Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1562/08.0BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:09/30/2021
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:ARTIGO 53.º DO CIVA-LIMITES
DIVERGÊNCIAS NOS PRESSUPOSTOS
FUNDADA DÚVIDA
Sumário:I- Se a AT mediante prova documental -que analisou em momento ulterior à ação inspetiva- reconheceu, de forma expressa, que existem incongruências nos montantes declarados pelas entidades que lhe colocaram os rendimentos à disposição, alvitrando inclusive que terá havido lapso na declaração dos rendimentos, porquanto no valor global declarado de €33.091,74, estariam englobados não só os rendimentos da Categoria B, como, erroneamente, os rendimentos da Categoria A, tal permite concluir que não se mantêm os pressupostos de facto que haviam inicialmente legitimado a emissão dos atos de liquidação em contenda.

II- No limite, sempre existiria uma fundada dúvida na questão da prova a qual teria de ser valorada contra a AT. Com efeito, as divergências convocadas e constatadas permitem, no mínimo, evidenciar uma fundada dúvida sobre os pressupostos em que assenta o ato de liquidação, sendo que a incerteza sobre a realidade dos factos tributários reverte, em regra, contra a AT, não podendo, nessa medida, efetuar a liquidação se não existirem indícios suficientes daqueles. III- Assim, padecendo os pressupostos que legitimaram a emissão do ato de liquidação de incongruências, a mesma padece de erro cominado, natural e necessariamente, com a anulabilidade.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

I-RELATÓRIO

O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (DRFP), veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial deduzida contra as liquidações adicionais de Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) respeitantes aos anos de 2003, 2004 e 2005, no montante global de €14.071,34.

O Recorrente apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:

“A. Visa o presente recurso reagir contra a douta sentença recorrida na parte em que anulou a liquidação de IVA, bem como a liquidação de juros compensatórios, relativas ao ano de 2003;

B. O Tribunal a quo fundamentou a anulação dos referidos atos tributários na consideração de que a Fazenda Pública não logrou provar, como lhe competia, os pressupostos de facto e de direito em que assentaram as referidas liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios;

C. Não pode a Fazenda Pública conformar-se com o assim doutamente decidido, porquanto entende existir erro de julgamento, uma vez que da prova produzida e levada aos autos da presente impugnação, não se podem extrair as conclusões em que se alicerça a decisão proferida;

D. Estava em causa nos autos saber se o Impugnante, ora recorrido, teria tido, em 2002, um volume de negócios superior ao limite previsto no artigo 53..º, n.º 1 do CIVA, o que determinava a cessação da isenção ali prevista e a consequente tributação, em IVA, no ano seguinte;

E. Conforme resulta da alínea H) do probatório, os serviços de inspeção tributária, “a partir dos dados constantes do (…) sistema informático, nomeadamente a declaração modelo 3 de IRS, anexo B entregue pelo Sujeito Passivo e anexo J/Modelo 10 apresentada(s) pelas entidades pagadora(s) de rendimentos da categoria B” (sublinhado nosso), constataram que o sujeito passivo, no ano de 2002, auferiu rendimentos da categoria B no montante de €33.091,74. Em face do verificado, concluíram os SIT que se impunha corrigir o enquadramento de IVA, “alterando o regime de Tributação para o “regime Normal Trimestral”, reportando o enquadramento, a 01/02/2003 em virtude do SP, no ano de 2002, ter ultrapassado o montante de 10.000€ e não ter entregue a respectiva declaração de alterações”. Assim, com referência ao ano de 2003 foi emitida a liquidação de IVA impugnada, no valor de €6.857,31 (correspondente à aplicação da taxa de 19% à base tributável de €36.091,12);

F. Salvo o devido respeito carece de total fundamento a consideração do tribunal a quo de que a AT não logrou demonstrar os pressupostos de facto e de direito em que assentaram as referidas liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios referentes a 2003;

G. Como tem sido entendimento pacífico da jurisprudência, e sustentado pelo artigo 74.º n.º 1 da LGT, em termos correspondentes ao disposto no artigo 342.º do Código Civil, tendo em conta o princípio da legalidade administrativa, sobre a Administração, recai o ónus da prova da verificação dos respetivos indícios ou pressupostos da tributação, ou seja, dos pressupostos legais da sua atuação, cabendo ao contribuinte provar a existência dos factos tributários que alegou como fundamento do seu direito;

