Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:10893/14
Secção:CA-2º JUÍZO
Data do Acordão:03/06/2014
Relator:CRISTINA DOS SANTOS
Descritores:EXERCÍCIO DE FUNÇÕES PÚBLICAS SEM CARÁCTER PREDOMINANTEMENTE TÉCNICO
AQUISIÇÃO DE NACIONALIDADE PORTUGUESA - ÓNUS DE PROVA
Sumário:1.Por exercício de funções públicas sem carácter predominantemente técnico, entende-se a actividade em cuja componente não predomina o exercício da autoridade pública (artº 9º al. c) da Lei Orgânica nº 272006 de 17 Abril).

2.Constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, entre outros, a inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional [alínea a) do artigo 9° da Lei n° 37/81, de 3/10, na redacção que lhe foi dada pela Lei Orgânica n° 2/2006, de 17/4].

3.Incumbe ao Ministério Público, na acção para oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, o ónus da prova da existência dos factos impeditivos do direito [aquisição da nacionalidade] que o interessado quis fazer valer [artºs. 342°, n° 2 e 343º do Cód. Civil].
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: O Ministério Público inconformado com a sentença proferida pelo Mmo. Juiz do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa dela vem recorrer, concluindo como segue:

1. À luz do artigo 4º, nºs. l e 2, alínea a), do Código de Processo Civil, as acções de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa devem ser consideradas como acções de simples apreciação negativa, pois que as mesmas são destinadas à demonstração (e consequente declaração judicial) da inexistência de ligação à comunidade nacional;
2. Consequentemente, e de harmonia com o disposto no artigo 343º, n.º l, do Código Civil, a prova dos factos constitutivos do direito a que se arroga competia ao Requerido, ora Recorrido, fazer;
3. Aliás, perante uma acção que é consequência de uma pretensão inicialmente formulada junto da Conservatória dos Registos Centrais pelo interessado em obter a nacionalidade portuguesa, sempre a este caberia, de acordo com as regras gerais do ónus da prova, demonstrar os factos constitutivos de tal pretensão;
4. A redacção do artigo 3º da Lei n.s 37/81, de 3 de Outubro, mantida pela Lei n.º 2/2006, de 17 de Abril, continua a estabelecer que o estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir, em determinadas circunstâncias, a nacionalidade portuguesa, mediante declaração;
5. Todavia, enquanto o artigo 9º, na sua redacção anterior, estabelecia que constituem fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, designadamente, a "não comprovação pelo interessado, de ligação efectiva à comunidade nacional', na sua redacção actual estabelece o mesmo normativo que constitui fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, entre outros factores, a "inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional' .
6. Por outro lado, estatui o nº l do artigo 57º do Decreto-Lei nº 237-A/2006, de 14 de Dezembro, que "Quem requeira a aquisição da nacionalidade portuguesa, por efeito da vontade ou adopção, deve pronunciar-se sobre a existência de ligação efectiva à comunidade nacional e sobre o disposto nas alíneas b) e c) do ne 2 do artigo anterior ';
7. E face ao comando ínsito no citado artigo 343º, nº l, do Código Civil - estando em causa uma acção que resulta de uma pretensão por ele próprio formulada junto da Conservatória dos Registos Centrais - não pode o Requerido, ora Recorrido, pelas regras gerais do ónus da prova, eximir-se a tal pronúncia;
8. O facto de o Recorrido ser casado com uma cidadã brasileira que apenas no ano de 2008 adquiriu a nacionalidade portuguesa (e de ser pai de dois filhos, nascidos no Brasil em 1992 e 1994 e que só no ano de 2008 viram os seus nascimentos integrados no registo civil português), não é suficiente para se entender que o mesmo já possuí os requisitos necessários - ligação efectiva à comunidade portuguesa - para adquirir a nacionalidade, nem é demonstrativo, por si só, da sua identificação cultural e sociológica com a comunidade nacional portuguesa;
