| Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:
Conselho Superior de Magistratura [CSM], entidade requerida nos autos de acção de intimação para prestação de informações, consulta de processos ou passagem de certidões instaurada por P. V., inconformado, interpôs recurso jurisdicional da sentença proferida em 30.6.2022, pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que decidiu julgar a presente acção procedente e, em consequência, intimou o CSM a, no prazo de 10 dias, facultar ao Requerente o acesso aos documentos solicitados no requerimento de 2.12.2021, a que alude o ponto 1. da factualidade assente.
Nas respectivas alegações, o Recorrente formulou as conclusões que seguidamente se reproduzem:
«1.ª) Mal andou a Sentença recorrida ao intimar o ora Recorente[sic] a facultar o acesso aos documentos solicitados pelo Requerente, através do seu requerimento de 02.12.2021, com fundamento na natureza não nominativa dos mesmos.
2.ª) Na verdade, os documentos em questão contém dados pessoais na aceção do RGPD e, nessa medida, assumem a natureza de documentos nominativos, conforme decorre da aplicação conjugada dos artigos 3.º, n.º1, alínea b) do regime do acesso à informação administrativa e ambiental e de reutilização dos documentos administrativos, aprovado pela Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto, e artigo 4.º, n.º 1 do RGPD.
3.ª) Na aceção do RGPD, o conceito de dados pessoais não depende da qualidade do titular dos dados pessoais, nem se circunscreve aos dados pessoais sensíveis ou de natureza íntima, os quais se reconduzem, outrossim a uma categoria especial de dados pessoais, com um regime de proteção acrescida, nos termos previstos nos artigos 4.º, n.ºs 13, 14 e 15 e 9.º do RGPD.
4.ª) Porém, mal andou, uma vez mais, a Sentença proferida pelo Tribunal a quo, quando faz uma aplicação restritiva do objeto e do âmbito de aplicação do RGPD, considerando estarem em causa dados pessoais relativos ao exercício de funções públicas e respeitantes a documentos que não contêm dados pessoais de natureza íntima, aos quais não seriam aplicáveis os princípios e os direitos dos titulares de dados pessoais, constantes no RGPD.
5.ª) Consubstanciando, pois, uma pronúncia do Tribunal a quo ao arrepio da lei e do princípio do primado do direito da União Europeia, que impede que o intérprete ou o legislador nacional restrinjam a aplicabilidade do RGPD, diretamente aplicável no ordenamento jurídico nacional e dos demais estados-membros.
6.ª) E, a errada qualificação como documentação contendo informação nominativa, efetuada na Sentença recorrida, assume especial relevância, porquanto configura uma exceção ao livre acesso, por qualquer pessoa, a informação não procedimental, nos termos do disposto no artigo 65.º do CPA.
7.ª) Com efeito, estando em causa documentos nominativos, não só têm que ser cumpridos os princípios plasmados no RGPD, como sejam a demonstração e concretização[sic] da finalidade do acesso aos dados pessoais contidos em tais documentos, como tem que se demonstrar um interesse direto e pessoal para tal acesso.
8.ª) Por partir da errada permissa[sic] de que a documentação requerida teria natureza não nominativa, a Sentença recorrida omitiu pronúncia relativamente a aspetos de fulcral relevância como a não demonstração da finalidade do acesso pelo Requerente, não sendo suficiente a alusão à qualidade de jornalista, bem como acerca da natureza pré-disciplinar da informação requerida, à luz dos disposto no artigo 11.º do EMJ.
9.ª) Com efeito, em face da omissão de concretização da finalidade de acesso aos procedimentos de natureza pré-disciplinar em apreço, ficou por demonstrar que os incipientes fundamentos gizados pelo Recorrido constituam, com razoabilidade e à luz do princípio da proporcionalidade, o meio necessário aos fins pretendidos.
10.ª) Mal andou, pois, a Sentença recorrida, ao não efetuar um juízo de proporcionalidade suscetível de conciliar o princípio da transparência e da administração aberta, com o princípio da proteção de dados.
11.ª) Salvo melhor entendimento, a Sentença ora recorrida não efetuou o juízo de proporcionalidade que lhe era exigido fazer na situação concreta sub judice, e que determinou a prevalência, tout court, de um direito sobre o outro.».
O Recorrido contra-alegou, concluindo que:
«A- P. V., está, neste momento, em posição de total desvantagem a todos os restantes intervenientes, processuais, designadamente, o Conselho Superior de Magistratura e o Meritíssimo Juiz a quo.
B- O requerente P. V., não conhece o conteúdo dos documentos que requereu e que lhe foram negados
C- Quando em sede de alegações o CSM vem invocar um alegado “Erro de julgamento quanto à natureza não nominativa da informação”, obviamente que só o CSM e o Juiz a quo podem saber se a informação contida nos documentos pode (ou não) integrar-se no conceito de documento nominativo, seja através do conceito plasmado na LADA, seja através do conceito de documento nominativo constante do regulamento geral da protecção de dados (RGPD).
D- A visão de documentos nominativo plasmada no recurso é errada
E- A passar esta visão obscurantista, a grande maioria dos documentos administrativos não poderá ser acedida, já que, uma grande maioria deles conterá nomes, números de variada ordem que poderão conduzir, directa ou indirectamente à identificação da pessoa singular, cargos, etc…etc…
F- O acesso a documentos produzidos pelo Conselho Superior de Magistratura ficará completamente obstaculizado
G- Aquilo que o CSM vê como uma violação de dados pessoais, se forem divulgados, já acontece, online, sem que ninguém tenha de requerer o que quer que seja.
Eis alguns exemplos da conclusão anterior:
H- uma pesquisa ao sitio da internet deste Tribunal de recurso mostra-nos:
➢ Aqui (https://tca-sul.tribunais.org.pt/tribunal/quadros-do-tribunal/juizes/) o nome de todos os juízes que prestam serviço nesse tribunal, incluindo, os que têm mais antiguidade e os que são mais novos no cargo;
➢ Aqui (https://tca-sul.tribunais.org.pt/tribunal/quadros-do-tribunal/magistrados-do-ministerio-publico/#lat) o nome de todos os magistrados do Ministério Público que prestam serviço nesse tribunal, e mais uma vez a ordem de antiguidade
➢ E aqui (https://tca-sul.tribunais.org.pt/tribunal/quadros-do-tribunal/funcionarios/#1639395433728-16779f85-d45a ) até ficamos com acesso a todos os nomes de todos os funcionários que prestam serviço nesse Tribunal.
