto de vista material, o direito de audição, não consiste senão em uma concretização do direito de participação na formação das decisões, constitucionalmente reconhecido.

IX. Pelo que não basta qualquer preterição de formalidade legal para conduzir à anulação da liquidação, tendo sido superiormente entendido pelos Tribunais que a inobservância do dever de a audição dos interessados após a instrução procedimental, não é fundamento da anulação do ato sempre que, através de um juízo de prognose póstuma, o tribunal conclua que a decisão tomada era a única possível. A falta de audição não prejudica a validade do ato tributário ou em matéria tributária quando se conclua que, fossem quais fossem os dados carreados pelo contribuinte no momento da audição, teria o ato sempre de ser praticado (Acórdão do Pleno da 1ª Secção do Supremo Tribunal Administrativo de 17 de dezembro de 1997, processo nº 36 001).

X. No caso em apreço, mesmo que tivesse sido exercido o direito de audição pela impugnante, tal não teria reflexos na decisão tomada pela Administração Tributária, pois a mesma não poderia ser outra, senão a de proceder à liquidação oficiosa do IRC nos termos impostos pelo art.º 83º do respetivo Código.

XI. Acresce que as normas do Código do Procedimento Administrativo são subsidiariamente aplicáveis, por força do disposto na alínea c) do art.º 2º da LGT, sendo que nos termos da alínea a) do nº 1 do art.º 124.º do CPA, não há lugar à audiência dos interessados, quando a decisão seja urgente, devendo caber nesta qualificação, as situações em que existe risco de caducar o prazo para a liquidação do imposto.

XII. Tal é o que se verifica no caso concreto, já que não tendo sido o imposto liquidado no prazo normal, por incumprimento da recorrida do dever de autoliquidação, a que estava obrigada por força do disposto no art.º 89º, alínea a) do CIRC, o direito à liquidação do IRC do ano de 2005 teria de ser exercido, sob pena de caducidade, até ao fim do ano de 2009, nos termos do art.º 45 da LGT.

XIII. A AT está sujeita ao princípio da legalidade (artº. 268º nº 2 da CRP e artº 55º da LGT), estando a sua atuação adstrita à aplicação e cumprimento da lei.

XIV. Assim sendo é manifesto que a Administração Tributária fez uma correta interpretação das normas legais aplicáveis ao caso concreto pelo que o ato tributário ora impugnado não viola qualquer disposição legal e deve ser mantido na esfera jurídica da recorrida.

XV. A atuação da Administração Tributária foi conforme à lei, justificando-se a manutenção da liquidação efetuada, por se encontrar demonstrada a sua validade e justeza.

XVI. Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e revogada a sentença de que se recorre, julgando totalmente improcedente a presente Impugnação.

Nestes termos, e nos mais de Direito que Vossas excelências suprirão, deverá o presente Recurso ser dado como procedente, e em consequência ser revogada a decisão recorrida e ser julgada totalmente improcedente a presente impugnação judicial. Tudo com as devidas consequências legais.


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A Recorrida apresentou contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:

a. O problema em discussão nos presentes autos reside em saber se, faltando o contribuinte à obrigação de declarar os seus rendimentos para efeitos de imposto sobre o rendimento das pessoas, a Autoridade Tributária ao proceder à liquidação de imposto está ou não sujeita ao disposto no artigo 60.º da Lei Geral Tributária.

b. O Tribunal a quo decidiu, com acerto, que estando em causa uma liquidação oficiosa de IRC, a Autoridade Tributária não estava dispensada de chamar o contribuinte a participar na decisão, motivo pelo qual estamos perante o vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para exercício do direito de audiência prévia à liquidação conducente à anulabilidade da decisão.

c. Não ocorrendo situação legal de dispensa de tal audição, a Recorrida tinha o direito de ser ouvida antes da liquidação – cfr. artigo 60.º, n.º 1, alínea a) da LGT.

d. Não é pelo facto de o contribuinte faltar a um seu dever para com a Autoridade Tributária (falta de apresentação da declaração de rendimentos imposta pela lei) que legitima que esta desrespeite o exercício do direito da Recorrida de participação na formação do acto de liquidação.