9. Para adquirir a nacionalidade portuguesa são necessários, para além do casamento com cidadão nacional, outros requisitos, nomeadamente, uma ligação efectiva, um sentimento de unidade com a comunidade nacional, em termos de comunhão da mesma consciência nacional, impondo a lei uma ligação efectiva, já existente, devendo, assim, verificar-se uma forte e duradoura afinidade com a matriz dos portugueses, considerados estes como uma comunidade política e socialmente organizada;
10. Ora, no caso dos autos, nada disso acontece, já que o Requerido, para além do mais, sempre viveu no Brasil, comunidade nacional onde nasceu e cresceu, na qual se integra e, naturalmente, com a qual se identifica;
11. Não basta, assim, verificar-se, no caso concreto, o requisito objectivo do Requerido ter casado, em 1993, no Brasil, com uma cidadã, também nascida no Brasil, e que em 2008 adquiriu a nacionalidade portuguesa, para se considerar que existe, imediata e automaticamente, ligação efectiva à comunidade nacional portuguesa, como parece resultar da Sentença;
12. Aliás, o casamento com nacional português não constitui, de per si, elemento principal da ligação do Requerido à comunidade nacional, sob pena de ser inútil o preceito da alínea a), do artºs. 9º da Lei nº 37/81;
13. O seu casamento, embora celebrado, no Brasil, a 4 de Maio de 1993, só em 25 de Agosto de 2008 é que foi integrado no Registo Civil português. E o mesmo se diga a respeito dos seus filhos que, apesar de nascidos no Brasil em 1992 e 1994, apenas em 2008 viram os respectivos nascimentos integrados no Registo Civil português;
14. Tais acontecimentos (nascimentos, casamento, inscrição/integração no registo civil português) são reveladores de algum distanciamento da comunidade portuguesa;
15. Atendendo ao que se estabelece na Lei n.° 10 480, de 2 de Julho de 2002 e na Portaria MDIC n.° 65, de 18 de Abril de 2006 - diplomas legais brasileiros - e considerando o conjunto de funções e cargos desempenhados pelo Requerido, dúvidas não temos em afirmar que as suas funções (públicas) não revestiam, nem revestem, carácter predominantemente técnico.
16. Nos cargos de Procurador Federal, de Presidente do Instituto da Propriedade Industrial (INPI) do Brasil e de Coordenador de Assuntos Estratégicos ("cargo de confiança", como é referido), predominavam prerrogativas de autoridade pública, implicando uma participação activa no exercício de funções soberanas, para além de exigir da sua parte uma ligação de compromisso, lealdade e fidelidade para com o Estado brasileiro;
17. Nesse sentido, apontam as supra referidas Lei nº 10 480, de 2 de Julho de 2002 (v., em especial, os art.ºs. 9º, 10º, 11º, 12º) e Portaria MDIC n.° 65, de 18 de Abril de 2006 (v., em especial, os artºs. 1º, 3º, 7º, 96º, 98º, 149º, 151º), juntas a fls. 56 a 127 dos autos;
18. O Requerido não foi seleccionado, recrutado, admitido, mas sim "nomeado", escolhido, por membros do Governo do Brasil, para exercer funções (e posteriormente até "exonerado", por despacho do Presidente da República do Brasil, com publicação no jornal oficial) e para exercer, em comissão, "cargo de confiança".
19. Por tudo quanto foi dito e conforme melhor resulta dos autos, a douta decisão recorrida fez um inadequado julgamento, de facto e de direito, tendo violado as disposições legais e os princípios de direito contidos no artigo 9º, als. a) e c) da Lei nº 37/81, na redacção dada pela Lei nº 2/2006, de 17 de Abril, no artigo 56º, n.e 2, ais. a) e c) do Decreto-Lei nº 237-A/2006, de 14 de Dezembro e no artigo 343º, nº l, do Código Civil;
20. Assim, mal decidiu o Tribunal Administrativo Círculo de Lisboa ao julgar improcedente a oposição deduzida pelo Ministério Público à aquisição da nacionalidade do Recorrido e ao ordenar o prosseguimento do processo conducente ao registo respectivo, pelo que, dando-se provimento ao presente recurso, deve aquela revogada e substituída por outra em que se declare a procedência da presente acção.

