Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:08384/12
Secção:CA - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:09/20/2012
Relator:TERESA DE SOUSA
Descritores:ACÇÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL
JUIZ SINGULAR
RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Sumário:I - No caso dos autos, a acção tem valor superior à alçada, pelo que, não tendo sido decidida em formação de três juízes, mas por juiz singular, o foi de acordo com a previsão do citado art. 27º, nº 1, al. i) do CPTA, apesar de a Mmª Juiz a quo não ter invocado expressamente tal preceito;
II - Assim sendo, dessa decisão de mérito cabe reclamação para a conferência, nos termos do nº 2 do art. 27º do CPTA, e não recurso jurisdicional;
III - A interposição de recurso dessa decisão consubstancia opção por um meio processual inadequado, situação que deveria ter merecido não um despacho de admissão do recurso, mas de outro que ordenasse que o processo seguisse a forma processual adequada, nos termos do art. 199º, nº 1 do CPC, se reunidos os respectivos pressupostos.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul

Vem interposto recurso da sentença do TAC de Lisboa que julgou procedente a acção de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa e, consequentemente, ordenou o arquivamento do processo relativo ao registo pendente na Conservatória dos Registos Centrais.
Em alegações são formuladas as seguintes conclusões:
I . Por força do artº 40º, 3 do CPTA «nas ações administrativas especiais de valor superior à alçada, o tribunal funciona em formação de três juizes, à qual compete o julgamento da matéria de facto e de direito.»
II. A presente ação foi julgada por tribunal singular que é, em razão desse normativo, incompetente para o julgamento da causa.
III. Deve este tribunal conhecer da exceção de incompetência do tribunal singular, ordenando-se que o processo volte à primeira instância para ser julgado por tribunal coletivo.
IV. Não foi dado como provado qualquer facto que possa constituir fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, pelo que a ação carece de fundamento.
V. A decisão recorrida ofende, por isso mesmo, o disposto no artº 9º da Lei da Nacionalidade
VI. Ao considerar que «não obstante a lei estipular que a tramitação dos autos segue a forma da ação especial, o seu objetivo consubstancia uma ação de simples apreciação negativa, nos moldes estatuídos no art" 4°,2 al. a) do CPC, aplicável ex vi do art° 1° do CPTA» o tribunal a quo fez uma interpretação contra legem que constitui uma afronta ao princípio da separação dos poderes, constitucionalmente estabelecido, pois que ofende norma expressamente alterada pela Lei Orgânica n° 2/2006, de 17 de Abril.
VII. O direito da recorrente à aquisição da nacionalidade portuguesa é um direito subjetivo, que deriva da própria lei, mais precisamente do art° 3° da Lei da Nacionalidade.
VIII. A recorrente tem direito à aquisição da nacionalidade portuguesa, por ser casada com nacional português há mais de 3 anos, podendo exercer esse direito mediante declaração.
IX. A inexistência de ligação do cônjuge estrangeiro de nacional português à comunidade portuguesa só se verifica quando o casamento é um artifício que não corresponde a um projeto comum de vida, a uma «plena comunhão de vida», para usar a definição do art° 1577° do Código Civil.
X. Citando o ensinamento de GOMES CANOTILHO, contra o que foi escrito na sentença recorrida:
a. - «a comunidade política (re publica) é uma comunidade constitucional inclusiva; daí que os direitos fundamentais à nacionalidade e à cidadania não possam ser densificados através do entendimento clássico de «comunidade nacional»;
b. - uma comunidade constitucional inclusiva, embora também a inclua, não é assim apenas uma comunidade de portugueses, residentes no território ou no estrangeiro (veja-se a este título, por exemplo, o que dispõe o artigo 59.°:
«Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem,
religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito [...]»);
c. - na lógica da nova interpretação do critério ius sanguinis, uma visão constitucionalmente adequada do vínculo jurídico entre o Estado português e uma pessoa, deve ter-se, além de a
partir de dentro, também a partir de fora (neste sentido, cfr., artigos 44.°, n.° 1 115°, n.° 12 e
121.°), o que implica um reconhecimento da nacionalidade a todas as pessoas que sejam fruto de uma disseminação da comunidade de portugueses, que é constituída por um povo aberto à emigração/imigração e, por isso mesmo, vigilante no que respeita à mistura cultural, social e étnica;
d - uma interpretação constitucionalmente adequada do direito fundamental à nacionalidade portuguesa na constitucional inclusiva portuguesa implica, assim, a titularidade deste direito por todas as pessoas que possuam uma conexão relevante com Portugal (genuine link);
f. - no que respeita ao ius soli — o outro critério clássico — na lógica da tendência para a sua
valorização na nova do conceito de cidadania desnacionalizada, uma interpretação constitucionalmente adequada conduz a que estrangeiros possam, também, ter «direito à qualidade de membro da República portuguesa» e, nessa medida, serem tratados como sujeitos-pessoas, com respeito pelos princípios da igualdade e da não discriminação;
