Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2/19.3BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:11/07/2019
Relator:CRISTINA SANTOS
Descritores:DISCIPLINA DESPORTIVA - IMPUTAÇÃO E PUNIÇÃO DO CLUBE A TÍTULO DE AUTORIA – EXECUÇÃO MATERIAL DO ILÍCITO POR SÓCIO OU SIMPATIZANTE DO CLUBE.
Sumário:1. Por disposição expressa do artº 35º do Regulamento das Competições organizadas pela LPFP/2017, a titularidade do dever, colocada na esfera jurídica do clube desportivo sob a forma especial de dever de garante, constitui o fundamento da responsabilidade disciplinar do clube por delito de omissão do dever de evitar o resultado jurídico desvalioso tipificado nos artºs. 187º e 182º do RD –LPFP/2017 no contexto do “terreno de jogo” e “dentro dos limites do recinto desportivo”.
2. Tal significa que a entidade administrativa com poderes regulamentares – a Liga, LPFP – quis vincular a autoria pelo cometimento dos ilícitos disciplinares dos artºs. 182º e 187º do RD –LPFP/2017 à violação do dever jurídico de garante da observância dos deveres elencados no artº 35º do Regulamento Disciplinar das Competições da LPFP/2017.
3. Consequentemente, recai sobre a pessoa colectiva, i.e, sobre o clube desportivo a imputação de autoria dos ilícitos descritos nos artºs. 182º e 187º do RD –LPFP/2017 por violação dos deveres normativamente elencados no âmbito do dever jurídico de garante que incumbe ao próprio clube desportivo.
4. O que significa que o sócio ou simpatizante executor do ilícito disciplinar tem de ser uma pessoa singular devidamente identificada no processo disciplinar através da sua identidade civil para, por seu intermédio, se fazer a imputação funcional do comportamento ilícito do sócio ou simpatizante, devidamente identificado, ao clube desportivo, na exacta medida em que, nos termos expostos, o critério da autoria repousa na titularidade dos deveres elencados no artº 35º do Regulamento Disciplinar das competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional/2017.
5. Não é juridicamente admissível presumir a qualidade de sócio ou simpatizante do clube relativamente à pessoa singular desconhecida e, como tal, não existente no processo, que executa os actos materiais tipificados nos artºs. 182º/187º do RD–LPFP/2017, que é o sócio ou simpatizante do clube, e que assim concretiza a infracção, nos termos já expostos, materializando o comportamento proibido pelo tipo de ilícito disciplinar.
6. Se não se sabe quem é a pessoa singular, porque não está identificada no processo disciplinar, não é possível fazer derivar por presunção e dar como provado que a pessoa em causa é sócia ou simpatizante do clube desportivo para efeitos de imputação da autoria à pessoa colectiva.
7. Por força do artº 32º nº 2 e 10 da Constituição, no direito sancionatório, seja criminal seja disciplinar, não se presume a autoria do tipo de ilícito, o que se presume, a partir de uma base fáctica provada (base da presunção), são comportamentos expressos em factos susceptíveis de imputação subjectiva ou objectiva.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Futebol Clube ……… - Futebol SAD, sociedade com os sinais nos autos, inconformada com o acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto de 07.11.2018, dele vem recorrer ao abrigo do regime constante do artº 8º nºs. 1 e 4 da Lei 74/2013, 06.09 com as alterações introduzidas pela Lei 33/2014, 16.06, concluindo como segue:

1. O presente recurso tem por objecto o acórdão de 07-11-2018 do TAD, que confirmou a condenação da recorrente pela prática da infracção disciplinar p. e p. pelo art. 187.°-1 b) do RD, alegadamente cometida no jogo realizado a 27-08-2017 no Estádio Municipal de Braga, punindo-a em multa no valor de € 2.870,00, e fixando as custas no total de € 6.125,40.
2. Os factos julgados como provados não preenchem todos os pressupostos típicos das infracções disciplinares pelos quais a arguida foi condenada, nomeadamente, o pressuposto da violação do dever de implementação de meios de prevenção da prática de factos social e desportivamente incorrectos por parte dos seus sócios e simpatizantes e de comissão de factualidade típica a título doloso ou, pelo menos, negligente.
3. Porquanto a culpa é pressuposto de responsabilização pela prática da infracção p. e p. pelo art. 187.°-1, b) do RD, a punição pela prática da infracção pressupõe que seja julgada como provada - com fundamento em robustas provas - uma actuação inadimplente e culposa do clube na verificação dos factos.
4. A sofreguidão do Tribunal a quo na condenação da recorrente é tal que, mesmo perante hiatos factuais e probatórios no que à culpa da recorrente concerne nos factos ocorridos no evento desportivo de 27-08-2017 no Estádio Municipal de Braga, determinou que fosse mantida a sanção disciplinar.
5. Não se julgando como provada factualidade essencial ao preenchimento do tipo legal (187,°-1, b) do RD), vê-se necessariamente prejudicada a decisão de condenação proferida nestes autos.
6. O ónus da prova em processo disciplinar cabe ao titular do poder disciplinar, pelo que, sempre seria ao Conselho de Disciplina que se impunha carrear aos autos prova suficiente de que os comportamentos indevidos foram perpetrados por sócio ou simpatizante, e para o que aqui releva, que tais condutas resultaram de um comportamento culposo da Futebol Clube…………. - Futebol SAD.
7. Aliado ao ónus da prova que recai sobre o titular da acção disciplinar, vigora ainda o princípio da presunção de inocência, o qual tem como um dos seus principais corolários a proibição de inversão do ónus da prova, não impendendo sobre o arguido - in casu a recorrente - o ónus de provar a sua inocência.
8. Nem mesmo a presunção de veracidade dos relatórios prevista no art. 13 °,J), do RD, pode contrariar este quadro normativo, dado que, mesmo beneficiando de uma presunção de verdade, não se trata de prova subtraída à livre apreciação do julgador, não se permitindo daí inferir um início de prova ou sequer uma inversão do ónus da prova.
9. Compulsada a matéria de facto dada como provada pelo Tribunal a quo, nela não se encontra qualquer traço factual - ou sequer probatório - de uma hipotética violação de deveres, por parte da demandante, tal como nada nela se divisa no sentido de que a demandante actuou culposamente, seja a título doloso ou negligente.
10. Caso não se exigisse este elemento típico deparar-nos-íamos com uma clara responsabilização disciplinar objectiva e por factos de outrém, a qual violaria o princípio juridico-constitucional da culpa.
11. As alíneas a) e b) do nº 1 artigo 187.° do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, quando interpretadas no sentido de que um clube poderá ser por elas disciplinarmente responsabilizado no caso da verificação de comportamentos social ou desportivamente incorrectos adoptados por sócios ou simpatizantes seus, independentemente de qualquer contributo próprio desse clube e da sua censurabilidade a título de dolo ou de negligência, são inconstitucionais por violação dos princípios constitucionais da culpa e da intransmissibilidade da responsabilidade penal (art. 30º-3 da CRP), ambos inerentes ao princípio do Estado de Direito plasmado no art. 2.° da CRP.
12. A míngua de meios de prova demonstrativas da violação de deveres de cuidado, o Tribunal a quo presumiu que a demandante falhou no seu dever "in vigilando”.
13. No entanto, do facto de ter deflagrado pirotecnia no decorrer do evento não se pode retirar, sem mais, que o clube infringiu um dever próprio.
14. Não havendo nos autos qualquer suporte probatório para concluir por uma actuação culposa pela recorrente, decidir como decidiu o Tribunal a quo afronta até as mais elementares regras da experiência comum, constituindo a manifestação de um erro notório na apreciação da prova.
15. Mas mais, não basta a prova do primeiro elemento típico para que se prove o segundo elemento típico da infracção, como entendeu o Tribunal a quo.
16. Admitir este critério decisório significa admitir a violação do princípio da presunção de inocência, direito fundamental de que a demandante é titular e, do do mesmo passo, implica que para a prova dos factos fundamentadores de responsabilidade disciplinar não será necessária uma racional e objectiva convicção da sua verificação, para além de qualquer dúvida razoável, sendo suficiente uma sua simples indiciação.
17. Sucede que o arguido em processo disciplinar presume-se inocente, correspondendo o princípio da presunção de inocência em processo disciplinar a um direito, liberdade e garantia fundamental, ancorado no direito de defesa do arguido (art. 32.°, nºs 2 e 10 da CRP), no princípio do Estado de Direito (art. 2.° da CRP) e no direito a um processo equitativo (art. 20.°-4 da CRP) (cf. Ac. do Pleno da Secção do CA do STA de 18-04-2002, Proc. 033881 e Ac. do STA de 20-10-2015, Proc. 01546/14,
18. Este critério decisório contraria aberta e frontalmente a jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo, jurisprudência que representa uma expressão consolidada do cânone da dogmática do princípio da presunção de inocência, constante de todos os tratados e comentários de processo penal e afirmado vezes sem conta pelos nossos tribunais superiores (TC, STJ, Relações e TCA’s).
19. Ainda em desfavor da decisão recorrida depõe o facto de, mesmo atentando ao descrito nos relatórios de jogo percebe-se que nenhum elemento factual neles é sequer descrito em favor do preenchimento de pressuposto essencial dos tipos legais: uma actuação culposa da Recorrida.
20. Porquanto se mostram por preencher todos os elementos da infracção e não tendo o titular da acção disciplinar carreado aos autos algum elemento de prova que depusesse em favor do preenchimento de pressuposto essencial exigido pelos tipos legais - uma actuação culposa por parte do clube - sempre se impunha resolver em favor do arguido por efeito da aplicação dos princípios da presunção de inocência do arguido e do “in dubio pro reo”.
21. Pelo exposto, cumpre repor a legalidade, revogando-se o acórdão recorrido e impondo-se ao Tribunal a quo que adopte um critério decisório em matéria de valoração da prova consentâneo com o princípio da presunção de inocência.
22. É inconstitucional por violação do princípio da presunção de inocência de que beneficia o arguido em processo disciplinar, inerente no seu direito de defesa (art. 32º, nºs 2 e 10 da CRP), ao direito a um processo equitativo (art. 20º-4 da CRP) e ao princípio do Estado de direito (art. 2º da CRP), a interpretação dos artigos 222.°-2 e 250.°-l do RD-LPFP de 2016 segundo a qual a comprovação de um elemento constitutivo de uma infracção disciplinar está sujeita a um ónus da prova imposto ao arguido, podendo ser dado como provado se, o arguido não demonstrar a sua não verificação.
23. A modificação do valor da causa promovida pelo Tribunal a quo para 30.000,01 - ao invés do valor total da multa por que foi condenada - foi feita em violação do previsto no art. 33.°, b), do CPTA, pelo que se impõe repor a legalidade, fixando-se o valor da acção no montante de € 2.870,00 e daí extraindo-se as devidas consequências.
24. No presente caso, a demandante recorreu de uma condenação pecuniária no valor de € 2.870,00 e, não tendo esse recurso obtido provimento, confronta-se com uma fixação de custas no total de € 6.125,40, o que se revela totalmente desproporcional e compromete de forma séria e evidente, o princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.°-l e 268.°-4 da CRP).
25. Considerando o critério da nossa jurisprudência constitucional, não são compatíveis com o direito fundamental de acesso à justiça (artigos 20.° e 268.°-4 da Constituição) soluções normativas de tal modo onerosas que se convertam em obstáculos práticos ao efectivo exercício de um tal direito, como é o caso do TAD.
26. Uma vez que as normas conjugadamente aplicadas pelo Tribunal a quo para fixar o valor das custas finais (art. 2º nºs 1 e 5, conjugado com a tabela constante do Anexo I (2.a linha), da Portaria n.° 301/2015, articulado ainda com o previsto nos artigos 76.71/2/3 e 77.74/5/6 da Lei do TAD) são inconstitucionais, por violação do princípio da proporcionalidade (art. 2.° da CRP) e do princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.°-l e 268.°-4 da CRP), devem essas normas ser desaplicadas (art. 204.° da CRP).

