Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:13030/16
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:12/15/2016
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:DANO MORTE
GRAU DE CULPA
SITUAÇÃO FINANCEIRA DO LESANTE
Sumário:I - Quanto à indemnização, “rectius”, compensação pelo dano morte (que se transmite por via sucessória de acordo com o artigo 2024º do Código Civil), a jurisprudência tem-se orientado, sob a égide racional da equidade, por valores entre 50.000,00 euros e 90.000,00 euros.

II - Isso é relevante, sobretudo porque os princípios da igualdade e da unidade do direito objetivo e o valor da previsibilidade das decisões judiciais vinculam à padronização e à normalização do valor da indemnização, embora sem violarmos o princípio da legalidade e o da responsabilidade civil subjetiva, do qual decorre a grande importância que o juiz deve atribuir ao grau de culpa do agente que causou a morte de outrem; com efeito, dois casos de dano morte, em tudo idênticos com exceção no respetivo elemento subjetivo do ilícito e da culpa, nunca poderão determinar montantes iguais de compensação pela eliminação do direito à vida.

III - A compensação do dano morte em si não fixa o valor da vida humana. É o maior dano não patrimonial que alguém pode sofrer, mas é um dano não patrimonial. E, por isso, não se pode ignorar o estabelecido nos artigos 566º/3 e 494º do Código Civil.

IV - No caso presente, ponderando todos os fatores referidos, incluindo nós a notória má situação financeira do nosso Estado, como responsável a título de mera culpa, julgamos que o valor de 70.000,00 euros não é demasiado elevado.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. RELATÓRIO

· ANTÓNIO …………………………. e

· DIOGO ……………………………….., devidamente identificados nos autos, intentaram no Tribunal Administrativo de Círculo de ALMADA ação administrativa comum contra

· ESTADO PORTUGUÊS e

· NUNO …………………………..

O pedido formulado foi o seguinte:

Condenação dos réus a:

a) Pagar ao 1.º autor uma indemnização correspondente ao montante já despendido com as despesas de saúde, educação e alimentação do filho do falecido Paulo ………….., bem como as incorridas com o cemitério e o seu funeral, no montante total de €38.675.00;

b) Pagar ao 2.º autor uma indemnização correspondente ao dano da perda do direito à vida do seu pai, Paulo .........., no montante de €100.000.00, a ser atribuída em sede sucessória ao seu sucessor legitimário;

c) Pagar ao 2.º autor uma indemnização correspondente aos danos físicos e psicológicos sofridos pelo seu pai, Paulo .........., antes de morrer, no montante de €80.000.00, a ser atribuída em sede sucessória ao seu sucessor legitimário;

d) Pagar ao 2.º autor uma indemnização no valor de €60.000.00, correspondente aos danos não patrimoniais sofridos em consequência da morte do seu pai;

e) Pagar ao 2.º autor uma indemnização correspondente aos danos patrimoniais sofridos pelo seu pai, na forma de lucros cessantes, no montante de €170.000.00, relativos às importâncias que este deixou de auferir em consequência da sua morte, a ser atribuída em sede sucessória:

Pagar ao 1.º e 2.º autores os juros de mora que, às taxas legais em vigor, desde a data da morte de Paulo .........., se vencerem sobre as referidas importâncias.

Por sentença de 23-10-2015, o referido tribunal veio a prolatar decisão, condenado o réu Estado a pagar ao autor Diogo ……………… .......... a quantia de €150.000.00 [cento e cinquenta mil euros], acrescida de juros de mora, à taxa legal, calculados desde a data da prolação da sentença até efetivo e integral pagamento

*

Inconformado com tal decisão, o Estado interpôs o presente recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
A- Face ã redação dos artigos 22 e 271 da CRP não pode deixar de considerar-se que, em casos de negligência grave, o agente responde de forma solidária com o Estado.
B- A irresponsabilidade do funcionário perante o lesado, nos casos de negligência, não se harmoniza com a função pedagógico-educativa da responsabilidade civil e, sobretudo, não protege o direito de indemnização dos particulares, razão pela qual a Constituição da República Portuguesa de 1976 veio estabelecer a regra da solidariedade.
C- Esta parece ser a melhor forma de compatibilizar o normativo vigente à data dos factos com a Constituição, uma vez que foi este regime de responsabilidade solidária que veio a ser consagrado na lei ordinária, com a entrada em vigor da Lei 67/2007, de 31 de dezembro.
D- Nestes termos, o agente Nuno ............ responder de forma solidária com o Estado Português, considerando que atuou com negligência grave.
E- No decorrer da perseguição veio a ocorrer o disparo de projétil que vitimou Paulo ........... Tal veio a ocorrer pela resistência da própria vítima à ação da autoridade, visando não ser identificado e responsabilizado, propósito que os militares da GNR tentaram, a todo o custo, impedir.
F- O projétil pelo qual Paulo .......... veio a ser atingido e lhe causou a morte ocorreu no decurso de uma perseguição que lhe foi movida e que nunca teria ocorrido se o mesmo não tivesse resistido e reagido com violência contra os militares da GNR que o abordaram, solicitando-lhe informação sobre a identidade do legal proprietário do motociclo.
G- A vítima concorreu de forma relevante para tal resultado, pelo que importa proceder à exclusão da indemnização, ou caso assim se não entenda, à sua considerável redução. Neste sentido considerar-se-ia ajustada uma proporção não inferior a 50%, pelo que os valores a atribuir terão de ser reduzidos, pelo menos, para metade, nos termos do artigo 570 do CC.
H- Não existe contradição entre considerar que o militar atuou com negligência, ao utilizar a arma de fogo de forma desadequada e defender que a vitima contribuiu de forma decisiva para a ocorrência do evento, uma vez que foi a sua conduta ilegítima que motivou a atuação do servidor do Estado.
I- Os danos morais devem ser fixados segundo os critérios definidos no artigo 496 do CC, devendo ser fixados equitativamente, isto é, serem proporcionados ao caso concreto, à gravidade do dano e serem ajustados à realidade, mediante uma criteriosa ponderação da situação em apreço, tendo também em conta as regras da boa prudência.

J- Ora, considerando as condições pessoais da vítima - importa não olvidar que o falecido não desempenhava qualquer atividade e vivia a expensas dos seus pais - o montante fixado a título do dano morte em € 70.000, afigura-se exagerado, parecendo-nos que seria adequado fixar tal indemnização em montante não superior a € 50.000.

K- Por outro lado, afigura-se que o valor de € 50.000 relativa a perda de alimentos futuros também se mostra manifestamente exagerada, uma vez que foi calculada com base no valor do salário mínimo nacional (C 505) multiplicado por 25 anos (idade até à qual o filho teria direito a alimentos), considerando um terço (referente à prestação de alimentos a prestar ao filho).
L- Para além de não se mostrar demonstrado que este auferia tal salário, sendo improvável que tal sucedesse nos anos subsequentes, o quantitativo da pensão nunca seria de um terço, ou seja, de € 166,00.
M- Com base num rendimento equivalente ao salário mínimo nacional a pensão a pagar pelo progenitor nunca atingiria tal valor, uma vez que que este teria de custear as suas próprias despesas, assim sendo, parece razoável entender que tal pensão não excederia € 50,00 mensais, pelo que se admite que tal quantitativo deveria ser fixado no máximo de € 15.000.
N- Todavia, não se olvide, que a vítima concorreu para o resultado, pelo que, se a exclusão da indemnização se mostrar excessiva, parece-nos que os montantes das indemnizações terão de sofrer uma redução mínima de 500, considerando o contributo decisivo do falecido na produção do infeliz evento.