f. - apesar de legislador constituinte se ter abstido de delimitar materialmente os conceitos, uma densificação não arbitrária e, por isso, legalmente adequada deve, na perspetiva da titularidade de direitos fundamentais, densificar os direitos à cidadania e à nacionalidade numa lógica de titularidade de direitos por um sujeito-pessoa, o que exige um critério alargado para o seu reconhecimento (ressalvadas, obviamente, as exceções constitucionais — cfr., artigo 15.°, n. °2;
g. - uma densificação não arbitrária deve, outrossim, na perspetiva principal, respeitar
os princípios da igualdade e da proporcionalidade. Com efeito, se, em termos gerais, o legislador infra-constitucional está sempre vinculado ao princípio da igualdade na densificação/concretização de direitos fundamentais (neste caso, dos direitos fundamentais à nacionalidade e cidadania), instrumentos e jurisprudência internacionais reforçam, nesta matéria, esse entendimento.
XI. A obrigatoriedade de apresentação de provas de Ijgação à comunidade nacional deixou de existir com a publicação da Lei Orgânica n° 2/2006, de 17 de Abril.
XII. A douta decisão recorrida, assentando, como assenta, em norma revogada é nula.
XIII. Mas, para além disso, é inconstitucional, porque ofende, neste aspeto, o disposto no art° 202°, 1 e 2 da CRP.
XIV..a nova redação dada à alínea a) do artigo 9.° da Lei da Nacionalidade eliminou da esfera das obrigações do requerente da nacionalidade a alegação e prova de «ligação efetiva à comunidade nacional», passando tal ónus, e de forma inversa —a da «inexistência de ligação efetiva» — a recair sobre as autoridades que venham a suscitar oposição ao propósito manifestado pelo requerente. '
XV. Ao considerar que o art° 9° al a) da Lei da Nacionalidade estabelece que constitui fundamento de oposição a essa aquisição a não comprovação de ligação efetiva à comunidade nacional. (...)» o tribunal violou o próprio art° 9° al a) do mesmo diploma tem agora outra formulação.
XVI Os elementos constitutivos do direito à "aquisição da nacionalidade são o próprio casamento e a declaração de vontade da aquisição proferida na sua constância.
XVII. O que a lei prevê é que essa declaração possa ser posta em causa através de factos, concretos e objetivos, que permitam concluir para inexistência de uma ligação à comunidade nacional, nomeadamente se o casamento não constituir um projeto de plena comunhão de vida (art° 1577° do Código Civil).
XVIII. Não foram apresentados ao MºPº nem o MºPº apresentou em juízo quaisquer factos que permitam concluir, com um mínimo de seriedade, pela inexistência de ligação da recorrente à comunidade portuguesa.
XIX. A conclusão ou a afirmação de que a R. não tem uma ligação à comunidade portuguesa, pelo que é considerada uma indesejável como cidadã da República em termos de justificar a sua rejeição ofende a unidade da família que é garantida pela Constituição da República.
XX. Uma tal rejeição ofenderia, para além disso, por natureza, de forma brutal o princípio da igualdade dos cônjuges, garantido pelo art° 36°, 3 da lei fundamental e ultrapassa largamente os limites da coesão do casamento estabelecidos na reforma introduzida no nosso direito da família pela Lei n° 61/2008, de 31 de Outubro.
XXI. A oposição à aquisição da nacionalidade por parte de cônjuge de cidadão português, importando uma ação de rejeição à integração de tal indivíduo na sociedade portuguesa, constitui uma evidente critica ao próprio casamento e à integração desse cônjuge na respetiva família, ofende o disposto no referido art° 36°,3, a não ser que razões muito fortes o imponham.
XXII. «Uma interpretação constitucionalmente adequada permite perceber que a CRP de 1976 reconhece quer o vínculo jurídico entre o Estado português e uma pessoa, adjetivando o conceito — os cidadãos portugueses (cfr., em especial, artigos 4.°, 14.°, 33º, 121.°, 147.° e 275.°) -, quer a qualidade de membro da res publica no sentido de comunidade política (cfr., em especial, artigos 13.°, 15.°, 26.° e 272.°)» e que «a comunidade política (rés publica) é uma comunidade constitucional inclusiva».
XXIII. «No que respeita à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, a grande modificação do atual regime jurídico operou-se com a extensão daquela faculdade às uniões de facto, matéria em que se exige uma durabilidade igual à do casamento (3 anos).
Porém, a nova redação dada à alínea a) do artigo 9.°, eliminou da esfera das obrigações do requerente da nacionalidade a alegação e prova de «ligação efetiva à comunidade nacional», passando tal ónus, e de forma inversa — a da «inexistência de ligação efetiva» — a recair sobre as autoridades que venham a suscitar oposição ao propósito manifestado pelo requerente.» (CANOTILHO).
XXIV. «Esta relevante alteração veio atribuir à verificação dos requisitos da aquisição do direito à nacionalidade (os constantes do artigo 3.° e 5.°) verdadeira presunção da existência de «ligação efetiva à comunidade», elidível, contudo, pelas alegação e prova de factos que demonstrem a inexistência de tal ligação.» (CANOTILHO, ibidem)
XXV.A inversão do ónus da prova (estabelecida na reforma de 2006) vai no sentido de que a aquisição da nacionalidade portuguesa é a priori automática, bastando à pessoa-requerente reunir as condições previstas no artigo 3.° ou 5.° da Lei, condições que consubstanciam os requisitos constitutivos do direito à aquisição da nacionalidade, pronunciando-se, por
mera declaração, sobre a «existência de ligação efetiva à comunidade nacional».