H. A AT logrou demonstrar os pressupostos da sua atuação. Com efeito, ficou demonstrado, por via da análise dos elementos constantes da declaração modelo 3 entregue pelo sujeito passivo e, bem assim, pelos elementos declarados pelas entidades pagadoras de rendimentos da categoria B, que no ano de 2002, o Impugnante havia ultrapassado o limite legal constante do artigo 53.º, n.º 1 do CIVA, porquanto no aludido ano havia tido um volume de negócios de €33.091,74, sendo que o limite legal era, então, de €9.975,96;

I. Atendendo à factualidade e elementos de prova constantes dos autos e enunciados no probatório, certo se torna concluir que por parte do Impugnante, ora recorrido, nenhuma prova foi feita, tendo-se limitado a alegar que terá incluído os rendimentos auferidos a título de categoria A conjuntamente com os auferidos a título de categoria B de IRS;

J. Do teor da Informação elaborada pela DSIVA não resulta que tenha sido posto em causa o valor do volume de negócios apurado pelos SIT, o que resulta é que, como ali se diz, “aparentemente, o sujeito passivo terá incluído os rendimentos auferidos a título de categoria A de IRS conjuntamente com os auferidos a título de categoria B, em sede daquele imposto”. A verificar-se este facto, o sujeito passivo deveria permanecer no regime de isenção do artigo 53° no ano de 2003, face aos montantes aparentemente auferidos no âmbito da sua atividade liberal em 2002 (€ 7.771,00).”

K. A utilização do advérbio “aparentemente” demonstra que nenhuma prova do alegado foi feita pelo sujeito passivo, não podendo por isso o facto por si alegado - de que no ano de 2002 não teria sido ultrapassado o limite legal do volume de negócios previsto no n.º 1 do artigo 53.º do CIVA, - ter-se por verificado. São os próprios serviços que referem que somente caso se verificasse tal facto é que lhe seria reconhecido o direito à isenção;

L. A AT logrou demonstrar que o volume de negócios no ano de 2002 foi de €33.091,74, por ser esse o valor que resulta dos elementos consultados no âmbito do procedimento inspetivo, demonstrando, assim, os pressupostos da sua atuação. Pelo que cabia ao Impugnante provar a existência dos factos tributários que alegou como fundamento do seu direito, o que, como vimos, não logrou fazer;

M. Assim, ao contrário do decidido deveria o Tribunal a quo ter considerado que a AT logrou demonstrar os pressupostos da sua atuação, comprovando que o volume de negócios referente a 2002 ultrapassava o limite previsto no artigo 53.º, n.º 1 do CIVA, pelo que a liquidação adicional de IVA e respetivos juros compensatórios, relativos ao exercício de 2003, não enfermam de qualquer vício, tendo sido emitidas no estrito cumprimento dos preceitos legais aplicáveis;

N. Ao assim não ter decidido, incorreu o tribunal a quo em erro de julgamento, por errónea valoração da prova e errónea interpretação e aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 53.º do CIVA e no n.º 1 do artigo 74.º da LGT.

Termos em que com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogada a sentença ora recorrida e substituída por acórdão que julgue a Impugnação totalmente improcedente, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA! “


***

A Recorrida devidamente notificada optou por não apresentar contra-alegações.

***

O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

***

Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

***

II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

“Com relevo para a decisão da causa, dão-se como provados os factos a seguir indicados:

A) O Impugnante é Professor Universitário, ministrando aulas (à data dos factos) na Universidade L..., em Lisboa, da qual aufere rendimentos por conta de outrem (cfr. artigos 5º e 7º da p.i. não controvertido);

B) O Impugnante presta ainda serviços como formador, tendo entregue declaração de início de actividade em 10.02.1992 com o CAE 80422 – Outras Actividades Educativas, da qual aufere rendimentos de trabalho independente (cfr. artigo 6º da p.i. e fls. 41 do PA apenso);