*
A Federação Portuguesa de Futebol contra-alegou, concluindo como segue:

1. Em causa nos presentes autos está o comportamento incorreto dos adeptos do F…. e a responsabilização do clube por violação de deveres a que estava adstrito de modo a evitar a ocorrência de tais comportamentos.
2. De acordo com o Relatório de Ocorrências os adeptos do Futebol Clube…………. deflagraram objetos proibidos;
3. A Recorrente não coloca em causa que estes factos aconteceram, coloca em causa, sim, que tenham sido adeptos do F…… os responsáveis pelos mesmos e que tenha qualquer responsabilidade sobre o comportamento levado a cabo por outras pessoas.
4. Tal como consta dos relatórios de jogo cujo teor se encontra a fls. ... do processo arbitral, os Delegados da Liga são absolutamente claros ao afirmar que tais condutas foram perpetradas pelos adeptos do Futebol Clube……………..
5. Com base nesta factualidade, o Conselho de Disciplina instaurou o competente processo sumário à Recorrente.
6. Este é um processo propositadamente célere, em que a sanção, dentro dos limites regulamentares definidos, é aplicada no prazo-regra de apenas 5 dias (cfr. artigo 259.2 do RD da LPFP) somente por análise do relatório de jogo (e, possivelmente, outros elementos aí referidos) que, como se sabe, tem presunção de veracidade do seu conteúdo (cfr. artigo 13.al. f) do RD da LPFP).
7. De acordo com o artigo 65º do Regulamento de Competições da LPFP, concretamente o seu nº 2, al. i) compete aos Delegados indicados pela LPFP para cada jogo "i) elaborar e remeter à Liga um relatório circunstanciado de todas as ocorrências relativas ao normal decurso do jogo, incluindo quaisquer comportamentos dos agentes desportivos findo o jogo, na “flash interview".
8. Os Delegados da LPFP são designados para cada jogo com a clara função de relatarem todas as ocorrências relativas ao decurso do jogo, onde se incluem os comportamentos dos adeptos que possam originar responsabilidade para o respetivo clube.
9. Recorde-se, aliás, que esta forma de processo consta do Regulamento Disciplinar da LPFP, aprovado pelas próprias SAD's que disputam as competições profissionais em Portugal, entre elas a ora Recorrente. O RD da LPFP é aprovado em Assembleia Geral da LPFP, de que faz parte a Recorrente, assim como todos os outros clubes que integram as ligas profissionais. Em concreto, a Recorrente não se manifestou contra a aprovação das normas pelas quais foi punida em sede de Assembleia Geral tendo, pelo contrário, aprovado as mesmas decidindo conformar-se com elas.
10. Entende a Recorrente que cabia ao Conselho de Disciplina provar (adicionalmente ao que consta do Relatório de Jogo) que a Recorrente violou deveres de formação, tendo de fazer prova de que houve uma conduta omissiva. Isto é, entende que cabia ao Conselho de Disciplina fazer prova de um facto negativo.
11. Entendeu já o Supremo Tribunal Administrativo (por várias vezes, aliás) que "a acrescida dificuldade da prova de factos negativos deverá ter como corolário, por força do princípio constitucional da proporcionalidade, uma menor exigência probatória por parte do aplicador do direito, dando relevo a provas menos relevantes e convincentes que as que seriam exigíveis se tal dificuldade não existisse, aplicando a máxima latina «ius quae difficilioris sunt probationis leviores probationes admittuntur»."
12. Assim, os Relatórios de Jogo, atento o seu conteúdo, são perfeitamente suficientes e adequados para sustentar a punição da Recorrente nos casos concretos. Ademais, há que ter em conta que existe uma presunção de veracidade do conteúdo de tal documento (artigo 13.9, al. f) do RD da LPFP).
13. Isto não significa que o Relatório de Jogo contenha uma verdade completamente incontestável: o que significa é que o conteúdo do Relatório, conjuntamente com a apreciação do julgador por via
14. das regras da experiência comum, são prova suficiente para que o Conselho de Disciplina forme uma convicção acima de qualquer dúvida de que a Recorrente incumpriu os seus deveres.
15. Para abalar essa convicção, cabia ao clube apresentar contraprova. Essa é uma regra absolutamente clara no nosso ordenamento jurídico, prevista desde logo no artigo 346.2 do Código Civil.
16. A Recorrente não tinha que fazer prova absoluta da não verificação dos pressupostos legalmente exigidos, bastando-lhe efetuar a contraprova, fundada num mero juízo de probabilidades. É que, ao contrário do que afirma, em sede sancionatória o "arguido" não pode simplesmente remeter- se ao silêncio, aguardando, sem mais, o desenrolar do procedimento cabendo-lhe, pelo menos, colocar uma dúvida na mente do julgador correndo o risco de, não o fazendo, ser punido se as provas reunidas forem todas no mesmo sentido.
17. Do lado do Conselho de Disciplina, todos os elementos de prova carreados para os autos iam no mesmo sentido dos Relatórios de Ocorrências pelo que dúvidas não subsistiam (nem subsistem) de que a responsabilidade que lhe foi assacada pudesse ser de outra entidade que não da Recorrente. Isto mesmo entendeu, e bem, o Tribunal a quo.
18. A documentação junta aos autos foi analisada criticamente, tanto pelo Conselho de Disciplina como pelo Tribunal Arbitral, à luz da experiência comum e segundo juízos de normalidade e razoabilidade, designadamente no que se refere à conclusão de que não tomou quaisquer medidas que viessem a impedir as ocorrências descritas e praticadas pelos adeptos afetos ao F…….
19. De modo a colocar em causa a veracidade do conteúdo dos Relatórios, cabia à Recorrente demonstrar, pelo menos, que cumpriu com todos os deveres que sobre si impendem, designadamente em sede de Recurso Hierárquico Impróprio apresentado ou quanto muito em sede de ação arbitral. Mas a Recorrente nada fez, nada demonstrou, nada alegou, em nenhuma sede.
20. Do conteúdo dos Relatórios de Jogo elaborado pelos Delegados da Liga, é possível extrair diretamente duas conclusões: (i) que o Futebol Clube………….. incumpriu com os seus deveres, senão não tinham os seus adeptos perpetrado condutas ilícitas (violação do dever de formação); (ii) que os adeptos que levaram a cabo tais comportamentos eram apoiantes do Futebol Clube do
21. …………, o que se depreendeu por manifestações externas dos mesmos (única forma dos Delegados identificarem os espectadores, para além da bancada).
22. Tendo em consideração jurisprudência do CAS/TAS e de Órgãos de recurso internos da UEFA citada, bem como o facto de que os Relatórios de jogo são absolutamente peremptórios a referir que os comportamentos descritos foram perpetrados por adeptos da aqui Recorrente, e que o Relatório de Jogo tem uma força probatória fortíssima em sede de procedimento disciplinar, cabia à Recorrente fazer prova que contrariasse aquela que consta dos autos e que leva à conclusão de que as condutas ilícitas foram feitas por espectadores seus adeptos ou simpatizantes.
23. Ainda que se entenda - o que não se concede - que o Conselho de Disciplina não tinha elementos suficientes de prova para punir a Recorrente, a verdade é que o facto (alegada e eventualmente) desconhecido - a prática de condutas ilícitas por parte de adeptos da Recorrente e a violação dos respetivos deveres - foi retirado de outros factos conhecidos.
24. Refira-se, aliás, que este tipo de presunção é perfeitamente admissível nesta sede e não briga com o princípio da presunção de inocência, ao contrário do que refere a Recorrente, de acordo com jurisprudência quer dos tribunais comuns quer dos tribunais administrativos.
25. É absolutamente líquido que segundo as normas circunstâncias práticas da vida e para além de uma dúvida razoável foram adeptos do F… a perpetrar as condutas descritas e que a Recorrente era a entidade responsável pela revista de adeptos, impondo a necessária segurança no estádio; donde resulta, sem margem para dúvidas, que a Recorrente incumpriu com os seus deveres e deve ser responsabilizada.
26. Há ainda que notar que o próprio Tribunal Arbitral do Desporto, por várias outras ocasiões, já se pronunciou em sentido diverso ao entendimento sufragado pela Recorrente.
27. Também não merece qualquer censura o valor atribuído à causa porquanto a Recorrente tem um interesse que vai muito para além da mera revogação da decisão disciplinar, tanto que invoca a inconstitucionalidade das normas aplicadas.
28. O TAD apenas poderia alterar a sanção aplicada pelo Conselho de Disciplina da FPF se se demonstrasse a ocorrência de uma ilegalidade manifesta e grosseira - limites legais à discricionariedade da Administração Pública, neste caso, limite à atuação do Conselho de Disciplina da FPF.
29. Assim, não existindo nenhum vício que possa ser imputado ao acórdão do Conselho de Disciplina que levasse à aplicação da sanção da anulabilidade por parte deste Tribunal Arbitral, andou bem o Colégio de Árbitros ao decidir manter a condenação da Recorrente pela infração p. p. pelo artigo 187º do RD da LPFP.