*
O Recorrido contra-alegou, concluindo como segue:

1. O MP faz uma errónea interpretação do artigo 3.° número l da LN o qual é claro e concreto quanto ao seu conteúdo.
2. Este artigo admite a possibilidade de aquisição da nacionalidade por quem, na constância do matrimónio com cidadão português que perdure há mais de três anos, declare ser essa a sua vontade.
3. Cumprindo todos estes requisitos, o R. aqui Recorrido declarou ser sua vontade adquirir a nacionalidade portuguesa.
4. O ónus da prova, considerando a presunção iuris tantum contida no artigo 3.° da LN por via do casamento, inverte-se nesta acção de simples apreciação negativa recaindo sobre o Ministério Público a obrigação de fazer prova da inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional.
5. Apesar disso, o R. aqui Recorrido juntou prova da sua ligação efectiva à comunidade nacional.
6. O Ministério Público não logrou fazer prova da inexistência da mencionada ligação limitando-se a:a. referir que o casamento, por si só, não constitui elemento único e bastante que conduza à aquisição da nacionalidade e;b. referir que a prova junta não seria suficiente para demonstrar a existência de ligação.
7. No entanto, a prova junta confirma sem sombra para dúvidas: a. A muito antiga ligação familiar que se prolonga actualmente com a sua mulher e filhos portugueses; b. A ligação social (acompanhamento dos temas envolventes da sociedade, economia e política, interna e externa portuguesas); c.A ligação profissional (enquanto representante do próprio país junto de instâncias internacionais e colaboração estreita com funcionários e representantes do Estado Português e comunidades de emigração, como a de Genebra); d. Os laços de amizade desenvolvidos com os portugueses com os quais priva e se faz rodear pessoal e profissionalmente; e. O conhecimento profundo da língua e cultura portuguesas chegando a promovê-la, representando Portugal, junto de instâncias nacionais como a OMPI e as NAÇÕES UNIDAS; f. O acompanhamento e apoio da Missão Permanente de Portugal junto das Nações Unidas em Genebra para a manutenção da língua portuguesa nestas instâncias; g. A sua designação como representante de Portugal para as eleições à Direção Geral da OMPI e os trabalhos que realizou tendentes à designação da língua portuguesa como língua de trabalho desta instituição; h. A afinidade precoce com as suas raízes lusas bem descritas por seu primo que, sensibilizado, redige no ano de 1983 todo um artigo descrevendo a sua primeira visita muito jovem a Portugal, primeira visita em 77 anos do ramo da família residente no Brasil, em busca dos seus antepassados e referências culturais; i. As variadas viagens e estadias em Portugal que se inferem da restante prova culminando com pelo menos três viagens nos últimos 12 meses.
8. Acresce que o Ministério Público refere ainda a impossibilidade de aquisição da nacionalidade pelo R. por este ter desempenhado funções sem carácter predominantemente técnico, em cargo de nomeação.
9. Novamente não quis o Ministério Público considerar toda a prova uma vez que dos artigos 9.°, 10.° número 2 e 14.° da Lei 10480 de 2 de Julho de 2002 resulta a dependência de uma entidade hierarquicamente superior da atuação do R. nos cargos ocupados em termos de linhas orientadoras e competências, restando-lhe meramente o desempenho da função técnica.
10. Reforçam este prisma os artigos 1.° e 7.° da Portaria MDIC n.° 65, claros quanto à subordinação do R. nos cargos ocupados.
11. Do que fica exposto quanto à natureza dos cargos ocupados pelo R., e bem assim, da leitura da sua nota biográfica junta aos autos, resulta que a sua nomeação e confiança para o exercício dos cargos ocupados resultam exclusivamente das suas excepcionais e meritórias competências académicas e profissionais.
12. Pelo que não se encontram preenchidos os pressupostos previstos nas alíneas a) e c) do artigo 9.° da LN por: a. Ter o R. feito prova da existência da sua efetiva ligação à comunidade portuguesa; b. Não ter feito o Ministério Público prova, como lhe competia, da inexistência de tal ligação e; c. Ter o R. feito prova do carácter exclusivamente técnico das funções que desempenhou melhor descritas nos autos; Improcedendo assim, por falta de fundamento, a presente ação de oposição à aquisição de nacionalidade por parte do R..
13. Termos em que deve ser dado provimento à sentença proferida pelo tribunal a quo, não sendo atendida a pretensão explanada pelo Ministério Público no presente recurso e, consequentemente, ser atribuída, porque devida nos termos da Lei e nos melhores de Direito, a nacionalidade portuguesa ao R. José ………, assim se fazendo a acostumada Justiça!!

*
Colhidos os vistos legais e entregues as competentes cópias aos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, vem para decisão em conferência.

