Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1538/10.7BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:07/09/2020
Relator:CATARINA ALMEIDA E SOUSA
Descritores:RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Sumário:I - O instituto da reclamação para a conferência, actualmente previsto no artigo 652º, nº 3, do CPC, fundamenta a sua existência no carácter de Tribunal colectivo que revestem os Tribunais Superiores, nos quais a regra é a decisão judicial demandar a intervenção de três juízes, que constituem a conferência, e o mínimo de dois votos conformes.
II - No âmbito do processo judicial tributário, a jurisprudência e a doutrina defendem a possibilidade de utilização do instituto da reclamação para a conferência da decisão do relator que considere findo o recurso por oposição de julgados, exarado ao abrigo do, então vigente, artigo 284º, nº 5, do CPPT.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, os Juízes que compõem a Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul

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J..., na qualidade de herdeiro e cabeça de casal da herança aberta por morte de D..., notificado do despacho proferido, em 10/03/20, pela ora Relatora, o qual julgou findo o recurso por oposição de acórdãos, interposto em 11/07/19, nos termos previstos no artigo 284º, do CPPT, e com ele discordando, veio reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 652º, nº3 do CPC.

Em discordância com o decidido alega, em síntese, que se verifica efectivamente a oposição de acórdãos, tal como defendido, e que, assim sendo, deve ser revogado o despacho proferido pela Relatora que assim não entendeu.

É o seguinte o teor da reclamação apresentada:

1. O ora reclamante interpôs recurso por oposição de acórdãos, sendo que por despacho de 22 de Janeiro de 2020 foi o mesmo admitido e notificado o recorrente para efeitos do que dispõe o n. º3 e n.º4 do artigo 284.º do CPPT.

2. Apresentada alegação tendente a demonstrar a oposição de acórdãos, foi por despacho proferido em 10 de março de 2020, julgado findo o recurso, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.

3. Não pode o ora reclamante concordar com a motivação vertida no douto despacho que julga findo o recurso, conforme a seguir se expõe:

4. O recorrente ora reclamante apresentou Acção Administrativa Especial em 14 de outubro de 2010, sendo que foram os autos convolados em Processo de Impugnação Judicial

5. Fundamenta o pedido de facto e de direito, designadamente quanto ao lugar do procedimento de inspeção, defendendo que o procedimento teve natureza interna, considerando que em momento algum estiveram os funcionários da AT nas instalações do sujeito passivo (artigos 21 a 28 da p. i.)

6. Entendeu a douta sentença do Tribunal a quo que, quanto ao lugar do procedimento, a AT encetou diligências instrutórias e analisou os elementos recolhidos junto da impugnante e de terceiros, tendo este trabalho sido realizado parcialmente fora das suas instalações.

7. Não podendo concordar com a decisão interpõe recurso em 28 de março de 2017 e respectivas alegações em 02 de maio de 2017, sendo certo que quanto ao lugar do procedimento de inspeção, insiste o recorrente que o procedimento foi interno e não externo, conforme motivação aduzida em sede dos artigos 21 a 28 das alegações do recurso.

8. Entendendo ainda o recorrente ser de acrescentar aos factos não provados (em sede de recurso para o TCA Sul) que não se provou qualquer acto inspectivo levado a efeito pela IT, fora das suas instalações, conforme o que resulta expresso no artigo 17 das alegações de recurso.

9. O Acórdão recorrido nega provimento ao recurso, sendo que, quanto ao lugar do procedimento de inspeção tributária, entende que a AT não se limitou à análise formal e de coerência de documentos na sua posse – tendo obtido e analisado informação relativa a terceiros com quem o sujeito passivo mantem relações fora das suas instalações.

10. Não é verdade que o tenha feito no âmbito do procedimento inspectivo iniciado ao recorrente. A AT analisou fora das suas instalações informação relativa a terceiros com quem o sujeito passivo manteve relações, mas no âmbito do procedimento inspectivo levado a efeito à sociedade V....

11. A este propósito veja-se a informação produzida pela Direcção de Serviços de Consultoria Jurídica e Contencioso, com entrada no Tribunal de Leiria em 09 de fevereiro de 2011, que diz “O procedimento inspectivo subjacente ao presente processo foi desencadeado pelo procedimento externo à sociedade V... (…)”

12. Ou seja, no âmbito do procedimento inspectivo externo à sociedade V... ocorrido em momento anterior, foi recolhida informação, sendo que são os elementos ali recolhidos no âmbito daquele procedimento inspectivo, que vêm depois a instruir todo o procedimento inspectivo levado a efeito ao ora recorrente.