I- Parece-nos obvio que o Tribunal Central Administrativo do Sul não está a infringir a lei d[sic] protecção de dados. Está sim a praticar transparência.
J- O próprio recorrente, Conselho Superior de Magistratura, não escapa a esta transparência.
K- Aqui (https://www.csm.org.pt/conselho-plenario/) ficamos a conhecer todos os nomes de todos os membros do plenário do Conselho Superior da Magistratura, com direito, inclusivamente, a fotografia.
L- Estará o Conselho Superior da Magistratura a violar a lei? É claro que não.
M- Deixando de lado, caras e nomes, com o sistema Citius e Sitaf, podemos saber as listas de distribuição de vários tribunias[sic], incluindo deste Tribunal Central Administrativo do Sul. Eis aqui um exemplo da distribuição entre o dia 10 de Julho até hoje, dia 09 de Agosto de 2022. E nesta lista estão contidos números de processo, nomes de indivíduos, valores de processos, ou seja, uma panóplia de informação que, quando ligada a outra, conduziria, invariavelmente que, a todo o momento estivesse a acontecer uma violação do regulamento geral de protecção de dados.
[imagens no original]
N- Por isso, muito bem andou o tribunal recorrido quando, em sede de sentença, refere o seguinte:
[imagem no original]
O- No regulamento geral de protecção de dados não se percebe qualquer choque entre acesso a documentos administrativos e protecção de dados pessoais.
P- Isso mesmo pode perceber-se da leitura do considerando 154 do Regulamento 13 (EU) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho de 27 de Abril de 2016:
[imagem no original]
Q- Desconhecendo o conteúdo dos documentos, ao que podemos recorrer é à confiança no juízo de valor feito pelo Meritíssimo Juiz a quo, designadamente quando invoca aquilo que tem sido a jurisprudência dos tribunais superiores.
[imagem no original]
R- Por outro lado não nos podemos esquecer que a própria LADA comporta mecanismos de protecção de dados pessoais, nomeadamente, o expurgo dos dados nominativos.
S- O processo trata de documentos relacionados com um processo de distribuição processual, cujos protagonistas actuam dentro dos seus deveres funcionais de funcionários públicos, dentro das atribuições que lhe estão cometidas, sendo que, daquilo que foi possível apurar, o Juiz a quo, não viu neles qualquer revelação relacionada com a vida privada dos protagonistas.
T- E nem o conceito de dados pessoais plasmado no regulamento geral de protecção de dados não é incompatível com esta visão.
Quanto à questão da omissão de pronuncia….
U- De que cor era o cavalo branco de Napoleão?
V- Porquê que um jornalista pede acesso a documentos relacionados com um processo de distribuição num tribunal português com a importância do, entretanto extinto, ticão?
W- Porquê que um jornalista pede acesso a essa informação quando está em causa o processo de um ex primeiro-ministro da República Portuguesa?
X- Porquê que um jornalista pede acesso a informação de um procedimento de distribuição de um processo judicial que tem como arguido um ex primeiro ministro da República Portuguesa e como juiz do processo, o Dr. Carlos Alexandre?
Y- Não haverá conteúdo jornalístico que mereça a notícia? Não haverá interesse publico em saber, como naquele caso concreto ocorreu um procedimento com a importância da distribuição?
Z- O requerente julga que a resposta a essas duas questões é um rotundo sim.
AA- E o Tribunal a quo pronuncia-se sobre a matéria. Senão vejamos:
[imagem no original]
BB- Diz o recorrente:
[imagem no original]
CC- Não fosse “sem mais” o que seria? O requerente é jornalista e outra qualidade não pode invocar para aceder a informações e a documentos. O exercício[sic] da sua profissão está constitucionalmente protegido e aquilo que o requerente faz é um exercício[sic] de liberdade de imprensa.
[imagem no original].».
O Ministério Público, junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto nos artigos 146º e 147°, do CPTA, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso.
Sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, por se tratar de processo urgente, o processo vem à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para julgamento.
Notificadas do parecer que antecede, as partes nada disseram.
As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitada pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, nos termos do disposto no nº 4 do artigo 635º e nos nºs 1 a 3 do artigo 639º, do CPC ex vi nº 3 do artigo 140º do CPTA, consistem, no essencial, em saber se a sentença recorrida incorreu em erros de julgamento i) sobre a natureza não nominativa dos documentos cujo acesso foi requerido pelo Recorrido, ii) ao não se pronunciar sobre a não indicação da finalidade do acesso solicitado, nem sobre a natureza pré-disciplinar da informação, iii) e ao não fundamentar o juízo de proporcionalidade que efectuou.
A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos, pertinentes para a decisão da causa:
«1. Em 02.12.2021, o Requerente apresentou um requerimento junto do Requerido, cujo teor se transcreve parcialmente infra:
“P. V., portador da carteira profissional de jornalista 1… e do cartão de cidadão ….18, vem pedir a V. Exa. se digne, ao abrigo do estatuído na Lei do Acesso aos Documentos Administrativos, na sua mais recente versão (Lei nº 68/2021, de 26 de Agosto) acesso, para eventual obtenção de cópia (analógica ou digital), aos documentos administrativos elaborados e/ou apresentados pelo Sr. Inspetor Judicial Coordenador Juiz Desembargador Dr. P. S. no Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 4 de Maio p.p., bem como a sua proposta formulada no relatório relativo à denominada O. M..
Em suma, pretende-se ter acesso aos documentos que foram já anteriormente requeridos, e que susceitaram [sic] o processo nº 628/2021 na Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos (CADA), que aprovou entretanto o parecer nº 264 de 13 de Outubro p.p..