e. A decisão do Tribunal a quo foi acertada e não merece qualquer censura, tendo procedido a uma adequada interpretação e subsunção das normas aplicáveis aos factos dados como provados.

f. Como ficou devidamente demonstrado nos autos em recurso, não tendo a Autoridade Tributária notificado a Recorrida para exercer o seu direito de audição prévia estamos perante o vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para exercício do direito de audiência prévia à liquidação conducente à anulabilidade da decisão.

g. Cumpre destacar que a posição defendida pela Recorrente já foi expressamente recusada por este Supremo Tribunal Administrativo no Acórdão de 18 de junho de 2014 (processo n.º 01102/13), decisão na qual se consagrou o entendimento segundo o qual o artigo 60.º da Lei Geral Tributária impõe, mesmo nos casos de liquidação oficiosa de imposto, que a Autoridade Tributária faculte ao contribuinte a oportunidade de exercer o seu direito de audição prévia.

h. Por todo o exposto, a decisão recorrida, ao considerar que “estamos perante o vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para exercício do direito de audiência prévia à liquidação conducente à anulabilidade da decisão”, procedeu a uma correta interpretação e aplicação do direito, não merecendo qualquer censura ou reparo, devendo improceder totalmente as conclusões do recurso apresentado.

Termos em que deve o presente recurso serjulgado totalmente improcedente mantendo-se integralmente a sentença recorrida, assim se fazendo a boa e costumada JUSTIÇA!


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O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da não procedência do recurso.

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Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

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II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

1) A Impugnante dedica-se à “compra e venda de bens imobiliários”- Código CAE 068100, estando enquadrada, em sede de IRC no regime geral e isenta de IVA (facto não controvertido).

2) A Impugnante não procedeu à entrega da declaração modelo 22 do IRC referente ao exercício de 2005 (facto não controvertido).

3) Foi elaborada pelos serviços da Administração Fiscal uma declaração oficiosa em 30 de Novembro de 2006, nos termos do n.º1 do artigo 83.º do CIRC - cf. doc. ínsito a fls.38 do Processo Administrativo Tributário (PAT), cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

4) A liquidação objeto dos autos foi emitida em 2 de Maio de 2007.

5) Em 18.05.2007, a respetiva nota de cobrança foi remetida à ora Impugnante através de carta registada com aviso de receção - cf. doc.de fls.32 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

6) Em 21.05.2007 veio a ora Impugnante entregar, via internet, a declaração modelo 22 referente ao exercício de 2005 da qual resultou imposto a recuperar no montante de €3.027,64 - cf. doc.2 junto com a douta petição inicial, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

7) Em 14 de Agosto de 2007 a ora Impugnante apresentou reclamação graciosa (RG), tendo a mesma sido instaurada no Serviço de Finanças de Lisboa 10 sob o n.º..... - cf. Processo de Reclamação Graciosa (PRG) ínsito no PAT apenso aos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais.

8) Decorrido o prazo de seis meses desde a apresentação da reclamação graciosa e formada a presunção de indeferimento tácito da mesma, veio o sujeito passivo em 14 de Maio de 2008 apresentar a presente impugnação judicial - cf. teor de fls.1 dos autos.


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A decisão recorrida consignou como factos não provados os seguintes:

“Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa.”


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A motivação da matéria de facto alicerçou-se no seguinte: “OTribunal alicerçou a sua convicção na apreciação conjugada de toda a prova documental junta aos autos pela Impugnante e pela Fazenda Publica, indicada relativamente a cada um dos factos, cujos documentos não foram impugnados.

O depoimento da testemunha não trouxe aos autos nada de relevante, limitando-se a mesma a concordar com a tese da Impugnante.”


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III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação oficiosa de IRC e respetivos JC, do exercício de 2005, por preterição de formalidade essencial que cominou o ato de anulabilidade.

Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se a sentença padece de erro de julgamento por errada apreciação dos pressupostos de facto e de direito, concretamente por ter decidido que a liquidação oficiosa enferma de preterição de formalidade essencial, porquanto não foi objeto de notificação para audição prévia, não podendo, neste particular, ser convocada a teoria do aproveitamento do ato.

Apreciando.