C) No âmbito da actividade de formador, o Impugnante, desde 1992, estava enquadrado no regime de isenção de IVA, previsto no artigo 53º do CIVA (cfr. fls. 41 e 47 do PA apenso);

D) Em 15.07.2003, o Impugnante entregou declaração de rendimentos Modelo 3 do IRS, respeitante a 2002, da qual apenas constam 2 Anexos B, sendo que no Anexo B relativo ao Impugnante foi declarado o rendimento de € 33.091,74 (cfr. fls. 23 e 24 do PA apenso);

E) Em 30.04.2004, o Impugnante entregou declaração de rendimentos Modelo 3 do IRS, respeitante a 2003, da qual constam 1 Anexo H e 2 Anexos B, sendo que no Anexo B relativo ao Impugnante foi declarado o rendimento de € 36.091,12 (cfr. fls. 23 e 24 do PA apenso);

F) Em 01.09.2006, o Impugnante entregou declaração de rendimentos Modelo 3 do IRS, respeitante a 2005, da qual constam 1 Anexo A e 2 Anexos B, sendo que no Anexo B relativo ao Impugnante foi declarado o rendimento de € 19.688,71 (cfr. fls. 32 a 34 do PA apenso);

G) Com base nas ordens de serviço nº OI200…., OI200…., OI200… e OI200….., o Impugnante foi sujeito a uma inspecção interna de âmbito parcial em IVA, incidente sobre os exercícios de 2003, 2004, 2005 e 2006 (cfr. RIT a fls. 59 a 63 do PA apenso);

H) Em 26.09.2007, foi elaborado o Relatório de conclusões da Inspecção Tributária (RIT), do qual se retira, designadamente:

“(…) A partir dos dados constantes do nosso sistema informático, nomeadamente a declaração modelo 3 de IRS, anexo B entregue pelo Sujeito Passivo e anexo J/Modelo 10 apresentada(s) pela(s) entidade(s) pagadora(s) de rendimentos da categoria B, constatámos que o sujeito passivo, no ano de 2002, auferiu rendimentos da categoria B no montante de € 33.091,74 – valor superior a € 10.000.

Assim, … o sujeito passivo deveria ter entregue, durante o mês de Janeiro de 2003, a declaração de alterações relativa ao seu enquadramento em IVA, “passando de isento ao abrigo do artigo 53º” para “regime normal trimestral”, entrando este regime em vigor em 01.02.2003.

(…)

Esgotados os recursos para obtenção da colaboração por parte do Contribuinte, para uma regularização voluntária, das situações em falta relativamente aos anos de 2003, 2004, 2005 e 2006, recorremos aos dados constantes do nosso Sistema Informático, nomeadamente a declaração modelo 3, anexo B de IRS entregue pelo Sujeito Passivo e anexo J – Modelo 10 apresentada(s) pela(s) entidade(s) pagadora(s) de rendimentos da categoria B, daí resultando que:

1. Deverá ser corrigido o enquadramento de IVA, alterando o regime de Tributação para o “regime Normal Trimestral”, reportando o enquadramento, a 01/02/2003 em virtude do SP, no ano de 2002, ter ultrapassado o montante de 10.000€ e não ter entregue a respectiva declaração de alterações.

Nos anos de 2003, 2004, 2005 e 2006 não consta qualquer declaração periódica de IVA entregue pelo SP

(…)”

(Cfr. RIT a fls. 59 a 63 do PA apenso);

I) No seguimento da acção de inspecção e com base nas conclusões antecedentes, os serviços tributários emitiram, em 17.11.2007, as seguintes liquidações:

(Cfr. fls. 41 e 42 do PA apenso);

J) Em 04.03.2008, foi instaurado no Serviço de Finanças de Loures 1, contra o Impugnante, o processo de execução fiscal (PEF) nº 1520……, para cobrança coerciva de dívidas de IVA e juros compensatórios, cujas liquidações se encontram melhor identificadas na alínea I) supra, no montante global de € 14.071,34 (cfr. fls. 9 a 22 dos autos);

K) Em 07.03.2008, o Impugnante foi citado no âmbito do referido PEF (cfr. artigo 1º da p.i.),

L) Em 30.04.2008, foi elaborada a seguinte informação pela Divisão de Administração I da Direcção de Serviços de IVA, que mereceu despacho de concordância do substituto legal do Director-Geral, em 05.02.2008:

“(…) 2. Exerce, assim, funções por conta de outrem na universidade, e funções por conta própria, nas actividades liberais referidas.