De igual modo, e nos mesmos moldes, solicita-se acesso aos documentos administrativos elaborados na sequência da solicitação requerida pelo Plenário atrás referido para que o Gabinete do CSM elaborasse um estudo que, no âmbito do quadro do seu relacionamento institucional com o Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, fossem apreciadas as temáticas relativas: i) à limitação ao mínimo indispensável dos tipos de distribuição no citius, ii) à consagração concreta da natureza absolutamente excecional da distribuição de processos por atribuição e, ii) à possibilidade de conferir igualmente ao Citius ferramentas de gestão do sistema de justiça, sem incongruências e resultados dúbios.” (cf. cópia do requerimento junta a fls. 15 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
2. Em data que não foi possível apurar com total exactidão, foi proferido despacho pelo Requerido, sancionando o entendimento em como:
“Os documentos administrativos aos quais o requerente pretende ter acesso integram um procedimento especial de inquérito, cuja tramitação se encontra prevista no artigo 123.º-C, nº. 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais, tendo por finalidade a averiguação de factos determinados;
O procedimento de averiguação sumária pela sua natureza pré disciplinar é confidencial encontrando-se o direito de acesso dos cidadãos ao procedimento arquivado à possibilidade de conhecer o sentido da decisão final e de requerer a passagem de certidões de documentos constantes do procedimento sendo, nesse caso, necessário que o requerente invoque o interesse atendível ou legitimo;
Para além de que contendo estes documentos dados pessoais o acesso e/ou recolha estão, também, sujeitos ao cumprimento dos princípios consagrados no Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD) da União Europeia (EU), e no diploma que o adequa e concretiza na ordem jurídica nacional, mais concretamente a Lei da Proteção de Dados Pessoais (Lei nº 58/2019, de 8 de agosto que assegura a execução do regulamento);
O tratamento solicitado só é lícito se forem recolhidos apenas os dados estritamente necessários para uma finalidade reconhecida por Lei que o legítima [sic];
Para ponderação do cumprimento dos princípios enunciados é, assim, necessário que seja concretizado os documentos que pretende aceder e qual a finalidade do tratamento solicitado, uma vez que acesso, consulta, registo, recolha ou disponibilização dos dados pessoais constantes dos autos deve ser proporcional e o necessário à finalidade da em causa;
Como tal sugere-se que o requerente seja convidado a concretizar os elementos pretendidos dentro das condicionantes próprias do procedimento e a esclarecer qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos de modo a, dessa forma, possibilitar a ponderação do pedido à luz dos princípios do RGPD, da Lei n.º 58/2019, de 08.08 e da Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto.
Mais sugiro que seja remetida cópia dos pareceres emitidos pelo GAVPM em 0211-2020 e em 01-02-2021 sobre o Projecto de Lei n.º 553/XIV/1ª (PSD), em resposta ao solicitado acesso a documentos emitidos sobre a distribuição de processos.” (conforme decorre das cópias do parecer e ofício juntas a fls. 1623 dos autos no SITAF, documentos que se dão por integralmente reproduzidos).
3. Em 22.12.2021 o Requerido remeteu uma mensagem electrónica ao Requerente, solicitando-lhe “que concretize os elementos pretendidos dentro das condicionantes próprias do procedimento e a esclarecer qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos de modo a, dessa forma, possibilitar a ponderação do pedido à luz dos princípios do RGPD, da Lei n.º 58/2019, de 08.08 e da Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto” e, bem assim, disponibilizando-lhe “cópia dos pareceres emitidos pelo GAVPM em 02-11-2020 e em 01-02-2021 sobre o Projecto de Lei n.º 553/XIV/1ª (PSD), em resposta ao solicitado acesso a documentos emitidos sobre a distribuição de processos” (cf. cópia da mensagem electrónica junta a fls. 23 dos autos no SITAF).
4. Em 28.12.2021, o Requerente remeteu uma mensagem electrónica ao Requerido, cujo teor se transcreve parcialmente infra:
“Julgo que o meu pedido foi claro: "acesso, para eventual obtenção de cópia (analógica ou digital), aos documentos administrativos elaborados e/ou apresentados pelo Sr. Inspetor Judicial Coordenador Juiz Desembargador Dr. P. S. no Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 4 de Maio p.p., bem como a sua proposta formulada no relatório relativo à denominada O. M.. Em suma, pretende-se ter acesso aos documentos que foram já anteriormente requeridos, e que susceitaram [sic] o processo nº 628/2021 na Comissão de Acessos aos Documentos Administrativos (CADA), que aprovou entretanto o parecer nº 264 de 13 de Outubro p.p..
Os documentos que solicito existem, porquanto foram mencionados em acta do plenário do CSM de Maio últimno [sic] (cf. pg. 6, aqui: https://www.csm.org.pt/wpcontent/uploads/2021 /09/DELIBERACOES-PLENARIO-06-07-2021.pdf)
Relembro que a Lei de Acesso aos Documentos Administrativos não exige que seja mencionada a finalidade do acesso e recolha de dados administrativos, ademais sabendo-se que são solicitados por um jornalista (CP 1.., podendo confirmar-se junto da CCPJ)., Ademais, presume-se que os documentos em apreço não contenham dados nominativos protegidos pela RGPD, considerando que os nomes aí constantes não são dados protegidos pela dita RGPD. Aliás, estaríamos no "reino do absurdo" se a RGPD impedisse um cidadão de conhecer os nomes de pessoas constantes em documentos administrativos. Por absurdo, ficaríamos até impedidos de saber o nome dos Digníssimos Conselheiros do CSM.” (cf. cópia da mensagem electrónica junta a fls. 24-25 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
5. Em 29.12.2021, o Requerente remeteu nova mensagem electrónica ao Requerido, cujo teor se transcreve parcialmente infra:
“Os jornalistas estão abrangidos, com deveres e direitos, por um vasto conjunto de legislação e outros diplomas, dos quais a Constituição, a Lei da Imprensa e o Estatuto dos Jornalistas são os fundamentais. Têm também um jornalista um código deontológico.
A função de um jornalista parece-me óbvia, e de tão conhecida, praticamente prescinde de ser referida: informar, o que constitui uma liberdade inquestionável pelo menos numa democracia, e ainda mais numa democracia como a da República Portuguesa.
Portanto, não consigo compreender bem a necessidade de ter de indicar "qual a finalidade do tratamento solicitado" em relação aos documentos por mim pedidos e convenientemente identificados pelo CSM. Não me parece, salvo melhor opinião, que os documentos em causa interessem apenas aos envolvidos ao processo em causa, antes interessam a todos os cidadãos, porquanto pode revelar os mecanismos de funcionamento da Justiça em Portugal.
Nem me parece sequer sensato, repito, numa democracia como a portuguesa, que se possa imaginar a eventualidade de me ser recusado o acesso aos documentos em causa se eu alegar que os pretendo analisar para eventualmente, ou não, fazer uma notícia.
Será que V. Exa., ou o próprio CSM, me recusará o acesso se eu disser que é para fazer uma notícia, que aliás é a função final de um jornalista? Ou já aceitará que eu aceda se prometer que apenas servirão para leitura intermédia entre dois romances de ficção?
