Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:10925/14
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:03/20/2014
Relator:SOFIA DAVID
Descritores:AQUISIÇÃO DA NACIONALIDADE PORTUGUESA
PROVA
ACÇÃO SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
Sumário:I - As alterações introduzidas à Lei da Nacionalidade pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17.04 e o actual texto do Regulamento da Nacionalidade, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14.12, não passaram a estabelecer qualquer presunção legal de que qualquer cidadão estrangeiro que seja filho ou case com um cidadão português passa a deter uma efectiva ligação à comunidade portuguesa.

II - Sendo a acção de oposição à aquisição de nacionalidade, de simples apreciação negativa, competiria ao Recorrido fazer a prova da sua ligação efectiva à comunidade portuguesa

III - A prova da ligação efectiva à comunidade nacional é necessariamente feita com base em factos pessoais. Logo, a prova tem de ser feita através de factos próprios do Requerente do pedido de aquisição de nacionalidade, que foi quem invocou o direito à nacionalidade portuguesa. Ao Estado, caberá depois, apenas, a contraprova daqueles factos.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Recorrente: Ministério Público
Recorrido: Hussain …………
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul
Vem interposto recurso da decisão do TAC de Lisboa que julgou improcedente a oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa do ora Recorrido e em consequência ordenou o prosseguimento do processo conducente ao registo, pendente na Conservatória dos Registos Centrais.
Em recurso o Recorrente apenas formulou as seguintes conclusões:
« (…)»
Em contra alegações são formuladas pelo Recorrido as seguintes conclusões:
« (…)».
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Os Factos
Em aplicação do artigo 713º, n.º 6, do CPC, não tendo sido impugnada, remete-se a matéria de facto para os termos em que foi decidida pela 1º instância.
O Direito
Alega o Recorrente que a decisão recorrida foi errada e violou os artigos 9º, alínea a), da Lei da Nacionalidade (LN, Lei n.º 37/81, de 03.10, na versão conferida pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17.04), 56º, n.º 2, alínea a), 57º, n.º 1, do Regulamento da Nacionalidade (RN, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14.12) e o artigo 343º, n.º1, do Código Civil (CC), pois competia ao R., ora Recorrido, a prova dos factos constitutivos do direito a que se arroga e o Recorrido não provou a sua ligação efectiva à comunidade portuguesa.
Diga-se, desde já, que o presente recurso procede.
Nestes autos está em causa um pedido de arquivamento do processo relativo à aquisição da nacionalidade portuguesa, pendente na Conservatória dos Registos Centrais, com fundamento em que o ora Recorrido não logrou demonstrar a sua ligação efectiva à comunidade nacional.
Nos termos do artigo 2.º da Lei n.º 37/81, de 03.10, na versão conferida pela Lei n.º 25/94, de 19.08 [Lei da Nacionalidade – LN], «[o]s filhos menores ou incapazes de pai ou mãe que adquira a nacionalidade portuguesa podem também adquiri-la mediante declaração». «Constituem fundamentos de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa: // [a] inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional» [artigo 9.º/a), da LN].
A aquisição da nacionalidade de filho de pai que se naturalizou português é regulada no artigo 13.º do Decreto-Lei n.º 253/94, de 20.10 [Regulamento da Nacionalidade Portuguesa – RN].
«Todo aquele que requeira registo de aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou por adopção, deve: // a) Comprovar por meio documental, testemunhal ou qualquer outro legalmente admissível a ligação efectiva à comunidade nacional» – artigo 22.º, n.º 1, do RN.
Constitui jurisprudência assente a de que: «não serão suficientes quaisquer vínculos de ordem sentimental ou outra, manifestados de forma mais ou menos casuística, que façam crer e pressupor que o interessado pretende adquirir a nacionalidade portuguesa, sem ter, no nosso país, relações sociais, humanas, de integração cultural, de participação na vida comunitária portuguesa, designadamente, em associações culturais, recreativas, ou desportivas, enfim, praticando actos que levem a entender, e justifiquem, que lhe seja concedido o Estatuto de cidadão português» – cf. Ac. do STJ, de 06.06.2002, P. 02 A 4020, in www.dgsi.pt; e que: «A pertença à comunidade nacional ou a ligação efectiva a esta não se pode definir pelo preenchimento de todos os itens que habitualmente são enumerados (conhecimento da língua, dos usos e costumes, da história, da geografia, das tradições, etc. e convívio e integração nas comunidades de portugueses) nem requer que a cada um deles seja conferido o mesmo relevo; antes exige que, numa visão de conjunto, seja possível concluir que a caminhada para adquirir a nacionalidade portuguesa se encontra estruturada e arreigada no pretendente» – Ac. do STJ, de 21.09.2004, P. 05A327, in www.dsgi.pt.
No caso dos autos, o Recorrido não logrou provar ter conhecimento de Portugal ou ter um contacto permanente e consistente com a cultura, geografia e língua portuguesas, quer em TN, quer no estrangeiro.
Dos factos provados e não impugnados neste recurso, resulta que a Recorrente nasceu no Paquistão e que a sua mãe, natural de Moçambique, adquiriu a nacionalidade portuguesa. Não se provou nesta acção nenhum facto relativo à ligação do Recorrido a Portugal.