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Substituídos os vistos legais pela entrega das competentes cópias aos Exmos Juízes Desembargadores Adjuntos, vem para decisão em conferência.

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Pelo Tribunal Arbitral foi julgada provada a seguinte factualidade:

A. Ao minuto 7, da lª parte, adeptos afectos ao FC ………. - SAD, aquando do golo do F…., localizados na Bancada Nascente Superior, Sector A9 e AIO, rebentaram 2 petardos, deflagraram 2 flash light e uma tocha de fumo, sem provocar qualquer dano, num total de 5 engenhos pirotécnicos.
B. Ao minuto 26 da 2ª parte, os adeptos do SC ………., situados na bancada Nascente inferior, sector A8 entoaram o seguinte cântico “P……… é merda, P……… é merda... filhos da puta, filhos da puta”.
C. Aos 80 minutos os adeptos do FC ……… situados na bancada nascente superior sector A9 e A10 entoaram durante, aproximadamente 7 minutos o seguinte cântico “B……. é merda.
D. Aos minutos 84, 85 e 88 de jogo, os adeptos do FC …….., situados na bancada nascente superior, sector A9 e A10, rebentaram 3 flash lights, sem provocarem qualquer dano, num total de 3 engenhos pirotécnicos.
E. Os mesmos adeptos, aos 93 minutos de jogo, rebentaram 1 petardo.
F. Assim os adeptos, do FC ………, no total, durante o jogo em causa, procederam à deflagração de 9 engenhos pirotécnicos.




DO DIREITO


Por acórdão de 07.11.2018 o TAD julgou improcedente o recurso interposto pela ora Recorrente Futebol Clube ………….. - Futebol SAD da decisão de 26.SET.2017 proferida em via de recurso hierárquico impróprio nº 08-17/18 pelo Pleno do Conselho de Disciplina – Secção Profissional da Federação Portuguesa de Futebol, ora Recorrida (artº 287º nº 1 (1ª parte) RD–LPFP/2016).
Na decisão de 26.SET.2017 a ora Recorrente Futebol Clube ……….. - Futebol SAD foi condenada na pena de multa no valor de €2.870,00, pelo cometimento pelos adeptos da Recorrente de infracções disciplinares p.p. no artº 187º nº 1 b) [comportamento incorrecto do público] do RD–LPFP/2016, regulamento disciplinar emitido em via da competência outorgada pelo artº 29º nº 2 DL 248-B/2008, 31.12.


a. ilícito disciplinar;

Diz-nos Eduardo Correia: “(..) na medida em que as penas disciplinares são um mal infligido a um agente, devem (..) em tudo quanto não esteja expressamente regulado, aplicar-se os princípios que garantem e defendem o indivíduo contra todo o poder punitivo (..)”(1).
Por seu turno, José Beleza dos Santos sustenta: “(..) As sanções disciplinares têm fins idênticos aos das penas crimes; são, por isso, verdadeiras penas: como elas reprovam e procuram prevenir faltas idênticas por parte de quem quer que seja obrigado a deveres disciplinares e essencialmente daquele que os violou. (..) aquelas sanções têm essencialmente em vista o interesse da função que defendem, e a sua actuação repressiva e preventiva é condicionada pelo interesse dessa função, por aquilo que mais convenha ao seu desempenho actual ou futuro (..) No que não seja essencialmente previsto na legislação disciplinar ou desviado pela estrutura específica do respectivo ilícito, há que aplicar a este e seus efeitos as normas do direito criminal comum. (..)”(2).
Do que vem dito decorre que, semelhantemente ao que acontece em direito penal, o quid de ilícito traduz o comportamento não querido pelo ordenamento jurídico, por reporte ao catálogo de deveres gerais como era o caso do artº 3º nºs. 3 e 4 alíneas a) a h) do DL 24/84 de 16.01 do Estatuto Disciplinar dos Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local (=ED) e dos nºs. 2 a 11 do artº 3º do Estatuto Disciplinar aprovado pela Lei nº 59/2008 de 09.09, do artº 73º nº 2 als. a) a j) da Lei nº 35/2014 de 20.06 e, presentemente, os deveres gerais que constituem infracção disciplinar nos termos do artº 183º por definição do artº 73º da Lei 35/2014, 20.07 (Lei Geral do Trabalho em Funções Pública - LTFP), enunciação que não segue a técnica da tipificação do comportamento não querido pela norma, técnica própria do ilícito penal, cfr. artº 1º Código Penal.
O que não significa que o princípio da legalidade e consequente função garantística de direitos subjectivos públicos esteja arredada do direito sancionatório disciplinar.(3).