Além disso, parece-me, também salvo melhor opinião, que o RGPD não serve para manter a confidencialidade de documentos desta natureza (e convém recordar que a CADA já manifestou que não estamos perante documentos sob segredo de justiça), tanto mais que, certamente, aí não são revelados endereços e outros dados pessoais, e apenas nomes e eventualmente funções. E mesmo que fossem, então poder-se-iam expurgar.
Donde, por tudo isto, peço que me seja concedido acesso aos documentos já identificados pelo CSM.” (cf. cópia da mensagem electrónica junta a fls. 26-27 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
6. Em 05.01.2022, o Requerente remeteu uma mensagem electrónica à CADA, dando conta das circunstâncias a que se aludem nos pontos anteriores e solicitando a realização de “diligências de acordo com o estatuído na LADA” (cf. cópia da mensagem electrónica junta a fls. 28-29 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
7. Em 17.02.2022, a CADA proferiu o seu parecer n.º 51/2022, cujo teor se transcreve parcialmente infra:
“(…) 18. Não são acessíveis, sim, devendo ser objeto de expurgo, nos termos do n.º 8 do artigo 6.º da LADA, os dados pessoais que constem do referido processo e que foram irrelevantes para a concreta decisão administrativa, designadamente, moradas, números de telefone, números de identificação civil e fiscal dos intervenientes.
19. Mas, no caso, com certeza que os dados pessoais referir-se-ão aos intervenientes no procedimento de distribuição processual, atuando no exercício das funções públicas que lhes estão por lei cometidas, não abrangendo qualquer informação relativa à dimensão da vida privada.
20. E não há um direito à reserva de conhecimento desses dados de natureza funcional, no exercício de funções públicas. (…)
22. Termos em que, tendo o procedimento sido arquivado e sendo os dados pessoais nele constantes, os estritamente respeitantes a relação jurídica administrativa não haverá, salvo algo não revelado, razão de restrição de acesso. Quanto aos outros dados pessoais, sim, como se disse haverá lugar a expurgá-los.
(…)
III – Conclusão
Deve ser facultado o acesso no quadro exposto.” (cf. cópia do parecer junta a fls. 30-42 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
8. Em 22.03.2022, o Requerente remeteu uma mensagem electrónica ao Requerido, solicitando “que me indiquem hora e local para consulta dos documentos administrativos requeridos, indicando, desde já, que pretendo obtenção de cópia simples” (cf. cópia da mensagem electrónica junta a fls. 43 dos autos no SITAF, documento que se dá por integralmente reproduzido).
9. Em data que não foi possível apurar com total exactidão, foi proferido despacho pelo Requerido, sancionando o entendimento em como:
“Remeta à consideração de Sua Excelência o Sr. Vice-Presidente para os fins tidos por convenientes apenas se referindo que os pareceres da CADA não são vinculativos para a entidade administrativa, podendo o requerente querendo, intentar respetiva acção especial de acesso a documento administrativo, além de que não se concorda de todo com os argumentos vertidos no mencionado parecer da CADA pelo seguinte:
- O procedimento ao qual o Requerente pretende ter acesso é um procedimento de especial de averiguação, previsto no artigo 123.º-A do Estatuto dos Magistrados Judiciais, o qual tem por finalidade apurar a veracidade da participação, queixa ou informação, e a aferir se a conduta denunciada é suscetível de constituir infracção disciplinar.
- No âmbito das competências disciplinares do CSM, o processo de averiguação constitui um processo disciplinar preliminar destinado a averiguar factos determinados e apurar a eventual violação culposa de deveres funcionais de magistrados judiciais.
- Nos termos do artigo 111º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), estas deliberações do CSM e todas as decisões disciplinares subsequentes são notificadas apenas ao arguido e ao seu advogado, pois o exercício da acção disciplinar visa exclusivamente o interesse público na boa administração da justiça e as normas que o regulam não tutelam directamente os interesses pessoais dos participantes, ainda que estes sejam partes no pleito cuja tramitação deu causa à participação disciplinar (neste sentido leia-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 21 de novembro de 2012, processo n.º 75/12.0YFLSB, disponível em www.dgsi.pt).
- A razão de ser da atribuição de confidencialidade ao processo disciplinar, sobretudo após o arquivamento decidido na fase final do processo de averiguações ou de inquérito, tem em vista assegurar a defesa dos direitos fundamentais de personalidade do próprio arguido como o direito ao bom nome e à reputação, com tutela expressa no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição (vide Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul, datada de 10 de Julho de 2012, processo n.º 10940/01, disponível em www.dgsi.pt; Raquel Carvalho, Comentário ao Regime Disciplinar dos Trabalhadores em Funções Públicas, UCP, Lisboa, 2014, pp. 208- 209).
- O acesso a documentos nominativos constantes de um procedimento de averiguação, confidencial por sua natureza pré-disciplinar, só poderá ser deferido caso seja fundamentado o pedido com uma finalidade considerada legitima nos termos conjugados do disposto nos artigos 3.º, n.º 1, al. b), e 6.º, n.º 5, da Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto e 200.º, n.º 3 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, e à luz do regime da proteção de dados, afigurando-se-nos insuficiente invocar para tal a qualidade de jornalista e o regime de acesso à informação administrativa e ambiental e de reutilização dos documentos administrativos, na versão introduzida pela Lei n.º 68/2021, de 26/08.
- o Requerente não invocou, nem demonstrou que o acesso aos documentos constantes do processo de averiguações em causa são necessários para a tutela de um qualquer seu direito ou interesse legalmente protegido para que lhe seja conferido o direito a esse acesso e, apesar de notificado por mais de uma vez pelo CSM, não concretizou cabalmente os elementos pretendidos dentro das condicionantes próprias do procedimento e não esclareceu qual a finalidade do acesso e da recolha de tais documentos de modo a, dessa forma, possibilitar a ponderação do pedido à luz dos princípios do RGPD, da Lei n.º 58/2019, de 08/08 e da Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto.
- Sendo que, conforme sobredito e amplamente pugnado pela CADA, a mera qualidade de jornalista do Requerente e a eventual publicação de notícia ou disponibilização em linha não são suficientes para fazer prevalecer o direito de acesso sobre o direito de reserva invocado pelo CSM.” (conforme decorre das cópias da mensagem electrónica e despacho juntas a fls. 44-45 e 47-48 dos autos no SITAF, documentos que se dão por integralmente reproduzidos).
