Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:82/12.2BELRA
Secção:CA
Data do Acordão:03/09/2023
Relator:FREDERICO MACEDO BRANCO
Descritores:AÇÃO POPULAR
TAXAS DE PORTAGEM
ILEGITIMIDADE ATIVA
Sumário:I – A legitimidade constitui um pressuposto processual, na medida em que a apreciação do mérito da causa e o proferimento da decisão depende de estarem no processo partes legítimas.
A legitimidade destina-se a trazer a juízo os titulares da relação material controvertida, sendo que a legitimidade ativa se traduz na possibilidade de iniciar um processo destinado a fazer valer uma pretensão em juízo.
II - O artigo 9º/1 CPTA estabelece que o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida, ou seja, quando alegue ser titular de um direito ou interesse legalmente protegido (legitimidade ativa direta).
Já o artigo 9º/2 CPTA admite um conceito de legitimidade mais amplo no âmbito da ação popular, nos termos do qual, independentemente de terem interesse pessoal na demanda, certos sujeitos têm legitimidade para intervir em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais.
III - No âmbito da ação popular, foi consagrado um conceito de legitimidade ativa difusa, indireta ou impessoal, uma vez que a legitimidade ativa na ação popular não é aferida de modo concreto e casuístico, mas antes em termos gerais e abstratos, bastando, para o autor ser considerado parte legítima, que esteja inserido em determinadas categorias de sujeitos e que atue para promover a legalidade e tutelar bens constitucionalmente protegidos.
O critério de legitimidade ativa consagrado no artigo 9º/2 CPTA é concretizado e complementado pelos artigos 2º e 3º da Lei nº83/95, que é a Lei da Ação Popular (LAP).
A legitimidade ativa das autarquias locais orienta-se por um princípio de territorialidade, uma vez que está limitada à prossecução da satisfação das necessidades próprias das populações respetivas.
IV - Não se mostrando caracterizada a defesa de interesses da comunidade da sua circunscrição - freguesia -, por nada ser dito sobre o modo como a alegada violação da lei se projeta nos interesses difusos dos seus fregueses, e que se enquadrem nas suas atribuições e competências, não se mostra sustentada a qualidade de que os autores se arrogam, ou seja, de serem autores populares, falecendo, assim, a legitimidade ativa da Freguesia.
V – É incontornável que a legitimidade ativa das autarquias locais, em sede de ação popular, se restringe “aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respetiva circunscrição" (cfr. o artigo 2.°, n.º 2 da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto).
A legitimidade processual ativa das autarquias locais encontra-se duplamente limitada: por um limite territorial, expresso no artigo 2.°, n.º 2 da Lei n.º 83/95 e por um limite competencial, estatuído no que às Freguesias diz respeito, no artigo 7.°, n.° 2 da Lei n.° 75/2013.
Acresce que a política de fixação de tarifas de portagens é traçada pelo Governo e cabe na sua esfera de atuação, havendo de ser politicamente valorada pelos cidadãos, através de formas constitucionalmente admissíveis.”
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em Conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I Relatório
A FREGUESIA DE ATALAIA, propôs contra a E....., SA, A....., SA, e INIR – INSTITUTO DE INFRAESTRUTURAS RODOVIÁRIAS, IP Ação Administrativa Comum – Ação Popular tendente, nomeadamente, à sua condenação solidária a fazerem cessar a cobrança de taxas de portagem no troço da A-13 entre Atalaia e Tomar; removerem dos locais onde se encontram colocados, nesse troço, todos os equipamentos utilizados para proceder automaticamente a essa cobrança, nomeadamente, os designados “pórticos”, com todos os seus elementos e acessórios.

Por Despacho de 9 de dezembro de 2014 foi admitida a intervenção espontânea de N......, M......, J......, D......, C...... e O.......