13. A IT não saiu das suas instalações tendo em vista recolher elementos no âmbito do procedimento inspectivo ao recorrente ora reclamante, sendo que apenas lhe confere a qualificação de externo uma vez estar a dias de caducar o direito à liquidação do imposto, cujo termo se verificava em 31 de Dezembro de 2008.

14. Conforme resulta do Acórdão do TCA Sul 04817/11 CT – 2.ºJuízo de 01/10/2014, por interpretação a contrario, uma vez que ali o procedimento levado a efeito foi mesmo externo, a qualificação do procedimento como inspeção interna ou externa não depende da livre qualificação que a AT lhe atribua, antes obedecendo a critérios legais que confirmam, ou não, a designação escolhida.

15. Ou seja, para que possa ser classificado como interno o procedimento deve materializar-se em actos, todos eles, praticados exclusivamente nos serviços, instalações ou dependências, designadamente, através da análise formal e de coerência dos documentos.

16. No presente caso foi isso mesmo que aconteceu. A AT qualificou livremente o procedimento de externo apenas por conveniência sua uma vez estar a dias do termo do prazo de caducidade.

17. Todo o procedimento inspectivo levado a efeito ao recorrente decorre nas instalações da AT e, materializa-se nos elementos e documentos recolhidos no âmbito da inspeção externa levada a efeito à sociedade V....

18. A prova de que não foi em momento algum o ora recorrente visitado na sua casa, é que inclusive, a ordem de serviço que determina o início do procedimento inspectivo, não lhe foi dada a assinar nos termos do que dispõe o artigo 51.º do RCPITA.

19. Mais, mesmo motivando de ab initio, que a IT não saiu das suas próprias instalações, requerendo-se inclusive, que fosse acrescentado aos factos provados que não se provou qualquer acto inspectivo levado a efeito pela IT fora das suas instalações, tal foi desconsiderado pelo Acórdão do TCA Sul.

20. Mesmo ficando demonstrado nos autos que não há qualquer acto inspectivo praticado fora das instalações da Direcção de Finanças de Santarém e que todo o material foi recolhido no âmbito de outra ação inspectiva que não a da ora recorrente mas da sociedade V....

21. Visto o acabado de expender entendeu a Mma Juiz Relatora quanto ao teor da conclusão 5), que:

22. “Como é sabido o recurso de oposição de acórdãos não se destina a obter um reexame da matéria de facto, nem tão-pouco a apreciar eventuais erros de julgamento. Assim sendo, como é, nenhum sentido faz pretender o aditamento à matéria de facto nesta sede, ou seja, pela via do recurso por oposição de acórdãos”

23. Com o devido respeito, não pretendeu de forma alguma o recorrente que em sede de recurso por oposição de acórdãos fosse aditada à matéria de facto, que não se provou qualquer acto inspectivo fora das instalações da AT.

24. A questão é suscitada em sede de recurso por oposição de acórdãos, no ponto 5, apenas no sentido de contextualizar os acontecimentos, uma vez que quanto a este facto concreto não resulta dos autos que tivesse a AT apresentado qualquer prova de atos fora das suas instalações, embora o Acórdão recorrido se pronuncie em sentido diverso, sem que contudo isso resulte provado dos autos em algum momento.

25. E justamente por isso é contextualizada a questão no recurso por oposição de acórdãos no sentido de demonstrar que a qualificação do procedimento não é aleatória, como de resto foi no caso do presente procedimento inspectivo cujas razões, que levaram a que isso acontecesse, foram já por várias vezes levadas ao conhecimento do Tribunal e sempre desconsideradas.

26. Visto o esclarecimento, entende o ora reclamante, que fez a Mma Juiz Relatora errado entendimento, pois, reitera-se, foi requerido sim em sede de recurso para o TCA Sul que fosse acrescentado aos factos não provados, que não se provou qualquer acto inspectivo levado a efeito pela IT fora das suas instalações e não em sede de recurso por oposição de acórdãos.

27. A contextualização entendeu-se ser necessária uma vez ter o recurso por oposição de acórdãos exactamente esse fundamento, ou seja, não ser aleatória a qualificação do procedimento inspectivo, obedecendo sim, a critérios legais destinados a confirmar a designação escolhida pela AT, que in casu, não foram observados.

28. Quanto ao que resulta de folhas 6 e 7 do Despacho de 10 de março de 2019 da Mma Juiz Relatora, que nos termos do n.º 5 do artigo 284.º do CPPT julga o recurso findo quanto à apontada oposição, igualmente não pode o ora reclamante concordar.