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O ordenamento punitivo disciplinar desconhece o regime da tipicidade, antes opera mediante o elenco de substantivos identificativos das qualidades abstractas requeridas no desenvolvimento da relação jurídica funcional, designadamente, de emprego público que, no que respeita à LTFP ao ED são dez, explicitados por recurso à técnica legislativa da descrição de conteúdo de cada um dos deveres do catálogo e respectiva enumeração de parâmetros comportamentais esperados, no sentido permissivo e proibitivo.
Todo este labor legislativo é traduzido mediante a descrição normativa do desvalor de acção e de resultado no domínio do ilícito disciplinar por adopção de conceitos gerais e indeterminados, jurídicamente expressivos do conteúdo da relação funcional em causa, v.g.laboral (e, portanto, vinculativos).
O que outorga à autoridade administrativa no exercício da competência disciplinar, uma vez definidos quais os factos provados, uma margem de livre apreciação, subsunção e decisão, operações todas elas jurisdicionalmente sindicáveis no que concerne à definição do efeito jurídico no caso concreto (validade do acto), v.g. quanto à existência material dos pressupostos de facto(4).

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O que significa que em sede disciplinar, o facto não assume a qualidade jurídica de facto típico tal como em sede criminal, porque não existe qua tale na descrição material da hipótese normativa, na medida em que esta recorre a conceitos substantivos das qualidades abstractas, em ordem a identificar e definir o comportamento não querido pela norma, mas é evidente que tem de existir factualidade ilícita e culposa subsumível a tais conceitos.
A operação de subsunção da factualidade provada ao conceito identificado pelos substantivos que qualificam os deveres gerais, em ordem a aplicar ao caso concreto a consequência jurídica definida pela norma, passa, assim, por dois planos:
· primeiro: pela interpretação e definição de conteúdo dos conceitos indeterminados que consubstanciam os deveres gerais;
· segundo: pelo juízo de integração ou inclusão dos factos apurados na previsão do normativo aplicável e consequente concretização dos referidos conceitos normativos.
Das transcrições doutrinais se retira que o direito sancionatório disciplinar pune os comportamentos que, consubstanciados pela factualidade apurada e definida no concreto procedimento disciplinar, em juízo subsuntivo não integrem as qualidades abstractamente descritas nos conceitos normativos dos deveres gerais elencados e acima citados.
Feito o enquadramento jurídico que compete em matéria de ilícito disciplinar, vejamos agora o enquadramento jurídico que compete em matéria do presente recurso.


b. conceito de infracção disciplinar - artºs. 17º, 182º e 187º Reg. Disciplinar da LPFP/2017 - artº 35º do Reg. Competições da LPFP/2017;

O conceito normativo de infracção disciplinar adoptado no artº 17º do RD –LPFP/2016 é o seguinte:
Artigo 17º
Conceito de infracção disciplinar
1. Considera-se infracção disciplinar o facto voluntário, por acção ou omissão, e ainda que meramente culposo, que viole os deveres gerais ou especiais previstos nos regulamentos desportivos e demais legislação aplicável.
2. A responsabilidade disciplinar objectiva é imputável nos casos expressamente previstos.

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O artº 187º nº 1 b) do RD–LPFP/2016 pelos quais a ora Recorrente Futebol Clube ……… - Futebol SAD foi condenada tem a seguinte redacção:

Artigo 187º
Comportamento incorreto do público
1. Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, o clube cujos sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina é punido nos seguintes termos:
a) o simples comportamento social ou desportivamente incorreto, com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 5 UC e o máximo de 15 UC;
b) o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas, é punido com a sanção de multa a fixar entre o mínimo de 15 UC e o 66 máximo de 75 UC.
2. Na determinação da medida da pena prevista na alínea a) do nº 1 do presente artigo não será considerada a circunstância agravante de reincidência prevista nos artigos 52.° e 53.°, n.° 1 alínea a) do presente regulamento.
3. Se do cumprimento social ou desportivamente incorreto resultarem danos patrimoniais cuja reparação seja assumida pelo clube responsável e aceite pelo clube lesado, através de acordo dado a conhecer ao delegado da Liga, não há lugar à aplicação da sanção prevista no n.° 1.

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Conforme Regulamento das Competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional/2016 adoptado ao abrigo do artº 29º nº 1 do Regime Jurídico das Federações Desportivas aprovado pelo DL 248-B/2008, 31.12, no tocante à segurança nos estádios de futebol os clubes desportivos estão sujeitos à observância dos seguintes deveres:

Artigo 35.º
Medidas preventivas para evitar manifestações de violência e incentivo ao fair-play

1. Em matéria de prevenção de violência e promoção do fair-play, são deveres dos clubes:
a) assumir a responsabilidade pela segurança do recinto desportivo e anéis de segurança;
b) incentivar o espírito ético e desportivo dos seus adeptos, especialmente junto dos grupos organizados;
c) aplicar medidas sancionatórias aos seus associados envolvidos em perturbações da ordem pública, impedindo o acesso aos recintos desportivos nos termos e condições do respetivo regulamento ou promovendo a sua expulsão do recinto;
d) proteger os indivíduos que sejam alvo de ameaças e os bens e pertences destes, designadamente facilitando a respetiva saída de forma segura do complexo desportivo, ou a sua transferência para setor seguro, em coordenação com os elementos da força de segurança;
e) designar o coordenador de segurança;
f) garantir que são cumpridas todas as regras e condições de acesso e de permanência de espectadores no recinto desportivo;
g) relativamente a quaisquer indivíduos aos quais tenha sido aplicada medida de interdição de acesso a recintos desportivos, pena de privação do direito de entrar em recintos desportivos ou sanção acessória de interdição de acesso a recintos desportivos:
i. impedir o acesso ao recinto desportivo;
ii. impedir a obtenção de quaisquer benefícios concedidos pelo clube, associação ou sociedade desportiva, no âmbito das previsões destinadas aos grupos organizados de adeptos ou a título individual.
h) usar de correção, moderação e respeito relativamente a outros promotores de espetáculos desportivos e organizadores de competições desportivas, associações, clubes, sociedades desportivas, agentes desportivos, adeptos, autoridades públicas, elementos da comunicação social e outros intervenientes no espetáculo desportivo;
i) não proferir ou veicular declarações públicas que sejam suscetíveis de incitar ou defender a violência, o racismo, a xenofobia, a intolerância ou o ódio, nem tão pouco adotar comportamentos desta natureza;
j) zelar por que dirigentes, equipa técnica, jogadores, pessoal de apoio, ou representantes dos clubes ajam de acordo com os preceitos das alíneas h) e i);
k) não apoiar, sob qualquer forma, grupos organizados de adeptos, em violação dos princípios e regras definidos na Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, com a redação dada pela Lei n.º 52/2013, de 25 de julho;
l) zelar por que os grupos organizados de adeptos apoiados pelo clube participem do espectáculo desportivo sem recurso a práticas violentas, racistas, xenófobas, ofensivas ou que perturbem a ordem pública ou o curso normal, pacífico e seguro da competição e de toda a sua envolvência, nomeadamente, no curso das suas deslocações e nas manifestações que realizem dentro e fora de recintos;
m) manter uma lista actualizada dos adeptos de todos os grupos organizados apoiados pelo clube fornecendo-a às autoridades judiciárias, administrativas e policiais competentes para a fiscalização do disposto na presente lei;
n) a requisição de policiamento e pagamento dos respetivos encargos, nos termos previstos no decreto-lei n.º 216/2012, de 9 de outubro;
o) desenvolver acções de prevenção socioeducativa, nos termos da lei;
p) designar e comunicar ao IPDJ a lista de coordenadores de segurança, para efeitos da lei n.º 39/2009, de 30 de julho, com a redação dada pela lei n.º 52/2013, de 25 de julho;
q) corrigir e/ou implementar as medidas de segurança recomendadas pelas entidades policiais competentes;
r) manter um registo sistematizado e actualizado dos filiados no grupo organizado de adeptos do respetivo clube, de acordo com o designado na lei, e remetê-lo trimestralmente para o IPDJ;
s) reservar, nos recintos desportivos que lhe são afectos, uma ou mais áreas específicas para os filiados dos grupos organizados de adeptos;
t) instalar e manter em funcionamento um sistema de videovigilância, de acordo com o preceituado nas leis aplicáveis;
u) dispor, nos recintos desportivos que lhe são afetos, de acessos especiais para pessoas com deficiência ou incapacidades;

