Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1491/10.7BELRA
Secção:CA
Data do Acordão:03/17/2022
Relator:ALDA NUNES
Descritores:PDM
DENSIDADE HABITACIONAL
ÍNDICE DE CONSTRUÇÃO BRUTO
NULIDADE
EFEITOS PUTATIVOS - ART 134º, Nº 3 DO CPA/91
Sumário:I - O licenciamento de obras de construção de um edifício habitacional num terreno rústico situado na área de aglomerado urbano definida por PDM não dispensa que se lhe apliquem os parâmetros urbanísticos estabelecidos no PDM.
II - A cominação para ato de licenciamento de operação urbanística que viole normas de PDM é, nos termos do regime jurídico da urbanização e edificação e do regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial, a sanção de nulidade.
III - A gravidade das consequências da nulidade de atos administrativos em matéria de urbanismo, que permitiram a constituição de situações de facto que perduram no tempo, como o estabelecimento de casas de morada de famílias, justifica que se mantenham os efeitos materiais desses atos nulos (cfr art 134º, nº 3 do CPA/91 – art 162º, nº 3 do CPA/2015).
IV - Pois, de outro modo, a produção de todos os efeitos jurídicos associados à sanção da nulidade revela-se excessivamente lesiva da esfera jurídica dos administrados/ proprietários das frações/ terceiros de boa fé.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

Relatório

O Ministério Público moveu contra o Município da Marinha Grande ação administrativa especial de pretensão conexa com a prática de atos administrativos, impugnando e pedindo a declaração de nulidade da deliberação de 28.6.2001, da Câmara Municipal da Marinha Grande, e do despacho de 29.8.2001, do vereador do urbanismo da mesma câmara municipal, indicando 17 contrainteressados, que aprovaram o pedido de licenciamento, requerido pelo 1° contrainteressado M., de construção de um bloco de apartamentos a implantar numa parcela de terreno do prédio rústico, sito em Felgueiras, omisso na matriz respetiva da freguesia da Marinha Grande, desanexado do prédio n° 389...e descrito na conservatória do registo predial da Marinha Grande sob o n° 0.../19....

Foi proferida sentença, por juiz singular, que julgou a ação improcedente, absolvendo a entidade demandada do pedido.

O Ministério Público reclamou para a Conferência, nos termos do art 27º, nº 2 do CPTA, suscitando, caso não fosse admitida, a sua convolação para recurso jurisdicional para o TCAS.

Os autos foram à Conferência, que, por acórdão de 31.7.2014, após transcrição da sentença reclamada, e "debatida a matéria em causa e ponderadas as razões das partes", confirmou "totalmente os fundamentos e a decisão exarados no despacho sob reclamação", e, em consequência decidiu "confirmar os fundamentos e o dispositivo da decisão sob reclamação, e, nessa medida, julgar totalmente improcedente a presente reclamação."

Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso jurisdicional para o TCAS.

O TCAS por acórdão decidiu "... incorrer na nulidade prevista no art. 615° n°1 alínea b) do CPC novo, ex vi do artigo 1° do CPTA (falta de fundamentação) o acórdão que, na sequência de reclamação para a conferência, prevista no n°2 do artigo 27° do CPTA, deduzida da sentença proferida pelo M. mo Juiz titular do processo (que conhecendo do mérito da causa ao abrigo do disposto no artigo 27° n°1 alínea i) do CPTA, como expressamente ali mencionou, julgou a ação totalmente procedente) se limita a dizer manter nos seus exatos termos, a fundamentação e a decisão proferida." E, em consequência anulou o mesmo e determinou a remessa dos autos ao "Tribunal a quo para que a conferência (formação coletiva de juízes), aprecie o mérito da ação...".