Ou seja, os factos aqui provados são manifestamente insuficientes para se poder concluir que o ora Recorrido tem as suas referências sociológicas e culturais em Portugal. Logo, não provou que o ora Recorrido tem ligação à comunidade portuguesa.
Quanto às alegações de que a nova lei da nacionalidade passou a exigir apenas a declaração de ligação efectiva do Recorrido à comunidade nacional e que ao Recorrente é que compete a prova da inexistência daquela ligação, falecem totalmente.
As alterações introduzidas à LN pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17.04 e o actual texto do RN, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 237-A/2006, de 14.12, não passaram a estabelecer qualquer presunção legal de que qualquer cidadão estrangeiro que seja filho ou case com um cidadão português passa a deter uma efectiva ligação à comunidade portuguesa.
Isso mesmo já foi decidido por este TCA em diversos arrestos, designadamente nos Acs. n.º 4125/08, de 21.10.2008, n.º 3697/08, de 13.11.2008, n.º 4150/08, de 19.11.2009, n.º 488/09, de 26.05.2011 ou n.º 5367/09, de 19.11.2009, todos em www.dsgi.pt. Concordando-se com tal jurisprudência para ai se remete.
Na senda da jurisprudência indicada, atendendo a que a presente acção é de simples apreciação negativa, competiria ao Recorrido fazer a prova da sua ligação efectiva à comunidade portuguesa.
Isso mesmo deriva dos artigos 342º e 343º, n.º1, do Código Civil (CC).
A prova da ligação efectiva à comunidade nacional é necessariamente feita com base em factos pessoais.
Logo, a prova tem de ser feita através de factos próprios da ora Recorrido, que foi quem invocou o direito à nacionalidade portuguesa. Ao ora Recorrente, ao Estado, caberá depois, apenas, a contraprova daqueles factos.
Mais se diga, que a tese perfilhada na sentença recorrida e subscrita pelo Recorrido se entendida como a do cometimento à Administração da averiguação dos factos constitutivos do direito – de ligação à comunidade e do direito à nacionalidade portuguesa – tudo factos pessoais do Recorrido, também sempre deveria ser entendida como uma prova diabólica e como tal inadmissível.
Como se disse, a prova da efectiva ligação à comunidade portuguesa tem de ser feita através da invocação de factos pessoais. Assim, se se entendesse que tal prova não competia apenas àquele a que se arroga o direito, mas antes à Conservadora dos Registos Centrais ou ao Estado, estar-se-ia a exigir que estes últimos demonstrassem factos que só aquele a que se arroga o direito conhece e pode provar. Trata-se de uma prova impossível ou extremamente difícil de fazer, trata-se de «prova diabólica». Será «prova diabólica» exigir da Conservadora dos Registos Centrais ou do Estado v.g. que provem que um cidadão estrangeiro que pretende a nacionalidade portuguesa sabe os usos e costumes portugueses, da história, da geografia ou que convive e se integra na comunidade portuguesa, com quem tem amizades e que detém um sentimento de pretensa a esta comunidade portuguesa. Não pode nunca a Conservadora dos Registos Centrais ou o Estado reunir tal prova, salvo se lançarem mão a uma verdadeira investigação policial, que certamente violaria o direito constitucionalmente protegido à reserva da intimidade da vida privada e familiar (cf. artigo 26º da CRP).
Refira-se, ainda, que se se entendesse que a alteração da Lei da Nacionalidade exige agora que a Conservadora dos Registos Centrais ou o Estado provem a inexistência da efectiva ligação à comunidade portuguesa – e não o inverso, ou seja, que é ao interessado que cabe fazer a prova dessa ligação – estar-se-ia ainda a admitir que através dessa lei se pudesse restringir o direito constitucional à reserva da intimidade da vida privada e familiar; estar-se-ia a tornar legítima e não abusiva a recolha de informações relativas a essas pessoas, suas famílias, amigos, locais que frequenta, associações onde se integra, neles se tendo inscrito etc. Ora, este entendimento é claramente errado e ofende os mais elementares princípios de um Estado de Direito, em que prima a dignidade da pessoa humana. Não pode o Estado obter informações pessoais sobre as pessoas, sua família e amigos para efeitos da prova da inexistência da efectiva ligação à comunidade portuguesa. Essa prova, de factos pessoais, compete unicamente ao interessado, quando requer o seu direito. Por seu turno, ao Estado incumbe apenas a contraprova desses factos, sempre com respeito pelos princípios constitucionais e pelo princípio da reserva da intimidade da vida privada e familiar.
Em suma, considerando que o ónus da demonstração da ligação efectiva compete ao Recorrido e atendendo aos elementos colhidos dos autos, não impugnados neste recurso, é manifesto que o mesmo não logrou provar tal ligação. Por conseguinte, não tendo feito essa prova, terá de se julgar procedente a presente acção de oposição à nacionalidade.
Dispositivo
Pelo exposto, acordam em:
- Dar provimento ao recurso, anulando a decisão recorrida;
- Julga-se procedente, por provada, a presente oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, determinando, em consequência, o arquivamento do respectivo processo na Conservatória dos Registos Centrais.
Sem custas pelo Recorrido, por dela estar dispensado, face ao apoio judiciário de que goza (cf. doc. de fls. 87).

Lisboa, 20 de Março de 2014
(Sofia David)
(Cristina Santos)
(Rui Pereira)