*
Pelo Senhor Juiz foi julgada provada a seguinte factualidade:

A O Réu nasceu no Rio de Janeiro, República Federativa do Brasil (agora apenas Brasil), em 28 de Dezembro de 1959 (Certidão de Nascimento junto a fls. 13 dos autos do processo físico e cujo teor se dá por reproduzido);
B E filho de Aloysio …………… e Silva e de Maria Helena ……………….. (Certidão de Nascimento cit);
C Em 4 de Maio de 1993 contraiu casamento no Rio de Janeiro, Brasil, com Cristina ……………. (Assento de Casamento nº 244/2008 do Consulado Geral de Portugal em Genebra, junto a fls. 16 dos autos do processo físico e cujo teor se dá por reproduzido);
D Cidadã portuguesa (Assento de Nascimento n.° 15024 do ano de 2008 da Conservatória do Registo Civil de Lisboa, junto a fls. 19 e 20 dos autos do processo físico e cujo teor se dá por reproduzido);
E Também ela natural de Rio de Janeiro (Assento de Nascimento n.° 15024 cit);
F Réu e mulher são pais de José ………… e de Júlia …………….. (Assentos de Nascimento n.°s 999/2008 e 998/2008 do Consulado Geral de Portugal em Genebra, juntos a fls. 43 e 45, respectivamente, dos autos do processo físico e cujos teores se dão por reproduzidos);
G Que nasceram no Brasil em 13 de Dezembro de 1994 e 5 de Outubro de 1992, respectivamente [Assentos de Nascimento referidos em F)];
H E cujos Assentos de Nascimento foram registados na Conservatória dos Registos Centrais em 4 de Novembro de 2008, conforme os registos n.°s 57161/08, Proc. 61000/08, e 57151/08, Proc. 60991/08, respectivamente, apostos nos respectivos Assentos de Nascimento;
I Em 24 de Maio de 2011, no Consulado Geral de Portugal no Rio de Janeiro, Brasil, o Réu prestou declaração para aquisição da nacionalidade portuguesa nos termos do art.° 3° da Lei n.° 37/81, de 3 de Outubro, com base no referido casamento (v. o Auto de Declarações junto a fls. 12 dos autos do processo físico e cujo teor se dá por reproduzido);
J No respectivo Auto de Declarações declarou:
- Que "tem ligação efectiva à comunidade portuguesa";
- Que "não foi condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de crime punível com pena de prisão de máximo igual ou superior a 3 anos, segundo a lei portuguesa";
-Que "não exerceu funções públicas sem carácter predominantemente técnico a Estado estrangeiro";
- Que "não prestou serviço militar não obrigatório a Estado estrangeiro"("Auto de Declarações" cit.);
K Juntou, com interesse para a decisão, além dos já referidos, os seguintes documentos:
- artigo de um jornal e depoimentos escritos ("declarações") de vários cidadãos que conhecem o Réu, destinados a provar a ligação efectiva do Réu à comunidade portuguesa (fls. 33, 128 a 133 dos autos, cujos teores se dão por reproduzidos);
- fotocópia de cartão de identificação de Procurador Federal (fls. 40 e 41);
- fotocópia da Lei nº 10 480, de 2 de Julho de 2002, que, além de regular outras matérias, cria a Procuradoria-Geral Federal e estabelece as suas atribuições e competências (fls. 56 a 77 dos autos, cujos teores se dão por reproduzidos);
- fotocópia da Portaria MDIC nº 65, de 18 de Abril de 2006, que aprovou o Regimento Interno do Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI (fls. 81 a 127, cujos teores se dão por reproduzidos);
- página do Diário Oficial da União n.° 10, de 14 de Janeiro de 2003, onde foi publicada a sua exoneração do cargo de Presidente do Instituto Nacional da Propriedade Industrial (fls. 80 dos autos);
- declaração emitida pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação atestando ter o Réu exercido a função de Assessora mento Superior - FAS e ter, posteriormente, sido titular do cargo de confiança de Coordenador de Assuntos Estratégicos, LT-DAS-101.2, da Secretaria Especial de Assuntos Internacionais daquele Ministério no período de 31-01-1986 a 17-08-1989, com competência para "analisar o quadro mundial referente às áreas prioritárias estabelecidas pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, acompanhando e estimulando as acções de cooperação nas mesmas, acompanhar as negociações bilaterais e multilaterais referentes a assuntos de natureza económica com reflexos no quadro nacional de ciência e tecnologia, acompanhar a evolução dos setores nacionais com reflexos no quadro internacional e executar outras atividades determinadas pelo Secretário-Especial de Assuntos internacionais" (fls. 149 dos autos);
- declaração atestando que o Réu é funcionário da Organização Mundial da Propriedade Intelectual desde l de Fevereiro de 2003 na qualidade de contratado permanente, da qual é Director Regional no Escritório do Brasil (fls. 35 a 38 dos autos); a "nota biográfica junta a fls. 136 dos autos);
L Com base na declaração referida em I) foi instaurado na Conservatória dos Registos Centrais o Processo n.° 25312/11 (Despacho da Conservadora Auxiliar de 4 de Abril de 2012, junto a fls. 161 a 163 dos autos do processo físico e cujo teor se dá por reproduzido);
M Cuja certidão foi mandada remeter ao Magistrado do Ministério Público junto deste Tribunal, sob invocação do art.° 10° da Lei n.° 37/81, de 3 de Outubro, na redacção da Lei Orgânica n.° 2/2006, de 17 de Abril (Despacho cit).