O - A douta sentença recorrida violou, por erro de interpretação, o disposto nos artigos 483, 495, 496, 564, 570 e 572 do Código Civil, os artigos 22 e 271 da Constituição de República Portuguesa e os artigos 2, 3 e 6 do Decreto-lei nº 48.051 de 21 de novembro de 1967.

P - Deve, assim, ser revogada e substituída por outra que condene os réus, na forma e nos montantes acima referidos.

*

O recorrido Nuno ………………… contra-alegou, concluindo:

Inadmissibilidade do Recurso:

1.º

O Recorrente vem versar o seu recurso em matéria de direito e matéria de facto.

2.º

não cumprindo o n.º 2 do art. 639.º do CPC, por não ter aqui aplicação o seu n.º5,

3.º

nem respeita os n.ºs 1 e 2 do art. 640.º, do mesmo diploma legal.

4.º

Deve, pois, o recurso ser rejeitado, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art. 640.º do CPC.

Embora sem se conceder, mas apenas por hipótese académica, sempre deveria ser negado provimento ao recurso.

Vejamos,

5.º

O Recorrente vem pedir que o Recorrido responda de forma solidária com o Estado Português, por considerar que aquele atuou com negligência grave.

6.º

Ora, julgou e decidiu o Tribunal, onde correu termos o processo-crime, que "a atuação do arguido não integra o conceito de negligência grosseira". (Negrito nosso)

7.º

O mesmo Estado, que nestes autos apresentou contestação, no art. 14.º deste articulado, não coloca em crise a sentença proferida no processo-crime, dando enfase ao facto da mesma ter transitado em julgado, aceitando o que ficou decidido quanto à culpa do arguido/Recorrido, e transcrevendo que "a culpa do militar foi diminuta (negligência simples)", e

8.º

no art. 68.º do mesmo articulado, o Estado aceita que o Recorrido agiu ao nível da negligência simples.

9.º

As alegações que constam no presente recurso da autoria do Recorrente Estado, não se coadunam com a contestação apresentada.

10.º

O Recorrente Estado vem qualificar a conduta do Recorrido, quando os respetivos factos já foram julgados, cuja decisão já transitou em julgado, e com efeitos sobre o Estado Português

11º

O Tribunal a quo veio fazer aplicação do art. 623.º do CPC, considerando que o ora Recorrente Estado Português não é terceiro para efeitos deste preceito legal (p. 27 da douta sentença).

12.º

A razão da existência daquele preceito legal consta no relatório do DL 329-A/95, de 12/12, onde se refere que, por exigências decorrentes do princípio do contraditório, a decisão penal condenatória deixou de ter eficácia erga omnes, tendo a absoluta e total indiscutibilidade da decisão relativa à culpa então apurada sido transformada em mera presunção juris tantum, elidível por terceiro, da existência do facto e da sua autoria.

13.º

A decisão penal tornou-se indiscutível - nos presentes autos- para o Recorrente Estado, que não é terceiro.

No que tange à aplicação do DL n.º 48051, de 21 de novembro de 1967,

14.º

Os factos integradores da causa de pedir decorreram no domínio da gestão pública, sendo que a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas rege-se pelo DL n.º 48051, de 21 de novembro de 1967.

15.º

Mais uma vez, sublinhamos o afirmado pelo Tribunal Constitucional:

“a configuração do instituto da responsabilidade civil extracontratual da Administração, com a consagração do dever público de indemnizar e respetivos pressupostos, foi obra do Decreto-Lei nº 48051, no termo de uma evolução feita ao nível do direito infraconstitucional; e que o artigo 22º da Constituição acaba por acolher o instituto que a legislação ordinária modelara, conferindo-lhe dignidade constitucional.”.

16.º

O que o art. 22º da CRP impõe é –apenas- que o Estado e demais entidades públicas respondem sempre ao lado dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes, por atos funcionais, quando a lei impuser a responsabilidade direta destes, como é o caso, p. ex., do disposto na primeira parte do artigo 3º nº 1 do Decreto-lei nº 48051, não indo contra as imposições normativas de responsabilidade exclusiva do Estado.

17.º

Sendo a norma omissa quanto aos pressupostos daquela obrigação, é à legislação ordinária – no caso, ao Decreto-Lei nº 48051 (artigos 2º, 3º) – que se deve recorrer para saber em que condições respondem, diretamente, os funcionários e agentes por atos ilícitos e culposos praticados no exercício e por causa das suas funções, estendendo-se, então, às entidades públicas – de forma solidária - a mesma responsabilidade.

18.º

A Lei nº 67/2007, de 31 de dezembro, só se aplica aos factos geradores de responsabilidade civil ocorridos depois de 30 de janeiro de 2008,

19.º

uma vez que a lei nova só rege para o futuro.

*

Os recorridos António ………….......... e Diogo …………........... contra-alegaram, concluindo:
A) O Ministério Público recorreu da matéria de facto e da matéria de direito;
B) Impunha-se por isso, não sendo aplicável ao caso o disposto no n.º 5 do artigo 639. ° do CPC, o cumprimento do disposto no n.º 2 da mesma disposição legal e nos n°s 1 e 2 do artigo 640. ° do mesmo Código;
C) Considerando a sua clara omissão, deverá o recurso interposto pelo Estado Português ser rejeitado de acordo com o estabelecido no n.º 1 do referido artigo 640.°;
D) Caso por mera hipótese não viesse a ser o Recurso rejeitado, sempre se diria que não assiste qualquer razão ao Ministério Público, porquanto a douta Sentença proferida é absolutamente irrepreensível, tendo o Tribunal a quo apreciado corretamente a prova e feito uma igualmente correta aplicação do direito;
E) Semelhante conclusão se retira no tocante aos valores arbitrados aos Recorridos a titulo de indemnização, tendo o Tribunal a quo tido o especial zelo de — para além de acatar as normas legais aplicáveis, de atender à concreta factualidade que resultou provada e aos reais danos não patrimoniais ocorridos — visitar e respeitar a abundante jurisprudência recente sobre a matéria, decidindo em consonância;
F) Quanto ao mais, dá-se por integralmente reproduzida a fundamentação constante das contra-alegações apresentadas pelo Recorrido Nuno ………………………, concretamente dos pontos 6.° a 44.°;
G) Uma nota final para dizer que no processo-crime que julgou primeiramente os factos aqui em causa, os Recorridos assistiram ao papel do (Órgão) Ministério Público, pugnando ativamente pela condenação do Recorrido — então Arguido — Nuno …………………….;
H) No âmbito da presente ação, os aqui Autores assistiram a algO inverso, ou seja, ao papel do (Órgão) Ministério Público pugnando não apenas pela absolvição do (Réu) Estado Português, mas também - e muito ativamente - pela absolvição do Réu Nuno ……………………, tentando responsabilizar o falecido Paulo .......... da sua própria morte (!);
I) Proferida que foi a Sentença recorrida pelo Tribunal a quo, o mesmo (Órgão) Ministério Público vem agora, surpreendentemente, direcionar a responsabilidade (para além do falecido Paulo ..........) para o Recorrido Nuno ………………………;
J) A titulo de exemplo, atente-se que nas alegações que agora apresenta, o Ministério Público vem sustentar que o Recorrido Nuno …………………. "atuou com negligência grave" (página 14 das suas Alegações) e que "agiu de forma leviana, com negligência grosseira ou culpa grave" (página 17 das suas Alegações);
K) Mas na Contestação que havia apresentado nestes (mesmíssimos) autos, o Ministério Público tinha referido que "a Decisão condenatória considerou provada negligência inconsciente do Militar" (artigo 61.° da contestação) e que o Militar agiu "com negligência simples" (artigo 68.° da contestação);
L) Isto é, mais do que mudar radicalmente de posição dos interesses que defende em processos distintos, o Ministério Público chega a mudar de posição no próprio processo, de acordo e somente em função de uma censurável vontade "cega" de recorrer da Sentença contra si proferida;
M) Consideramos que a responsabilidade última destas incompreensíveis "transmutações" será do (mau) sistema que temos. Mas não se deverá deixar de retirar daqui a total falta de credibilidade do papel do Ministério Público neste processo, e concretamente, dos fundamentos aduzidos no Recurso que vem interpor, o qual deverá também por isso também improceder