A Autora e os intervenientes, inconformados com a Sentença proferida em 16 de abril de 2015 que julgou procedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa da freguesia de Atalaia, vieram recorrer para esta instância em 11 de maio de 2015, aí concluindo:
“1º) O douto despacho recorrido não se pronunciou acerca da legitimidade dos intervenientes principais:
2º) Não observou, assim, a regra do art. 595°. al. a), do CPC, aplicável por força do art. 1º do CPTA:
) Omissão que determina a anulação do ato. já que se mostra, ademais, ter influído, essencialmente, por omissão, na decisão proferida (art. 195°, nº 1. C PC ):
4°) A Freguesia de Atalaia é parte legítima, visto que a matéria dos autos se enquadra no âmbito das atribuições das freguesias previstas na al. 1) do Art. 14º, nº 1. da Lei das Autarquias Locais;
5º) A legitimidade dos intervenientes decorre do disposto nos arts. 1° e 2º da Lei n° 83/95. de 31 de Agosto;
6º) O douto despacho recorrido violou, pois, as disposições legais acima citadas.
Termos em que deve conceder-se provimento ao recurso, consequentemente se anulando a douta decisão recorrida, ordenando-se a baixa do processo ou julgando-se as partes legítimas, consequentemente se determinando o prosseguimento dos autos, para se fazer JUSTIÇA!”
O Recurso foi admitido por Despacho de 21 de maio de 2015.

Em 14 de setembro de 2015 veio a Contrainteressada A....., S.A., apresentar contra-alegações de Recurso, aí concluindo:
“A) O presente recurso jurisdicional encontra-se votado ao total insucesso, devendo, portanto, a decisão recorrida ser mantida na ordem jurídica, porquanto os Recorrentes não almejaram colocar em causa o decisório do Tribunal a quo, conforme se demonstrará nas conclusões subsequentes.
B) Contrariamente ao defendido pelos Recorrentes, a decisão recorrida não deve ser anulada: não se conhece a figura da anulação por reporte a decisões judiciais, não tendo os Recorrentes, numa linha que seja das suas alegações de recurso (nem tão pouco das respetivas conclusões), alegado a existência de uma nulidade do decisório do Tribunal a quo.
C) Em qualquer caso, mesmo que o tivessem feito, nunca a decisão recorrida poderia ser declarada nula, dado que não se verificou qualquer omissão de pronúncia quanto à ilegitimidade dos Recorrentes Intervenientes. Basta, a este propósito, atender no exato teor do decisório recorrido.
D) No mais, mesmo que se considere que, na letra da decisão recorrida, não se vislumbra um julgamento expresso quanto à ilegitimidade dos Recorrentes Intervenientes, sempre deverá prevalecer o entendimento de que tal pronunciamento não era necessário, na medida em que não se impunha ao Tribunal a quo que sobre essa questão discorresse, atento o julgamento, juridicamente imaculado, que o mesmo órgão jurisdicional promoveu quanto à exceção de ilegitimidade processual ativa da Recorrente Junta de Freguesia da Atalaia.
E) No mais, ao decidir nesses exatos termos, ou seja, ao decidir que a Recorrente Junta de Freguesia da Atalaia é parte ilegítima nestes autos não pode ser imputada qualquer crítica ao Tribunal a quo.
F) É assim porque, da análise do posicionamento expresso pelos Recorrentes nos autos, não é possível apurar qual é o específico interesse, de que são titulares os residentes na correspondente área de circunscrição, que a Freguesia da Atalaia pretende, através da ação popular em apreço, proteger, nem tão pouco que esse suposto interesse se inscreva no seu leque de atribuições legalmente previstas.
Termos em que, deve ser negado provimento ao presente recurso jurisdicional, e ser a decisão judicial recorrida inteiramente mantida na ordem jurídica, com as demais e devidas consequências legais.”

Em 16 de setembro de 2015 veio a Contrainteressada I….., S.A., por sucessão legal de E….., S.A., apresentar contra-alegações de Recurso, aí concluindo:
“(i) que a decisão de absolvição da instância envolveu a formulação de um juízo de falta de legitimidade processual ativa da autora e dos intervenientes;
(ii) que o ato praticado não é nulo por falta de pronuncia;
(iii) que existe um simples lapso de escrita, o qual deve ser retificado para apaziguamento das partes ativas da instância.
Mais se concluiu em sede de ampliação do Recurso:
“1) A pretensão da autora e dos intervenientes consiste em pretender o direito à circulação gratuita numa via rodoviária;
2) Pretensão, essa, que não tem tutela constitucional;
3) O estabelecimento de portagens em vias rodoviárias é um de natureza político-administrativa não sindicável pelos tribunais;
4) A decisão recorrida violou o artigo 4.º, n.º 2, do ETAF.
Termos em que, deve a apelação ser julgada não provada e improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.”
Em 17 de novembro de 2015 veio a Contrainteressada A....., S.A., a pronunciar-se relativamente à ampliação do Recurso reiterando o teor das suas precedentes contra-alegações de Recurso.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado em 4 de dezembro de 2015, veio a emitir Parecer em 14 de dezembro de 2015, no qual, a final, se prenuncia no sentido de “que ao recurso deve ser negado provimento, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.”