DO DIREITO


1. artº 9º a) Lei da Nacionalidade – ónus de prova do MP;

No acórdão deste TCAS tirado no rec. nº 4881/09 de 26.05.2011, nele se sufragou o entendimento sustentado no Ac. da RL de 6.2.2007, proc. nº 10.181/06-2, nos termos que se transcrevem:
"(..) enquanto no âmbito da versão originária a não ligação efectiva funcionava como facto impeditivo da aquisição de nacionalidade - cabendo a sua prova àquele que deduzia a oposição (art. 342º nº 2 do Cód. Civil) - na versão da Lei nº 25/94 a referida ligação configura-se como facto constitutivo do direito a tal aquisição, recaindo sobre quem o pretende fazer valer o ónus da respectiva alegação e prova. (...)
A Lei Orgânica nº 2/2006, de 17 de Abril, veio porém alterar o quadro legal de referência, e assim, designadamente, ao introduzir nova redacção no sobredito art. 9º da Lei da Nacionalidade (..).
Retomando pois o legislador de 2006, a configuração da ausência de ligação efectiva do interessado à comunidade nacional como facto impeditivo da aquisição da nacionalidade, com prova a cargo de quem deduzisse oposição àquela.".
Esta interpretação da lei quanto ao ónus da prova é confirmada pela exposição de motivos da Proposta de Lei nº 32/X (a qual esteve na origem da aprovação da Lei Orgânica 2/2006, de 17/4) - a qual pode ser consultada em www.parlamento.pt -, onde se escreveu o seguinte: “Proposta de Lei nº32/X - Exposição de Motivos
As profundas transformações demográficas ocorridas em Portugal ao longo dos últimos anos exigem uma adequação da Lei da Nacionalidade. (...)
O equilíbrio na atribuição da nacionalidade passa, contudo, por uma previsão de regras que, garantindo o factor de inclusão que a nacionalidade deve hoje representar em Portugal, não comprometam o rigor e a coerência do sistema, bem como os objectivos gerais da política nacional de imigração, devidamente articulada com os nossos compromissos internacionais e europeus, designadamente os que resultam da Convenção Europeia sobre a Nacionalidade, que Portugal ratificou em 2000.
Assim, na presente proposta de lei asseguram-se os seguintes objectivos: (...)
e) Alteração do procedimento de oposição do Estado Português à aquisição da nacionalidade por efeito da vontade, invertendo-se o ónus da prova quanto ao requisito estabelecido na alínea a) do artº 9º que passa a caber ao Ministério Público.
Regressa-se desse modo ao regime inicial da Lei nº 37/81 de 3 de Outubro. (..)

*
Na circunstância do caso concreto entende-se que o Ministério Público logrou provar o requisito negativo da ausência de ligação efectiva do interessado à comunidade nacional como facto impeditivo da ausência de ligação efectiva do interessado à comunidade nacional como facto impeditivo da aquisição da nacionalidade.