Este acórdão do TCAS foi aprovado, com um voto de vencido de um dos juízes adjuntos por este "... entender que não existe falta de fundamentação de facto (pois a falta de fundamentação de direito não é de conhecimento oficioso), na medida em que no acórdão recorrido é transcrita a decisão de 31/7/2014; fundamentação por mera remissão é quando nada se transcreve)."
O Município da Marinha Grande, inconformado, interpôs recurso de revista para o STA.
A revista foi admitida por acórdão da Formação de Apreciação Preliminar, proferido em 20.1.2016, e conhecido o recurso, por acórdão de 7.6.2016, o STA decidiu: a) Conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida; b) Determinar a baixa dos autos ao TCAS para que seja proferido acórdão sobre a matéria objeto de recurso do acórdão de 1ª instância proferido na sequência da reclamação a que alude o art 27º, n°2 do CPTA.
Aqui chegados cumpre conhecer do mérito do recurso interposto pelo Ministério Público do acórdão do TAF de Leiria de 31.7.2014.
Nas alegações de recurso o recorrente Ministério Público formulou as seguintes conclusões:
- Por força do preceituado no art. 5º, nº 1, al a) e 8 do RPDM da Marinha Grande, o índice de construção bruto e a densidade habitacional, máximos, permitidos na zona da construção em apreço nos autos, localizada na "Restante Área Urbana", é de 0,6 e 3 fogos, respetivamente, enquanto, na circunstância, o índice de construção se cifrou em 1,1109 e a densidade habitacional em 8 fogos.
- O nº 5 do art. 4º do Regulamento aplica-se, na nossa ótica, nas melhores das interpretações, às áreas autónomas a urbanizar, isto é, ao conjunto compreendido pelas parcelas líquidas destinadas a edificação, vias de acesso, espaços verdes e outros espaços de utilização coletiva;
- De outra forma, não se aferindo "a densidade habitacional" e o "índice de construção bruto" a cada lote, proveniente de uma operação de loteamento, mas sim a esta operação, então resultaria que as respetivas construções nos lotes, à medida que viessem a ter lugar, pudessem ter percentagens diferentes umas das outras e até que uma das construções as pudesse preencher por completo, ficando as restantes parcelas libertas de tais condicionalismos. A não ser, como é óbvio, que cada lote ou parcela já estivessem prévia e devidamente definidos em termos de área e de índices urbanísticos, o que não sucedeu.
- Estes parâmetros foram reconhecidos como válidos no alegado, mas errado, pressuposto, por um lado, de que a parcela onde foi construída a obra é constituída por um lote, oriundo, por isso, de uma operação de loteamento, e, por outro, que a mesma parcela faz parte de uma massa de terreno que já foi alvo de uma intervenção urbanística, em termos de fixação dos respetivos condicionalismos.
- Porém, na vertente situação, ao invés daquela julgada no Ac. do STA de 20/1/2005, fica por demonstrar que a construção licenciada tivesse ocorrido num lote de terreno, objeto de uma operação ou procedimento de loteamento (cfr. certidão constante no doc. 2 anexo à p.i.) e, sobretudo, que ele tivesse origem ou fizesse parte de uma massa de terreno já delineada em termos urbanísticos, isto é, que já tivesse sido alvo de aplicação dos
índices urbanísticos em apreço, previstos no art. 5º, nº 1, al a) e 8 do Regulamento;
- Temos, por isso, que não se corre o alegado risco de duplicação de aplicação dos índices urbanísticos em causa, antes, ao enveredar pelo entendimento do acórdão, teremos como consequência, o facto de não se mostrar previsto a aplicação de qualquer índice na construção a erigir, maxime, o previsto no art. 5º, nº 1, al a) e 8 do Regulamento.
- Por violação desse dispositivo legal, deve, pois, ser revogado o acórdão recorrido e substituído por outro que declare nulos os sobreditos atos.

O Município contra-alegou o recurso e concluiu pela respetiva improcedência.

Colhidos os vistos, vêm os autos à Conferência para decisão.
Objeto do recurso:
A questão que aqui cumpre conhecer é a de saber se a decisão recorrida incorre em erro de julgamento de direito, ao absolver o Município do pedido de declaração de nulidade, por entender não estarem violados os parâmetros urbanísticos de densidade habitacional e índice de construção bruto do art 5º, nº 1, al a) e nº 8 Regulamento do Plano Diretor Municipal da Marinha Grande (aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 37/95, de 21.4, com as alterações introduzidas pela Resolução do Conselho de Ministros nº 153/98, de 30.12).