*

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora apreciar e decidir em conferência.

*

Para decidir, este tribunal tem omnipresente a nossa Constituição, como (i) síntese da ideia-valor de Direito vigente, cujo (ii) modelo político é de natureza ético-humanista e cujo (iii) modelo económico é o da economia social de mercado, amparado no Direito.

Consideramos as três dimensões do Direito como ciência do conhecimento prático - por referência à ação humana e ao dever-ser inspirador das leis -, quais sejam, (i) a dimensão factual social - que influencia muito e continuamente o direito legislado através das janelas de um sistema jurídico uno e real, (ii) a dimensão ética e seus princípios práticos - que influenciam o direito objetivo também através das janelas do sistema jurídico - e, a jusante, (iii) a dimensão normativa e seus princípios prático-jurídicos.

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DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cabe, ainda, sublinhar que os recursos, sendo dirigidos contra a decisão do tribunal recorrido e respetivos fundamentos, têm o seu âmbito objetivo delimitado pelo recorrente nas conclusões da sua alegação de recurso (cfr. artigos 144º/2 e 146/4 do CPTA, 5º, 608º/2, 635º/4/5, e 639º do CPC/2013, “ex vi” artigos 1º e 140º do CPTA), alegação que apenas pode incidir sobre as questões de facto e ou de direito que tenham sido apreciadas pelo tribunal recorrido ou que devessem ser aí oficiosamente conhecidas.

As questões a resolver neste recurso são as identificadas no ponto II.2, onde as apreciaremos.

Por outro lado, nos termos do artigo 149.º do CPTA, o tribunal “ad quem”, em sede de recurso de apelação, não se limita a cassar a decisão judicial recorrida, porquanto, ainda que a revogue ou declare nula, deve decidir o objeto da causa apresentada ao tribunal “a quo”, conhecendo de facto e de direito, reunidos que se mostrem no caso os pressupostos e condições legalmente exigidos.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS PROVADOS (com algumas conclusões)

O tribunal “a quo” deu como provada a seguinte matéria de facto:

1. No âmbito do Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Comarca do Barreiro, o réu Nuno ………………….. foi condenado a uma pena de prisão de um ano e três meses, suspensa na sua execução, pela prática como autor material de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelo artigo 137.º, n.º1, do Código Penal [documento de fls. 80 a 134 dos autos].

2. A referida sentença transitou em julgado no dia 05/09/2011 [documento de fls. 135 dos autos].

3. O réu Nuno …………………… é militar da Guarda Nacional Republicana, com a patente de soldado, quadro de infantaria, tendo-lhe sido atribuído o n.º12/2010150, desde 2001 [acordo].

4. No ano de 2006, o réu Nuno ………………… encontrava-se na situação de ativo e em comissão normal de serviço no Posto Territorial de Santo António da Charneca, exercendo, atualmente, funções no Grupo Territorial de Almada [acordo].

5. No dia 05/02/2006, o réu Nuno …………………. e o seu colega António ………………………….encontravam-se escalados para o serviço de patrulha às ocorrências, na área territorial do Posto da GNR de Santo António da Charneca [acordo].

6. Pelas 23h40, o réu Nuno …………………… e o seu colega António …………………….. avistaram um motociclo de marca Yamaha estacionado perto da porta do café denominado “…………………”, existente na Rua Serra da Arrábida [acordo e sentença proferida no Processo n.º………./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

7. À data, o comandante da patrulha era o soldado António …………….., sendo o réu Nuno ……………. o imediato da patrulha [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

8. Constataram que a chapa da matrícula se encontrava dobrada, não sendo visível, e que o canhão de ignição apresentava sinais de ter sido forçado, pelo que, suspeitando que tal motociclo teria sido furtado, aproximaram-se do mesmo [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

a. De seguida, desenvolveram diligências, junto da central rádio da GNR, no sentido de apurar se o motociclo constava do ficheiro de viaturas furtadas, bem como a identidade do seu proprietário [acordo e sentença proferida no Processo n.º………/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro]

9. j) O mencionado motociclo tinha sido conduzido até ao mencionado local por Paulo .........., o qual se encontrava no interior do aludido café, “………….”, juntamente com o seu amigo Luís …………….. [acordo e sentença proferida no Processo n.º…………/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

10. Perto da meia-noite, os mencionados Paulo .......... e Luís ………… abandonaram aquele café, tendo descortinado os militares da GNR junto ao motociclo [acordo, depoimento testemunhal e sentença proferida no Processo n.º………./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

11. Perante isto, após acompanharem uma rapariga a casa e darem umas voltas, a fim de darem tempo aos militares para se irem embora, dirigiram-se para a rua onde o motociclo se encontrava estacionado [acordo e sentença proferida no Processo n.º………../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

12. A proprietária do café, Maria ………………., a quem o réu Nuno ……………. previamente perguntara se sabia de quem era o motociclo, trocou umas palavras com este, avisando-o que o Paulo .......... e o Luís …………. eram perigosos e costumam andar armados [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

13. O réu Nuno ……………….. já conhecia, por via da sua atividade profissional, o Paulo .........., referenciando-o como pessoa que detinha habitualmente armas de fogo, informação que, à data, não transmitiu ao colega, António …………. [sentença proferida no Processo n.º……../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

14. Paulo .......... e Luís ………………. foram abordados pelos militares da GNR, tendo o António ……………….procurado saber quem era o proprietário do motociclo, ao que o Luís ……………. retorquiu, em tom provocatório, que “mesmo que soubesse, não diria” [acordo e sentença proferida no Processo n.º…………/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

15. Surpreendido com a forma como este respondeu, gerou-se entre ambos uma discussão, apelidando Luís …………. ao militar da GNR, António …………, de “cabrões e filhos da puta” e, dirigindo-se na direção do António …………, empurrou-o [acordo e sentença proferida no Processo n.º………/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

16. António ………….., a dado momento, desferiu uma bofetada em Luís ……………[acordo e sentença proferida no Processo n.º………/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