Prescindindo-se dos vistos legais, mas com envio prévio do projeto de Acórdão aos juízes Desembargadores Adjuntos, foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II - Questões a apreciar
Importa apreciar e decidir as questões colocadas pelos Recorrentes, sendo que o objeto do Recurso se acha balizado pelas conclusões expressas nas respetivas alegações, nos termos dos Artº 5º, 608º, nº 2, 635º, nº 3 e 4, todos do CPC, ex vi Artº 140º CPTA, onde se suscita omissão de pronuncia e a inverificação da declarada ilegitimidade Ativa.

III – Fundamentação de Facto
Não foi em 1ª Instância fixada qualquer matéria de Facto.

IV – Do Direito
Importa agora analisar e decidir o suscitado.
Desde logo, e no que aqui releva, importa transcrever o essencial do discurso fundamentador da decisão Recorrida.
“Ilegitimidade Ativa
Alega o INIR-Instituto de Infraestruturas Rodoviárias, IP, que o interesse que deriva a legitimidade consiste em as partes serem os sujeitos da relação jurídica submetida à apreciação do Tribunal, atenta a relação jurídica em causa. Alega, de resto, que o interesse em agir de que deriva a legitimidade consiste nas partes serem os sujeitos da relação jurídica submetida à apreciação do Tribunal, partindo da forma como ela foi configurada pela autora. Defende que o interesse na circulação gratuita em certas rodovias não consta dos fins e interesses protegidos por quaisquer valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção ao consumo de bens/serviços, proteção do domínio público e património cultural, urbanismo, razão pela qual não se mostra preenchida a previsão do n.º 2 do artigo 9.º do CPTA. Ainda defende que a autora, agindo em representação e defesa dos que sejam titulares desse interesse e sejam residentes na área da respetiva circunscrição, suscita vícios que nenhuma ligação tem com aqueles interesses constitucionalmente protegidos
A co-ré, A....., SA, também suscita a mesma ilegitimidade ativa da autora, defendendo que no contrato de subconcessão celebrado entre a concessionária E......, SA e a A......, em 28 de Abril de 2010, alterado depois em 17 de Julho de 2010, foi previsto que a conceção, projeto, beneficiação, financiamento, conservação e exploração, com cobrança de portagens, foram contratualizados, mas com exceção para o tráfego local. Ainda refere que esta exclusão expressa de portajar o tráfego local naquele troço implicaria que a freguesia de Atalaia deixaria de ter direitos ou interesses a proteger, na medida em que no troço correspondente à sua circunscrição territorial não são cobradas portagens, por estar precisamente excluído o trafego local, nos termos do artigo 1.º e n.º 2 do artigo 2.º da Lei 83/95, de 31 de Agosto.
A ré, E......, SA, por seu turno, defende existir, também, ilegitimidade ativa da autora referindo, a esse propósito, que os interesses que a autora quer assegurar correspondem à circulação gratuita em certas vias rodoviárias e que este interesse não é subsumível aos interesses constitucionais objeto de proteção do âmbito do n.º 3 do artigo 52.º da CRP e da legislação ordinária aplicável.
Conclui a ré, E…, SA, que a legitimidade e o interesse em agir se deveria circunscrever aos sujeitos passivos da relação tributária em causa.
A autora, pelo contrário, defende ser titular de interesse em agir e de legitimidade ativa nos presentes autos, referindo a esse propósito um Aresto do TCA Sul, no âmbito do recurso n.º 08721/ 12, do 2.º juízo, 1.ª secção, onde se defendeu que a instauração de portagens onde antes não existiam prejudica economicamente as pessoas que habitam na sua freguesia, logo prejudicam a sua qualidade de vida, assim como a freguesia, pois para desenvolver as suas atividades, têm de utilizar as estradas da sua área, sendo afetada se for proprietária de veículos. Apreciando e decidindo.
A Ação Popular é um direito de ação judicial, sendo também considerada um direito fundamental de acesso aos tribunais, conforme artigo 20º da CRP, em que a legitimidade não é aferida em termos concretos e casuísticos, mas em termos abstratos e gerais.
Sendo assim, fica assente que o interesse pessoal e direto do sujeito não releva para efeitos de legitimidade na ação popular. O n.º 2 do artigo 9º do CPTA reconhece, assim, a qualquer pessoa, às associações e fundações defensoras dos interesses em causa, às autarquias locais e ao Ministério Público, uma legitimidade impessoal, para propor ou intervir em processos principais ou cautelares destinados à defesa de certos valores constitucionalmente protegidos, como por exemplo, o ambiente, a saúde pública, o património cultural, o domínio público, o urbanismo, a qualidade de vida, entre outros.
Contudo, este mesmo artigo 9.º /n.º 2 do CPTA não disciplina concretamente a legitimidade, antes institui uma cláusula geral que remete, a este propósito, para os termos previstos na lei. E lei para tais efeitos, é para o que no caso interessa, a Lei nº 83/95, de 31 de Agosto.
Todavia, quanto às autarquias locais, a sua legitimidade assenta na proteção de valores constitucionais tutelados [o ambiente, a saúde pública, o património cultural, o domínio público, o urbanismo, a qualidade de vida, entre outros] que, embora radicados em toda a coletividade, na verdade, restringem a sua legitimidade à medida da sua circunscrição territorial, nos termos do n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, não podendo agir na defesa de valores constitucionais tutelados fora dessa circunscrição.