3. Relativamente à actividade de formação auferiu rendimentos nos anos de 2002, 2003, 2004, 2005 e 2006 os quantitativos de € 7771, € 13116, € 6482, € 9888 e € 7085, respectivamente. No que respeita ao exercício de consultoria, a cada um dos anos indicados correspondem os rendimentos de € 0,00, € 2000, € 2175, € 9800 e € 6189, respectivamente.

4. Convicto de que os serviços por si prestados como pessoa singular, na área de formação, se encontravam isentos de IVA (…) partiu do princípio de que os rendimentos de consultoria que recebeu em cada ano, nunca ultrapassando os € 10000, estavam isentos ao abrigo do artigo 53º do CIVA, pelo que não procedeu à liquidação do imposto às entidades a quem prestou os seus serviços.

(…)

5. Foi então, informado que a isenção consagrada no n° 11 do artigo 9º do Código do IVA (formação profissional), não se estendia a formadores pessoas singulares ou a organismos a quem faltassem os requisitos previstos naquela norma legal.

(…)

10. Analisando os elementos existentes no sistema informático, verifica-se que o sujeito passivo foi enquadrado no regime de isenção (artigo 53° do CIVA), em 1992.02.01, nele se mantendo até 2003.02.01, data em que transitou para o regime normal, com periodicidade trimestral.

11. O sujeito passivo não entregou as declarações periódicas referentes aos exercícios de 2003 e 2007. No entanto, os Serviços de Inspecção Tributária supriram aquela omissão (…).

12. Acresce referir que, confrontados os elementos ao nosso dispor, nomeadamente os decorrentes das declarações de IRS e o anexo J à declaração anual, constata-se a existência de incongruências nos montantes declarados pelas entidades que lhe colocaram os rendimentos à disposição. Aparentemente, o sujeito passivo terá incluído os rendimentos auferidos a título de categoria A de IRS conjuntamente com os auferidos a título de categoria B, em sede daquele imposto.

13. A verificar-se este facto, o sujeito passivo deveria permanecer no regime de isenção do artigo 53° no ano de 2003, face aos montantes aparentemente auferidos no âmbito da sua actividade liberal em 2002 (€ 7.771,00). No entanto, atendendo ao volume de negócios realizado em 2003, deverá ser enquadrado no regime normal de tributação, com efeitos a partir de Fevereiro de 2004, face ao disposto nos números 2 e 5 do artigo 58° do CIVA.

14. Não obstante o exposto, mostra-se necessário confirmar a natureza dos rendimentos auferidos em 2002 (…).

15. A confirmar-se a situação, será de anular as liquidações (adicionais e de juros compensatórios), referentes ao ano de 2003, reenquadrando-se o sujeito passivo no regime normal de tributação com efeitos a partir de 2004.02.01. (…)” (sublinhado nosso) (cfr. fls. 64 a 67 do PA apenso);

M) A presente acção foi apresentada junto do serviço de finanças sob forma de oposição em 10.04.2008, posteriormente remetida a este Tribunal, e convolada em impugnação judicial (cfr. fls. 4, 5, 55 e 56 dos autos);

N) Em 28.10.2008, foi elaborada declaração oficiosa de rendimentos Modelo 3 do IRS, respeitante a 2004, contendo, relativamente ao Impugnante, o Anexo A (rendimento de trabalho dependente) e 2 Anexos B, sendo que o relativo ao Impugnante, declara rendimentos no montante de € 9.407,00 (cfr. fls. 29 a 31 do PA apenso).


***

A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:

“Inexistem factos não provados com interesse para a decisão da causa.”


***

A motivação da matéria de facto assentou no seguinte: “quanto aos factos provados, a convicção do Tribunal fundou-se na análise crítica da prova documental constante dos autos e processo administrativo apenso, conforme especificado em cada uma das alíneas supra.”