17. Paulo .......... procurava, por seu turno, apaziguar os ânimos, de forma verbal [acordo e sentença proferida no Processo n.º…………./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

18. Aproximando-se o réu Nuno …………………….. do colega, Paulo .......... e Luís …………fugiram pela Rua …………….. e, previamente, junto a um café aí existente numa esquina, o Café ………., Luís …………. e Paulo .......... continuavam a apelidá-los de “filhos da puta”, dizendo-lhes “que viessem para ali, que lhes fariam a folha”, “que os iriam apanhar”, “que os iriam matar” [acordo e sentença proferida no Processo n.º………/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

19. Previamente, junto ao posto da EDP, sito na Rua da ……………….., Paulo .......... e Luís ……………. agacharam-se e, estando afastados e escondidos dos elementos da GNR, continuaram a proferir as expressões: “cabrões, filhos da puta” [acordo e sentença proferida no Processo n.º…………./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

20. Após, embrenharam-se numa pequena mata existente no local [acordo e sentença proferida no Processo n.º………./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

21. O réu Nuno ………………. e António ……………….entraram no carro patrulha e foram no encalço de Paulo .......... e de Luís …………, igualmente se embrenhando mata dentro [acordo e sentença proferida no Processo n.º…………./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

22. Ao chegarem à entrada da mata, ambos se separaram, o réu Nuno ……………………. tendo penetrado na mata pelo lado direito e António ………………..pelo lado esquerdo, considerando a posição do réu Nuno …………… [acordo e sentença proferida no Processo n.º………./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

23. O local em apreço consubstancia uma mata, com alguma densidade, mas escura, com um terreno algo acidentado e algum declive em sentido ascendente, na direção tomada pelo falecido Paulo .......... [acordo e sentença proferida no Processo n.º…………./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

24. Na mencionada noite, não existia luar, o local em apreço não estava dotado de iluminação elétrica, que se situa ao longo das artérias da mencionada localidade e cujos postes da EDP se encontram direcionados para a via pública [acordo e sentença proferida no Processo n.º……../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

25. A praticamente inexistente luminosidade do local inviabilizava que o réu Nuno ………………….. se apercebesse do local onde se encontrava o colega, António ……………., só sabendo que estava à sua esquerda, ou o local ou direção para onde o falecido Paulo .......... e Luís ……………… se dirigiram [acordo e sentença proferida no Processo n.º…………./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

26. O desconhecimento do local, a praticamente inexistente luminosidade do mesmo, o desconhecimento do réu Nuno …………………….. quanto à efetiva detenção ou não, naquele momento, por parte de Paulo .......... e de Luís ……………de armas de fogo, a decisão de ambos os militares se separarem, a sua inexperiência de situações reais tal como aquela, o aviso da mencionada Matilde e o facto de saber que a falecida vítima habitualmente detinha armas de fogo, provocou no réu Nuno ………….. o receio de sofrer uma agressão por parte dos mencionados indivíduos, razão pela qual e por uma questão de proteção pessoal, retirou do coldre e empunhou a arma de serviço que trazia consigo, atribuída a um colega [sentença proferida no Processo n.º………./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

27. A mencionada arma de fogo é uma pistola semiautomática, de calibre 9mm, Parabellum, marca Walther e modelo P38 [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

28. A arma de fogo em causa encontrava-se em boas condições de funcionamento, sem qualquer deficiência assinalável, quer ao nível do sistema de percussão, quer ao nível dos seus sistemas de segurança [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

29. Igualmente, por tais supra aludidas razões, o réu Nuno ………………….. pretendeu deixar tal arma de fogo pronta a disparar, caso fosse necessário, e, para o efeito, destravou-a e puxou a corrediça atrás, por forma a introduzir na câmara uma munição [sentença proferida no Processo n.º…………../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

30. Concomitantemente com a realização de tal gesto, o réu Nuno ………….. tinha o dedo indicador, de forma instintiva, no gatilho [sentença proferida no Processo n.º………../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

31. Ao puxar a corrediça atrás, encontrando-se o réu Nuno ……………. em passo de corrida, acionou, de forma acidental, o gatilho e, de forma não intencional e inesperadamente, foi produzido um disparo [sentença proferida no Processo n.º……../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

32. Mal ouviu o disparo, Luís …………. disse a Paulo .......... para fugirem daquele local e, de imediato, começou a correr sem olhar para trás, no pressuposto de que Paulo .......... ainda o acompanhava mais atrás [acordo e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

33. Devido à praticamente inexistente luminosidade e estado emocional em que se encontrava, assustado, Luís Claudino não se apercebeu que Paulo .......... não o acompanhou na fuga [acordo e sentença proferida no Processo n.º………../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

34. Efetivamente, Paulo .......... foi atingido pelo projétil disparado da arma de fogo que o réu Nuno ……………………, à data, empunhava, o qual entrou no seu corpo, na sua parte frontal, sensivelmente a meio da linha entre o ângulo costal direito e o umbigo, provocando um orifício de entrada no hipocôndrio direito, com forma ovalada, com o diâmetro maior de mais ou menos 4 cms e 2 cms no eixo menor, projétil que saiu pelas costas [sentença proferida no Processo n.º………../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

35. O réu Nuno ………………. não se apercebeu que tinha baleado Paulo .......... e, juntamente com o seu colega, continuou a avançar para o interior da mata [sentença proferida no Processo n.º………………/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

36. Passados alguns minutos, encontraram Paulo .......... deitado no solo, na posição de decúbito dorsal, junto às traseiras de umas vivendas [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

37. Ordenaram-lhe por diversas vezes que se levantasse, tendo o mesmo respondido que não conseguia pôr-se de pé [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

38. Perante tal resposta e estranhando a mesma, o réu Nuno ……………………… e o colega António ………… julgaram que Paulo .......... estivesse alcoolizado [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

39. Seguidamente, no aludido convencimento, cada um deles segurou os braços do Paulo .......... e arrastaram-no durante mais de 30 metros até à orla da mata, onde seria mais fácil a ambulância circular, depondo-o no solo [sentença proferida no Processo n.º../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

40. Durante este processo, Paulo .......... foi despojado do seu vestuário, tendo as calças e roupa interior do mesmo descido ao nível dos joelhos [sentença proferida no Processo n.º………../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

41. Um pouco antes das 00h46m, sensivelmente, o réu Nuno ………………………….. dirigiu-se ao carro patrulha e solicitou à central da GNR que diligenciassem pela deslocação de uma ambulância para prestar auxílio a Paulo .........., sendo transmitido à central e inerentemente à Corporação de Bombeiros Voluntários que se tratava de “uma pessoa caída na via pública” [sentença proferida no Processo n.º………/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

42. Já após a chamada da ambulância, que ocorreu, entre corporações de bombeiros, pelas 00h46m, o réu Nuno ……………….. e o colega António ………… aperceberam-se que Paulo .......... sangrava e, por isso, o réu Nuno……… voltou a telefonar para a central, a hora não determinada, insistindo pela chegada da ambulância e advertindo que se tratava de um ferido com tiro [sentença proferida no Processo n.º…………/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

43. Só em tal momento, apercebendo-se que Paulo .......... sangrava, o réu Nuno …………………… colocou e admitiu a hipótese de ter sido ele quem o atingira por via do disparo acidental que previamente produzira [sentença proferida no Processo n.º………../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

44. Enquanto aguardava pela ambulância, Paulo .......... queixou-se e pediu socorro [depoimento testemunhal].

45. Quando chegou a ambulância, o corpo de Paulo .......... estava ensanguentado e este, que estava consciente, gemia e perguntava pelo filho [depoimento testemunhal].