Em contra-alegações são formuladas as seguintes conclusões:
1 - Apenas em sede de recurso, a recorrente vem suscitar a questão prévia da incompetência do tribunal singular para o julgamento de acção especial de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, por força do art.° 40° n.° 3 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos;
2 - Tal incompetência, a existir, encontra-se sanada, atento o preceituado no art.° 110° n.° 4, ex vi do art.° 646° n.° 3, ambos do Código de Processo Civil, aplicável por força do art.° 1° do Código de Processo nos Tribunais Administrativo;
3 - A decisão sindicada não violou a Convenção Europeia sobre a Nacionalidade;
4 - A recorrente — cidadã de nacionalidade indiana — manifestou a vontade de adquirir a nacionalidade portuguesa, pelo facto de ser casada com um cidadão português, tendo carreado para o processo factos demonstrativos da existência de ligação à comunidade nacional;
5 - Com efeito, alegou e provou que é casada com um português desde 27 de Maio de 2003 e tem uma filha, nascida a 16 de Fevereiro de 2010, na índia, registada no dia 12 de Janeiro de 2011 no Consulado Geral de Portugal em Goa, índia, isto é, depois de entrada a presente oposição, a quem foi atribuída a nacionalidade portuguesa;
6 - Está pois inserida no seio de uma família nuclear portuguesa;
7 - E a longa durabilidade deste casamento repudia a ideia de que configure um casamento de ocasião, simples meio de aquisição da nacionalidade portuguesa;
8 - Assim, em sintonia com o pugnado pela recorrente, mas com fundamentação muito diversa, entende também o M°P° que, uma vez que considerou provada essa estreita e duradoura ligação familiar e afectiva a cidadãos portugueses, concomitantemente, o tribunal a quo deveria ter reconhecido o direito que a requerente da nacionalidade quer exercer;
9 - Na verdade, os factos alegados e provados evidenciam a existência de laços que corporizam um sentimento de pertença à comunidade nacional, de modo a poder afirmar-se que a mesma se encontra integrada na comunidade portuguesa, afigurando-se indiciar de forma suficiente a existência de ligações à comunidade nacional para lhe ser concedida a nacionalidade portuguesa;
10 - Na perspectiva do M°P°, sendo a acção de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, com fundamento na inexistência de ligação efectiva à comunidade portuguesa - art.° 9°, alínea a) da Lei n.° 37/81, alterada pela Lei n.° 2/2006, de 17/04 - uma acção de simples apreciação negativa, a recorrente cumpriu o ónus da prova dos factos constitutivos do direito que se arroga.