Fundamentação
De facto.
No acórdão recorrido foi fixada a seguinte matéria de facto:
A. «A 08.03.2001, no âmbito do Processo de Obras n.º … /01, o 1.º contrainteressado, M., requereu junto dada entidade demandada a aprovação do pedido de licenciamento de construção de um Bloco de apartamentos a implantar no prédio rústico, sito em Figueiras, omisso na matriz respetiva da freguesia da Marinha Grande, desanexado do prédio n.º …, 33, B2 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Marinha Grande sob o n.º 0.../19... (cf. docs. 1 e 2 juntos com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
B. A área total desse terreno é de 1 090 m² (idem).
C. Segundo o projeto de arquitetura, o Bloco tem cave + r/chão + 1º andar, sendo estes últimos 2 pisos para 8 apartamentos e a cave para estacionamentos (cf. doc. 1 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
D. Tanto o r/chão como o 1.º andar têm, igualmente, 556,70 m² de área de construção para habitação e 48,7 5 m² para varandas (idem).
E. A entidade demandada nunca aprovou nenhum plano de urbanização para o aglomerado urbano da Marinha Grande, nem nenhum regulamento que alterasse (ou pudesse alterar) os índices e parâmetros urbanísticos (facto não impugnado).
F. O projeto de arquitetura referente ao pedido de licenciamento referido em A) foi aprovada pela deliberação da Câmara Municipal da Marinha Grande de 28.06.2001 (cf. doc. 1 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
G. O licenciamento respetivo foi deferido pelo despacho da Vereadora do Pelouro do Urbanismo da Câmara Municipal da Marinha Grande de 29.08.2001 (idem).
H. O prédio foi adquirido, por compra, aos primeiros contrainteressados M. e N. pela 2.ª contrainteressada N.– Construção Civil, Lda., sendo essa aquisição registada na Conservatória do Registo Predial de Marinha Grande a 23.10.2001 (cf. docs. 1 e 2 juntos com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
I. Sobre o prédio referido em A) e H) foi constituída propriedade horizontal, com as frações autónomas A, B, C, D, E, F, G, H e I, sendo esse ato registado na mesma conservatória a 07.06.2002 (cf. doc. 2 junto com a petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido).
J. A fração A foi adquirida, por compra, pela contrainteressada D., casada com P., à contrainteressada N.— Construção Civil, Lda., cuja aquisição foi registada na mesma conservatória a 29.07 .2002 (idem).
K. Sobre ela incidem duas hipotecas voluntárias registadas a 29.07 .2002 e 18.12.2007, a favor da contrainteressada Banco B., SA, para garantia de dívida emergente de contratos de mútuo celebrados com essa contrainteressada (idem).
L. A fração B foi adquirida, por compra, pela contrainteressada S., à contrainteressada Banco E., SA, cuja aquisição foi registada na Conservatória do Registo Predial da Marinha Grande a 04.06.2010 (idem).
M. Sobre ela incidem duas hipotecas voluntárias registadas a 04.06.2010, a favor da contrainteressada Banco E., SA, para garantia de dívida emergente de contrato de mútuo celebrado com essa contrainteressada (idem).
