Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1955/09.5 BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:03/24/2022
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:IRS
ADIANTAMENTO POR CONTA DE LUCROS
Sumário:I - A presunção constante do art.º 6.º, n.º 4, do CIRS só funciona quando estejamos perante lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, nos termos ali previstos.
II - Não funcionando qualquer presunção, cabe à AT demonstrar que determinados depósitos bancários se configuram como rendimentos da categoria E de IRS.
III - A falta de demonstração, por parte da AT, do referido em II. reverte contra a mesma.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 06.07.2021, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por M… (doravante Recorrida ou Impugnante), que teve por objeto o indeferimento do recurso hierárquico que versou sobre o indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra o ato de liquidação adicional de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS), referente ao ano de 2001.

Apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“i. A Meritíssima Juíza do Tribunal "a quo” julgou procedente a impugnação, nos autos acima identificados, em primeiro lugar, por ter considerado que a AT não cumpriu o ónus da prova dos factos constitutivos do direito à tributação.

ii. Com efeito, entendeu a Mma. Juíza, em face do probatório produzido nos autos que: “Não se encontra assim provado que os valores em apreço se encontravam escriturados na conta da sociedade, (ficou provado que não estavam) ou seja, não se encontra provado o facto base de que depende a aplicação da presunção estipulada no artigo 6°, n° 4 do CIRS".

iii. Com todo o respeito pela douta decisão "a quo” e reconhecendo a profunda análise efetuada pela Mma. Juíza, entende esta Representação da Fazenda que existiu erro na apreciação da prova que conduziu à decisão por tal procedência, fundada no entendimento da inexistência de factos-índice, que conduzam ao enquadramento dos valores identificados como rendimentos da categoria E, colocados à disposição do sócio da Impugnante, nos termos previstos no artigo 5.°, n.° 1 e 2, alínea h) do CIRS.

iv. Conforme consta dos factos dados como provados, foi constatado que a Impugnante depositava diretamente nas suas contas pessoais somas pecuniárias arrecadadas com a prossecução do objeto comercial da sociedade da qual era sócia, não sendo tais recebimentos refletidos na contabilidade de tal sociedade.

v. Perante a prova efetuada nos autos de que havia montantes que deviam ter sido reconhecidos como proveitos da sociedade e que foram depositados em contas dos sócios, tal situação configura uma apropriação de valores dessa sociedade.

vi. Ora na concreta situação, existindo entrada de montantes na esfera do sócio, a AT ao levar a cabo a tributação das mesmas em sede de IRS, como rendimento de capitais, originadas em montantes que a sociedade deveria, legalmente ter levado a resultados, obedeceu às normas legais e constitucionais que a determinam a tributar, segundo o conceito do rendimento acréscimo e tendo em conta o princípio da igualdade fiscal, na sua vertente do princípio da generalidade dos impostos (que impõe que todos os sujeitos passivos, sem exceção, estejam sujeitos a tributação) e respeitando o princípio da capacidade contributiva.

vii. Nestes termos e com o douto suprimento de V.as Ex.as, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por douto acórdão que conclua pela verificação dos pressupostos de facto, que fundaram a tributação das quantias em causa como adiantamentos por conta de lucros, enquadráveis na previsão legal do art. 5.°, n.° 2, alínea h) do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, que conduziu às liquidações de IRS impugnadas, assim se fazendo JUSTIÇA.

Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que julgue a impugnação judicial totalmente improcedente.

PORÉM V. EX.AS DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA”

A Recorrida apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

“A. Versando o recurso deduzido sobre a matéria de facto, impunha-se que a Recorrente especificasse na alegação de recurso, não só os pontos de facto que considerou incorrectamente julgados, como ainda os concretos meios de prova, constantes do processo que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, pelo que ao não o ter feito, o recurso deve ser liminarmente rejeitado, nos termos e para os efeitos previstos nas disposições conjugadas do artigo 280.°, do CPPT e artigo 640.°, n.° 1, do CPC.

Ad cautelam,

B. Não ocorre qualquer fundamento atendível, quer de facto, quer de Direito, aos argumentos aduzidos pela Recorrente, pelo que entende a aqui Recorrida que deverá manter-se a Sentença nos exactos termos em que foi proferida pelo Tribunal a quo.

C. Conforme fundamentação da sentença recorrida - que se acompanha sem reservas quanto a esta matéria - “(...) terá que considerar-se procedente a presente impugnação judicial considerando que a Entidade Demandada não cumpriu o seu ónus de prova dos factos constitutivos do direito à tributação (cfr. Acórdão do TCAS n. ° 04830/11 de 25-06-2013 o art°.74, n°.1, da L.G.T., estabelece a regra de que o ónus da prova dos factos constitutivos dos direitos invocados no procedimento tributário recai sobre quem os invoque. Assim, em regra, a Administração Tributária terá o ónus da prova dos pressupostos dos factos constitutivos dos direitos que pretender exercer no procedimento).”