A Recorrente defende que a Recorrida não apresentou a declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC, respeitante ao exercício de 2005, a que estava obrigada, razão pela qual foi emitida a competente liquidação oficiosa de imposto, ao abrigo do artigo 83.º, n.º 1, alínea b), do CIRC, tendo por base a totalidade da matéria coletável do exercício mais próximo que se encontre determinada.

Salientando, em abono da desnecessidade de audição prévia, que essas liquidações como têm por base as declarações do contribuinte relativamente ao último exercício em que este apresentou as respetivas declarações inexiste qualquer elemento ou facto novo, que justifique a audição prévia do contribuinte.

Sufragando, outrossim, que tais situações devem ser equiparadas aquelas em que a liquidação se efetua com base na declaração do contribuinte, donde dispensadas legalmente dessa audição.

Mais aduzindo que, de todo o modo, a situação seria passível de subsunção normativa na alínea a), do nº 1, do artigo 124.º do CPA, a qual preceitua que não há lugar à audiência dos interessados, quando a decisão seja urgente, devendo caber nesta qualificação, as situações em que existe risco de caducar o prazo para a liquidação do imposto, como in casu.

In fine, convoca a teoria do aproveitamento do ato, relevando que, no limite, a inobservância do dever de audição não acarretaria a anulação do ato porquanto através de um juízo de prognose póstuma, sempre o Tribunal teria de concluir que a decisão tomada era a única possível.

Dissente a Recorrida contra-alegando que a decisão visada não merece censura, tendo o Tribunal a quo decidido, com acerto, e isto porque estando em causa uma liquidação oficiosa de IRC, a AT não estava dispensada de chamar o contribuinte a participar na decisão, motivo pelo qual estamos perante o vício de preterição de formalidade legal por omissão de notificação para o exercício do direito de audiência prévia à liquidação conducente à anulabilidade da decisão, não havendo, portanto, qualquer consagração legal de dispensa.

O Tribunal a quo entendeu verificada essa preterição de formalidade legal aludindo que: “[o] princípio da participação dos contribuintes nas decisões que lhes dizem respeito não pode ser afastado a não ser nas exatas situações que a lei define, e nada mais.

Por isso, quando a alínea a) do n.º 2 do artigo 60.º LGT dispensa a audição no “...caso de a liquidação se efetuar com base na declaração do contribuinte...” é só mesmo nesta situação que o direito de audição pode ser dispensado.

O que bem se compreende, pois seria absolutamente desnecessária a participação do contribuinte na formação de um ato em que o próprio já participou através da apresentação da declaração.

Mas isso só é assim se a liquidação se efetuar, factual e juridicamente, de acordo com os dados fornecidos pelo contribuinte na declaração. Assim, José Maria Fernandes e outros, in "Lei Geral Tributária" anotada, Almedina, 2015, pp. 617. “A consideração de quaisquer outros elementos para além dos constantes da declaração do contribuinte, ou um enquadramento jurídico diferente, obrigarão à sua audição.

Concluindo, assim, que “[c]omo a liquidação não se efetuou de acordo com a declaração do contribuinte, este não podia deixar de ser ouvido, cf. Ac. do TCAS n.º 07993/14 de 14-04-2016.”

No atinente ao princípio do aproveitamento do ato recusa a sua aplicação, porquanto “[a]pesar do procedimento de segundo grau ser, neste caso, facultativo, a ora Impugnante recorreu a ele, mas não teve oportunidade de se pronunciar, pois a mesma veio a ser indeferida tacitamente.”

Por outro lado, propugna ainda que “[a] ora Impugnante não se limitou a invocar a preterição da falta de audição do interessado, mas, outros vícios que poderiam alterar a substância da liquidação, nomeadamente a caducidade da liquidação, o facto de a Administração Fiscal ter ignorado a declaração entregue no dia 21.05.2007 pela Impugnante, depois de ter sido notificada da primeira liquidação [18.05.2007], mas antes do reacerto financeiro efetuado pela segunda liquidação [27.06.2007].”

Concluindo, nessa medida, que “[n]o caso em análise haveria lugar à audição prévia, por se tratar de uma liquidação em que haveria toda a probabilidade de se colocarem questões com diferente tratamento jurídico.”

Apreciando.

Vejamos, então, se a decisão recorrida padece do aludido erro de julgamento.