10. Em 04.05.2021, o Plenário do Requerido deliberou, por unanimidade:
“(…) [C]oncordar com a proposta do Sr. Inspetor Judicial Coordenador Juiz Desembargador Dr. P. S. relativo à (…) relativamente à (…), de que não seja instaurado qualquer subsequente procedimento disciplinar, arquivando-se, pois, nessa parte a matéria dos autos, uma vez que não foram apurados quaisquer factos novos susceptíveis de revisão ou modificação da deliberação tomada pelo Plenário datada de 05.02.2019.
Mais foi deliberado por unanimidade acolher a proposta formulada no relatório apresentado pelo Exmo. Senhor Inspector Judicial Coordenador Juiz Desembargador Dr. P. S., solicitando-se ao Gabinete deste Conselho que elabore um estudo que, no âmbito do quadro do seu relacionamento institucional com o Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, possam ser apreciadas e dilucidadas as temáticas relativas:
- À limitação ao mínimo indispensável dos tipos de distribuição no citius,
- À consagração concreta da natureza absolutamente excecional da distribuição de processos por atribuição e,
- À possibilidade de conferir igualmente ao citius ferramentas de gestão do sistema de justiça, sem incongruências e resultados dúbios” (cf. nota informativa disponível online no sítio electrónico do Requerido, em https://www.csm.org.pt/wp-content/uploads/2021/06/DELIBERACOES- PLENARIO-04-05-2021.pdf, documento que se dá por integralmente reproduzido).
11. Os documentos a que o Requerente pretende aceder não contêm informações susceptíveis de pôr em causa a reserva da intimidade da vida privada de pessoas singulares (cf. expediente apresentado pelo Requerido em envelope selado).
A prova dos factos fixados supra assenta no teor dos documentos juntos aos autos, conforme referido a respeito de cada facto.
Nada mais foi provado com interesse para a decisão da causa.».
Apreciando o recurso,
i) Do erro de julgamento sobre a natureza não nominativa dos documentos cujo acesso foi requerido pelo Recorrido,
Alega, em suma, o Recorrente que: os documentos em questão contêm dados pessoais na acepção do RGDP e, por isso, têm natureza nominativa, como decorre da aplicação conjugada dos artigos 3º, nº 1, alínea b) da LADA e 4º, nº 1 do referido RGDP, entendimento que não é afastado de forma clara pelo tribunal recorrido ao afirmar que a documentação pretendida não configura um documento nominativo, em sentido próprio; o conceito de dados pessoais não depende da qualidade do respectivo titular, ou de ser “sensível” ou de “natureza íntima”, sendo que estes se reconduzem a uma categoria especial de dados pessoais com regime de protecção acrescida, nos termos dos artigos 4º, nºs 13 a 15, e 9º do RGDP; os direitos dos titulares dos dados pessoais decorrentes do RGDP são relativos a quaisquer dados pessoais susceptíveis de identificar ou permitir identificar um individuo; mal andou a sentença recorrida ao fazer uma aplicação restritiva do objecto e do âmbito de aplicação do RGPD, considerando estarem em causa dados pessoais relativos ao exercício de funções públicas e respeitantes a documentos que não contêm dados pessoais de natureza íntima, aos quais não seriam aplicáveis os princípios e os direitos dos titulares de dados pessoais, constantes no RGPD; o que fez ao arrepio da lei e do primado do direito da União Europeia, que impede o intérprete ou o legislador nacional de restringirem a aplicabilidade do RGDP.
O juiz a quo após enquadrar o pedido de informação que o Requerido, na presente acção, pretende ver satisfeito, no direito à informação não procedimental, previsto nos artigos 268º, nº 2, da CRP, 17º do CPA e na LADA [que não constitui objecto do presente recurso], seguindo de perto o parecer emitido pela CADA [referido no facto provado 7.], expendeu o seguinte entendimento sobre a questão da natureza nominativa dos documentos:
«(…), entende este Tribunal que a documentação a que o Requerente aqui procura aceder não configura um documento nominativo, em sentido próprio.
Com efeito, o artigo 3.º, n.º 1, alínea b), da LADA define o documento nominativo por remissão para o disposto no RGPD, estabelecendo que o mesmo consiste no “documento que contenha dados pessoais, na aceção do regime jurídico de proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados”.
Ora, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do RGPD, dados pessoais são a “informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular”.
Pese embora a latitude com que os dados pessoais são definidos no RGPD, crê-se que o comando legal acabado de transcrever carece de ser lido e interpretado cum granum salis em contexto do exercício de funções públicas, sob pena de uma coarctação – logo ab initio – injustificada (e, como tal, inadmissível) dos princípios da administração aberta e, a fortiori sensu, da transparência que, consabidamente, norteiam a actuação da Administração Pública.
Crê-se, aliás, que esta é uma decorrência do disposto nos artigos 6.º, n.º 1, alínea e), e 86.º do RGPD, que prevêem que, por um lado, o tratamento de dados é lícito na medida em que se afigure “necessário ao exercício de funções de interesse público” (coo[sic] é manifestamente o caso) e, por outro, que “Os dados pessoais que constem de documentos oficiais na posse de uma autoridade pública ou de um organismo público ou privado para a prossecução de atribuições de interesse público podem ser divulgados pela autoridade ou organismo nos termos do direito da União ou do Estado-Membro que for aplicável à autoridade ou organismo público, a fim de conciliar o acesso do público a documentos oficiais com o direito à proteção dos dados pessoais nos termos do presente regulamento”.
Com efeito, a vingar a interpretação que aqui é propugnada pelo Requerido, isso significaria que o mero nome de um funcionário público que tenha intervindo num qualquer procedimento administrativo apenas poderia ser tornado acessível aos interessados após a ponderação dos interesses em jogo no âmbito de um juízo de proporcionalidade, o que não se mostra aceitável em face das exigências de transparência que impendem sobre a Administração, nos termos constitucional e infraconstitucionalmente consagrados.
O entendimento que antecede, de resto, vem sendo preconizado pela jurisprudência dos tribunais superiores, os quais, em ambiência de exercício de funções públicas, têm vindo a interpretar restritivamente a noção de documento nominativo, circunscrevendo-a aos documentos que contêm dados pessoais de natureza íntima.