***


III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, o Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou parcialmente procedente a impugnação judicial deduzida contra as liquidações adicionais de IVA, dos anos de 2003, 2004 e 2005, tendo sentenciado:


- A procedência quanto à liquidação de IVA nº 073……, no montante de €6.857,31 e respetiva liquidação de juros compensatórios nº LA 07….., no montante de €994,22, relativas ao ano de 2003.


- A improcedência quanto ao demais, com a consequente manutenção das liquidações de IVA e respetivos JC, dos anos de 2004 e 2005.


Em termos de delimitação da lide recursiva, importa salientar que apenas o DRFP interpôs recurso jurisdicional da sentença visada nos presentes autos, tendo, por isso, transitado em julgado a manutenção das liquidações referentes aos anos de 2004 e 2005.


Mais importa ter presente que, em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre apreciar se o Tribunal a quo incorreu em erro sobre os pressupostos de facto e de direito, mormente, por ter entendido que a AT não cumpriu o ónus probatório que sobre si impendia, existindo, no caso, incongruências nos valores declarados na correspondente Modelo 3 de IRS.

Vejamos.

Aduz a Recorrente que, da prova produzida não se podem extrair as conclusões em que se alicerça a decisão proferida, porquanto da alínea H) do probatório o que se retira é que os valores declarados, enquanto Categoria B, ascenderam a €33.091,74, estando, por isso, legitimada a emissão do ato de liquidação.

Com efeito, contrariamente ao sustentado pelo Tribunal a quo, a AT logrou demonstrar os pressupostos da sua atuação, porquanto revelou, por via da análise dos elementos constantes da declaração modelo 3 entregue pelo sujeito passivo e, bem assim, pelos elementos declarados pelas entidades pagadoras de rendimentos da categoria B, que no ano de 2002, o Impugnante havia ultrapassado o limite legal constante do artigo 53.º, n.º 1 do CIVA, não tendo, por seu turno, o Recorrido ilidido o ónus probatório que sobre si impendia, limitando-se a alegar que terá incluído os rendimentos auferidos a título de categoria A conjuntamente com os auferidos a título de categoria B de IRS.

Ademais, da informação elaborada pela DSIVA não resulta perentório a assunção de tal erro, mas, tão-só, de divergências, não podendo, por isso, o facto por si alegado - de que no ano de 2002 não teria sido ultrapassado o limite legal do volume de negócios previsto no n.º 1 do artigo 53.º do CIVA, - ter-se por verificado.

Conclui, dizendo que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, tendo violado os normativos 53.º, nº 1 do CIVA, e 74.º, nº 1, da LGT.

Apreciando.

Comecemos por convocar a fundamentação em que se esteou a procedência e anulação do ato de liquidação em contenda:

“A isenção em causa tem em consideração as características do operador económico, visando os de reduzida dimensão, ou seja, cujo volume de negócios, por ano civil, não ultrapasse o montante de € 9.975,96.

Conforme resulta da alínea C) do probatório, o Impugnante encontrava-se enquadrado, desde 1992, no regime de isenção do artigo 53º, nº 1 do CIVA.

Sucede que a AT, constatando que o sujeito passivo declarou no anexo B da declaração periódica de rendimentos Modelo 3 do IRS de 2002, o montante de € 33.091,74, tal determinava o enquadramento no regime normal de tributação em IVA, o que motivou a acção de inspecção ao Impugnante, bem como as liquidações adicionais de IVA e juros compensatórios que daí resultaram [cfr. alíneas G), H) e I) do probatório].

Neste ponto, importa relembrar que é sobre a AT que recai o ónus de prova da existência de todos os pressupostos do acto de liquidação adicional, designadamente a prova da verificação dos pressupostos que a levaram a efectuar as correcções técnicas que suportam a liquidação.

Ora, é ponto crítico saber qual o volume de negócios do Impugnante no exercício de 2002 (e sendo o caso, nos posteriores), sendo certo que, por um lado, o volume de negócios corresponde aos rendimentos auferidos em resultado das prestações de serviço de formação profissional e, por outro lado, se o volume de negócios for superior a € 9.975,96, tal implica a cessação do regime de isenção e a passagem para o regime normal (trimestral) de IVA.”