2. protecção do interesse da unidade da nacionalidade familiar;

Como se fundamentou no acórdão deste TCA tirado no rec. nº 5580/09 de 06.06.2013, citado no rec. 10796/14 de 06.02.2014, “(..) A aquisição da nacionalidade por efeito da vontade do estrangeiro casado com nacional português, o citado art. 3º, n.º 1, da Lei da Nacionalidade (Lei 37/81, de 3 de Outubro, na redacção da Lei Orgânica 2/2006, e art. 14º, nº 1, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa), é uma solução legal que se inspira na protecção do interesse da unidade da nacionalidade familiar.
O legislador não impõe este princípio da unidade, mas é uma realidade em que se encontra interessado e que por isso promove ou facilita sempre que ela seja igualmente querida pelos interessados.
Com efeito, o facto relevante para a aquisição da nacionalidade não é o casamento - o estabelecimento de uma relação familiar -, mas a declaração de vontade do estrangeiro que case com um nacional português - cfr., os citados arts. 3º, da Lei da Nacionalidade, e 14º, nº 1, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa.
Como refere Rui Manuel Moura Ramos, in “Do Direito Português da Nacionalidade”, 1992, pág. 151, “o casamento não é mais do que um pressuposto de facto necessário dessa declaração mas não é ele o elemento determinante da aquisição”.
Assim, no regime da nossa lei, a aquisição da nacionalidade portuguesa pode ter lugar desde que o estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português declare, na constância do casamento, que pretende adquirir esta nacionalidade.
Mas o efeito da aquisição da nacionalidade não se produz sem mais pela simples verificação do facto constitutivo que a lei refere – a manifestação de vontade do interessado.
De facto, importa também que ocorra uma condição negativa, ou seja, que não haja sido deduzida pelo Ministério Público oposição à aquisição da nacionalidade ou que, tendo-a sido, ela haja sido considerada judicialmente improcedente. (..)”

*
Aplicando as razões de direito acima expostas ao caso presente, quanto ao primeiro plano de partição do ónus probatório, temos que do ponto de vista do enquadramento jurídico da matéria de facto levada ao probatório e como já referido, o Ministério Público logrou provar a verificação no caso concreto do requisito negativo a que se refere o artº 9º a) da Lei da Nacionalidade no tocante ao fundamento de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa, a saber, a ausência de ligação efectiva do interessado à comunidade nacional.
E logrou provar o requisito negativo da “inexistência de ligação efectiva à comunidade nacional” na exacta medida em que o interessado e ora Recorrido nada carreou para os autos no sentido da existência de quaisquer elementos de ligação à comunidade nacional que se tivessem constituído na sua própria esfera jurídica, pelo contrário, tudo quanto carreou decorre de interposta pessoa, o cônjuge-mulher que adquiriu a nacionalidade portuguesa em 2008, acrescendo que sempre viveu até ao presente, com a idade de 55 anos, no seu País de origem, o Brasil, onde constituiu família e exerceu a sua vida profissional.


3. exercício de funções públicas sem carácter predominantemente técnico;