2. Para efeito do disposto na alínea f) do número anterior, e sem prejuízo do estabelecido no artigo 24.º da lei n.º 39/2009, de 30 de julho e no Regulamento de prevenção da violência constante do Anexo VI, são considerados proibidos todos os objectos, substâncias e materiais susceptíveis de possibilitar actos de violência, designadamente:
a) bolas, chapéus-de-chuva, capacetes;
b) animais, salvo cães guia ou cães polícia quando permitido o seu acesso nos termos da lei;
c) armas de qualquer tipo, munições ou seus componentes, bem como quaisquer objectos contundentes, nomeadamente facas, dardos, ferramentas ou seringas;
d) projécteis de qualquer tipo tais como cavilhas, pedaços de madeira ou metal, pedras, vidro, latas, garrafas, canecas, embalagens, caixas ou quaisquer recipientes que possam ser arremessados e causar lesões;
e) objectos volumosos como escadas de mão, bancos ou cadeiras;
f) substâncias corrosivas ou inflamáveis, explosivas ou pirotécnicas, líquidos e gases, fogo-de-artifício, foguetes luminosos (very-lights), tintas, bombas de fumo ou outros materiais pirotécnicos;
g) latas de gases aerossóis, substâncias corrosivas ou inflamáveis, tintas ou recipientes que contenham substâncias prejudiciais à saúde ou que sejam altamente inflamáveis;
h) apontadores laser ou outros dispositivos luminosos que sejam capazes de provocar danos físicos ou perturbar a concentração ou o desempenho dos atletas e demais agentes desportivos.

3. Os clubes, seus dirigentes, delegados, jogadores, técnicos e funcionários, bem como os árbitros e demais agentes desportivos devem abster-se de, antes, durante e após a realização dos jogos, por intermédio dos órgãos da comunicação social ou por outro meio, proferir declarações que incitem à prática de violência.
4.. Os dirigentes e funcionários das sociedades desportivas e dos clubes fundadores não podem participar, na qualidade de intervenientes regulares, em programas televisivos que se dediquem exclusiva, ou principalmente, à análise e comentário do futebol profissional.
5. Quando os dirigentes e funcionários das sociedades desportivas e dos clubes fundadores participem, na qualidade de convidados, nos programas referidos no número anterior, apenas podem analisar e comentar aspectos positivos do jogo e das competições, abstendo-se de analisar e de comentar decisões da equipa de arbitragem, comportamentos de jogadores, treinadores, outros agentes desportivos ou do público, quando esteja em causa algum aspecto susceptível de causar um impacto negativo na imagem e percepção pública de um jogo em particular, das competições profissionais ou da Liga ou dos seus associados.
6. Para além do disposto nos números anteriores, os clubes visitados, ou considerados como tal, devem proceder à colocação, em todas as entradas do estádio, de um mapa-aviso, de dimensões adequadas, com a descrição de todos os objectos ou comportamentos proibidos no recinto ou complexo desportivo, nomeadamente invasões do terreno de jogo, arremesso de objectos, uso de linguagem ou cânticos injuriosos ou que incitem à violência, racismo ou xenofobia, bem como a introdução e ingestão de bebidas alcoólicas, estupefacientes ou material produtor de fogo-de artifício ou objectos similares, e quaisquer outros susceptíveis de possibilitar a prática de actos de violência.

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Feitas as transcrições normativas, voltemos ao caso concreto.


c. imputação e punição do clube a título de autoria – execução material do ilícito por sócio ou simpatizante do clube;

Atenta a conformação substantiva do artº 187º nº 1 b) [comportamento incorrecto do público] do RD–LPFP/2016, interessa aqui destacar a circunstância de o efeito jurídico punitivo do poder disciplinar recair sobre o clube desportivo - no caso, sobre a pessoa colectiva empresarial na medida em que se trata de uma SAD.
Efectivamente, por disposição expressa do artº 35º do Regulamento das Competições organizadas pela LPFP/2016, a titularidade do dever, colocada na esfera jurídica do clube desportivo sob a forma especial de dever jurídico de garante (em que o omittere é equiparado ao facere - artº 10º nºs 1 e 2 CP), constitui o fundamento da responsabilidade disciplinar do clube por delito de omissão imprópria do dever de evitar o resultado jurídico desvalioso tipificado nos artº 187º do RD–LPFP/2016 no contexto do “terreno de jogo” e “dentro dos limites do recinto desportivo”.
Ou seja, a imputação ao clube do delito omissivo impróprio por violação do dever jurídico de garante plasmado no artº 35º do Regulamento das Competições da Liga está associada à imputação e punição desse mesmo clube pelos ilícitos disciplinares comissivos (por acção) tipificados no artº 187º nº 1 b) [comportamento incorrecto do público] do Regulamento Disciplinar da Liga (RD–LPFP/2016), na exacta medida em que a consumação requer a produção de um resultado em sentido material (proibido), concretizado pelo comportamento de um sócio ou simpatizante do clube.
Isto é, o dever jurídico de garante que onera a esfera jurídica do clube desportivo configura um dos pressupostos jurídicos do juízo subjectivo de imputação jurídica e punição do clube a título de autoria pelo cometimento dos ilícitos praticados pelo terceiro (o sócio ou simpatizante) nos termos do artº 187º do RD–LPFP/2016, com fundamento na violação pelo clube do dever jurídico de garante da observância dos deveres elencados no artº 35º do Regulamento das Competições da LPFP/2016.
O que significa que a entidade administrativa com poderes regulamentares – a Liga, LPFP – quis vincular a autoria pelo cometimento dos ilícitos disciplinares do artº 187º do RD–LPFP/2016 à violação pelo clube do dever jurídico de garante da observância dos deveres elencados no artº 35º do Regulamento das Competições da LPFP/2016.
Consequentemente, recai sobre a pessoa colectiva, i.e, sobre o clube desportivo, a imputação de autoria dos ilícitos descritos no artº 187º do RD–LPFP/2017 por violação dos deveres normativamente elencados no âmbito do dever jurídico de garante que incumbe ao próprio clube desportivo.
Estamos, assim, fora do paradigma clássico do direito sancionatório, seja criminal seja disciplinar, assente sobre uma construção individual tanto do lado do agente como do lado do titular do bem jurídico ofendido, isto é, utilizando a expressão cunhada por Figueiredo Dias, “Caim matou Abel”.

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Nesta construção jurídica de ilícito imputado a pessoas colectivas, que constitui uma novidade no âmbito do ilícito disciplinar mas já há muito conhecida do direito criminal e contra-ordenacional interno, v.g. do direito penal da empresa, cumpre atender a um aspecto muito específico: é que a infracção ao dever apenas se concretiza quando ocorre a materialização do comportamento não querido pela norma regulamentar que descreve o tipo de ilícito disciplinar. (5)
Materialização evidenciada por parte da pessoa singular nomeada nas normas que descrevem o comportamento proibido pelo tipo de ilícito disciplinar - no caso trazido a recurso, a pessoa singular em causa é o sócio ou simpatizante do clube, conforme determinado no artº 187º do RD–LPFP/2016.
É o sócio ou simpatizante do clube quem materializa o ilícito disciplinar imputado ao clube desportivo a título de autoria, ao realizar uma das diversas descrições materiais de acção dolosa constante do artº 187º do RD-LPFP/2016 associadas à violação do dever jurídico de garante do clube desportivo no âmbito do elenco de deveres especificados no citado artº 35º do Regulamento das Competições da LPFP/2016.