46. Pelas 00h55m, a ambulância dos Bombeiros Voluntários Sul e Sueste do Barreiro chegou ao local – Vilas da Serra – Penalva –, tendo prestado ao falecido Paulo .......... os primeiros socorros e transportado ao Hospital Nossa Senhora do Rosário, no Barreiro, onde o mesmo veio a falecer, já no dia 6 de Fevereiro de 2006, pelas 10h41m, tendo aí sido previamente submetido a intervenção cirúrgica [sentença proferida no Processo n.º…………/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

47. Em resultado do aludido disparo produzido pela arma de fogo, que o réu Nuno ……………………… empunhava, Paulo .......... sofreu isquémica orgânica generalizada, craniana, torácica e abdominal; ferida penetrante dos músculos para-vertebrais direitos num trajeto descendente e para a esquerda; perfuração do cólon direito ângulo hepático com esfacelo do mesmo; várias feridas perfurantes ileaise, ferida transfixiva da veia cava inferior com peritonite fecal, hemoperitoneu e hematoma retro peritoneal extenso, tendo sido a veia cava inferior suturada ao nível de L3-L4, na face anterior e posterior, com hematoma retroperitoneal, o que provocou choque hipovelémico [sentença proferida no Processo n.º……………./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

48. Tais lesões foram a causa direta e necessária da morte de Paulo .........., beneficiário da Segurança Social n.º1………………… [sentença proferida no Processo n.º……………/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

49. A posição do dedo indicador no gatilho, enquanto se municia uma arma de fogo, constitui a violação de uma das mais elementares normas de segurança no manuseamento de armas de fogo [sentença proferida no Processo n.º…………./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

50. Igualmente, o direcionamento do cano da arma de fogo para local suscetível de atingir terceiros, que não para o chão ou para o ar, enquanto se municia uma arma de fogo, constitui a violação de outra norma elementar de segurança no manuseamento de armas de fogo [sentença proferida no Processo n.º……………../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

51. O réu Nuno ……………………… não desconhecia tais normas, sabendo que as deveria adotar ao recorrer à utilização de arma de fogo [sentença proferida no Processo n.º…./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

52. O réu Nuno ……………….. nunca teve qualquer experiência com armas de fogo prévia ao seu alistamento na GNR [sentença proferida no Processo n.º…………/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

53. Na instrução, o réu Nuno ………………………. teve formação ao nível de tiro, tendo-lhe sido atribuída a nota, a esse título, de 7,78 valores – de 0-20 valores –, tendo disparado, pelo menos, vinte vezes – cinco tiros de preparação e quinze tiros para atribuição da nota –, em três dias diversos, num período de 8 meses total de instrução, em período diário que não excedeu 1 hora [sentença proferida no Processo n.º………/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

54. O réu Nuno ……………….. não teve qualquer outra ação de formação de tiro subsequente à ministrada na instrução, durante o período de 2001 a 2006 e até aos factos [sentença proferida no Processo n.º………./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

55. A formação ministrada ao réu Nuno …………….., inicial e subsequente, ao nível de tiro, manuseamento de armas de fogo, técnicas de intervenção policial e táticas das forças de segurança era, à data dos presentes factos, manifestamente insuficiente, não lhe permitindo a adoção instintiva dos mais elementares cuidados ao nível do manuseamento de armas de fogo, em concreto, o correto direcionamento do cano da arma, aquando da sua municiação e correto posicionamento do dedo indicador, que prime o gatilho, o que era igualmente do conhecimento do réu Nuno ……………………… [sentença proferida no Processo n.º…………/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

56. Igualmente, o réu Nuno …………………….. não desconhecia que o recurso a arma de fogo, no exercício das suas funções, só lhe era permitido em caso de absoluta necessidade, devendo constituir o último recurso, só adotado quando outras formas de dissuasão e intervenção se revelassem ineficazes e quando estivesse em causa a prevenção de crime grave contra as pessoas, a defesa contra agressão atual e ilícita do próprio ou de terceiros, em caso de perigo de morte ou ofensa grave ou a detenção de suspeito, em fuga ou que oferecesse resistência [sentença proferida no Processo nº………06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

57. O réu Nuno ………………………….., na qualidade de militar da GNR, podia e devia ter mantido maior controlo da situação, o que não sucedeu [sentença proferida no Processo n.º…/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

58. O réu Nuno ……………………….., ao retirar do coldre a sua arma de serviço, ao empunhá-la e municiá-la, sopesou de forma errada os pressupostos e necessidade do recurso a essa arma, não adotando a prudência e ponderação que são exigíveis no recurso a essa arma de fogo e inerente e prévia ponderação da sua necessidade e adequação, que lhe eram exigíveis enquanto militar da GNR e de que era capaz [sentença proferida no Processo n.º………../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

59. O réu Nuno ……………………… agiu de forma livre e consciente, não prevendo, sequer, como resultado possível da sua conduta a morte de Paulo .......... [sentença proferida no Processo n.º…………./06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

60. O réu Nuno ……………. não ignorava que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal [sentença proferida no Processo n.º…………../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

61. A ambulância que transportou a falecida vítima, Paulo .........., foi chamada a deslocar-se a …………. – P……………., pelas 00h46, tendo sido a mencionada chamada realizada pelos BVB-CSP, chegando ao local pelas 00h55, percorrendo 29 km [acordo e sentença proferida no Processo n.º…………/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

62. Ao Paulo .......... não foi encontrada qualquer arma de fogo, aquando da revista que lhe foi feita pelos militares da GNR, estando desarmado [sentença proferida no Processo n.º……………../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

63. Nem Paulo .........., nem Luís ………… dispararam qualquer projétil na mencionada noite dos factos [sentença proferida no Processo n.º……………/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

64. Paulo .......... detinha um x-ato [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

65. Tendo o disparo supra referenciado ocorrido de forma inesperada e acidental, o réu Nuno ………………… não se assegurou se Paulo .......... ou Luís ……………estavam armados ou se estes se preparavam para disparar sobre si ou sobre o seu colega [sentença proferida no Processo n.º……../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

66. Paulo .......... tinha 19 anos de idade quando morreu [documento de fls. 209 e 210 dos autos].

67. Paulo .......... era filho do autor …………. .......... [documento de fls. 209 e 210 dos autos].

68. Paulo .......... era pai do autor ………….. .......... [documento de fls. 211 e 212 dos autos].

69. Paulo .......... era um jovem saudável, não padecia de qualquer patologia, sendo que, até à noite de 05/02/2006, nunca tinha tido quaisquer outros problemas de saúde que não fossem as doenças próprias da idade, como a varicela ou vulgares gripes e viroses [depoimento testemunhal].

70. Paulo .......... era um rapaz afável, muito sociável e bem-disposto, muito estimado por quantos consigo privavam [declarações de parte e depoimento testemunhal].

