Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:13398/16
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:06/30/2016
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:PROVIDÊNCIA CAUTELAR; PERICULUM IN MORA; PONDERAÇÃO DE INTERESSES.
Sumário:i) Relativamente às nulidades secundárias, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem estas ser arguidas enquanto o acto processual não terminar (art. 199.º, n.º 1, do CPC), após o que devem considerar-se sanadas por ausência da sua tempestiva arguição.

ii) Preenchida a previsão do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do CPTA (na redacção então vigente, da Lei n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro), a providência será concedida sem ulteriores indagações; não sendo evidente a procedência da pretensão de fundo, a concessão da providência depende da demonstração do periculum in mora, em articulação com o critério do fumus boni juris, como resulta das alíneas b) e c) daquele n.º 1. Isto, sem prejuízo da limitação – pressuposto negativo – consubstanciada no princípio da proporcionalidade (art. 120.º, n.º 2) e, em qualquer dos casos, da observação das dimensões de necessidade e adequação (art. 120.º, n.ºs 3 e 4).

iii) Não se apresenta como manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada no processo principal, quando a causa de pedir assenta, nomeadamente, em erro nos pressupostos de facto e a matéria de facto indiciariamente provada é susceptível de sustentar essa conclusão.

iv) Mostrando-se indiciariamente provado que a casa objecto da demolição era a única habitação do requerente da providência, de acordo com um juízo de prognose é possível perspectivar a criação de uma situação de impossibilidade da reintegração específica da sua esfera jurídica, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente.

v) Apesar de reconhecida a lesão, em abstracto, do interesse público envolvido na defesa dos bens e valores referenciados no processo de Avaliação Ambiental do Plano Estratégico da Intervenção de Requalificação e Valorização da Ria ........., não vindo demonstrada a gravidade e superioridade da mesma por referência à conservação da edificação em concreto objecto dos autos, durante a pendência da acção principal, não pode concluir-se pela prevalência do interesse público perante os prejuízos invocados pelo destinatário da medida administrativa de demolição da sua (única) habitação, ficando assim sem alojamento.

vi) Embora se reconheça a validade dos danos que resultam para o interesse público da concessão da medida cautelar, no caso concreto estes não se mostram superiores aos danos (os quais serão de muito difícil ressarcimento) que resultam para o requerente da recusa da suspensão da eficácia do acto
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório

José ………………….., intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal de Loulé uma providência cautelar contra a P……… …………….., Sociedade …………………. e Valorização ………………, S.A., com vista a obter a suspensão de eficácia da deliberação do Conselho de Administração da Requerida, datada de 14-11-2014, que determinou a demolição da construção ali identificada, a sua desocupação e tomada de posse administrativa.

Por sentença de 19.02.2015, o Tribunal Recorrido deferiu o pedido cautelar formulado.

Inconformada, a Entidade Requerida interpôs recurso jurisdicional para este TCA, o qual por acórdão de 28.04.2015 concedeu provimento ao recurso e ordenou a remessa dos autos ao TAF de Loulé, a fim de aí se completar a sua instrução, concretamente inquirir as testemunhas arroladas e proferir nova decisão de mérito.

Realizadas as diligências entendidas como necessárias, o TAF de Loulé proferiu nova decisão em 31.07.2015, a julgar procedente o pedido cautelar.

Recorreu de novo a P……………., S.A, para este TCA, que, por acórdão de 26.11.2015, decidiu anular a sentença recorrida e ordenar a baixa dos autos ao TAF de Loulé para aí se dar “integral cumprimento ao Acórdão de 28.04.2015, deste TCAS”.

Chegados os autos ao TAF de Loulé procedeu-se à inquirição das testemunhas com gravação dos depoimentos e em 4.03.2016 foi proferida nova decisão que decretou a providência cautelar solicitada.