Atentemos, desde já, no quadro normativo que releva para a apreciação da questão.

O princípio da audiência prescrito nos artigos 100.º e seguintes do CPA assume-se como uma dimensão qualificada do princípio da participação consagrado no artigo 8.º do mesmo Código, surgindo na sequência e em cumprimento do comando constitucional contemplado no artigo 267.º da CRP, obrigando o órgão administrativo competente a, de alguma forma, associar o administrador à preparação da decisão final, transformando tal princípio em direito constitucional concretizado.

Tal princípio veio, igualmente, a ser acolhido no âmbito do procedimento tributário no artigo 60.º da LGT, sob a forma de “direito de audição do contribuinte”, e no artigo 45.º do CPPT.

De harmonia com o disposto no artigo 60.º da LGT, sob a epígrafe de direito de participação, com a redação, à data, aplicável dispunha-se que:

“1- A participação dos contribuintes na formação das decisões que lhes digam respeito pode efectuar-se, sempre que a lei não prescrever em sentido diverso, por qualquer das seguintes formas:

a) Direito de audição antes da liquidação;

b) Direito de audição antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições;

c) Direito de audição antes da revogação de qualquer benefício ou acto administrativo em matéria fiscal;

d) Direito de audição antes da decisão de aplicação de métodos indirectos, quando não haja lugar a relatório de inspecção;

e) Direito de audição antes da conclusão do relatório da inspecção tributária.

2-É dispensada a audição:

a) No caso de a liquidação se efectuar com base na declaração do contribuinte ou a decisão do pedido, reclamação, recurso ou petição lhe seja favorável;

b) No caso de a liquidação se efectuar oficiosamente, com base em valores objectivos previstos na lei, desde que o contribuinte tenha sido notificado para apresentação da declaração em falta, sem que o tenha feito.

3 - Tendo o contribuinte sido anteriormente ouvido em qualquer das fases do procedimento a que se referem as alíneas b) a e) do n.º 1, é dispensada a sua audição antes da liquidação, salvo em caso de invocação de factos novos sobre os quais se não tenha pronunciado.

4 - O direito de audição deve ser exercido no prazo a fixar pela administração tributária em carta registada a enviar para esse efeito para o domicílio fiscal do contribuinte.

5 - Em qualquer das circunstâncias referidas no n.º 1, para efeitos do exercício do direito de audição, deve a administração tributária comunicar ao sujeito passivo o projecto da decisão e sua fundamentação.

Importa, outrossim, ter presente o consignado no artigo 60.º do RCPIT, que sob a epígrafe de “conclusão do procedimento de inspeção tributária” dispõe que:

“1 - Concluída a prática de actos de inspecção e caso os mesmos possam originar actos tributários ou em matéria tributária desfavoráveis à entidade inspeccionada, esta deve ser notificada no prazo de 10 dias do projecto de conclusões do relatório, com a identificação desses actos e a sua fundamentação.

2 - A notificação deve fixar um prazo entre 10 e 15 dias para a entidade inspeccionada se pronunciar sobre o referido projecto de conclusões.

3 - A entidade inspeccionada pode pronunciar-se por escrito ou oralmente, sendo neste caso as suas declarações reduzidas a termo.

4 - No prazo de 10 dias após a prestação das declarações referidas no número anterior será elaborado o relatório definitivo.”

Resulta, assim, do regime jurídico traçado anteriormente, que é imposto o direito de audição antes da liquidação, antes do indeferimento total ou parcial dos pedidos, reclamações, recursos ou petições, antes da decisão de aplicação de que é imposto o direito de audição antes métodos indiretos, e antes da conclusão do relatório da inspeção tributária, só sendo dispensada tal formalidade quando o sujeito passivo já teve oportunidade de o fazer na fase do procedimento, que culminou nos atos de liquidação, e nas demais situações enunciadas no transcrito nº 2, do artigo 60.º da LGT.

Com efeito, o direito de audiência prévia de que goza o administrado incide sobre o objeto do procedimento, tal como ele surge após a instrução e antes da decisão. Daí que, estando em preparação uma decisão, a comunicação feita ao interessado para o exercício do direito de audiência deve dar-lhe conhecimento do projeto da mesma, a sua fundamentação, com todos os elementos que norteram o apuramento adicional de imposto, o prazo em que o mesmo pode ser exercido e a informação relativa à possibilidade de exercício do citado direito por forma oral ou escrita[1].