Portanto, no caso das autarquias locais, ou seja, no caso da autora, a sua legitimidade popular depende destas estarem a defender interesses dos titulares que tenham residência da área da sua circunscrição.
Por outro lado, apesar de não ser posição pacífica, o Tribunal entende que a legitimidade das autarquias locais, no âmbito da ação popular, ainda tem um outro limite cumulativo, acompanhando aqui de perto a posição de M......: é necessário que a defesa e a promoção do interesse difuso que a autarquia pretende tutelar, através da ação popular, se inclua nas suas atribuições e competências legais, até porque por força do corolário da descentralização administrativa e da essência da autonomia local, não vejo como este limite possa ser ultrapassado.
E determina o artigo 14.º da Lei n.º 159/99, de 14 de Setembro, na redação dada pela Lei n.º 67-A/2007, de 31 de dezembro:
Artigo 14.º
Atribuições das freguesias
1 - As freguesias dispõem de atribuições nos seguintes domínios:
a) Equipamento rural e urbano:
b) Abastecimento público;
c) Educação;
d) Cultura, tempos livres e desporto;
e) Cuidados primários de saúde;
f) Ação social;
g) Proteção civil;
h) Ambiente e salubridade;
i) Desenvolvimento;
j) Ordenamento urbano e rural;
l) Proteção da comunidade.
2 - As atribuições das freguesias e a competência dos respetivos órgãos abrangem o planeamento, a gestão e a realização de investimentos nos casos e nos termos previstos na lei.”
Não vislumbra o Tribunal qual o interesse difuso que a autarquia, aqui autora, pretende tutelar, através da presente ação popular, que se inclua nas suas atribuições legais, nem isso se vislumbra, no âmbito do artigo 34.º da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro, na redação que lhe foi conferida pela Lei Orgânica n.º 1/2011, de 30 de Novembro, que lhe confere um conjunto de competências próprias.
De facto, as autarquias possuem interesses próprios no âmbito das suas atribuições e competências, mas no caso dos autos, a autora, Freguesia de Atalaia, encontra-se desprovida de interesse na defesa do interesse dos titulares residentes na área da sua circunscrição, identificando de modo impreciso como interesse a tutelar o de não cobrança das taxas de portagem no troço de autoestrada, denominado de A-13, entre o nó com a A-23 e a EN110 e entre esta e o nó de Asseiceira, por força da sua ilegalidade, invocando a autora, tão só, os prejuízos económicos de " todos os utentes" (sublinhando nosso) [cfr artigo 40.º da PI].
É que, a sua legitimidade difusa assenta no facto de os bens ou valores constitucionalmente tutelados, embora radicados em toda a coletividade, terem (ou poderem ter) particular incidência na área da circunscrição da autora – freguesia de Atalaia - o que, naturalmente, restringe a sua legitimidade aos processos em que se discutam questões respeitantes aos efeitos da medida administrativa na sua própria circunscrição (cfr. n.º 2 do artigo 2.º da Lei nº 83/95), não podendo agir judicialmente para defesa de interesses difusos postos em causa para defesa de todos os cidadãos, como resulta da vaga alegação ao identificar os prejuízos económicos de " todos os utentes" [in Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, in ―Código do Processo nos Tribunais Administrativos‖, 2004, I Vol., pág. 163].
Por outro lado, importa sublinhar que a mera alegação do interesse da defesa da legalidade do suposto ato administrativo impugnado [que a autora identifica como sendo " ato tácito" , consubstanciado na efetiva cobrança nas portagens, ainda que sem base legal, por parte das E ……, SA, como concessionária, e da A......, como subconcessionária – artigos 34.º e 35.º da PI], assente na violação do princípio da legalidade e no vício de usurpação de poderes e de defesa económica de " todos os utentes" , desacompanhada de outra alegação, não permite fundar a existência de um interesse difuso a tutelar através da presente ação popular.
De facto, para além da alegada defesa da tutela objetiva da legalidade na cobrança da taxa de portagem do troço da autoestrada A-13, entre o nó com a A-23 e a EN110 e entre esta e o nó de Asseiceira, nada mais invoca a autora que permita caracterizar o interesse difuso que visa defender, a não ser referir que a ilegalidade dessa cobrança causa prejuízos económicos a todos os utentes [sublinhado nosso] tanto os que já pagaram como os que vierem a pagar [quer se tratem de utentes fregueses de Ataleia ou de outro ponto qualquer do país].
Não se mostrando caracterizada a defesa de interesses da comunidade da sua circunscrição – freguesia de Atalaia -, por nada ser dito sobre o modo como a alegada violação da lei e a suscitada usurpação de poderes dos corréus se projeta nos interesses difusos dos seus fregueses, e que se enquadrem nas suas atribuições e competências, não se mostra, também, sustentada a qualidade de que os autores se arrogam, ou seja, de serem autores populares, portanto, falece, efetivamente, a sua legitimidade ativa.
Procede, portanto, a exceção dilatória de ilegitimidade ativa da Freguesia de Ataleia, autora nos presentes autos.”