Neste sentido, vide, a título meramente exemplificativo, o acordado pelo Tribunal Central Administrativo Norte, em 25.01.2019, no âmbito do processo n.º 01775/18.6BEBRG, o qual postula aí o entendimento em como:
“(…) 4 - Não se estando em presença de matéria confidencial ou que se possa configurar como relativa a dados pessoais de natureza íntima, como seriam, por exemplo, os dados genéticos, de saúde ou que se prendessem com a vida sexual, bem como os relativos às convicções políticas, filosóficas ou religiosas, que pudessem traduzir-se numa invasão da reserva da vida privada, mas antes perante meros registos administrativos, não se mostra admissível a recusa na prestação de informações.
5 - Informações relativas ao modo como terão sido concretizadas avaliação de desempenho de docentes em determinados anos letivos, não configuram manifestamente dados pessoais, pelo que não podem gozar do regime de proteção de dados pessoais, pois que estamos em presença de meras questões relativas à avaliação dos docentes e ao seu reposicionamento remuneratório e funcional, sendo questões saudavelmente públicas, não se podendo consubstanciar como documentos de natureza nominativa, em homenagem aos princípios da transparência e da publicidade.” – orientação que aqui se subscreve integralmente, por ser aquela que, em perspectiva deste Tribunal, adequadamente harmoniza os diferentes interesses em jogo.
Ora, no caso dos autos, nada disto sucede: compulsada a informação remetida pelo Requerido em envelope selado, considera este Tribunal, à semelhança do que entendeu o CADA, no douto parecer elaborado, que em causa estão unicamente dados atinentes “aos intervenientes no procedimento de distribuição processual, atuando no exercício das funções públicas que lhes estão por lei cometidas, não abrangendo qualquer informação relativa à dimensão da vida privada” (cf. factos 7. e 11. firmados supra), não se identificando, como tal, motivos para cercear a regra geral do livre acesso a documentos administrativos plasmada no supracitado artigo 5.º, n.º 1, da LADA.
Secundo, e ainda que assim não se entendesse – id est, que os documentos que o Requerente aqui procura obter consubstanciassem documentos nominativos em sentido próprio, porquanto continentes de dados pessoais, nos termos e para os efeitos do RGPD –, considera este Tribunal, em face da concreta informação ali vertida, que sempre deveria prevalecer o direito de acesso do Requerente aos referidos documentos face à protecção de tais dados, no âmbito de um juízo ponderativo de proporcionalidade.
Com efeito, e como se viu já, se, de um lado, temos unicamente dados atinentes “aos intervenientes no procedimento de distribuição processual, atuando no exercício das funções públicas que lhes estão por lei cometidas, não abrangendo qualquer informação relativa à dimensão da vida privada”, isto sem que aí se identifiquem aspectos susceptíveis de pôr em causa a reserva da intimidade de pessoas concretas (cf. factos 7. e 11. firmados supra); por outro, temos não só o direito de acesso a documentos administrativos per se (cf. artigo 6.º, n.º 9, da LADA), como também a liberdade de imprensa e, reflexamente, a liberdade de informação, nos termos em que as mesmas se encontram plasmadas nos artigos 37.º e 38.º da Lei Fundamental.
Perante a colisão de tais interesses, não restam dúvidas a este Tribunal que a protecção dos eventuais dados pessoais que os documentos disponibilizados pelo Requerido em envelope selado pudessem conter sempre deveriam ceder, in concretu, face aos interesses que o Requerente aqui procura tutelar.
Não perscrutando este Tribunal motivos plausíveis para se afastar da regra geral de livre acesso dos interessados a documentos administrativos nos termos acabados de expender, e nada mais vindo invocado pelo Requerido, não lhe restam alternativas que não concluir pela procedência da presente intimação, o que se julga de seguida, sem necessidade de maiores desenvolvimentos.».
Vejamos.
O princípio da Administração aberta, da transparência da sua actuação perante os particulares vem consagrado no artigo 268º da CRP, com a epigrafe “Direitos e garantias dos administrados”, que, no nº 2, dispõe: “Os cidadãos têm também o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, sem prejuízo do disposto na lei em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal e à intimidade das pessoas.” [sublinhados nossos].
O artigo 17º do CPA densifica esse princípio, prevendo:
«1 - Todas as pessoas têm o direito de acesso aos arquivos e registos administrativos, mesmo quando nenhum procedimento que lhes diga diretamente respeito esteja em curso, sem prejuízo do disposto na lei em matérias relativas à segurança interna e externa, à investigação criminal, ao sigilo fiscal e à privacidade das pessoas.
2 - O acesso aos arquivos e registos administrativos é regulado por lei.” [sublinhados nossos].
A referida lei reguladora, em vigor, é a Lei nº 26/2016, de 22 de Agosto – que aprova o regime de acesso à informação administrativa e ambiental e de reutilização dos documentos administrativos, transpondo a Directiva 2003/4/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de Janeiro, e a Directiva 2003/98/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de Novembro –, actualizada, normalmente designada por LADA, que, nos artigos 2º e 5º desenvolve o enunciado Princípio da administração aberta, respectivamente, na óptica da Administração – que deve assegurar o acesso à informação não procedimental de acordo com os demais princípios da actividade administrativa, divulgar a informação pública relevante de forma activa, periódica e actualizada, e os termos em que deve efectuar a divulgação da informação - e do administrado – a todos é assegurado o livre acesso a essa informação, ou seja, sem necessidade de enunciar qualquer interesse.
Esta regra do direito ao livre acesso dos administrados à informação não procedimental está sujeita a restrições [tal como resulta da segunda parte do nº 2 do artigo 268º da CRP e da do nº 1 do artigo 17º do CPA], previstas nos artigos 6º a 8º da LADA, uma das quais se prende com o acesso a documentos nominativos.
O artigo 3º, com a epígrafe “Definições”, esclarece o que esta lei considera documento administrativo e documento nominativo, nos seguintes termos:
“a) 'Documento administrativo', qualquer conteúdo, ou parte desse conteúdo, que esteja na posse ou seja detida em nome dos órgãos e entidades referidas no artigo seguinte, seja o suporte de informação sob forma escrita, visual, sonora, eletrónica ou outra forma material, neles se incluindo, designadamente, aqueles relativos a:
i) Procedimentos de emissão de atos e regulamentos administrativos;
ii) Procedimentos de contratação pública, incluindo os contratos celebrados;
iii) Gestão orçamental e financeira dos órgãos e entidades;
iv) Gestão de recursos humanos, nomeadamente os dos procedimentos de recrutamento, avaliação, exercício do poder disciplinar e quaisquer modificações das respetivas relações jurídicas.
b) «Documento nominativo», o documento que contenha dados pessoais, na aceção do regime jurídico de proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados;” [sublinhados nossos].