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Aplicando o que vem de ser dito ao caso concreto, a imputação de autoria do ilícito disciplinar ao clube desportivo ora Recorrente só se concretiza no momento em que
· “(..) os sócios ou simpatizantes adotem comportamento social ou desportivamente incorreto, designadamente através do arremesso de objetos para o terreno de jogo, de insultos ou de atuação da qual resultem danos patrimoniais ou pratiquem comportamentos não previstos nos artigos anteriores que perturbem ou ameacem perturbar a ordem e a disciplina (..) – artº 187º nº 1 RD –LPFP/2016
· “(..)os sócios ou simpatizantes adoptem (..) o simples comportamento social ou desportivamente incorrecto (..)” - artº 187º nº 1 a) RD–LPFP/ 2016
· “(..)os sócios ou simpatizantes adoptem (..)o comportamento não previsto nos artigos anteriores que perturbe ou ameace a ordem e a disciplina, designadamente mediante o arremesso de petardos e tochas (..)” - artº 187º nº 1 b) RD –LPFP/2016
isto é, no momento em que o sócio ou simpatizante do clube desportivo realiza uma das acções dolosas descritas na norma regulamentar, e não qualquer outra.
O que significa que o sócio ou simpatizante executor do ilícito disciplinar tem de ser uma pessoa singular devidamente identificada no processo disciplinar através da sua identidade civil para, por seu intermédio, se fazer a imputação funcional do comportamento ilícito do sócio ou simpatizante, devidamente identificado, ao clube desportivo (pessoa colectiva), pelas duas razões já expostas:
a. por um lado, a pessoa singular está ligada funcionalmente ao clube pela sua qualidade de sócio ou simpatizante
b. e, por outro, o critério da autoria do clube face aos ilícitos do artº 187º RD –LPFP/2017 repousa na titularidade dos deveres elencados no artº 35º do Regulamento das Competições organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional/2016.
Ou seja, não só é juridicamente obrigatório carrear para o processo disciplinar os meios de prova referentes aos factos que configuram o comportamento não querido pela norma (no caso, desvalor de acção e de resultado de ilícito comissivo doloso artº 187º RD–LPFP/2016) como também é obrigatório carrear o meio probatório relativo à identificação da pessoa singular que realizou a acção em contrário do dever legal (imputação subjectiva da acção ao sujeito executor) e da sua ligação funcional ao clube desportivo em função da sua qualidade de sócio ou simpatizante (imputação da autoria ao clube), nos exactos termos da norma incriminadora do clube a título de autoria, v.g. artº 187º do RD–LPFP/2016.

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Do quadro normativo que vem de ser exposto decorre, como condição necessária, a exigência de identificação processual do sócio ou simpatizante do clube, na medida em que essa identificação pessoal constitui, a par do dever de garante já referido, um dos pressupostos jurídicos do juízo subjectivo de imputação e punição do clube a título de autoria pelo cometimento dos ilícitos praticados pelo terceiro (o sócio ou simpatizante) nos termos do artº 187º do RD–LPFP/2016, com fundamento na violação pelo clube do dever de garante da observância dos deveres elencados no artº 35º do Regulamento das Competições da LPFP/2016.

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A exigência de identificação processual do sócio ou simpatizante do clube faz parte do discurso jurídico fundamentador exarado no Acórdão nº 730/95 (Guilherme da Fonseca) do Plenário do Tribunal Constitucional, tirado em 14.DEZ.1995 no processo nº 328/91.
Em análise ao regime da interdição dos recintos desportivos previsto no DL 270/89, 18.08 – regime actualmente previsto no artº 176º por referência aos artºs. 173º/174º do Regulamento Disciplinar das Competições da LPFP/2017 - o citado Acórdão nº 730/95 do TC destaca a identificação civil do sócio ou simpatizante que executa os actos materiais descritos nas normas tipificadoras do ilícito disciplinar, nos segmentos que se transcrevem, sendo o negrito e sublinhados nossos:
“(..) convém reter que as sanções referidas nos artigos 3º a 6º do Decreto-Lei nº 270/89 são aplicadas aos clubes desportivos, por condutas ilícitas e culposas das respectivas claques desportivas (assim chamadas e que são os sócios, adeptos ou simpatizantes, como tal reconhecidos) condutas que se imputam aos clubes, em virtude de sobre eles impenderem deveres de formação e de vigilância que a lei lhes impõe e que ele não cumpriram de forma capaz. (..)
(..) Não é, pois, em suma, uma ideia de responsabilidade objectiva que vinga in casu, mas de responsabilidade por violação de deveres. Afastada desde logo aquela responsabilidade objectiva pelo facto de o artigo 3º exigir, para aplicação da sanção de interdição dos recintos desportivos, que as faltas praticadas pelos espectadores nos recintos desportivos possam ser imputadas aos clubes.
E no mesmo sentido milita a referência que nesse mesmo preceito (7º) e no artº 6º (nºs 1 e 2) é feita ao clube responsável (pelos distúrbios).
Por fim o processo disciplinar que se manda instaurar (artigo 4º) servirá precisamente para se averiguar todos os elementos da infracção, sendo que, por essa via, a prova de primeira aparência pode vir a ser destruída pelo clube responsável (por exemplo, através da prova de que o espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clube). (..)”

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Evidentemente que o “reconhecimento” do espectador no quadro dos “sócios, adeptos ou simpatizantes” do clube, bem como a prova de que o “espectador em causa não é sócio, simpatizante ou adepto do clubetem implícito o pressuposto de que não se trata de alguém desconhecido, pelo contrário, constitui um requisito essencial do juízo de imputação do ilícito disciplinar ao clube desportivo (pessoa colectiva), que no processo disciplinar haja notícia e resulte provada a identidade de quem se trata através da identificação civil da pessoa física.

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Cabe, pois, importar para o juízo sancionatório no plano disciplinar os modelos de imputação do facto criminal à pessoa colectiva. (6)
Para este efeito seguindo, com as devidas adaptações, o direito objectivo nesta matéria, de acordo com o regime subsidiário em matéria de direito adjectivo por disposição expressa do artº 16º nº 1 do RD–LPFP/2016, das disposições do regime disciplinar dos trabalhadores da Administração Pública consagrado na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, Lei 35/2014, 20.06 (LTFP), conjugada com o disposto, em matéria sancionatória disciplinar, no artº 201º nº 2, LTFP que procede ao reenvio para os princípios de processo penal.
O que significa que onde forem omissos o processo comum ou os processos especiais do presente do RD–LPFP/2016 rege o disposto no Código de Processo Penal.


d. presunções relativas – excepções ao princípio in dubio pro reo;

Por força do artº 32º nº 2 e 10 da Constituição, no direito sancionatório, seja criminal seja disciplinar, não se presume a autoria do tipo de ilícito, o que se presume, a partir de uma base fáctica provada (base da presunção), são comportamentos expressos em factos susceptíveis de imputação subjectiva ou objectiva.
Dito de outro modo, não é juridicamente admissível presumir a qualidade de sócio ou simpatizante do clube relativamente à pessoa singular desconhecida e, como tal, não existente no processo, que executa os actos materiais tipificados no artº 187º do RD–LPFP/2016, que é o sócio ou simpatizante do clube, e que assim concretiza a infracção, nos termos já expostos, materializando o comportamento proibido pelo tipo de ilícito disciplinar.
Se não se sabe quem é a pessoa singular, porque não está identificada no processo disciplinar, não é possível fazer derivar por presunção e dar como provado que a pessoa em causa é sócia ou simpatizante do clube para efeitos de imputação da autoria ao clube desportivo.

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Vejamos o regime da presunção em sede sancionatória.

No campo das presunções judiciais em matéria sancionatória maxime de natureza criminal, importa atender às considerações exaradas no Acórdão do STJ de 19.06.2019 tirado no procº 881/16.6 JAPRT-A.P1.S1 (Pires da Graça):
“(..) O artigo 127º do CPP estabelece três tipos de critérios para avaliação da prova, com características e natureza completamente diferente: uma avaliação da prova inteiramente objectiva quando a lei assim o determinar, (o caso dos documentos autênticos), outra, também objectiva, quando for imposta pelas regras da experiência, finalmente umas outra, eminentemente subjectiva, que resulta da livre convicção do julgador.
Porém não há que confundir o grau de discricionariedade implícito na formação do juízo e valoração do julgador com o mero arbítrio: a livre ou íntima convicção do juiz não poderá ser nunca puramente subjectiva ou emotiva, e, por isso, há-de ser fundamentada, racionalmente objectivada e logicamente motivada, de forma a susceptibilizar controlo.
A livre apreciação da prova liberta do rígido sistema da prova tarifada, ou prova legal, realiza-se obedecendo a critérios lógicos e objectivos, determinando uma convicção racional e, por isso objectivável e explicável. (v. vg acs do STJ de: 4 de Novembro de 1998, 21 de Janeiro de 1999 e 18 de Janeiro de 2001, respectivamente na CJ, Acs do STJ VI, tomo 3, 201; SAASTJ nº 27, 38; nº 47, 88.
Costuma distinguir-se entre prova directa e prova indiciária, referindo-se aquela ao thema probandum, aos factos a provar, e respeitando a prova indirecta ou indiciária a factos diversos (instrumentais) do tema probatório, mas que possibilitam, pelo uso das regras da experiência, extrair ilações no domínio do thema probandum, de convicção racional e objectivável do julgador.
O princípio da legalidade da prova perfilhado pelo artº 125º do CPP considera “admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.” (..)
Nas provas admissíveis são incluídas as presunções judiciais (ou seja, «as ilações que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido»: art. 349.º do CC).
Daí que a circunstância de a presunção judicial não constituir «prova directa» não contraria o princípio da livre apreciação da prova, que permite ao julgador apreciar a «prova» (qualquer que ela seja, desde que não proibida por lei) segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art. 127.º do CPP). Não está, por isso, vedado às instâncias, ante factos conhecidos, a extracção – por presunção judicial – de ilações capazes de «firmar um facto desconhecido. (..)”.