Enquadremos então normativamente a controvertida questão:
O artigo 52º, nº3 alínea a), da CRP, sob a epígrafe «Direito de petição e direito de ação popular», refere o seguinte:
«É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural».

Já o artigo 2º, nº1, da Lei nº83/95, de 31.08 [LAP - Lei da Ação Popular, refere que:
«São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de ação popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previsto no artigo anterior [designadamente a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público], independentemente de terem ou não interesse direto na demanda».
Correspondentemente, refere o artigo 31º do CPC [CPC/2013] que «Têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias e o Ministério Público, nos termos previstos na lei».

O artigo 9º, nº2, do CPTA estabelece que «Independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa, bem como as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, têm legitimidade para propor e intervir, nos termos previstos na lei, em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais».

Efetivamente, a legitimidade constitui um pressuposto processual, na medida em que a apreciação do mérito da causa e o proferimento da decisão depende de estarem no processo partes legítimas.

A legitimidade destina-se a trazer a juízo os titulares da relação material controvertida, sendo que a legitimidade ativa se traduz na possibilidade de iniciar um processo destinado a fazer valer uma pretensão em juízo, ou, nas palavras de Vieira de Andrade “a legitimidade ativa (…) implica a titularidade do direito (potestativo) de ação”.

O artigo 9º/1 CPTA estabelece que o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida, ou seja, quando alegue ser titular de um direito ou interesse legalmente protegido (legitimidade ativa direta).