N. A fração C foi adquirida, por compra, pelos contrainteressados N. e mulher A. à contrainteressada Banco S., SA, cuja aquisição foi registada na mesma conservatória a 05.08.2009 (idem).
O. Sobre ela incide uma hipoteca voluntária registada a 05.08.2009, a favor da contrainteressada Banco E., SA, para garantia de dívida emergente de contrato de mútuo celebrado com essa contrainteressada (idem).
P. A fração D foi adquirida, por compra, pelo contrainteressado J. à contrainteressada N., - Construção Civil, Lda., cuja aquisição foi registada na Conservatória do Registo Predial da Marinha Grande a 27 .08.2002 (idem).
Q. Sobre ela incide uma hipoteca voluntária registada a 19.03.2007, a favor da contrainteressada Banco C., SA, para garantia de dívida emergente de contrato de mútuo celebrado com essa contrainteressada (idem).
R. A fração E foi adquirida por compra pelos contrainteressados E. e J. ao Banco E., SA, cuja aquisição foi registada na Conservatória do Registo Predial da Marinha Grande a 10.09.2010 (idem).
S. A fração F foi adquirida, por compra, pelo contrainteressado J. à contrainteressada N., - Construção Civil, Lda., cuja aquisição foi registada na Conservatória do Registo Predial da Marinha Grande a 06.09.2002 (idem).
T. Sobre ela incide uma hipoteca voluntária registada em 06.09/2002, a favor da contrainteressada Banco I. , SA, para garantia de dívida emergente de contrato de mútuo celebrado com essa contrainteressada (idem).
U. A fração G foi adquirida, por compra, pelos contrainteressados C. e S. aos contrainteressados C. e T., cuja aquisição foi registada na mesma conservatória a 02.02.2006 (idem).
V. Sobre ela incidem duas hipotecas voluntárias registadas a 02.02.2006, a favor da contrainteressada B., SA, para garantia de dívida emergente de contrato de mútuo celebrado com essa contrainteressada (idem).
W. A fração H foi adquirida, por compra, na proporção de 1/2, pelos contrainteressados C. e P., casados entre si, à contrainteressada N - Construção Civil, Lda., cuja aquisição foi registada na mesma conservatória a 10.02.2002 (idem).
X. Sobre ela incide uma hipoteca voluntária registada a 24.07 .2007, a favor da contrainteressada Banco E., SA, para garantia de dívida emergente de contrato de mútuo celebrado com essa contrainteressada (idem).
Y. A fração I foi adquirida por compra pelos contrainteressados M., casado com M. à contrainteressada N.- Construção Civil, Lda., cuja aquisição foi registada na Conservatória do Registo Predial da Marinha Grande a 11.07 .2003 (idem).
*
3. MOTIVAÇÃO
A convicção do tribunal formou-se com base na análise crítica da documentação não impugnada junta aos articulados iniciais das partes e, sobretudo, na análise da extensa documentação constante do processo administrativo instrutor junto aos autos, e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
Aplicou-se ainda quer o princípio cominatório semipleno pelo qual se deram como provados os factos admitidos por acordo pelas partes, quer as regras gerais de distribuição do ónus probandi.
Tudo nos termos descritos em cada uma das alíneas do probatório».