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Feito o devido enquadramento, voltemos ao caso concreto.

Como já referido, por disposição expressa do artº 16º nº 1 do Regulamento Disciplinar das Competições da LPFP/2016 em matéria de direito adjectivo, nomeadamente sobre meios de prova admissíveis no processo disciplinar, regem subsidiariamente as disposições do regime disciplinar dos trabalhadores da Administração Pública consagrado na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, Lei 35/2014, 20.06 (LTFP).
Por sua vez, nesta matéria sancionatória disciplinar o artº 201º nº 2, LTFP procede ao reenvio para os princípios de processo penal, o que significa que onde forem omissos o processo comum ou os processos especiais do presente Regulamento Disciplinar das Competições da LPFP/2017 rege o disposto no Código de Processo Penal, nomeadamente em sede de diligências indispensáveis à instrução do processo.
Em juízo de indispensabilidade impõem-se as diligências instrutórias que possibilitem o exercício do contraditório por parte do clube desportivo no tocante à imputação de autoria por violação do dever geral de garante relativamente aos deveres consagrados no artº 35º do Regulamento das Competições da LPFP/2016 em razão do cometimento pelo sócio ou simpatizante da matéria delitual descrita na norma sancionatória do artº 187º do RD–LPFP/2016.
De modo que em matéria de presunções cabe observar o regime consagrado no Código de Processo Penal.

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Diz-nos a doutrina da especialidade neste ramo do Direito que,
“(..) As presunções constituem, em processo penal, excepções ao princípio in dubio pro reo. Como excepções devem ser interpretadas nos precisos termos textuais da lei, não podendo ser aplicadas analogicamente. (..)
As presunções legais relativas fazem inverter o ónus da prova. Em obediência à presunção, o julgador terá de dar o facto como provado, no caso de incerteza. “A presunção legal relativa tem natureza processual e actua, precisamente, quando, incerto o facto probando (mas somente quando incerto) o legislador permite, perante essa incerteza, a equiparação de um facto indiciante a um facto presumido incerto, da prova do primeiro fazendo derivar então as mesmas consequências que teriam lugar com a prova do segundo.
E assim, as presunções simples ou naturais são meios lógicos de apreciação das provas, são meios de convicção. Cedem perante a simples dúvida sobre a exactidão no caso concreto” (Cavaleiro de Ferreira, Curso, II) (..)” (7)
Exactamente por isso, diz-se no Acórdão do STJ de 16.05.2019 tirado no procº nº 27908/16.6 T8LSB.L1.S1 (Rosa Tching) que,
“(..) o erro na livre apreciação das provas, salvo quando, nos termos do artigo 674.º, n.º 3, do CPC, a utilização desse critério de valoração ofenda uma disposição legal expressa que exija espécie de prova diferente para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova, ou ainda quando aquela apreciação ostente juízo de presunção judicial revelador de manifesta ilogicidade, ofensivo de qualquer norma legal ou extraído a partir de factos não provados (..) [configuram] verdadeiros erros de direito (..)”.

A nosso ver, é o que ocorre nas circunstâncias do caso trazido a recurso.

Não surte dúvidas que o segmento normativo do artº 182º nº 1 RD–LPFP/2016sob a forma colectiva ou organizada” se refere às claques dos clubes do futebol.
Todavia, não se suscitam dúvidas quanto a que nenhum dos citados normativos (182º/187º) estabelece expressamente a presunção de que a execução dos factos ilícitos descritos tem como efeito jurídico automático a operatividade da imputação da autoria ao clube, desde que tais factos sejam cometidos a partir do ajuntamento de pessoas das claques dos clubes, estilo “no name boys”, “juventude leoninaet altri, acantonadas num determinado espaço do estádio desportivo aquando da realização do jogo.
Uma interpretação nestes termos, de considerar a imputação da autoria ao clube e consequente punição um efeito automático decorrente da materialização dos eventos ilícitos constantes da previsão dos citados normativos (182º/187º) do RD–LPFP/2016, equivaleria a assumir que a entidade regulamentar consagrou uma assunção automática da posição de garante do clube desportivo e, consequentemente, de autoria,
Consequentemente, equivaleria a atribuir a autoria por responsabilidade disciplinar objectiva do clube por decorrência do cometimento dos factos ilícitos descritos nas normas sancionatória, factos oriundos do ajuntamento de pessoas da claque desportiva em tumulto, presumindo que todas aquelas pessoas têm a qualidade funcional (de ligação ao clube) exigida pela norma, isto é, de “sócios ou simpatizantes”.

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Todavia, como já referido, a responsabilidade objectiva mostra-se afastada pela circunstância de ambos os normativos em causa (182º/187º) do RD–LPFP/2017) exigirem para efeito de imputação aos clubes e punição destes por factos ocorridos nos recintos desportivos, que as faltas sejam praticadas por espectadores sócios ou simpatizantes do clube.
Por esta razão, porque as normas exigem a imputação da qualidade pessoal de sócio ou simpatizante ao clube especificamente objecto da punição, do ponto de vista jurídico não é admissível, presumir a qualidade de sócio ou simpatizante relativamente a pessoa que nem se sabe quem é por não estar identificada no processo disciplinar, para efeitos de operatividade da ligação funcional do (desconhecido) sócio ou simpatizante ao clube desportivo nos termos consignados nos artºs. 182º/187º do RD–LPFP/2016.
Efectivamente, a interpretação dos artºs. 182º/187º do RD–LPFP/2016 no sentido
(i) da imputação de autoria ao clube por efeito automático da concretização dos ilícitos disciplinares comissivos descritos nos citados artigos (182º/187º), cometidos por pessoa física cuja identidade é desconhecida,
(ii) presumindo a qualidade funcional de “sócio ou simpatizante” (ligação ao clube) exigida pela norma (182º/187º) relativamente a essa pessoa física de identidade desconhecida,
(iii) associando à concretização dos ilícitos (182º/187º) o efeito automático de imputação ao clube do delito omissivo impróprio de violação do dever jurídico de garante (artº 35º do Regulamento das Competições da LPFP/2016),
configura-se inconstitucional, por violação do princípio da presunção de inocência em sede de processo disciplinar, à luz do regime constante do artº 32º nºs. 2 e 10 CRP.

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No mesmo sentido o acórdão deste TCAS tirado em 09.MAI.2019 no rec. nº 42/19.2BCLSB no segmento do discurso jurídico fundamentador que se transcreve:
“(..)Na verdade, também perfilhamos o entendimento expresso pela recorrente e já supra afirmado, de que nos relatórios de jogo, prova documental nos autos que beneficia da presunção de verdade, não se descreve um único facto relativamente ao que fez ou não fez o clube, por referência a concretos deveres legais ou regulamentares, nem tão-pouco se descreve por que forma essa actuação do clube facilitou ou permitiu o comportamento que é censurado; sendo a actuação culposa um dos "demais elementos das infracções" que se impunha à FPF, aqui recorrida, provar, sempre se mostrava prejudicada a condenação do Clube por falta de preenchimento de pressuposto legal exigido pelos arts. 186º 2 e 187º l a) e h) do RD.
Daí, pois, se concorde que é inconstitucional, por violação do princípio jurídico- constitucional da culpa (art. 2º da CRP) e do princípio da presunção de inocência, presunção de que o arguido beneficia em processo disciplinar, inerente ao seu direito de defesa (arts. 32º 2 e 10 da CRP), a interpretação dos artºs 13º f) e 186º 2 e 187º 1 a) e h) do RDLPFP no sentido de que a indicação, com base em relatórios da equipa de arbitragem ou do delegado da Liga, de que sócios ou simpatizantes de um clube praticaram condutas social ou desportivamente incorrectas é suficiente para, sem mais, dar como provado que essas condutas se ficaram a dever à culposa abstenção de medidas de prevenção de comportamentos dessa natureza por parte desse clube, o que desde já se argui, para todos os efeitos e consequências legais: e inconstitucional, porque, materialmente, na prática, significa impor ao clube uma responsabilidade objectiva por facto de outrem (2º e 30º 3 da CRP). (..)”.