Já o artigo 9º/2 CPTA admite um conceito de legitimidade mais amplo no âmbito da ação popular, nos termos do qual, independentemente de terem interesse pessoal na demanda, certos sujeitos têm legitimidade para intervir em processos principais e cautelares destinados à defesa de valores e bens constitucionalmente protegidos, como a saúde pública, o ambiente, o urbanismo, o ordenamento do território, a qualidade de vida, o património cultural e os bens do Estado, das Regiões Autónomas e das autarquias locais, assim como para promover a execução das correspondentes decisões jurisdicionais. Através da análise do critério de legitimidade consagrado no artigo 9º/2 CPTA, conclui-se que um sujeito pode ser parte legítima no processo sem que seja titular das posições substantivas que se visa tutelar no processo, o que significa que há uma independência do interesse processual face ao interesse substancial.

A ação popular é caracterizada por uma extensão da legitimidade processual, a qual deixa de ser aferida em função da titularidade de um interesse direto, pessoal e legítimo na demanda. Como refere Mário Aroso de Almeida, o artigo 9º/2 CPTA consagra um alargamento da legitimidade processual ativa a quem não alegue ser parte na relação material controvertida. Para o referido académico, o artigo 9º/2 CPTA desempenha duas funções:
i) dar expressão ao direito de ação popular no âmbito do contencioso administrativo e
ii) atribuir legitimidade ativa a determinados sujeitos.

No âmbito da ação popular, foi consagrado um conceito de legitimidade ativa difusa, indireta ou impessoal, uma vez que a legitimidade ativa na ação popular não é aferida de modo concreto e casuístico, mas antes em termos gerais e abstratos, bastando, para o autor ser considerado parte legítima, que esteja inserido em determinadas categorias de sujeitos e que atue para promover a legalidade e tutelar bens constitucionalmente protegidos.

O alargamento da legitimidade ativa no âmbito da ação popular contribui para a garantia de uma tutela jurisdicional plena e efetiva, na medida em que permite assegurar a tutela de um maior número de posições jurídicas subjetivas dos particulares.

O critério de legitimidade ativa consagrado no artigo 9º/2 CPTA é concretizado e complementado pelos artigos 2º e 3º da Lei nº83/95, que é a Lei da Ação Popular (LAP).

O artigo 2º/1 da LAP esclarece que são titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de ação popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos independentemente de terem ou não interesse direto na demanda.

São igualmente titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de ação popular as autarquias locais em relação aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respetiva circunscrição (artigo 2º/2 LAP).

Neste aspeto, a legitimidade ativa das autarquias locais orienta-se por um princípio de territorialidade, uma vez que está limitada à prossecução da satisfação das necessidades próprias das populações respetivas.

Têm ainda o direito procedimental de participação social e o direito de ação popular, independentemente de terem ou não interesse direto na demanda, as associações e fundações defensoras da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, da proteção do consumo de bens e serviços, do património cultural e do domínio público (artigos 1º/2 e 2º/1 LAP). Para as associações e fundações serem titulares do direito de ação popular coletiva, têm de estar preenchidos os seguintes requisitos:
i) as associações ou fundações têm de ter personalidade jurídica (artigo 3º a) LAP),
ii) a defesa dos interesses em causa na ação popular tem de estar incluída expressamente nas atribuições ou estatutos das associações ou fundações (artigo 3º b) LAP) e
iii) as associações ou fundações não podem exercer qualquer tipo de atividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais (artigo 3º c) LAP).

Resulta assim que o exercício do direito de ação popular por associações e fundações obedece a um princípio de especialidade, na medida em que se circunscreve à área de intervenção principal destas entidades (ex: ambiente).

Finalmente, o Ministério Público é titular do direito de ação popular, através da qual esta entidade defende a legalidade e o interesse público a título institucional, competindo-lhe a defesa, nos termos da lei, dos interesses coletivos e difusos (artigo 3º/1 e) do Estatuto do Ministério Público (EMP).

Vejamos em concreto:
Vem interposto Recurso conjunto por parte da Freguesia e intervenientes, da Sentença proferida em 1ª instância que julgou procedente a exceção de ilegitimidade ativa, tendo correspondentemente absolvido os Réus da instância.