29. O recorrente interpõe recurso por oposição de acórdãos, invocando como acórdão fundamento o Acórdão do TCA Sul 04817/2011 de 1 de outubro de 2014, por interpretação a contrário, uma vez que ali o procedimento levado a efeito havia sido externo.

30. Sendo que o que motivou, foi o facto da qualificação do procedimento como interno ou externo, não ser livre, antes obedecendo a critérios legais que confirmem ou não a designação escolhida pela AT.

31. O Despacho da Mma Juiz Relatora que julga findo o recurso, assenta numa teoria errada uma vez não resultar dos autos qualquer elemento de prova de actos praticados no exterior, ou seja fora das instalações da AT.

32. Resultando expresso do mesmo, com vista a sustentar a decisão, que “ os actos inspectivos não consistiram somente na análise da documentação que já estava na posse da Administração Tributária, na medida em que foram recolhidos elementos que constavam da contabilidade da V...”

33. De novo com o devido respeito, entende o reclamante haver contradição entre Acórdão recorrido e Acórdão fundamento, justamente porque a qualificação do procedimento inspectivo não é livre, obedecendo sim, a critérios legais destinados a confirmar ou não a designação escolhida, sendo certo que, do resulta dos autos, que o procedimento foi interno e não externo, apenas tendo sido qualificado de externo por interesse dos serviços.

Termos em que se requer a V. Ex.ª seja a presente reclamação aceite por estar em tempo e deferida, de modo a que recaia Acórdão sobre a matéria do despacho que julga findo o recurso interposto por oposição de julgados, reconhecendo a Conferência que o acórdão recorrido, entende que o procedimento inspectivo levado a efeito ao recorrente é externo sem que tenha a AT logrado qualquer meio de prova de que levou a cabo actos inspectivos fora das suas instalações, sendo certo que de ab initio, demonstra o recorrente que todos os elementos e documentos que serviram ao presente procedimento foram recolhidos no âmbito da inspeção levada a efeito à sociedade V... o que é confirmado na informação produzida pela Direcção de Serviços de Consultoria Jurídica e Contencioso, por outro lado, o acórdão fundamento, entende, que a qualificação do procedimento não é livre, obedecendo a critérios legais destinados a confirmar a designação escolhida, que no caso dos presentes autos não foi confirmada.


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Notificada a parte contrária, a mesma nada disse.

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O Exmo. Magistrado do Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência da reclamação apresentada.

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Vêm, agora, os autos à conferência para decisão.

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O instituto da reclamação para a conferência, actualmente previsto no artigo 652º, nº 3, do CPC, fundamenta a sua existência no carácter de Tribunal colectivo que revestem os Tribunais Superiores, nos quais a regra é a decisão judicial demandar a intervenção de três juízes, que constituem a conferência, e o mínimo de dois votos conformes.

Sempre que a parte se sinta prejudicada por um despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode dele reclamar para a conferência. O que se visa com a reclamação é, afinal, a substituição do órgão excepcional (o relator) pelo órgão normal (a conferência como tribunal colectivo) para proferir determinada decisão.

A reclamação é também admissível de despacho proferido no exercício de poder discricionário, o qual tem a ver com matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador (cfr. artigo 152º, nº 4, do CPC).

Antes de avançarmos importa deixar claro que o acórdão recorrido foi proferido em 25/06/19 e o recurso interposto em Julho seguinte, ou seja, quando estava em vigor o artigo 284º do CPPT, na redacção anterior à conferida pela Lei n.º 118/2019, de 17/09, no qual se previa recurso por oposição de acórdãos.

Avancemos.

No âmbito do processo judicial tributário, a jurisprudência e a doutrina defendem a possibilidade de utilização do instituto da reclamação para a conferência da decisão do relator que considere findo o recurso por oposição de julgados, exarado ao abrigo do artigo 284º, nº 5, do CPPT (cfr. acórdão do TCA Sul -2ª.Secção, 13/11/2012, proc. nº 4990/11; Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, anotado e comentado, 6ª. edição, IV Volume, 2011, pág.480).

A admissão do recurso por oposição de acórdãos depende da satisfação dos seguintes requisitos (cfr. acórdão do Pleno da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo, de 16 de Dezembro de 2010, processo n.º 173/10):

- existir contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão invocado como fundamento sobre a mesma questão fundamental de direito;

- a decisão impugnada não estar em sintonia com a jurisprudência mais recentemente consolidada do Supremo Tribunal Administrativo;

- identidade da questão de direito sobre que recaíram os acórdãos em confronto, que supõe estar-se perante uma situação de facto substancialmente idêntica;

- que não tenha havido alteração substancial na regulamentação jurídica;

- que se tenha perfilhado, nos dois arestos, solução oposta; a oposição deverá decorrer de decisões expressas e não apenas implícitas.