Razão pela qual, a falta de audição prévia do contribuinte, nos casos em que é obrigatória, constitui um vício de forma do procedimento tributário suscetível de conduzir à anulação da decisão que vier a ser tomada[2], podendo, todavia, degradar-se em formalidade não essencial ou em mera irregularidade, se independentemente do exercício de tal direito, aquele ato sempre tivesse de ser da mesma natureza e medida.

Feitos os considerandos de direito que relevam para o caso dos autos, vejamos, então, o que resulta do acervo probatório dos autos.

Conforme resulta da factualidade assente, a Recorrida não procedeu à entrega da Declaração de Rendimentos Modelo 22 de IRC, do exercício de 2005, dentro do prazo do prazo consignado para o efeito, razão pela qual, a 30 de novembro de 2006, foi elaborada declaração oficiosa ao abrigo do artigo 83.º, nº1, do CIRC, tendo a competente liquidação sido emitida em 2 de maio de 2007, e objeto de notificação a 18 de maio de 2007.

Com efeito, dimana do artigo 83.º do CIRC, que se o sujeito passivo não apresentar a declaração de rendimentos dentro do prazo consignado no, à data, artigo 112.º do CIRC, a AT está legitimada a efectuar uma liquidação oficiosa nos termos consignados no citado normativo.

Dimana, porém, do supracitado artigo 60.º, nº1, alínea a), da LGT que previamente à emissão do ato de liquidação deve ser concedido o direito de audição prévia ao contribuinte, o qual apenas é dispensado nos casos em que a liquidação é efectuada com base na declaração do contribuinte. Note-se que, contrariamente ao expendido pela Recorrente, a situação em contenda em nada pode ser equiparada à por si aduzida, e isto porque, a fórmula com base na declaração do contribuinte deve ser interpretada com o alcance de apenas dispensar a audição quando a liquidação for efectuada em sintonia com a posição que decorre da declaração do contribuinte, nos aspectos factual e jurídico[3].

Acresce que, não é pelo facto de o contribuinte não cumprir com um dever declarativo a que está legalmente vinculado, que legitima a AT a desrespeitar o direito de participação na definição da sua situação tributária, quando em nenhum momento prévio à emissão da liquidação foi chamado a pronunciar-se.

Neste particular, convoca-se o Aresto do STA, prolatado no âmbito do processo nº 01102/13, de 18 de junho de 2014, e demais jurisprudência nele citada, a cuja fundamentação jurídica se adere e do qual se extrata, designadamente, o seguinte:

“Na verdade, como já se disse no acórdão desta Secção de 2/7/2003, no recurso n.º 684/03, “A dispensa da audiência prévia quando a liquidação coincida com a declaração funda-se na ideia de que, neste caso, toda a participação possível do contribuinte já teve lugar, sendo desnecessário convidá-lo a nova participação, que redundaria num acto inútil.

No caso em que o contribuinte faltou à sua obrigação de declaração não há nenhuma participação sua no procedimento que culmina com a liquidação. Por isso, a mesma razão que, nos casos previstos no apontado n.º 2 (do artigo 60.º LGT), leva a dispensar a audição, exige-a quando o contribuinte não fez a sua declaração.
E não é o facto de o contribuinte faltar a um dever para com a Administração que legitima esta a, por sua vez, desrespeitar um direito dele.

É certo que pode parecer que o contribuinte, ao faltar ao seu dever de declaração, se desinteressa de participar na definição da sua situação tributária. Mas só aparentemente assim é: por um lado, a ausência de apresentação da declaração imposta pela lei não pode interpretar-se com tal sentido, pois outras razões pode haver, nomeadamente, de força maior, justificativas da falta; por outro lado, nada permite afirmar que o contribuinte que se absteve de entregar a sua declaração não quer exercer o seu direito a participar na formação da decisão que, assente nessa omissão, a Administração venha a tomar.”.