71. Paulo .......... beneficiava de um bom ambiente e acompanhamento familiar, tendo sempre vivido feliz com os seus irmãos e com o seu pai, que lhe proporcionaram um crescimento saudável e harmonioso e lhe transmitiram valores como a gentileza, solidariedade e o trabalho [declarações de parte e depoimento testemunhal].

72. Paulo .......... não era, nem nunca foi casado [declarações de parte e depoimento testemunhal].

73. Paulo .......... encontrava-se a frequentar o 2.º ano, nível III, do curso de Técnico Comercial no Centro de Formação Profissional de Setúbal, que teve início em 2004, em regime de aprendizagem [documento de fls. 219 dos autos].

74. O referido curso terminava em 2007, o que conferiria, em caso de aproveitamento, o grau de equivalência ao 12.º ano de escolaridade [documento de fls. 219 dos autos].

75. Paulo .......... estagiou na sociedade M…………… – Indústria de massas ultracongeladas, Lda. em 2004 e 2005 [documento de fls. 219 e 220, declarações de parte e depoimento testemunhal].

76. Paulo .......... era estimado pelos professores e colegas do curso que frequentava no Centro de Formação Profissional de Setúbal [declarações de parte e depoimento testemunhal].

77. No dia do funeral de Paulo .........., muitos foram os seus colegas que se deslocaram ao cemitério, tendo-se deslocado numa camioneta junto com professores e pessoal da direção [declarações de parte e depoimento testemunhal].

78. Na data em que terminaram o curso, os colegas de Paulo .......... reuniram-se na sua campa e colocaram a sua fita de final de curso [declarações de parte e depoimento testemunhal].

79. Paulo .......... foi um aluno razoável no curso de Técnico Comercial que frequentava [documento de fls. 219 e 220 dos autos e depoimento testemunhal].

80. Dada a experiência de ter estagiado nos anos de 2004 e de 2005 na direção comercial da empresa do seu pai, Paulo .......... almejava terminar o curso e integrar aquela equipa, pretensão inteiramente exequível e instigada pelo seu pai [declarações de parte e depoimento testemunhal].

81. Paulo .......... pretendia seguir os passos do seu pai na sua empresa [depoimento testemunhal].

82. À data da sua morte, Paulo .......... era pai de um rapaz de 5 meses de idade, o 2.º autor, com Eugénia ……………….. [documento de fls. 211 e 212 dos autos].

83. Diogo …………. .........., ora 2.º autor, frequentou o infantário desde os 6 meses até aos dois anos de idade [declarações de parte e depoimento testemunhal].

84. Desde 01/09/2007 até 31/08/2010, o 2.º autor frequentou a “Escolinha” – Espaço da Criançada – Educação para Crianças Lda. [documento de fls. 214 dos autos, declarações de parte e depoimento testemunhal].

85. À data de entrada da presente ação, o 2.º autor tinha 7 anos de idade e frequentava a Escola Básica Vale da Amoreira, desde 2011 [documento de fls. 215, declarações de parte e depoimento testemunhal].

86. O 2.º autor sofre com a ausência do pai [declarações de parte e depoimento testemunhal].

87. O 2.º autor tem dificuldade em compreender a morte do seu pai [depoimento testemunhal].

88. Paulo .......... nunca viveu com a mãe do seu filho [declarações de parte e depoimento testemunhal].

89. A mãe do 2.º autor tinha, à data de entrada da presente ação, 28 anos [documento de fls. 188 e depoimento testemunhal].

90. Quando morreu, Paulo .......... não tinha qualquer bem próprio ou quantia em dinheiro que pudesse fazer face à futura educação e sustento do seu filho [declarações de parte e depoimento testemunhal].

91. A mãe do 2.º autor esteve desempregada até ao ano de 2013 [depoimento testemunhal].

92. Devido à situação de desemprego da mãe do 2.º autor e do facto de esta não possuir quaisquer bens ou recursos que pudessem fazer face às despesas com o sustento e educação do seu filho, o 1.º autor suportou as despesas com a educação do seu neto, bem como as despesas com a sua alimentação, saúde e vestuário, no valor de cerca de €250.00 mensais [declarações de parte e depoimento testemunhal].

93. As despesas com o funeral de Paulo foram suportadas pelo 1.º autor [declarações de arte e depoimento testemunhal].

94. O 1.º autor despendeu a quantia de €325.00 com as despesas do cemitério [documento de fls. 218, declarações de parte e depoimento testemunhal].

95. Encontravam-se pendentes contra Paulo .......... os autos de inquérito n.º………/05.6GABRR, que correram termos nos Serviços do Ministério Público junto do Tribunal de Família e Menores de Comarca do Barreiro, tendo-se apurado indícios de prática de crime de detenção de arma proibida [documento de fls. 297 a 299 dos autos e sentença proferida no Processo n.º…………../06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

96. Na acusação proferida nos autos referidos em 95), consta que Paulo .......... “dirigiu-se ao veículo de matrícula ………………., de onde trouxe uma espingarda semiautomática de caça, de calibre 12 mm, de coronha e canos serrados, marca Benelli, com o número rasurado, carregada com um cartucho do mesmo calibre. Ele havia-a emprestado alguns dias antes ao arguido Hugo …………, que desde então a passar a usar e a transportar no guarda bagagens do referido veículo.” [sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

97. Nos autos referidos em 95), foram apreendidos a Paulo ..........: uma pistola de marca FT, modelo GT 28 cal. 6mm Salve, adaptada para calibre 6.35 mm; um carregador; seis munições calibre 6,35mm; uma pistola a gás, de marca ………, P-23 com o número ………………….; duas cargas de gás; uma caixa de chumbos cal. 4,5 vazia; um par de matracas em plástico; um corta vidros; uma espingarda caçadeira de marca Bennelli Armi, com o n…………., com canos serrados e coronha cortada; um cartucho de marca Fiocchi de calibre 12mm. [documento de fls. 297 a 299 dos autos].

98. Paulo .......... teve, ainda, pendentes contra si, os autos de inquérito n.º…………../05.0TABRF, na qualidade de arguido, e os autos de inquérito n.º………/06.1GABRR, na qualidade de suspeito [documento de fls. e sentença proferida no Processo n.º48/06.1GABRR, que correu termos no 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do Barreiro].

99. Paulo .......... era considerado pelas forças de segurança como uma pessoa perigosa, que, habitualmente, andava armado, incluindo com armas de fogo.

100. Na Fundamentação da sentença proferida no processo-crime, consta, designadamente, o seguinte:

101. ( Texto no original)

(…)

( Texto no original)

(…).” [documento de fls. 80 a 134 dos autos].

*

Presente o quadro factual antecedente passemos, então, à apreciação das questões que constituem o objeto deste recurso.

*

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Aqui chegados, há, pois, condições para se compreender esta apelação e para, num dos momentos da verdade do Estado de Direito (o do controlo jurisdicional), ter presentes, “inter alia”, os seguintes princípios jurídicos fundamentais: (i) juridicidade e legalidade administrativas, ao serviço do bem comum; (ii) igualdade de tratamento material axiológico de todas as pessoas humanas; (iii) certeza e segurança jurídicas; e (iv) tutela jurisdicional efetiva.

Em consequência, este tribunal utiliza um método jurídico adequado à garantia efetiva, previsível e transparente dos direitos e interesses legítimos dos cidadãos, através de um processo decisório teleologicamente orientado apenas (i) à concretização dos valores da Constituição e (ii) ao controlo racional de coerência dos nexos da sistematicidade jurídica que precedam a resolução do caso.