O referido regime jurídico de protecção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados consta do Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de Abril, que no artigo 4º, “Definições” entende por:
“1) «Dados pessoais», informação relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável uma pessoa singular que possa ser identificada, direta ou indiretamente, em especial por referência a um identificador, como por exemplo um nome, um número de identificação, dados de localização, identificadores por via eletrónica ou a um ou mais elementos específicos da identidade física, fisiológica, genética, mental, económica, cultural ou social dessa pessoa singular;”[sublinhados nossos].
A Lei nº 58/2019, de 8 de Agosto – Lei da Protecção de Dados Pessoais – que dá execução, na ordem jurídica nacional, a este Regulamento, o qual designa por Regulamento Geral de Protecção de Dados [RGPD], e aplica-se aos tratamentos de dados pessoais realizados no território nacional, independentemente da natureza pública ou privada do responsável pelo tratamento ou do subcontratante, mesmo que o tratamento de dados pessoais seja efectuado em cumprimento de obrigações legais ou no âmbito da prossecução de missões de interesse público, prevendo no “Capítulo VI // Situações específicas de tratamento de dados pessoais”, designadamente, a liberdade de expressão e de informação e o acesso a documentos administrativos – v. artigos 1º, 2º, nº 1, 24º e 26º.
No que a este acesso concerne, dispõe o referido artigo 26º “O acesso a documentos administrativos que contenham dados pessoais rege-se pelo disposto na Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto.” [sublinhado nosso].
E não pelas normas e princípios plasmados no RGPD ou pela Lei da Protecção de Dados Pessoais, como defende o Recorrente, que têm objecto, âmbito de aplicação e finalidades distintas do direito fundamental de acesso à informação não procedimental – que é o que está em causa nos presentes autos.
Voltando à LADA e à análise das restrições previstas ao direito ao livre acesso à informação não procedimental, resulta do referido artigo 6º, mormente que:
“1 - Os documentos que contenham informações cujo conhecimento seja avaliado como podendo pôr em risco interesses fundamentais do Estado (…).
2 - Os documentos protegidos por direitos de autor ou direitos conexos, (…).
3 - O acesso aos documentos administrativos preparatórios de uma decisão ou constantes de processos não concluídos pode ser diferido até à tomada de decisão, ao arquivamento do processo ou ao decurso de um ano após a sua elaboração, consoante o evento que ocorra em primeiro lugar.
4 - O acesso ao conteúdo de auditorias, inspeções, inquéritos, sindicâncias ou averiguações pode ser diferido até ao decurso do prazo para instauração de procedimento disciplinar.
5 - Um terceiro só tem direito de acesso a documentos nominativos:
a) Se estiver munido de autorização escrita do titular dos dados que seja explícita e específica quanto à sua finalidade e quanto ao tipo de dados a que quer aceder;
b) Se demonstrar fundamentadamente ser titular de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante, após ponderação, no quadro do princípio da proporcionalidade, de todos os direitos fundamentais em presença e do princípio da administração aberta, que justifique o acesso à informação.
6 - Um terceiro só tem direito de acesso a documentos administrativos que contenham segredos comerciais, industriais ou sobre a vida interna de uma empresa (…).
7 - Sem prejuízo das demais restrições legalmente previstas, os documentos administrativos ficam sujeitos a interdição de acesso ou a acesso sob autorização, (…).
8 - Os documentos administrativos sujeitos a restrições de acesso são objeto de comunicação parcial sempre que seja possível expurgar a informação relativa à matéria reservada.
9 - Sem prejuízo das ponderações previstas nos números anteriores, nos pedidos de acesso a documentos nominativos que não contenham dados pessoais que revelem a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à vida sexual ou à orientação sexual de uma pessoa, presume-se, na falta de outro indicado pelo requerente, que o pedido se fundamenta no direito de acesso a documentos administrativos.”.
De acordo com a factualidade provada, o Requerido, invocando a sua qualidade de jornalista, requereu ao abrigo da LADA o acesso “aos documentos administrativos elaborados e/ou apresentados pelo Sr. Inspetor Judicial Coordenador Juiz Desembargador Dr. P. S. no Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 4 de Maio p.p., bem como a sua proposta formulada no relatório relativo à denominada O. M.” e ainda “aos documentos administrativos elaborados na sequência da solicitação requerida pelo Plenário atrás referido para que o Gabinete do CSM elaborasse um estudo que, no âmbito do quadro do seu relacionamento institucional com o Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, fossem apreciadas as temáticas relativas: i) à limitação ao mínimo indispensável dos tipos de distribuição no citius, ii) à consagração concreta da natureza absolutamente excecional da distribuição de processos por atribuição e, ii) à possibilidade de conferir igualmente ao Citius ferramentas de gestão do sistema de justiça, sem incongruências e resultados dúbios.”. Tal acesso viria a ser negado pelo Recorrente, desconsiderando o parecer da CADA por não ser vinculativo e por discordância com os respectivos argumentos, porquanto e em síntese, está em causa procedimento de especial de averiguação, previsto no artigo 123.º-A do Estatuto dos Magistrados Judiciais, o qual tem por finalidade apurar a veracidade da participação, queixa ou informação, e a aferir se a conduta denunciada é suscetível de constituir infracção disciplinar, que é confidencial por sua natureza pré-disciplinar, só poderá ser deferido caso seja fundamentado o pedido com uma finalidade considerada legitima, nos termos conjugados do disposto nos artigos 3.º, n.º 1, al. b), e 6.º, n.º 5, da Lei n.º 26/2016, de 22 de agosto e 200.º, n.º 3 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho e à luz do regime da proteção de dados, afigurando-se-nos insuficiente invocar para tal a qualidade de jornalista e o regime de acesso à informação administrativa. Por fim, “[o]s documentos a que o Requerente pretende aceder não contêm informações susceptíveis de pôr em causa a reserva da intimidade da vida privada de pessoas singulares”.