Ressalta do Recurso a imputação de não pronuncia, pelo Tribunal a quo, face à legitimidade processual ativa dos intervenientes principais, que seria geradora de anulação, por parte deste TCAS e ainda a legitimidade ativa da Freguesia.

Da falta de fundamento do recurso jurisdicional em presença
Do dever de anulação da decisão recorrida
Alegam os Recorrentes que o Tribunal a quo “não se pronunciou acerca da legitimidade dos intervenientes principais" em face do que teria sido incumprida "a regra do art. 595°, al. a), do CPC".

A invocada omissão teria como consequência "a anulação do ato, já que se mostra, ademais, ter influído, essencialmente, por omissão, na decisão proferida”.

Se é certo, como se refere nas contra-alegações, que é inexistente a figura processual da “anulação do ato”, mas somente a nulidade de atos, nos termos do Artº 195º nº 1 CPC, sendo que é o Artº 615º do CPC que enquadra a questão da nulidade das decisões.

Aqui chegados e em bom rigor, os Recorrentes não invocam em momento algum do seu Recurso a nulidade da decisão objeto de recurso, nomeadamente nos termos do referido artigo 615.°, do CPC, o que não pode aqui deixar de ser considerado e sublinhado.
Atenda-se que se refere na decisão recorrida que "Não se mostrando caracterizada a defesa de interesses da comunidade da sua circunscrição - freguesia de Atalaia -, por nada ser dito sobre o modo como a alegada violação da lei e a suscitada usurpação de poderes dos corréus se projeta nos interesses difusos dos seus fregueses, e que se enquadrem nas suas atribuições e competências, não se mostra, também, sustentada a qualidade de que os autores se arrogam, ou seja, de serem autores populares, portanto, falece, efetivamente, a sua legitimidade ativa".

A adoção do plural referindo-se aos “Autores” só pode significar que o tribunal a quo se não “esqueceu” dos intervenientes, antes tendo considerado a sua situação e legitimidade em termos conjuntos com a Freguesia.

É assim patente que o tribunal a quo singelamente e por mero lapso terá omitido a referência expressa à ilegitimidade dos intervenientes, quando abordou a questão da legitimidade ativa dos Recorrentes.

Em qualquer caso, sempre a decisão expressa da ilegitimidade processual ativa dos Intervenientes, aqui Recorrentes, se mostraria prejudicada pela decisão proferida, ao ter sido declarada a ilegitimidade ativa do Autor originário - Freguesia.

Com efeito, tendo o Tribunal a quo decidido a ilegitimidade ativa da Freguesia, por inexistir um interesse difuso a tutelar, essa decisão, por natureza, sempre seria aplicável e extensível aos Intervenientes, uma vez que a ausência de interesse difuso sempre seria igualmente aplicável aos mesmos.

Assim, mesmo que se entendesse que a referência no plural aos Autores, enquanto parte ilegítima na Ação, seria insuficiente para entender que a mesma abrangeria os intervenientes, ainda assim a questão mostrar-se-ia prejudicada pela solução dada à exceção de ilegitimidade ativa da Freguesia da Atalaia - artigo 608.°, n.º 2 do CPC.

Não se reconhece pois a verificação da invocada omissão de pronuncia.

Da legitimidade ativa da Freguesia da Atalaia
Entendem os Recorrentes que a “decisão recorrida, salvo o devido respeito, é contraditória nos seus termos, visto que a propositura desta ação se enquadra, obviamente, no âmbito das atribuições que às freguesias são cometidas, nomeadamente, pela alínea f) do art. 14° da Lei das Autarquias Locais, que na douta decisão se cita, alínea essa na qual se contempla a «Proteção da comunidade».
(...)
As autarquias locais não podem ser alheias à defesa da legalidade contra atos praticados na área da sua circunscrição, que afetem os direitos difusos dos cidadãos nelas residentes, legal e constitucionalmente tutelados, ainda que os seus efeitos se propaguem para fora dessa área".

Apreciando, é incontornável que a legitimidade ativa das autarquias locais, em sede de ação popular, se restringe “aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respetiva circunscrição" (cfr. o artigo 2.°, n.º 2 da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto).