Concretizando, depois no atinente às liquidações de IVA e JC de 2003, que

“Se a AT começa por referir, no âmbito da acção de inspecção, que o volume de negócios do Impugnante, em 2002, foi de € 33.091,74, a verdade é que tal montante é posto em causa na informação elaborada pela Direcção de Serviços de IVA, onde se menciona, designadamente:

“(…) constata-se a existência de incongruências nos montantes declarados pelas entidades que lhe colocaram os rendimentos à disposição. Aparentemente, o sujeito passivo terá incluído os rendimentos auferidos a título de categoria A de IRS conjuntamente com os auferidos a título de categoria B, em sede daquele imposto.

11. A verificar-se este facto, o sujeito passivo deveria permanecer no regime de isenção do artigo 53° no ano de 2003, face aos montantes aparentemente auferidos no âmbito da sua actividade liberal em 2002 (€7.771,00).” [cfr. alínea L) do probatório].

De facto, o montante de € 7.771,00 não ultrapassa o limite a que se refere o nº 1 do artigo 53º do CIVA, pelo que o Impugnante deveria manter-se enquadrado no regime de isenção de IVA durante o exercício de 2003.

E porque não está cabalmente esclarecida a incongruência apontada, não ficando comprovado nos autos o volume de negócios do Impugnante referente a 2002, não é possível dar como provados os pressupostos que sustentam a liquidação adicional de IVA, e respectivos juros compensatórios, relativos ao exercício de 2003 (repita-se que é o volume de negócios do ano anterior que determina a passagem ao regime de tributação no ano seguinte).

Padecem, pois, de ilegalidade, por vício de violação de lei (artigo 53º do CIVA), as liquidações nº 07310458, no montante de € 6.857,31 (IVA) e nº LA 0731459, no montante de € 994,22 (JC), devendo as mesmas ser anuladas.”

E, de facto, atentando no supra expendido não se vislumbra que o Tribunal a quo tenha incorrido no erro de julgamento que lhe é assacado pelo Recorrente.

Senão vejamos.

Diz-nos o artigo 53.º do CIVA, relativamente ao regime de isenção, e com a redação à data aplicável que:

“1 - Beneficiam da isenção do imposto os sujeitos passivos que, não possuindo nem sendo obrigados a possuir contabilidade organizada para efeitos de IRS ou IRC nem praticando operações de importação, exportação ou atividades conexas, não tenham atingido, no ano civil anterior, um volume de negócios superior a 2 000 000$ ].

2 - Não obstante o disposto no número anterior, serão ainda isentos do imposto os sujeitos passivos com um volume de negócios superior a 2 000 000$, mas inferior a 2 500 000$, que, se tributados, preencheriam as condições de inclusão no regime dos pequenos retalhistas. (…)”

In casu, não é controvertida a aplicação e interpretação dos pressupostos legais constantes no citado artigo 53.º do CIVA, mas, tão-só, a realidade fática inerente ao volume de negócios, concretamente, aquilatar se o valor auferido no ano de 2002 permite a subsunção normativa no aludido preceito legal e correspondente isenção, com a respetiva densificação do ónus probatório.

Ab initio, importa relevar que o Tribunal a quo, contrariamente ao evidenciado pela Recorrente não retirou da Informação da Divisão da Justiça Contenciosa -entenda-se enquanto factualidade assente- que os rendimentos da Categoria B auferidos pelo Recorrido no ano de 2002, ascenderam a €7.771,00.

Com efeito o que sustenta é que tendo a AT (Direção dos Serviços do IVA-DSIVA) mediante prova documental -que analisou em momento ulterior à ação inspetiva- reconhecido, de forma expressa, que existem incongruências nos montantes declarados pelas entidades que lhe colocaram os rendimentos à disposição, alvitrando inclusive que terá havido lapso na declaração dos rendimentos, porquanto no valor global declarado de €33.091,74, estariam englobados não só os rendimentos da Categoria B, como, erroneamente, os rendimentos da Categoria A, não se mantinham os pressupostos de facto que haviam inicialmente legitimado a emissão dos atos de liquidação em contenda, chegando-se, no mínimo, a um non liquet.

E, de facto, assim é. Senão vejamos.