Ora, estando em causa um procedimento de averiguações para aferir da veracidade da participação, queixa ou informação contra um Magistrado, é de admitir, como alega o Recorrente, que os respectivos documentos contenham dados que permitam identificar, pelo menos, o participante/queixoso/ informador e o Magistrado visado.
Circunstância que à luz da noção de documento nominativo como documento administrativo que contém dados pessoais, nos termos do artigo 4º, nº 1 do RGPD, leva a concluir que os documentos referentes ao procedimento de averiguações em referência nos autos são nominativos.
O que nos termos do nº 5 do artigo 6º da LADA implicaria que o Recorrido tivesse que apresentar autorização escrita dos titulares dos dados pessoais a que pretende ter acesso, ou demonstrar ser titular de um interesse directo, pessoal, legítimo ou constitucionalmente protegido suficientemente relevante para, ponderados todos os direitos fundamentais em presença e o princípio da Administração aberta, ao abrigo do princípio da proporcionalidade, se poder considerar justificado o acesso pretendido.
Contudo, no mesmo artigo 6º o nº 9 excepciona as restrições impostas no nº 5 ao acesso de documentos nominativos, presumindo que o pedido de informação formulado se fundamenta no direito de acesso a documentos administrativos quando os documentos nominativos [por conterem dados pessoais nos termos do RGPD] não contenham dados pessoais que revelem a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à vida sexual ou à orientação sexual de uma pessoa.
O mesmo é dizer que nas situações em que o pedido de informação visa obter o acesso a documentos que ainda que nominativos nos termos do RGPD, não se prendam com qualquer destas concretas vertentes da vida privada do titular dos dados pessoais, presume-se que está apenas em causa o acesso a documentos administrativos, o qual, nos termos do artigo 5º da LADA, é livre ou não sujeito a restrições.
Essa presunção devia ter sido efectuada, nos termos da lei [o referido nº 9 do artigo 6º da LADA], pelo Recorrente, enquanto entidade administrativa que recebeu o pedido do Recorrido e conhece o teor dos documentos em referência, sabendo ou podendo verificar que não respeitam a origem étnica, as opiniões políticas, as convicções religiosas ou filosóficas, a filiação sindical, dados genéticos, biométricos ou relativos à saúde, ou dados relativos à intimidade da vida privada, à vida sexual ou à orientação sexual de uma pessoa, titular/es dos dados pessoais neles constantes, pelo que deviam ser qualificados por si como documentos administrativos, dispensando as limitações ao respectivo acesso.
Não o fez, recusando o acesso requerido com fundamento de que os documentos eram nominativos e, sustentando no recurso, que têm de ser cumpridos os princípios plasmados no RGDP, como sejam a demonstração e concretização da finalidade do acesso aos dados pessoais contidos em tais documentos e do interesse pessoal e directo no mesmo.
Mais uma vez, o pedido do Recorrido foi formulado ao abrigo do direito de acesso a informação não procedimental, pretendendo saber o que consta dos documentos e não apenas os dados pessoais, não tendo aquele que observar o que consta do RGPD, mas sim na LADA, até em decorrência do disposto no artigo 26º da Lei da Protecção de Dados Pessoais.
De referir que o nº 9 do artigo 6º da LADA foi aditado pelo artigo 65º desta Lei da Protecção de Dados Pessoais, permitindo inferir que o legislador estava[está] consciente que o alargamento dos documentos nominativos a todos aqueles que contêm dados pessoais susceptíveis de identificar ou permitir identificar um individuo, ainda que no exercício de funções públicas ao abrigo da legislação aplicável, redundaria, em matéria de acesso a informação não procedimental, em substituir a regra do direito de livre acesso por todos os administrados, pela excepção, consubstanciada nas restrições enunciadas no artigo 6º, mormente no seu nº 5, pondo em causa o exercício do princípio da administração aberta, a transparência da actuação da Administração e o respectivo controlo.
Donde, o entendimento preconizado na sentença recorrida, ainda que sem o enfoque no disposto no nº 9 do artigo 6º da LADA [ainda que referido] mas numa interpretação restritiva do conceito de documento nominativo, tem suporte legal expresso no mesmo [tornando aquela interpretação restritiva desnecessária].
Apesar do que, o decidido pelo juiz a quo é para manter, até porque as situações indicadas no referido nº 9 já eram aquelas que a jurisprudência [bem como a CADA], referida na sentença, na concretização dos conceitos indeterminados que consubstanciavam as restrições previstas nos artigos 268º, nº 2 da CRP e 17º, nº 1 do CPA ao direito fundamental de acesso à informação não procedimental, elencavam como matéria confidencial por a sua divulgação poder traduzir-se numa invasão da vida privada pessoas identificadas ou identificáveis nos documentos em referência.
Em face do que não pode proceder este fundamento do recurso.
ii) Do erro de julgamento da não pronúncia sobre a não indicação da finalidade do acesso solicitado, nem sobre a natureza pré-disciplinar da informação,
iii) Do erro de julgamento de falta de fundamentação do juízo de proporcionalidade efectuado,
Qualquer destes fundamentos do recurso tem como pressuposto que os documentos cujo acesso o Recorrido pretende são nominativos, sujeitos, por isso, às restrições previstas no nº 5 do artigo 6º da LADA ou, como defende o Recorrente, no RGPD.
Face ao entendimento acima expendido de que, ao abrigo do disposto no nº 9 do mesmo artigo 6º, tais documentos devem ser considerados apenas como administrativos, de livre acesso, fica prejudicada a sua apreciação.
Apenas um comentário sobre a alegada natureza pré-disciplinar da informação relativa ao procedimento de averiguações, com o sentido de que deve beneficiar da confidencialidade que a lei reconhece ao processo disciplinar e estar sujeito às restrições de acesso, também não assiste razão ao Recorrente, primeiro, por tal procedimento não se confundir com o processo disciplinar, segundo, a lei não lhe reconhecer natureza confidencial, e terceiro, encontrando-se findo/arquivado sem que tenha sido instaurado processo disciplinar, nem sequer o seu acesso pode ser diferido ao abrigo do disposto no nº 4 do artigo 6º da LADA.
Em face do que não pode o recurso proceder.
Por tudo quanto vem exposto acordam os Juízes deste Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso, mantendo a sentença recorrida na ordem jurídica.
Custas pelo Recorrente.
Registe e Notifique.
Lisboa, 29 de Junho de 2023.
(Lina Costa – relatora)
(Catarina Vasconcelos)
(Rui Pereira) |