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Feito este enquadramento, centremos a nossa atenção no caso concreto.

No despacho reclamado, proferido pela ora Relatora, que julgou findo recurso por oposição de acórdãos, deduzido ao abrigo do artigo 284º, do CPPT, então em vigor, concluiu-se nos seguintes termos:

“Na realidade – reitera-se – nenhuma divergência se verifica entre os acórdãos em confronto, antes se verificando que o acórdão recorrido não logra a concordância da Recorrente que, numa diferente interpretação das normas legais aplicadas aos factos, considera que o procedimento devia ser qualificado como interno.

Em suma, não há qualquer contradição.

Justifica-se, pois, sem necessidade de considerações adicionais, a aplicação do disposto no artigo 284º, nº5 do CPPT, considerando-se o recurso findo quanto à apontada oposição”.

E, na verdade, assim é.

Vejamos as razões para assim entendermos, lançando mão, desde já, daquilo que escrevemos no despacho reclamado.

Assim:

“(…)

Refere a Recorrente que o acórdão recorrido encontra-se em oposição com o acórdão deste Tribunal Central Administrativo Sul, de 01/10/14, proferido no processo nº 04817/11, porquanto o “acórdão recorrido, entende que o procedimento inspectivo levado a efeito ao ora recorrente é externo sem que tenha a AT logrado qualquer meio de prova de que levou a cabo actos inspectivos fora das suas instalações, sendo certo que de ab initio, demonstra o recorrente que todos os elementos e documentos que serviram ao presente procedimento foram recolhidos no âmbito da inspeção levada a efeito à sociedade V... o que é confirmado na informação produzida pela Direcção de Serviços de Consultoria Jurídica e Contencioso, por outro lado, o acórdão fundamento, entende, que a qualificação do procedimento não é livre, obedecendo a critérios legais destinados a confirmar a designação escolhida, que no caso dos presentes autos não foi confirmada.”

Sem hesitações, diremos que nenhuma razão tem o Recorrente, sendo claro que nenhuma contradição se verifica in casu.

Vejamos.

Desde logo, em ambos os casos apreciados se chegou à conclusão que, face aos respectivos circunstancialismos, estávamos perante inspecções externas (e não internas).

Por outro lado, esta conclusão quanto à qualificação da inspecção, quanto ao lugar, feita no acórdão recorrido, não deixa de considerar, pressupondo, o entendimento segundo o qual “a qualificação do procedimento não é livre, obedecendo a critérios legais destinados a confirmar a designação escolhida”.

O que sucede, porém, é que, no caso, se entendeu que a AT designou, e bem, o procedimento inspectivo como externo, uma vez que “os actos inspectivos não consistiram somente na análise da documentação que já estava na posse da Administração Tributária, na medida em que foram recolhidos elementos que constavam da contabilidade da V...”.


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Ora, o acabado de expor mantém-se inteiramente válido, razão pela qual logo adiantámos que não assiste razão ao Recorrente, ora Reclamante, ou seja, não se justifica, com base no alegado, alterar o despacho reclamado.

É que, comparados ambos os acórdãos - repete-se - não se aceita que entre eles exista uma divergência, sendo claro, antes, que o Reclamante não concorda com a análise levada a cabo pelo Tribunal recorrido, na interpretação e aplicação da lei ao caso concreto, que culminou com a qualificação do procedimento como externo (ao passo que o Reclamante entende que deve ser qualificado como interno). Em bom rigor, para o Recorrente, ora Reclamante, o acórdão recorrido incorreu em erro de julgamento quanto ao lugar da inspecção.

Daquilo que fica exposto, e à falta de novos argumentos que já não tivéssemos anteriormente ponderado (aquando da prolação do despacho ora reclamado), resulta que inexiste oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão invocado como fundamento; existe sim – repete-se – um claro inconformismo com o julgamento efectuado, face ao caso concreto.

Termos em que se conclui, como no despacho reclamado, pela inexistência da invocada oposição de julgados, indeferindo-se, em consequência, a reclamação.


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Decidindo,

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção de Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em julgar improcedente a presente reclamação para a conferência, confirmando-se o despacho reclamado.

Condena-se o Reclamante pelo presente incidente, fixando-se a taxa de justiça devida em duas (2) UC.

Lisboa, 9 de Julho de 2020.


(Catarina Almeida e Sousa)

(Hélia Gameiro)

(Jorge Cortez)