O Direito
Erro de julgamento de direito
Discutem as partes a legalidade do licenciamento – por atos de 28.6.2001 e de 29.8.2001 – da construção de um bloco de apartamentos implantado num prédio rústico situado na área do Aglomerado Urbano da Marinha Grande, mais precisamente na zona indicada restante área urbana do Regulamento do PDM da Marinha Grande, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 37/95, publicada do DR 1ª série – B, nº 94, de 21.4.1995 (RPDM).
Em concreto, importa saber se os parâmetros urbanísticos de densidade habitacional e índice de construção bruto, definidos no art 4º, nº 5, als a) e d) e densificados no art 5 nº 8 do Regulamento do PDM da Marinha Grande, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 37/95, publicada do DR 1ª série – B, nº 94, de 21.4.1995, se aplicam ao licenciamento em causa.
Os atos impugnados permitiram a construção com uma densidade habitacional e um índice de construção bruto superiores aos previstos no art 5º, nº 8 do RPDM.
O acórdão recorrido decidiu pela legalidade do licenciamento, designadamente, por considerar que a operação urbanística em apreço incide sobre um lote. Logo, sobre esta parcela de terreno já incidira previamente (lógica, cronológica e ontologicamente) uma outra operação urbanística (loteamento). E, porque assim, já preexistia uma ocupação urbanística. Isto é: em bom rigor, apesar de a parcela de terreno em concreto não ter qualquer edificação à data da operação urbanística em apreço no caso dos autos, não se podia considerar como área a urbanizar: era já, para os efeitos do Regulamento do Plano Diretor Municipal da Marinha Grande, uma área urbana. E sobre aquele loteamento, que constituíra a primeira operação urbanística, já haviam sido aplicados os parâmetros urbanísticos aqui em apreço, porque só então o terreno era urbanizável ou a urbanizar.
E, por isso, estando em causa um lote ou parcela de terreno/ terreno autónomo, os índices urbanísticos como sejam a densidade habitacional e índice de construção bruto, do art 4º, nº 5, als a) e d) e do art 5º, nº 8 do RPDM da Marinha Grande, não se aplicam ao licenciamento em apreço. Tais índices apenas têm aplicação às operações de loteamento.
O recorrente imputa à decisão recorrida erro de julgamento de direito na interpretação do art 5º, nº 1, al a) e nº 8 do RPDM da Marinha Grande, por entender que os parâmetros urbanísticos ali previstos se aplicam também às áreas autónomas a urbanizar, isto é, ao conjunto compreendido pelas parcelas líquidas destinadas a edificação, vias de acesso, espaços verdes e outros espaços de utilização coletiva, como sucede no caso.
Por força do preceituado no art. 5º, nº 1, al a) e 8 do RPDM da Marinha Grande, alega o recorrente, o índice de construção bruto e a densidade habitacional, máximos, permitidos na zona da construção em apreço nos autos, localizada na "Restante Área Urbana", é de 0,6 e 3 fogos, respetivamente, enquanto, na circunstância, o índice de construção se cifrou em 1,1109 e a densidade habitacional em 8 fogos.
Ainda, diz o recorrente, na vertente situação, ao invés daquela julgada no sobredito acórdão – STA de 20.1.2005, processo nº 792/03 – fica por demonstrar que a construção licenciada tivesse lugar num lote de terreno, objeto de uma operação de loteamento e, sobretudo, que ela tivesse origem ou fizesse parte de uma massa de terreno já delineada em termos urbanísticos, isto é, já tivesse sido alvo de aplicação dos índices urbanísticos em apreço.
… assim, para se poder acompanhar a sentença e o raciocínio do Mmo Juiz, haveria de ficar demonstrado que a parcela de terreno onde foi erigida a edificação fazia parte de uma massa de terreno intervencionada, mormente, em termos de definição dos parâmetros relativos «densidade habitacional» e «índice de construção», e isso não resulta nem da sentença nem do processo de licenciamento respetivo.
Temos, por isso, que não se corre o risco de duplicação dos índices urbanísticos em causa, antes, ao enveredar pelo entendimento do acórdão, teremos como consequência, o facto de não se mostrar previsto a aplicação de qualquer índice na construção a erigir.
Assiste razão ao recorrente.
Vejamos.
Nos termos do art 4º do Regulamento do PDM da Marinha Grande/ 1995:
Áreas urbanas e urbanizáveis
1 - Para cada aglomerado urbano integrante da rede urbana do concelho o PDM fixa o perímetro urbano. Nele estão incluídas as áreas de ocupação atual e as áreas urbanizáveis necessárias à expansão no horizonte do Plano.