D. A Recorrente incorreu em erro quando considerou que "Conforme consta dos factos dados como provados, foi constatado que a Impugnante depositava diretamente nas suas contas pessoais somas pecuniárias arrecadadas com a prossecução do objeto comercial da sociedade da qual era sócia (...)" (Cfr. ponto IV das conclusões do recurso sob apreciação, mas com sublinhado nosso).

E. É que salvo o devido respeito, a AT pareceu entender que o ponto 2 da matéria de facto dada como provada deu como provada a matéria que integra o relatório de inspecção, quando, na verdade, o que o Tribunal a quo fez foi dar como provado a existência de um relatório de inspecção com um determinado teor, reproduzindo o teor do mesmo. (Cfr. ponto 2 da matéria de facto dada como provada e pontos IV), V) e VI), das conclusões do recurso interposto pela AT).

F. A matéria de facto que integra o relatório de inspecção não foi dada como provada, repete-se. (Cfr. ponto 2 da matéria de facto dada como provada)

G. Por esta ordem de razões e não atacando a Recorrente a matéria de facto dada como assente na sentença recorrida de forma que se tenha por válida, importa concluir que a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo se manterá absolutamente intocada e nessa exacta medida, efectivamente, e tal como doutamente decidido, resulta evidente que a Recorrente não fez a prova necessária à sua pretensão tributária.

H. Na matéria de facto dada como assente nada permite sequer alicerçar a tributação tentada pela AT (cfr. fls. 2 a 22 da Sentença sob recurso).

I. Salvo o devido respeito, entende a Recorrida que atenta a ponderação quer da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo e a solução jurídica sufragada na sentença recorrida e, por outro lado, ainda, os termos do recurso deduzido, resulta prejudicada a apreciação das restantes questões suscitadas pela Recorrente (a havê-las).

J. Por todo o exposto, deve o recurso deduzido pela Recorrente ser julgado improcedente, com todas as consequências legais que daí se devam extrair”.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Verifica-se erro de julgamento, na medida em que se reuniam os pressupostos para se enquadrarem os valores identificados como rendimentos da categoria E, colocados à disposição da Impugnante, nos termos previstos no art.º 5.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), do Código do IRS (CIRS)?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“1. A Impugnante e seu marido J… foram alvo de um procedimento de inspecção externa ao ano de 2001 em sede de IRS, conforme ordem de serviço n°OI2……. (cfr. prova documental fls 67 e seguintes do processo administrativo).

2. No procedimento inspectivo, mencionado no facto provado anterior, a Impugnante foi notificada do relatório de inspecção tributária com o seguinte teor ( cfr. prova documental fls 73 e seguintes do processo administrativo):

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3. A nota de compensação de IRS referente ao ano de 2001 é a n°20……. no valor de 50.980,86€ (cfr. prova documental fls 63 e seguintes do processo administrativo).

4. Da liquidação n°200……. consta um total sem juros de 42.322,46€ (cfr. prova documental fls 64 do processo administrativo).

5. A liquidação n°2006……. de juros compensatórios no total de 8.084,38€ tem o seguinte teor: (cfr. prova documental fls 66 do processo administrativo)

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6. A liquidação nº 20……… de juros compensatórios por recebimento indevido no total de 90,68€ tem o seguinte teor: ( cfr. fls 63 e seguintes do processo administrativo)

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7. Estorno referente à liquidação n°200……. tem o valor total 574,02€ (cfr. prova documental fls 63 e seguintes do processo administrativo).

8. A Impugnante era doméstica e recebia vencimento através da sociedade J… Lda (cfr. prova testemunhal).

9. A Impugnante no ano de 2001 vivia em Tomar (cfr. prova testemunhal)”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Dos Factos Não Provados

1. A Impugnante não recebeu quaisquer valores por conta de lucros da sociedade J… Lda.

2. A sociedade J… Lda não tinha lucros distribuíveis.

3. A sociedade J… Lda encontrava-se numa situação económico-financeira deficitária carecida até de injecção de capitais por parte de sócios a título de suprimentos para se poder manter em actividade.

4. Os rendimentos que a Impugnante obteve da sociedade são os referentes à categoria A”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“Para convicção do Tribunal, na delimitação da matéria de facto supra provada, foi decisivo o conjunto da prova produzida, analisada individualmente e no seu conjunto.

Designadamente nos documentos não impugnados juntos aos autos, referidos nos “factos provados”, com remissão para as folhas do processo onde se encontram.

Relativamente aos factos não provados n°1 a 6 nenhuma prova foi efectuada na medida em que a testemunha P… apesar de ter trabalhado na sociedade J… Lda referiu que não tinha conhecimento da actividade financeira da sociedade e que não tinha conhecimento se a mãe recebeu os valores em apreço.

Afirmou que nada sabia sobre o destino das verbas depositadas na conta particular titulada por si, pela Impugnante e pelo marido da Impugnante.

O mesmo acontecendo relativamente à testemunha J…, filho da Impugnante, que também trabalhou na sociedade embora no ano de 2001 vivesse em Tomar com a mãe e afirmou ter tido conhecimento que a Impugnante recebeu vencimento através da sociedade J… Lda desconhecendo a que título.