Também não colhe o argumento de que, tendo a AT procedido às liquidações impugnadas com base na totalidade da matéria colectável do exercício mais próximo que se encontre determinada, como lhe impõe a lei, a audição do contribuinte em nada as pode alterar.[4]

Significa, portanto, que no caso das liquidações oficiosas inexistindo autoliquidação a questão não é passível de subsunção no convocado artigo 60.º, nº2, alínea a), da LGT, donde de dispensa de audição prévia. Acresce, outrossim, que nem se mostra provado, nem, tão-pouco, alegado, que tenha ocorrido o circunstancialismo previsto no n.º 2, al. b), do mesmo normativo.

Mais importa sublinhar que, não logra, igualmente, provimento a alegada subsunção normativa na alínea a), do nº 1, do artigo 124.º do CPA, consubstanciada na circunstância da decisão revestir natureza urgente, atenta a eminente caducidade do direito à liquidação.

In casu, não nos encontramos perante um procedimento passível de qualificação como urgente, não se encontrando, igualmente, fundamentos objetivos de justificação na própria urgência da prolação da decisão, desde logo, atendendo à natureza e aos prazos consignados no artigo 83.º do CIRC.

Note-se, neste concreto particular, que a situação de urgência que é definidora, donde decisiva, para a dispensa de audiência dos interessados, ocorre apenas quando haja de se prosseguir determinada finalidade pública em que o fator tempo se apresente como elemento determinante e constitutivo e seja impossível ou, pelo menos, muito difícil, cumpri-la através da observância dos procedimentos normais.

Ora, como é bom de ver, a caducidade do direito à liquidação não pode, de todo, ser configurada como fundamento de dispensa de audição prévia, porquanto a AT está subjagada a prazos legais devendo encetar todas as diligências reputadas relevantes para o seu cumprimento atempado. De resto, importa ter presente que o prazo de caducidade é um prazo bastante alargado, regra geral, cifra-se em quatro anos, conforme consignado no artigo 45.º da LGT.

Ademais, in casu, encontrando-nos perante o exercício de 2005, e tendo a liquidação sido emitida em 2007, não se vislumbra, de todo, compaginável com uma situação urgente.

E, por assim ser não é de configurar como circunstância que, pela sua excecionalidade e pela incompatibilidade com a duração mínima da audiência de interessados, justifique a preterição daquela formalidade, de acordo com o disposto na alínea a), do nº1, do artigo 103.º do CPA, (atual artigo 124.º, nº1, alínea a), do mesmo diploma legal).

Destarte, no caso vertente, a AT estava obrigada a conceder o direito de audição antes da liquidação.

Aqui chegados, importa aquilatar da, eventual, aplicabilidade do princípio do aproveitamento do ato administrativo.

Começando por evidenciar que é entendimento unânime jurisprudencial[5], que a omissão da audição do contribuinte, ou a sua realização de forma deficiente e sem os requisitos legais, constitui preterição de uma formalidade legal conducente à anulabilidade da decisão, a menos que, ao abrigo do princípio do aproveitamento do ato administrativo, seja manifesto que a decisão tributária, em abstrato, não podia ser outra da que foi tomada no caso concreto, e por isso se impunha, o seu aproveitamento.

Noutra formulação, dir-se-á que o Tribunal tem o poder de não anular um ato inválido quando a decisão administrativa não poder assumir outro conteúdo, uma vez que em execução do efeito repristinatório da sentença não existe “alternativa juridicamente válida” que não seja a de renovar o ato inválido, embora sem o vício que determinou a anulação[6].

Note-se, neste particular, que o princípio do aproveitamento do ato administrativo, se encontra, atualmente, consagrado no artigo 163.º, nº5 do CPA, segundo o qual:

“5 - Não se produz o efeito anulatório quando:

a) O conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato ser de conteúdo vinculado ou a apreciação do caso concreto permita identificar apenas uma solução como legalmente possível;

b) O fim visado pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por outra via;

c) Se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo.”

Ora, atentos os considerandos de direito supra expendidos e fazendo a apreciação casuística que se impõe, apelando, por isso, às circunstâncias concretas da realidade em apreço, e já devidamente materializadas anteriormente, resulta que não é possível concluir-se, inexoravelmente, que a audição do contribuinte- entenda-se devidamente esclarecida e munida de todos os elementos e requisitos legais- no procedimento não tinha a mínima probabilidade de influenciar a decisão tomada, conduzindo a um resultado diferente.