4 - Para os aglomerados urbanos são estabelecidas as seguintes áreas específicas:
a) As áreas urbanas/ocupação atual correspondem aos espaços edificados com elevada percentagem de infraestruturação e onde ocorrem diferentes funções urbanas.
b) As áreas urbanizáveis destinadas à expansão dos aglomerados correspondem às áreas atualmente livres, incluídas nos perímetros urbanos, suscetíveis de edificação quando devidamente infraestruturadas e equipadas.

5 - Para efeitos deste Regulamento entende-se por:
a) Densidade habitacional - o quociente entre o número total de fogos e a área total de terreno a urbanizar;
b) Densidade populacional - o quociente entre o número de habitantes e a área total da parcela ou lote de terreno;
c) Percentagem de ocupação - o quociente entre a área de implantação da construção e a área total da parcela ou lote de terreno;
d) Índice de construção bruto - o quociente entre a área total de pavimentos a construir e a área total do terreno a urbanizar;
e) Cércea ou altura dos edifícios - a dimensão vertical da construção contada a partir do ponto de cota média de implantação até à linha superior da platibanda, varanda ou beirado da cobertura;
f) Índice volumétrico bruto - o quociente entre o volume do espaço ocupado pelos edifícios e a área total da parcela ou lote de terreno.

Artigo 5.º
Aglomerados urbanos
1 - São considerados aglomerados urbanos:
a) Centro concelhio da Marinha Grande;

2 - Dentro dos perímetros urbanos e nas áreas de ocupação atual o crescimento urbano far-se-á através da edificação lote a lote e de loteamento urbano e ainda através da eventual ampliação das edificações existentes.

8 - Para o aglomerado urbano da Marinha Grande a revisão do plano geral de urbanização observará os seguintes índices e parâmetros urbanísticos, que devem desde já ser observados na gestão urbanística:

Restante área urbana.
- Densidade habitacional máxima - 30 fogos/ha;
- índice de construção bruto - 0,6;
- cércea máxima - três pisos ou 9,5 m2 de altura;
- estacionamento - 1 lugar/fogo para habitação e 1 lugar/50 m2 de área coberta para comércio e serviços.
Demonstram os factos provados que:
A área do prédio rústico objeto da operação urbanística é de 1090m2.
O bloco tem cave, Rés-do-chão e 1º andar.
A cave é para estacionamento.
O Rés-do-chão e 1º andar são para 8 apartamentos.
O Rés-do-chão e 1º andar têm 556,70m2 de área de construção para habitação e 48,75m2 para varandas, somando a área total dos dois pavimentos 1.210,90m2.
Ou seja, como alega o recorrente, portanto, ao invés do decidido pelo tribunal recorrido, inexiste prova nos autos de que a parcela de terreno onde foi construído o bloco licenciado fazia parte de um loteamento ou de um terreno sujeito a prévia aplicação dos parâmetros urbanísticos do RPDM da Marinha Grande de 1995.
Não é pelo facto do terreno estar inserido na área do aglomerado urbano da Marinha Grande, em concreto, na zona indicada por «restante área urbana», que deixa de ter de observar os índices e parâmetros urbanísticos estabelecidos no RPDM.
Com efeito, a situação em apreço difere daquela que foi julgada pelo STA, no acórdão de 20.1.2005, proferido no processo nº 792/03, que versou sobre a ampliação da área de construção num prédio urbano objeto de uma operação de destaque de parcelas.
Os factos provados apenas demonstram que a construção licenciada teve lugar num prédio rústico, omisso na matriz, desanexado de um outro (facto provado na al A).
Mais, o Município nunca aprovou nenhum plano de urbanização para o aglomerado urbano da Marinha Grande, nem nenhum regulamento que alterasse (ou pudesse alterar) os índices e parâmetros urbanísticos (facto provado na al E).
Por conseguinte, à operação urbanística licenciada aplicam-se os índices e parâmetros urbanísticos previstos nas normas do RPDM da Marinha Grande/ 1995 e assim, fazendo a subsunção dos factos provados, resulta:
i) Sendo a área total dos 2 pavimentos licenciados de 1.210,90 m² (= 556,70x2 + 48,75x2) e a área total do terreno de 1.090 m², o índice de construção bruto do projeto licenciado é de 1,110917 (1.210,90 m² : 1090m2);
ii) sendo a densidade habitacional máxima para a restante área urbana de 30 fogos/ha e a área do terreno de 1 090 m², a respetiva densidade habitacional máxima é de três (3) fogos (30 fogos x 1.090 m²: 10.000m2 = 3,27), o projeto licenciado apresenta 8 fogos.
Nestes termos, os atos impugnados, de 28.6.2001 (que aprovou o projeto de arquitetura) e de 29.8.2001 (que deferiu o pedido de licenciamento), permitem uma construção com uma densidade habitacional máxima de 8 fogos/ha, quando o RPDM apenas permitia 3 e permitem um índice de construção bruto de 1,110917, quando o RPDM apenas permitia 0,6 para o prédio inserido na zona designada restante área urbana do aglomerado urbano da Marinha Grande.
Ocorre na verdade violação das normas do Regulamento do PDM da Marinha Grande, do art 4º, nº 5, als a) e d) e art 5º, nº 1, al a) e nº 8, pelos atos impugnados, que o art 52º, al b) do DL nº 445/91, de 20.1, na redação dada pelo art 1º do DL nº 250/94, de 15.10, e o art 103º do DL nº 380/99, de 22.9 (diplomas que se aplicavam à data do licenciamento da operação urbanística), cominam com a sanção da nulidade.
Decidindo em contrário, incorreu o acórdão recorrido no erro de julgamento que lhe vem imputado, pelo que se revoga, declarando-se a nulidade dos atos impugnados, de 28.6.2001 e de 29.8.2001.