Os factos provados n°8 e 9 tiveram como base os depoimentos das mencionadas testemunhas que revelaram quanto a esses factos um conhecimento directo, prestando um depoimento objectivo e coerente com a restante prova produzida”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro, na medida em que, na sua perspetiva, se reuniam os pressupostos para se enquadrarem os valores identificados como rendimentos da categoria E, colocados à disposição da Impugnante, nos termos previstos no art.º 5.º, n.ºs 1 e 2, alínea h), do CIRS.

Antes de mais, refira-se que não foi impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, motivo pelo qual carece de pertinência o alegado pela Recorrida, sobre a circunstância de não terem sido cumpridos os pressupostos consagrados no art.º 640.º do CPC.

Vejamos então.

Sobre os adiantamentos por conta de lucros, dispunha o então art.º 5.º do CIRS que:

“1 - Consideram-se rendimentos de capitais os frutos e demais vantagens económicas, qualquer que seja a sua natureza ou denominação, sejam pecuniários ou em espécie, procedentes, direta ou indiretamente, de elementos patrimoniais, bens, direitos ou situações jurídicas, de natureza mobiliária, bem como da respetiva modificação, transmissão ou cessação, com exceção dos ganhos e outros rendimentos tributados noutras categorias.

2 - Os frutos e vantagens económicas referidas no número anterior compreendem, designadamente:

(…)

h) Os lucros das entidades sujeitas a IRC colocados à disposição dos respetivos associados ou titulares, incluindo adiantamentos por conta de lucros, com exclusão daqueles a que se refere o artigo 20º”.

Por sua vez, dispunha o então n.º 4 do art.º 6.º do CIRS, que

“Os lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros”.

In casu, como decorre do teor do relatório de inspeção tributária (RIT):

a) A Impugnante era sócia da sociedade J…, Lda;

b) A Impugnante e o marido eram gerentes da referida sociedade, recebendo rendimentos da categoria A;

c) A administração tributária (AT) detetou que foi efetuada a venda de imóveis em 2001, tendo parte dos valores recebidos, a título de pagamento, sido depositada na conta bancária titulada pela Impugnante e pelo marido;

d) Na contabilidade, não houve qualquer movimentação da conta 25 – empréstimos de sócios;

e) Como tal, os valores em causa foram corrigidos, em sede de categoria E – rendimentos de capitais – adiantamentos por conta de lucros.

Face a este enquadramento, desde já se adiante que não assiste razão à Recorrente.

Com efeito, a mesma partiu da existência de depósitos na conta bancária para a sua configuração enquanto adiantamentos por conta de lucros, nada constando do RIT que permita sustentar tal configuração enquanto rendimento da categoria E.

Na verdade, os valores em causa não estavam escriturados na contabilidade da sociedade, pelo que não se pode lançar mão da presunção consagrada no n.º 4 do art.º 6.º do CIRS. Neste sentido, v., v.g., os Acórdãos deste TCAS de 31.03.2016 (Processo: 06368/13) e do Tribunal Central Administrativo Norte de 13.07.2017 (Processo: 00484/07.6BEVIS), de 21.11.2019 (Processo: 00700/11.0BECBR) e de 29.04.2021 (Processo: 00337/14.1BEPRT).

Com efeito, não se podem confundir depósitos em contas bancárias com escrituração na contabilidade, em sede de conta corrente dos sócios. Quando se fala em conta corrente dos sócios pretende-se abarcar a escrituração contabilística de determinados valores, designadamente em diversas das subcontas da conta 25 do Plano Oficial de Contabilidade, então em vigor.

Como tal, não se estando perante situação em que fosse de lançar mão da presunção referida, caberia à AT demonstrar o quid da qualificação efetuada.

No entanto, em sede de RIT, a AT, concluiu, com base fática insuficiente para o efeito, estarmos perante adiantamentos por conta de lucros.

Na verdade, a administração limitou-se a concluir, sem mais, que os depósitos em contas bancárias eram rendimentos de capitais da Recorrente.

Aliás, não fica clarificado por que motivo a AT optou por esta qualificação e não por uma qualificação enquanto rendimento de trabalho dependente, considerando que a Impugnante era gerente da sociedade em causa e auferia de rendimento da categoria A por esse motivo.

Dos elementos constantes do RIT não se podem extrair, nem do ponto de vista fático, nem do ponto de vista de direito, os pressupostos para esta qualificação efetuada pela AT, porquanto as conclusões extraídas não estão devidamente alicerçadas.

Por outro lado, a qualificação como rendimento da categoria E tem caráter residual (como referido no n.º 1 do art.º 5.º do CIRS), não ficando na discricionariedade da Administração escolher se um determinado rendimento há de ser qualificado, por exemplo, como rendimento da categoria A ou da categoria E.

Nestes termos, considerando que não estamos perante uma situação de funcionamento da presunção prevista no n.º 4 do art.º 6.º do CIRS e que a AT, ao contrário do que lhe impõe o art.º 74.º da Lei Geral Tributária, não logrou demonstrar o que alegou, resulta que não assiste razão à Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 24 de março de 2022

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)