Com efeito, da intervenção do contribuinte no procedimento da liquidação oficiosa sempre poderia, no caso vertente, resultar uma alteração dos termos em que a matéria colectável foi determinada pela AT, bastando, para o efeito, atentar no ponto 6) da factualidade[7].

Como doutrinado no Aresto já citado do STA, prolatado no processo nº 01102/13, que retrata a situação de liquidação oficiosa“[n]ada nos garante, como se acrescenta no aresto citado, que o contribuinte, mesmo numa situação dessas, “se acaso lhe fosse dada oportunidade para o fazer, não fornecesse elementos úteis à liquidação, designadamente, quanto a deduções, matéria em que a lei não vincula a Administração.
Não é, pois, possível, no nosso caso, a formulação de um juízo de prognose póstuma que leve o tribunal a concluir que a liquidação efectuada era a única possível. Se é verdade que o acto sempre teria de ser praticado, por força da lei, nada permite afirmar que o mesmo seria o seu conteúdo se tivesse havido lugar à audição da recorrida”, cfr. acórdão deste STA, datado de 23/04/2008, recurso n.º 022/08, em dgsi.pt, no mesmo sentido os acórdãos datado de 02/07/2003 e de 16/05/2007, respectivamente, recursos n.ºs 0684/03 e 0192/07.”

Conclui-se, assim, que, in casu, não é possível a formulação de um juízo de prognose póstuma que leve o Tribunal a considerar que a liquidação efectuada era a única possível, ou seja, não é possível concluir, sem margem para dúvidas, que o acto em causa não poderia ter outro conteúdo decisório.

Ora, face a todo o exposto e sem necessidade de outros considerandos, impõe-se concluir que nos encontramos, por um lado, perante a preterição de uma formalidade essencial porquanto o direito de audiência não poderia deixar de ser assegurado e, por outro lado, que tal preterição não é suscetível de ser degradada em não essencial, por não poder considerar-se sanada, nos termos densificados anteriormente.

E por assim ser, improcedem, na íntegra, as alegações da Recorrente com a inerente confirmação da decisão recorrida e consequente manutenção do juízo anulatório do ato impugnado.


***

IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SEGUNDA SUBSECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em:

NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.

Custas pela Recorrente.

Registe. Notifique.


Lisboa, 08 de julho de 2021


[A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Susana Barreto e Vital Lopes]

Patrícia Manuel Pires


______________________
[1] Cfr.Ac. STA, proferidos nos processos nº.21244; rec.684/03, datados de 25.1.00 e 2.7.03; Ac TCAS, processo nº 1510/06, de 17.09.2013 Diogo Leite de Campos e Outros, Lei Geral Tributária anotada e comentada, Encontro da Escrita Editora, 4ª. Edição, 2012, pág.502 e seg.
[2] cfr.artigo 135, do CPA, então em vigor; Ac.TCAS processo nº 9810/16 e 5428/12, de 27.10.2016 e 9.03.2017.; Diogo Leite de Campos e Outros, ob.cit., pág.515; Jorge Lopes de Sousa, CPPT anotado e comentado, I volume, Áreas Editora, 6ª. edição, 2011, pág.437
[3] Vide, neste sentido, Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e Processo Tributário anotado 6ª edição, vol. I, página 431; Jorge Lopes de Sousa, Diogo Leite de Campos e Benjamim Silva Rodrigues, LGT anotada, 3ª edição, página 287.
[4] No mesmo sentido, vide, designadamente, Aresto do STA, prolatado no processo nº 0252/08.6, de 28.10.2020, e bem assim do TCAN, no processo nº 00710/09.7, de 20.02.2020, e TCAS no processo nº 567/17, de 28.02.2019.
[5] Vide, por todos, o Acórdão do Pleno da Secção do Contencioso Tributário do STA de 22.01.2014.
[6] Vide, designadamente, Acórdão do STA proferido no processo n.º 017/12, de 31/01/2012.
[7] Vide, designadamente, jurisprudência do STA, processos nºs 684/03, de 02.07.2003; 192/07, de 16.05.2007, 22/08, de 23/04/2008, 01102/13, de 18.06.2014, e 02052/08, de 28.10.2020.