Em consequência, cumpre ainda conhecer da questão julgada prejudicada pelo acórdão recorrido, que é a de saber se há lugar à aplicação do disposto no art 134º, nº 3 do CPA de 1991. O mesmo é dizer se podem ser atribuídos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes dos atos nulos.
De acordo com o art 134º, nº 3 do CPA/ 1991 (hoje art 162º, nº 3 do CPA/2015) a não produção de efeitos jurídicos pelos atos nulos não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito.
Esta estatuição surge, assim, como uma salvaguarda das situações de facto que decorram de atos feridos de nulidade e persistam por um período prolongado de tempo, criando efeitos materiais que se consolidam, os denominados efeitos putativos.
Porque o ato nulo, até à declaração da respetiva nulidade, beneficia de uma presunção de legalidade, que gera efeitos como se válido fosse.
Particularmente, os atos administrativos de gestão urbanística investem os particulares do poder de realizar operações urbanísticas, de construir a obra, de a transmitir, de a utilizar, criando situações de facto que se consolidam na vida real dos administrados.
E assim sucede no caso.
Por efeito dos atos de aprovação do projeto de arquitetura, em 28.6.2001, e de deferimento do licenciamento da construção, de 29.8.2001, foi edificado o bloco de apartamentos, 8 habitações e estacionamento, foi constituída a propriedade horizontal do prédio em frações distintas e autónomas, as quais foram vendidas a terceiros adquirentes que as utilizam ou voltaram a transacionar, tendo igualmente sido constituídas hipotecas sobre as frações da edificação (tudo como vem descrito e documentado na certidão de registo predial do prédio - documento autêntico - art 369º, nº 1 e 2 do CC – que faz, por isso, prova plena dos factos que sejam atestados pela entidade documentadora - art 371º, nº 1 do CC).
Revisitando os factos provados, nas als H) a Y) do probatório, é manifesto, que por efeito ou ao abrigo dos atos de 28.6.2001 e de 29.10.2001, o prédio objeto da operação urbanística foi vendido, foi constituída a propriedade horizontal sobre o edificado, foram vendidas as frações, constituídas hipotecas sobre algumas frações.
Verifica-se, sem dúvida, que os contrainteressados, desde 2001/ 2002, investiram a sua confiança na validade dos atos administrativos de aprovação e licenciamento camarário agora declarados nulos e ao abrigo dos quais constituíram situações de facto com interesses ponderosos, designadamente por se tratar de habitações/ casas de morada de famílias adquiridas na construção licenciada, no sentido da manutenção dos efeitos materiais desses atos nulos. Pois, de outro modo, a produção de todos os efeitos jurídicos associados à sanção da nulidade urbanística revela-se excessivamente lesiva da esfera jurídica dos administrados/ proprietários das frações e mesmo dos beneficiários de hipotecas. Assim os contrainteressados em causa nos autos devem considerar-se terceiros de boa fé.