Assim, a resolução de litígios através do tribunal, num Estado democrático de Direito, implica: (i) um rigoroso respeito pelas normas materialmente constitucionais inseridas nos artigos 9º e 10º do Código Civil, na busca do pensamento legislativo da fonte de direito, dentro do sistema jurídico atual e com respeito pela máxima constitucional da sujeição dos juizes às leis e aos artigos 111º e 112º da Constituição da República Portuguesa; (ii) e, nos casos “difíceis” e excecionais em que tal for lícito ao juiz, implica ainda a metodologia racional-justificativa consistente no sopesamento ou ponderação de bens, interesses e valores eventualmente colidentes na situação concreta, sob a égide da máxima metódica da proporcionalidade, mas sempre sem prejuízo, quer dos cits. quatro princípios jurídicos fundamentais, quer do princípio constitucional da sujeição da atividade jurisdicional às leis.

Ora, o presente recurso de apelação demanda que resolvamos o seguinte:

- Erro de direito, uma vez que haveria negligência grosseira do corréu militar da GNR;

- Erro de direito na fixação dos montantes indemnizatórios, que são exagerados;

- Erro de direito, por não aplicação do artigo 570º do Código Civil.

Cabe esclarecer que, ao contrário do referido nas contra-alegações, o Estado não impugnou o julgamento da matéria de facto.

Vejamos.

1ª – Da negligência grosseira (no caso concreto)

O Tribunal Administrativo de Círculo considerou, nesta ação de efetivação de responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito (cfr. o Decreto-Lei nº 48051 de 1967), que o corréu militar da GNR, Nuno Amaro, agiu com

-negligência (= omissão da diligência ou cuidado a que se está legalmente obrigado)

-simples (ou não qualificada, não agravada, não grosseira) e

-inconsciente (isto é, o agente infringiu o dever de cuidado imposto pelas circunstâncias, não pensando sequer na possibilidade de lesão do direito subjetivo alheio com a sua conduta), ao disparar a arma de fogo que atingiu o falecido.

O Estado vem agora reclamar que a negligência (provada) é grosseira, ou seja, que a atuação do militar da GNR foi uma falta grave e indesculpável, ou seja, uma omissão dos deveres de cuidado que só uma pessoa especialmente negligente, descuidada e incauta deixaria de observar (ou “culpa grave”); implica uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também ao nível do tipo de ilícito, verificando-se naqueles casos em que o agente revela uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando jurídico, uma vez que a generalidade das pessoas não procederia da mesma forma.

Como se sabe, isto releva para efeitos de direito de regresso do Estado para com o seu servidor, o militar da GNR, conforme o artigo 2º/2 do Decreto-Lei nº 48051 de 1967 (“Quando satisfizerem qualquer indemnização nos termos do número anterior, o Estado e demais pessoas coletivas públicas gozam do direito de regresso contra os titulares do órgão ou os agentes culpados, se estes houverem procedido com diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se achavam obrigados em razão do cargo”).

Ora, o quadro factual antes descrito é o seguinte: o militar da GNR, num contexto de

(i) perseguição

(ii) noturna

(iii) lícita

(iv) a um delinquente

(v) potencialmente perigoso e

(vi) provavelmente armado, isto é, numa situação de stress evidente,

disparou (vii) acidental e involuntariamente,

(viii) enquanto corria, a sua pistola que levava na mão;

(ix) a arma não estava apontada a ninguém;

(x) o militar da GNR nem se apercebeu que o tiro atingiu alguém.

É, pois, manifesto que esta conduta ilícita não padece de culpa grave ou negligência grosseira no sentido previsto no cit. artigo 2º/2 do Decreto-Lei nº 48051 de 1967, já que, naquele contexto factual, não se pode afirmar que a apurada negligência inconsciente corresponde a uma pessoa, a um elemento de subjetividade pessoal, caracterizável em concreto como especialmente incauta ou leviana, longe da conduta esperada da maioria das pessoas naquela situação.

Soçobra, pois, este fundamento do recurso.

2ª – Do exagero das indemnizações. O dano morte. A perda de rendimentos futuros convolada em obrigação de alimentos

O Estado considera que duas das indemnizações fixadas pelo Tribunal Administrativo de Círculo,

-uma pelo dano morte (70.000,00 Euro, tendo em conta o valor absoluto da vida, a jovem idade do falecido e esperança de vida consequente, ser pai, ser saudável, o grau de culpa e a situação económica do Estado) e

-outra pela perda de “alimentos” prováveis do falecido ao seu filho (50.000,00 Euro, tendo em conta os artigos 495º/3 (1) (uma exceção ao princípio segundo o qual só o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado tem direito a indemnização, e não os terceiros que reflexa e imediatamente sejam prejudicados), 566º/3 (“Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”), 1905º/2 (“1 - Nos casos de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação de casamento, os alimentos devidos ao filho e a forma de os prestar são regulados por acordo dos pais, sujeito a homologação; a homologação é recusada se o acordo não corresponder ao interesse do menor. 2 - Para efeitos do disposto no artigo 1880.º, entende-se que se mantém para depois da maioridade, e até que o filho complete 25 anos de idade, a pensão fixada em seu benefício durante a menoridade, salvo se o respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes daquela data, se tiver sido livremente interrompido ou ainda se, em qualquer caso, o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência”) e 2009º/1-c) do Código Civil (2), bem como o valor do SMN, o valor de 1/3 do provável SMN recebido pelo falecido para efeitos de prestação mensal de alimentos, durante 25 anos),

seriam exageradas.

Isto é, violariam o critério da equidade, fixado nos artigos 494º (“Quando a responsabilidade se fundar na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”), 496º (3) e 566º/3 do Código Civil.

Vejamos.

O direito à vida é um direito privilegiado e intangível na sua essência (cfr. artigo 24º/1 da Constituição da República Portuguesa), porque a vida é única e irrepetível para cada ser humano e porque envolve matéria e espírito, está acima, ou para além, de qualquer valor monetário.

O que importa, quando o direito à vida é ofendido, é encontrar a solução que se configure como mais justa, por recurso a juízos de equidade e ponderação das demais circunstâncias em que a vida que se finou desenvolvia seu existir, como a idade da vítima, a sua condição física e psíquica, a integração na família e na sociedade, desempenho de atividade profissional, de lazer ou de carácter altruísta, a vontade e alegria de viver e até a estima e consideração alheias.

E sempre necessário será ter no horizonte que a perda do supremo bem de que o homem pode usufruir na vida, não podendo ser devidamente ressarcida por qualquer valor, terá, no entanto, de ser compensada por um montante indemnizatório digno e comedido em face de todos os fatores de ponderação que no caso se ofereçam.