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Pelos fundamentos expostos conclui-se que a decisão de 26.SET.2017 proferida em via de recurso hierárquico impróprio nº 08-17/18 pelo Pleno do Conselho de Disciplina – Secção Profissional da Federação Portuguesa de Futebol se mostra inquinada de vício de violação de lei por erro de facto e de direito sobre os pressupostos, passível de anulação nos termos do artº 163º nº 1 CPA.

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Tudo visto, não se acompanha o entendimento sustentado no acórdão do TAD de 07.11.2018, ora sob recurso, de considerar “(..) que existe responsabilidade da Demandante por violação de deveres a si adstritos (..)”, julgando-se procedente a questão trazida a recurso nos itens 17 a 22 das conclusões e prejudicadas todas as demais, v.g. insuficiência de probatório, suscitadas no elenco de conclusões dos itens 1 a 16 pela solução dada à antecedente.


e. sanção disciplinar – valor da causa custas processuais;

No item 23 das conclusões vem assacado o acórdão do TAD de incorrer em erro de julgamento por modificação do valor da causa em violação do regime estabelecido no artº 33º b) CPTA, no que assiste razão à Recorrente na medida em o objecto da causa consubstancia a impugnação da decisão sancionatória de aplicação da pena de multa; tal significa que compete aplicar o regime específico referente ao critério do conteúdo económico do acto, a saber, o montante da sanção de carácter pecuniário que foi aplicada, nos termos do artºs. 33º b) CPTA.(8)
Exactamente porque o valor da causa é o montante pecuniário da multa, podendo esta não atingir o valor da alçada dos TCA’s - € 30000 mais € 0,01 -, o regime de recurso em matéria sancionatória segue o disposto no artº 142º nº 3 b) CPTA sendo justificada a admissibilidade de recurso independentemente do valor da causa, pela especificidade da matéria – direito sancionatório - e pela natureza dos direitos e interesses em causa.
Consequentemente, no caso presente o valor que compete é o resultante do pedido de anulação da multa aplicada, a saber,
o pena de multa de € 2.870,00, pelo cometimento da infracção disciplinar p.p. no artº 187º nº 1 b) [Comportamento incorrecto do público],
sendo, pois, nos termos do artºs. 33º b) CPTA, de atribuir à causa o valor de € 2.870,00.

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Pelo exposto, procede a questão trazida a recurso no item 23 das conclusões.

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Quanto à questão suscitada no item 24 das conclusões de recurso, de a “(..) condenação pecuniária no valor de € 2.870,00 e, não tendo esse recurso obtido provimento, confronta-se com uma fixação de custas no total de € 6.125,40 (..)” passível de pôr em crise “(..) o princípio da tutela jurisdicional efectiva (art. 20.°-l e 268.°-4 da CRP) (..)” adere-se à corrente jurisprudencial seguida em acórdão deste TCAS de 22.08.2019, tirado no rec. nº 96/9.1BCLSB, em que se fundamentou como se transcreve:
“(..) Também este TCAS já se pronunciou sobre a questão, considerando infundadas as alegações da desproporcionalidade das custas devidas pela intervenção do TAD, designadamente no Ac. 30/18.6BCLSB, de 22-11-2018, onde se refere o seguinte: “9. Já no que respeita à questão das custas suscitada pelo Recorrente..., trata-se de matéria recorrentemente trazida à apreciação deste TCA, tendo sido já objecto de recurso obrigatório do Ministério Público para o Tribunal Constitucional;
10. De qualquer modo, sempre se referirá que, sem prejuízo de maior aprofundamento nesta matéria, estamos perante um pleito em sede de Jurisdição Arbitral e, como tal, sujeita às regras, nomeadamente de custas, ali definidas pelo legislador e aceites pelas partes;
11. Porém, é certo que os montantes devidos pelas partes em sede de custas, quando comparados com os montantes devidos em sede de Jurisdição Administrativa, poderão revelar-se algo desfasados do regime das custas judiciais;
12. Ora, tal comparação não nos parece totalmente legítima, na justa medida em que as partes pleiteiam em Jurisdições diferenciadas e que, pela sua própria natureza, são, também a nível de regime legal de custas, incomparáveis;
13. Para além de que o TAD se rege por normas próprias de funcionamento, devendo o respectivo regime de custas, além do mais, reflectir e suportar essa realidade;
14. Trata-se de uma verdadeira encruzilhada jurídica na justa medida em que se está perante um Tribunal (TAD) onde, à primeira vista, se dirimem interesses de natureza privada, mas que, no fundo, tendo em conta a natureza jurídica dos intervenientes, nomeadamente as Federações desportivas e o respectivo regime jurídico associado, se tratam de questões de natureza eminentemente pública;
15. Encruzilhada essa que se traduziu nas vicissitudes de natureza constitucional que precederam o difícil processo de criação do TAD e que, infelizmente, ainda acompanham o seu funcionamento;
16. Como seja o caso da especialmente particular opção do legislador em sede do regime legal da arbitragem, mais especificamente ao criar a figura jurídica da "arbitragem necessária", em oposição à denominada "arbitragem voluntária", opção essa que, com todo o respeito, acabou por criar situações como as referidas nos Autos em que as partes são obrigadas a recorrer à arbitragem, quando, na sua essência, a arbitragem deveria, obrigatoriamente, reflectir algo de natureza voluntária...” – em sentido idêntico, vide os Acs. deste TCAS n.º 94/17.0BCLSB em 04-10-2017, n.º 75/18.6BCLSB, de 18-10-2018, n.º 30/18.6BCLSB, de 22-11-2018 ou n.º 79/18.9BCLSB, de 06-12-2018. (..)”.

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Pelo exposto improcedem as questões trazidas a recurso nos itens 24 a 26 das conclusões.




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Termos em que acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em,
a. julgar procedente o recurso interposto pela sociedade Futebol Clube ………… - Futebol SAD,
b. anular a decisão de 26.09.2017 proferida em via de recurso hierárquico impróprio nº 08-17/18 pelo Pleno do Conselho de Disciplina – Secção Profissional da Federação Portuguesa de Futebol e
c. revogar o acórdão proferido pelo Tribunal Arbitral do Desporto de 07.11.2018.
d. fixar o valor da causa em € 2.870,00.

Custas a cargo do Recorrido.

Lisboa, 07.NOV.2019


(Cristina dos Santos) ……………………………………………….

(Sofia David) ….……………………………………………………

(Dora Lucas Neto) ………………………………………………….








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(1) Eduardo Correia, Direito Criminal, I, Almedina, 1971, pág. 37.
(2) José Beleza dos Santos, Ensaio sobre a introdução ao direito criminal, Atlântida Editora SARL/1968, págs. 113 e 116.
(3) Luís Vasconcelos Abreu, Para o estudo do procedimento disciplinar no direito administrativo português vigente: as relações com o processo penal, Almedina, Coimbra/1993,pág.30; Francisco Liberal Fernandes, Autonomia colectiva dos trabalhadores da administração - Crise do modelo clássico de emprego público, Boletim da Faculdade de Direito, Studia Iuridica, 9, Coimbra/1995, págs.146/147.
(4) Mário Esteves de Oliveira, Lições de Direito Administrativo – FDL/1980, págs.621e 787; Bernardo Diniz de Ayala, O défice de controlo judicial da margem de livre decisão administrativa, Lex, 1995, pág. 91.
(5) Susana Aires de Sousa, Questões fundamentais de direito penal da empresa, Almedina/2019, págs.64- 65, 81-87; José de Faria Costa, Direito penal, INCM/2017, págs. 260-265.
(6) Susana Aires de Sousa, Questões fundamentais … págs. 89-91.
(7) Maia Gonçalves, Código de Processo penal, - anotado e comentado, Almedina/2005, comentário ao artº 126º CPP, pág. 315
(8) Aroso de Almeida/Carlos Cadilha, Comentário ao CPTA, Almedina/2017, págs .230/232 e 226/227.