Estamos, com efeito, perante decisões administrativas, de aprovação do projeto de arquitetura e de deferimento de um pedido de licenciamento de obra de construção, de 28.6.2001 e de 29.10.2001, emitidos, portanto, há cerca de 10 anos em relação à entrada da ação em juízo e há mais de vinte anos em relação à presente data. O que significa que decorreu um período de tempo bastante considerável para se aplicar à situação concreta deste processo a principal consequência da ilegalidade dos atos urbanísticos, que sabemos ser a demolição da operação urbanística, nos termos do artigo 106º do RJUE. Do mesmo modo, estando em causa um incumprimento de normas de PDM, que fixam parâmetros urbanísticos de densidade habitacional máxima e um índice de construção bruto na restante área urbana do aglomerado urbano da Marinha Grande, não vislumbramos que possa ser considerada a legalização dos atos, ou seja, a prática de novos atos conforme às exigências impostas pelo regulamento do PDM, a modificação do direito aplicável, mediante alteração ou revisão do PDM, pois, a utilização da alteração de planos para legalizar operações urbanísticas apenas deverá ser utilizada em situações excecionais e em nenhuma das alterações do PDM da Marinha Grande (Aviso nº 1313/2017 (DR 24, II-S, 2017.02.02) e Aviso nº 4419/2018 (DR 66, II-S, 2018.04.04​)) houve mexida nos parâmetros aqui em questão.
Efetivamente, a par do princípio da legalidade e do princípio da prossecução do interesse público na atuação administrativa no domínio do urbanismo, temos de atender aqui também aos princípios da proporcionalidade e da proteção da confiança e atribuir efeitos jurídicos, denominados de putativos, às situações de facto que decorreram dos atos impugnados nos autos e cuja nulidade aqui declarámos.
Repetimo-lo, os contrainteressados citados na ação, como decorre do registo predial do prédio construído, foram adquirentes das frações do edifício habitacional construído ou beneficiários de direitos reais de garantia constituídos sobre algumas dessas frações que nada tiveram que ver com o projeto de arquitetura aprovado nem com o deferimento do licenciamento da construção constantes dos atos aqui impugnados.
Assim, de acordo com um juízo de proporcionalidade (hoje explicito no atual art 162º, nº 3 do CPA/2015), vertido no art 5º, nº 2 do CPA/ 1991, «é possível concluir que os prejuízos decorrentes da declaração de nulidade … são muito significativos e superam os benefícios para a Administração Pública e para a comunidade jurídica, da reintegração da legalidade violada» (Marco Caldeira, em «Revisitando as nulidades urbanísticas à luz do novo CPA», Revista da Fac. de Direito da Universidade de Lisboa, nº 2, 2016, LVII, pág 208).
Em face do exposto, nas circunstâncias do caso concreto, sem prejuízo de tal não representar uma convalidação da nulidade dos atos administrativos impugnados que aqui se declarou, como requerido pelo Município, há que atribuir efeitos jurídicos às situações de facto descritas nas als H) a Y) do probatório, como autoriza o disposto no art 134º, nº 3 do CPA/1991. O que se decide.

Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar o acórdão recorrido e julgar a ação procedente e, em consequência:

a) declaram a nulidade da deliberação da Câmara Municipal da Marinha Grande de 28.6.2001 e do despacho da Vereadora do Urbanismo da Câmara Municipal da Marinha Grande de 29.8.2001 (als F) e G) dos factos provados);

b) atribuem efeitos jurídicos às situações de facto decorrentes dos atos nulos e identificadas nas als H) a Y) da matéria de facto provada.

Custas pelo recorrido e pelo recorrente em ambas as instâncias, na proporção de 2/3 e 1/3 respetivamente, sem prejuízo da isenção subjetiva de que beneficia o recorrente.
Notifique
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Lisboa, 2022-03-17,
(Alda Nunes)
(Lina Costa)
(Catarina Vasconcelos).