Assim,

quanto à indemnização, “rectius”, compensação pelo dano morte (que se transmite por via sucessória de acordo com o artigo 2024º do Código Civil: cfr. assim GALVÃO TELLES, D. das Sucessões, 6ª ed., pág. 96 ss; ALMEIDA COSTA, D . das Obrig., 12ª ed., pág. 602, nota 1; MENEZES CORDEIRO, Tratado…, II-3, págs. 516 ss; L. MENEZES LEITÃO, D. das Obrigações, I, 9ª ed., págs. 353-354),

a jurisprudência tem-se orientado, sob a égide racional da equidade, por valores entre 50.000,00 euros e 90.000,00 euros (cfr, assim, por ex., Acórdão do STJ de 28-11-2013, Processo nº 177/01…; Acórdão do STJ de 18-12-2013, Processo nº 1749/06…; Acórdão do STJ de 30-04-2015, Processo nº 1380/13…; Acórdão do STJ de 18-06-2015, Processo nº 2567/09…; Acórdão de 15-09-2016, Processo nº 492/10…; Acórdão de 29-11-2016, Processo nº 820/07…).

Isso é relevante, sobretudo porque os princípios da igualdade e da unidade do direito objetivo e o valor da previsibilidade das decisões judiciais vinculam à padronização e à normalização do valor da indemnização, embora sem violarmos o princípio da legalidade e o da responsabilidade civil subjetiva, do qual decorre a grande importância que o juiz deve atribuir ao grau de culpa do agente que causou a morte de outrem. Com efeito, dois casos de dano morte, em tudo idênticos com exceção no respetivo elemento subjetivo do ilícito e da culpa, nunca poderão determinar montantes iguais de compensação pela eliminação do direito à vida.

Ora, se não puder ser averiguado o valor exato dos danos (sendo certo que o dano da morte não tem natureza patrimonial), o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados, valendo, assim, os critérios previstos no artigo 494º do Código Civil para os demais danos não patrimoniais referidos no artigo 496º (embora este artigo não se refira ao dano morte): em primeiro e muito relevante lugar temos o grau de culpabilidade do agente (aqui, leve); e depois a situação económica deste (aqui, má, de quase falência do Estado) e do lesado (aqui, pobre) e as demais circunstâncias do caso o justifiquem (a idade jovem desta vítima, a sua boa saúde).

Devemos sublinhar que a compensação do dano morte em si não fixa o valor da vida humana. É o maior dano não patrimonial que alguém pode sofrer, mas é um dano não patrimonial. E, por isso, não se pode ignorar o estabelecido nos artigos 566º/3 e 494º do Código Civil (cfr. Acórdão do TRL de 25-02-2010, Processo nº 596/07...; Acórdão do STJ de 03-02-2011, Processo nº 605/05…).

Ora, no caso presente, ponderando todos os fatores referidos (incluindo nós a notória má situação financeira do nosso Estado, como responsável a título de mera culpa), julgamos que aquele valor de 70.000,00 euros, fixado no Tribunal Administrativo de Círculo, não é demasiado elevado.

Por isso, tendo presente os elementos referidos e a jurisprudência mais recente cit., consideramos aceitável o valor de 70.000,00 euros, fixado pelo tribunal recorrido para o dano de perda da vida humana.

Improcede, assim, este ponto das conclusões do recurso.

Por outro lado, quanto ao dano relativo à perda de alimentos mensais (cfr. artigo 2009º/1-c) do Código Civil) durante 25 anos por parte do filho do falecido, ao abrigo do artigo 566º/3 do Código Civil utilizado pelo Tribunal Administrativo de Círculo, consideramos que não está demonstrada de modo sério ou relevante a possibilidade futura de o pai, se não estivesse falecido, vir a despender 1/3 do seu suposto salário mínimo nacional - ou menos ou mais - com o sustento do filho.

É que o falecido não trabalhava e não sustentava o filho, não havendo indícios sérios de que tal situação se iria alterar. E, sendo assim, não há razão válida para “transmitir” para o lesante Estado a obrigação ou encargo de alimentos prevista no artigo 2009º do Código Civil.

Pelo que se conclui que, aqui (num ponto, aliás, em que o Tribunal Administrativo de Círculo, após afastar a peticionada indemnização por perda de rendimentos futuros do falecido, encaminhou-se para o artigo 2009º do Código Civil), o Tribunal Administrativo de Círculo violou os artigos 483º/1, 563º, 564º e 566º/3 do Código Civil.

Procede, assim, este ponto das conclusões do recurso.

3ª – Da aplicação do artigo 570º do Código Civil

De acordo com o artigo 570º/1 do Código Civil, “Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída”.

O Estado entende que se deve aplicar aqui este artigo 570º.

A exclusão ou redução de indemnização por existência de culpa do lesado depende da existência de um nexo de causalidade adequada entre a sua atuação e o dano, a apreciar nos mesmos termos em que é feita a apreciação desse nexo entre a atuação do lesante e do dano e essa culpa tanto pode reportar-se ao facto ilícito causador dos danos, como diretamente aos danos provenientes desse facto (Acórdão do STA de 27-10-2004, Processo nº 01214/02).

Ora, (i) não se provou nenhuma causalidade entre a conduta do falecido (que fugia das autoridades policiais) e o disparo ilícito e negligente da arma de fogo pelo militar da GNR, (ii) nem, lógica e consequentemente, se provou qualquer atuação censurável do lesado relacionada com o dano morte por ele sofrido (este 2º requisito é, a nosso ver, o essencial - cfr. LUIS MENEZES LEITÃO, D. das Obrig., I, 9ª ed., pág. 342).

Pelo que nenhuma conduta do lesado contribuiu (culposamente) para o dano sofrido.

Soçobra, pois, este fundamento do recurso.

*

III. DECISÃO

Por tudo quanto vem de ser exposto e de harmonia com os poderes conferidos no artigo 202º da Constituição, acordam os juizes deste Tribunal Central Administrativo Sul em, concedendo provimento parcial ao recurso,

a) revogar parcialmente a sentença recorrida;

b) condenar o réu Estado Português a pagar ao autor António Teixeira .......... a quantia de €325.00 [trezentos e vinte cinco euros] e a quantia que se vier a apurar em sede de incidente de liquidação de sentença relativa às despesas de funeral, acrescidas de juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;

c) condenar o réu Estado Português a pagar ao autor Diogo …………… .......... a quantia de €100.000.00 [cem mil euros: 70.000,00 pelo dano morte + 10.000,00 pelo sofrimento da vítima até ao momento da morte + 20.000,00 pelo sofrimento do filho da vítima], acrescida de juros de mora, à taxa legal, calculados desde a data da prolação da presente sentença até efetivo e integral pagamento; e

d) absolver do pedido o réu Nuno ……………………………..

Custas a cargo do Estado e dos autores, na proporção dos respetivos decaimentos, em ambos os tribunais.

Lisboa, 15-12-2016


(Paulo Pereira Gouveia - relator)

(Nuno Coutinho)

(Carlos Araújo)

(1) Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.
(2)1. Estão vinculados à prestação de alimentos, pela ordem indicada:
a) O cônjuge ou o ex-cônjuge;
b) Os descendentes;
c) Os ascendentes;
d) Os irmãos;
e) Os tios, durante a menoridade do alimentando;
f) O padrasto e a madrasta, relativamente a enteados menores que estejam, ou estivessem no momento da morte do cônjuge, a cargo deste.
2. Entre as pessoas designadas nas alíneas b) e c) do número anterior, a obrigação defere-se segundo a ordem da sucessão legítima.
3. Se algum dos vinculados não puder prestar os alimentos ou não puder saldar integralmente a sua responsabilidade, o encargo recai sobre os onerados subsequentes.
(3)1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
3 - Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.
4 - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.