Acresce que o Ministério Público também provou o fundamento de oposição constante no artº 9º al. c) da Lei Orgânica nº 272006 de 17 Abril na exacta medida em que o ora Recorrido exerceu funções públicas sem carácter predominantemente técnico no seu País de origem, o Brasil, a saber, de Procurador Federal, Presidente do Instituto de Propriedade Industrial e de Coordenador de Assuntos Estratégicos, conforme matéria levada ao probatório no item K do probatório,
Como sustenta o ora Recorrente, tais funções implicam uma “participação activa no exercício de funções soberanas, para além de exigir da sua parte uma ligação de compromisso, lealdade e fidelidade para com o Estado Brasileiro”, evidente na medida da intervenção do Presidente da Rpública do Estado Brasileiro na sua exoneração por Decreto de 13 de janeiro de 2003, constante de fotocópia junta a fls. 80 dos autos.
Em termos conceptuais, por exercício de funções públicas sem carácter predominantemente técnico, entende-se a actividade em cuja componente não predomina o exercício da autoridade pública, trazendo à colação o Parecer nº P000221990 homologado em 29.05.1991da Procuradoria Geral da República, que se transcreve na parte julgada útil ao caso concreto,
“(..) "Há quem tome funções com carácter predominantemente técnico como funções dependentes de requisitos muito exigentes de preparação e especialização e chegue mesmo a afirmar que os estrangeiros só as poderão exercer, desde que não existam, em princípio, portugueses com aptidões semelhantes (x .
ontudo, há quem entenda que tais funções não correspondem a um grau maior ou menor de tecnicidade ou de especialização, mas sim ao predomínio de um quantum técnico por oposição a outro, de natureza diferente, que é na teleologia da norma, um quantum de autoridade pública, ligado aos direitos políticos (x1 ."
Por nós, chamamos a atenção, antes de mais, para a circunstância de a referência a funções ppúblicas com carácter predominantemente técnico ter de ser compreendida quer no plano desse preceito, quer no das suas relações com o nº 1 do mesmo artigo 15º. Por um lado,as funções públicas em geral encontram-se vedadas aos estrangeiros - não propriamente por causa da sua ligação aos direitos políticos, mas por causa da sua imediata e necessária relevância para a organização administrativa ou para a autoridade do Estado (daí, os arts. 21º, 269º, 270º e 168º, nº 1, alínea u)). Por outro lado, a abertura das que tenham carácter predominantemente técnico a estrangeiros é consoante com o princípio da equiparação de portugueses e estrangeiros.
"Funções públicas com carácter predominantemente técnico são - numa interpretação declarativa - as funções em que o factor técnico avulta sobre qualquer outro, seja este a prestação de serviços materiais, auxiliares ou administrativos, seja este o exercício de autoridade ou de chefia (não técnica). O único critério para as definir é o da prevalência desse factor e apoia-se tanto na letra como na vantagem (e não apenas necessidade) de em tais funções poder haver estrangeiros (e até em concorrência emulativa com os portugueses). Essa vantagem não existe quanto a funções com reduzida componente técnica e quanto a funções de direcção afins das funções de autoridade."
Na teorização da função pública advoga-se também a necessidade de interpretar o normativo "em termos hábeis". A intenção do legislador - salienta-se em primeiro lugar - seria a de "permitir que as pessoas colectivas de direito público possam utilizar, na qualidade de titulares de relações jurídicas de emprego público, estrangeiros ou apátridas de elevado nível científico (tanto no domínio da técnica propriamente dita como em domínios da cultura) quando não haja cidadãos portugueses à altura do desempenho das funções em causa", doutrina resultante "designadamente dos Pareceres da Procuradoria-Geral da República, proferidos nos processos nºs 258/77 e 260/77, constantes do Livro nº 61" (37 .
"Quanto ao sentido da expressão constitucional - prossegue-se - "exercício das funções públicas que não tenham carácter eminentemente técnico" (...), conclui-se dos Pareceres nº 23/81 e 152/81, constantes do Livro 62, que tal deverá ser interpretado não à luz do seu grau de tecnicidade mas, sim, de harmonia com o critério da prevalência dos componentes de autoridade ou de tecnicidade do cargo" (38 .
4.2. É um facto - já se deixou entrever - que as dificuldades interpretativas bateram também à porta deste Conselho, chamado, aliás, inúmeras vezes a pronunciar-se sobre questões mais ou menos directamente relacionadas com o questionado passo do artigo 15º, nº 2, da Constituição.
Tais dificuldades podem dizer-se neste momento superadas, mas a evolução verificada permite claramente concluir, nos seus momentos mais significativos, não ter sido percorrendo um caminho fácil que se atingiu na temática posição estável.
Vejamos.
Do anteriormente exposto ressaltaram as divergências de entendimento na votação do parecer nº 258/77, de 16 de Fevereiro de 1978.
A doutrina que prevaleceu - importada de anterior parecer nº 260/77, votado por unanimidade em 21 de Dezembro de 1977 (39 - foi no sentido de que os estrangeiros só podem exercer em Portugal funções públicas de carácter predominantemente técnico, entendendo-se por estas, conforme a síntese da conclusão 3., "funções que exijam habilitação muito especial, desde que não existam, em princípio, portugueses com semelhantes aptidões" (40 , com base nesta concepção se concluindo, ademais, que as "funções docentes no ensino básico ou secundário, não sendo, em princípio, de carácter predominantemente técnico, não podem nessa medida ser exercidas por estrangeiros".