De relevar, desde logo, que nenhuma censura merece a enunciação alvitrada pelo Recorrente no atinente ao ónus probatório, no entanto, já não podemos anuir com a densificação e consequente materialização para o caso vertente, porquanto os factos índice donde emana a liquidação têm de ser inequívocos e isentos de qualquer dúvida, o que, como visto, não sucede no caso vertente.

De facto, o Tribunal ad quem não descura que o Recorrido apresentou uma Declaração de Rendimentos Modelo 3 de IRS, na qual declara, no Anexo B, o valor global de rendimentos obtidos enquanto trabalho independente de €33.091,74, e bem assim que se presumem verdadeiros os rendimentos declarados.

No entanto, não pode, igualmente, descurar que é a própria AT em momento ulterior à ação inspetiva, que reconhece a existência de divergências entre os valores declarados pelo sujeito passivo e os valores declarados pelas entidades que lhe colocaram os rendimentos à disposição, conseguindo, inclusive, discernir que o montante de global de €33.091,74 contemplaria o montante de €25.320,74 concernentes a trabalho dependente-conforme alegado pelo Recorrido e expressamente reconhecido pela Recorrente nas suas alegações de recurso- e que, aparentemente, só o valor de €7.771,00 respeitaria a trabalho independente.

Contrariamente ao evidenciado pela Recorrente nas suas conclusões de recurso, mormente, na alínea J), compulsado o teor da informação elaborada pela DSIVA ter-se-á de inferir que foi, efetivamente, colocado em causa o volume de negócios apurado pela AT.

Ademais, cotejando o teor das alíneas E), e J), da factualidade assente o que resulta é que sendo convocadas as mesmas realidades documentais, concretamente, Modelo 3, Anexo B e bem assim o Anexo J, as asserções fáticas são, como visto, distintas. Logo, padecendo os pressupostos que legitimaram a emissão do ato de liquidação de incongruências, a mesma padece de erro cominado, natural e necessariamente, com a anulabilidade.

De resto, no limite, sempre existiria uma fundada dúvida na questão da prova a qual teria de ser valorada contra a AT.

Com efeito, a obrigação tributária carateriza-se por ser uma obrigação ex lege, que tem por origem a lei e se constitui pela conjugação dos pressupostos nela fixados, donde, facto gerador da obrigação tributária é o facto que concretiza as normas de incidência subjetiva e objetiva, determinando com isso o seu nascimento(1).

Donde, as divergências convocadas e constatadas permitem, no mínimo, evidenciar uma fundada dúvida sobre os pressupostos em que assenta o ato de liquidação, sendo que, como já evidenciado anteriormente, a incerteza sobre a realidade dos factos tributários reverte, em regra, contra a AT, não podendo, nessa medida, efetuar a liquidação se não existirem indícios suficientes daqueles.

Com efeito, “[o] 100º do CPPT contém uma norma que se reporta à questão do ónus da prova, destruindo a presunção legal a favor da AF (in dubio pro Fisco), estabelecendo uma verdadeira repartição do ónus da prova (que se coloca apenas em relação a questões de facto), de acordo com os princípios da legalidade e da igualdade, e em termos de que a incerteza sobre a realidade dos factos tributários reverte, em regra, contra a AF, não devendo ela efectuar a liquidação se não existirem indícios suficientes daqueles(2).”

E por assim ser, inexiste qualquer violação dos preceitos legais invocados pela Recorrente, não tendo o Tribunal a quo incorrido no erro sobre a densificação e aplicação do ónus probatório, mantendo-se, a anulação dos atos impugnados respeitantes ao ano de 2003.

Tudo visto e ponderado, improcede na globalidade o recurso apresentado, mantendo-se a decisão recorrida na íntegra.


***

IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SEGUNDA SUBSECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.

Custas pela Recorrente

Registe. Notifique.


Lisboa, 30 de setembro de 2021

[A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Cristina Flora e Tânia Meireles da Cunha]

Patrícia Manuel Pires


----------------------------------------------------------------------

(1)José Casalta Nabais, Direito Fiscal, Coimbra, 2000, pp.205-207
(2)In Acórdão do TCA Sul, prolatado no âmbito do processo nº 04417/10, datado de 01.02.2011.