Foi dado cumprimento ao disposto no art. 146º, nº 1 do CPTA.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Os Factos
Nos termos do disposto no art. 713º, nº 6 os factos provados são os indicados na sentença recorrida a fls. 183 e 184.

O Direito
A sentença recorrida julgou procedente a acção de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa e, consequentemente, ordenou o arquivamento do processo relativo ao registo pendente na Conservatória dos Registos Centrais.
A Recorrente começa por invocar a excepção de “incompetência do tribunal singular”.

Vejamos.
A presente acção de oposição à aquisição da nacionalidade encontra-se prevista no DL. nº 237-A/2006, de 14/12 (cfr. respectivo art. 57º) e segue a tramitação prevista nos arts. 58º e 59º daquele diploma. Ou seja, apenas se prevêem dois articulados, findos os quais “é o processo, sem mais, submetido a julgamento, excepto se o juiz ou relator determinar a realização de qualquer diligência.
Em tudo o que não se achar regulado nos preceitos referidos, segue os termos da acção administrativa especial (cfr. art. 60º).
De acordo com o art. 40º, nº 3 do ETAF “nas acções administrativas especiais de valor superior à alçada, o tribunal funciona em formação de três juízes, à qual compete o julgamento da matéria de facto e de direito.”.
Nos termos do disposto no art. 27º, nº 1, al. i) do CPTA compete ao relator “proferir decisão quando entenda que a questão a decidir é simples, designadamente por já ter sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado, (…)”.
No caso dos autos, a acção tem valor superior à alçada, pelo que, não tendo sido decidida em formação de três juízes, mas por juiz singular, o foi de acordo com a previsão do citado art. 27º, nº 1, al. i), apesar de a Mmª Juiz a quo não ter invocado expressamente tal preceito.
Assim sendo, dessa decisão de mérito cabe reclamação para a conferência, nos termos do nº 2 do art. 27º do CPTA, e não recurso jurisdicional (cfr. neste sentido o Ac do STA -Pleno de 05.06.2012, Proc. 0420/12 e deste TCAS de 12.01.2012, Proc. 08262/11).
Significa isto que a interposição de recurso dessa decisão consubstancia opção por um meio processual inadequado, situação que deveria ter merecido não um despacho de admissão do recurso, mas de outro que ordenasse que o processo seguisse a forma processual adequada, nos termos do art. 199º, nº 1 do CPC, se reunidos os respectivos pressupostos (cfr. neste sentido o Ac. do STA de 19.10.2010, Proc. 0542/10).
Assim, devem os autos baixar ao TAC de Lisboa, que decidirá se estão preenchidos os pressupostos para a apreciação do requerimento enquanto reclamação para a conferência, e no caso afirmativo, conhecerá do seu mérito.

Pelo exposto, acordam em:
a) – não conhecer do recurso, e ordenar a baixa dos autos ao TAC de Lisboa para decidir o requerimento de fls. 196 e seguintes, enquanto reclamação para a conferência;
b) – sem custas.

Lisboa, 20 de Setembro de 2012

TERESA DE SOUSA
BENJAMIM BARBOSA
SOFIA DAVID