Uma corrente minoritária sustentou, porém, diverso ponto de vista.
Ponderava-se, com recurso aos elementos histórico, racional, gramatical e sistemático, que a locução em causa, como vimos acima, "não exprime uma ideia de maior ou menor tecnicidade ou de especialização das funções, mas a de nelas predominar um quantum técnico por oposição a outro de natureza diferente que é, na teleologia da norma, um quantum de autoridade pública".
Por tais razões se qualificando as funções de docência aludidas na consulta "como predominantemente técnicas", posto que "no seu exercício não sobreleva o factor autoridade pública".
A posição referida permanece ainda minoritária no parecer inédito nº 31/79, votado em 15 de Março de 1979 (41 , mas torna-se já largamente maioritária no parecer nº 23/81, votado em 14 de Janeiro de 1982 (42 .
A sua conclusão 2ª., que se transcreve, reflecte com nitidez a mudança operada: "2º. A expressão "exercício de funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico", utilizada no artigo 15º, nº 2, da Constituição da República, deve ser interpretada não à luz do seu grau de tecnicidade mas sim segundo o critério de prevalência das componentes da autoridade ou de tecnicidade do cargo".
Considerou-se, consequentemente, ter "carácter" predominantemente técnico", nessa acepção, a função exercida por uma professora do ensino secundário que, por ser de nacionalidade espanhola, vira recusada a inscrição na Caixa Geral de Aposentações, gerando o conflito que originou o parecer. O parecer nº 152/81, de 4 de Março de 1982 (43 veio confirmar, por sua vez, a viragem verificada, anotando-se, aliás, que a única voz discordante aparece temperada já em termos de proximidade com a doutrina prevalecente (44 .
Finalmente, com o parecer nº 77/86, de 13 de Maio de 1985 (45 , vem a mesma interpretação a colher pela primeira vez sufrágio unânime, concluindo-se, na sua transposição para o objecto da consulta, terem "carácter predominantemente técnico as funções exercidas por um professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, pelo que um estrangeiro pode ser provido num lugar do quadro de docentes dessa Faculdade".
Temos, pois, que, na posição teórica do Conselho, as funções públicas vedadas aos estrangeiros em geral, por força do nº 2 do artigo 15º da Constituição, são aquelas em que predomina o exercício da autoridade pública, concepção que averba a seu favor, como demos conta, representatividade doutrinária (GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA, JORGE MIRANDA).
Sendo assim, observa-se uma notável semelhança - a componente da autoridade ou poder público - entre este critério e os critérios desenvolvidos pelas Instituições comunitárias e, nomeadamente, pelo Tribunal de Justiça, na determinação do sentido do conceito "empregos na administração pública" usado no artigo 48º, nº 4, do Tratado CEE.
Não pode, portanto, afirmar-se, assim propendemos a pensar, que exista incompatibilidade entre o preceito comunitário e o preceito constitucional português.
Neste sentido já, a inclinação incidentalmente manifestada no parecer nº 77/86 (cfr. ponto 7. in fine).
Há-de, todavia, ter-se presente, por exemplo, a polissemia ínsita no conceito "autoridade pública", variando de Estado para Estado, carente de uniformidade no âmbito das Comunidades. Donde, obviamente, possíveis divergências entre direito comunitário e direito nacional, cuja superação extravasa os objectivos da consulta (46 .
O mesmo se diga da concreta qualificação de uma ou outra actividade como partícipe ou não do atributo da autoridade pública.
Nos termos expostos deverá, consequentemente, ser apreciado o acesso de estrangeiros a sectores, nomeadamente, como os enunciados pela Comissão das Comunidades na declaração de 5 de Janeiro de 1988 - "Jornal Oficial das Comunidades Europeias", nº C 72/3, de 18 de Março de 1988, sob a epígrafe "Actividades afectadas pela acção no sector dos serviços públicos" (cfr. supra, ponto I, 1 e nota 31).
Conclusões:
III Termos em que se conclui:
1ª. Nos termos do nº 4 do artigo 48º do Tratado CEE, e consoante a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, o princípio fundamental comunitário da livre circulação de trabalhadores, tendo como corolário axial a não discriminação em razão da nacionalidade, "não é aplicável aos empregos na administração pública", no sentido de actividades específicas desta administração enquanto investida no exercício de poder e autoridade pública e na responsabilidade pela salvaguarda dos interesses gerais do Estado;
2ª. De harmonia com os nºs 1 e 2 do artigo 15º da Constituição da República Portuguesa, os estrangeiros gozam, em princípio, dos direitos e estão sujeitos aos deveres dos cidadãos portugueses, com excepção, entre outros, do "exercício das funções públicas que não tenham carácter predominantemente técnico", ou seja, as funções em que predomina o exercício da autoridade pública; (..)”.

*
Pelo que vem de ser dito procede a questão trazida a recurso ns itens 1 a 20 das conclusões.


***

Termos em que acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em julgar procedente o recurso e revogar a sentença proferida.
Custas a cargo do Recorrido.

Lisboa, 06.MAR.2014

(Cristina dos Santos) ………………………………………………………………….

(Rui Pereira) ………………………………………………………………………….


(Sofia David) …………………………………………………………………………