Como refere Miguel Teixeira de Sousa (in A legitimidade popular na tutela dos interesses difusos, Lex, Lisboa, 2003, p. 200 e ss.) para que as autarquias detenham legitimidade processual ativa é, também, decisivo que o(s) interesse(s) que visem proteger se inscreva(m) na sua esfera de atribuições e competências legalmente protegidas, evidenciando- se, a este propósito, importante o disposto no artigo 7.°, n.º 2 da Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro.

A legitimidade processual ativa das autarquias locais encontra-se, assim, duplamente limitada: por um limite territorial, expresso no artigo 2.°, n.º 2 da Lei n.º 83/95 e por um limite competencial, estatuído no que às Freguesias diz respeito, no artigo 7.°, n.° 2 da Lei n.° 75/2013.

Acresce que, como suscitado na ampliação do Recurso das I......, e como referido no ACÓRDÃO n.º 640/95 do TRIBUNAL CONSTITUCIONAL "a política de fixação de tarifas de portagens é traçada pelo Governo e cabe na sua esfera de atuação, havendo de ser politicamente valorada pelos cidadãos, através de formas constitucionalmente admissíveis.”

Estamos pois num limbo competencial, onde nem sequer é evidente que as aqui demandadas tenham legitimidade passiva, atenta a circunstancia da fixação dos valores das Portagens caber ao Governo, cabendo apenas às diversas concessionárias executar o pré-fixado.

Recentrando o raciocínio, refira-se que os aqui Recorrentes não lograram evidenciar a sua legitimidade ativa, tanto mais que a própria freguesia não demonstrou que os interesses difusos aqui controvertidos se insiram no leque das suas atribuições, forçando para além do admissível, que o interesse em causa se integraria na “proteção da comunidade”, previsto na alínea f) do artigo 14.° da LAL.

Como referido por Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Volume I, Almedina, Coimbra, 2006, p. 163), a legitimidade das autarquias locais “(...) assenta no facto de os bens ou valores constitucionalmente tutelados, embora radicados em toda a coletividade, terem (ou poderem ter) particular incidência na área de uma ou mais freguesias ou municípios - o que, naturalmente, restringe a sua legitimidade aos processos em que se discutam questões respeitantes aos efeitos de medida administrativa na sua própria circunscrição (artº.7º da Lei n.° 83/95), não podendo agir judicialmente para defesa de interesses difusos postos em causa noutro local do território nacional”.

Assim, ao não se mostrar identificado objetivamente um interesse com essa particular incidência territorial e ao não provarem que esse mesmo interesse se inscreveria no limite competencial referido, importa reconhecer que o tribunal a quo decidiu bem.

Como se afirmou justamente na Sentença Recorrida “(...) para além da alegada defesa da tutela objetiva da legalidade na cobrança da taxa de portagem do troço da autoestrada A-13, entre o nó com a A-23 e a EN110 e entre esta e o nó de Asseiceira, nada mais invoca a autora que permita caracterizar o interesse difuso que visa defender, a não ser referir que a ilegalidade dessa cobrança causa prejuízos económicos a todos os utentes tanto os que já pagaram como os que vierem a pagar (quer se trate de utentes fregueses da Atalaia ou de outro ponto qualquer do país).
Não se mostrando caracterizada a defesa de interesses da comunidade da sua circunscrição - freguesia de Atalaia -, por nada ser dito sobre o modo como a alegada violação da lei e a suscitada usurpação de poderes dos corréus se projeta nos interesses difusos dos seus fregueses, e que se enquadrem nas suas atribuições e competências, não se mostra, também, sustentada a qualidade de que os autores se arrogam, ou seja, de serem autores populares, portanto, falece, efetivamente, a sua legitimidade ativa".

Não se reconhece pois o invocado erro de julgamento que os Recorrentes imputaram à decisão recorrida.
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Mostra-se prejudicada pelo discorrido supra e pelo que se decidirá, a ampliação do Recurso apresentada pela I......, S.A.
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Deste modo, acordam os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Administrativo do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao Recurso, confirmando a Sentença Recorrida.

Custas Recorrentes, sem prejuízo da isenção subjetiva de que gozarão nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do RCP.

Lisboa, 9 de março de 2023
Frederico de Frias Macedo Branco

Alda Nunes

Lina Costa