De novo inconformada, a Entidade Requerida interpôs recurso para este tribunal, tendo na respectiva motivação formulado as seguintes conclusões:

A) Salvo o devido respeito, é ilegal o despacho recorrido, proferido na audiência de 15/02/2016 (a fls. 776-778 do Sitaf), que indeferiu o requerimento do mandatá­rio da Recorrente para breves alegações orais, finda a produção da prova, por vio­lação dos artigos 3°, n°3, 415°, n°2 e, em particular, 295° do C.P.C., aplicável às providências cautelares, por remissão do artigo 365°, n°3 do C.P.C., todos aplicá­veis no âmbito do contencioso administrativo por força do artigo 1° do C.P.T.A.

B) Ao contrário do despacho recorrido, não existe qualquer motivo ou norma em con­trário no CPTA que justificasse afastar estas normas do âmbito do contencioso administrativo, que mais não são do que o corolário do princípio do contraditório, como é próprio de um Estado de Direito (arts. 2°, 20°, n°4 e 208° da CR?) aten­dendo, ainda à expressa remissão do artigo 1° do C.P.T.A., supletivamente.

C) Consequentemente, encontra-se inquinado de nulidade todo o processado, desig­nadamente a sentença recorrida, por preterição de uma formalidade essencial, pre­vista na tramitação típica do procedimento, susceptível de influir no exame e deci­são da causa (sem prejuízo do tribunal "ad quem" poder julgar por substituição, a favor da Recorrente - art. 149°, n° 1 do CPTA).

D) O presente recurso também vem interposto da sentença de 04.03.2016 (fls 727 e ss.), que decidiu julgar procedente e deferir a presente providência cautelar de suspensão de eficácia, com custas a cargo da ora Recorrente, a qual foi pro­ferida em consequência de anulação, duas vezes, pelos doutos Acs. do TCAS de 28/04/2015, proc. n°12110/15 e de 26/11/2015, proc. n°12629/15, pelo que o recurso deverá ser distribuído directamente ao mesmo senhor juiz desembar­gador relator, nos termos do artigo 218° do C.P.C.

E) Em face da prova documental e testemunhal carreada nos autos, a sentença recor­rida sofre de erro grosseiro no julgamento da matéria de facto, pois que não se provou que o Requerente e ora Recorrido não tem mais qualquer outra residência, nem é proprietário de qualquer casa de habitação, como por si alegado.

F) E não fez essa prova, cujo ónus impendia sobre o Requerente, seja reportada à da­ta do término da instrução no procedimento administrativo, que é a data que aqui releva e importa considerar (art. 100° do CPA/91, i.e., a data do projecto de decisão final, no sentido de a construção em causa não ser considerada primeira e única habitação, notificado por ofício de 20/07/2010, nos termos da alª O) do probatório), seja reportada à data do encerramento da audiência de julgamento.

G) A Recorrente considera incorrectamente seleccionada e julgada a matéria de facto, por omissão de selecção e decisão sobre os factos essenciais alegados nos artigos 1°, 22°, 26 (fls. 146 Sitaf), 35°, 41°, 42° (fls. 168 Sitaf), 135° a 144° (fls. 311-313) da Oposição, completados com os factos instrumentais resultantes da instrução da causa indispensáveis para a boa decisão da causa, que devem ser dados "prova­dos", estando infirmada a alegada ausência de outra habitação do Recorrido, em face da contraprova (art.346° do C.C), concretamente indicada nestas conclusões

H) Do mesmo modo, a Recorrente considera incorrectamente julgada a matéria de facto, no que respeita à resposta dada às alªs K), M), Q), S), T), U), W), V), X), Y), Z), AA) e BB) do probatório, que deve ser alterada para "não provado".

I) Com a devida vénia, o princípio da liberdade de julgamento não significa que o juiz é livre para escolher os factos e valorar a prova de forma subjectiva ou arbi­trária, pois que o mesmo está vinculado ao indicado critério de selecção dos fac­tos, bem como à força probatória fixada na lei, designadamente nos artigos 376°, n° 1 e 358°, n°s 1 e 2 do C.C., sendo que a livre apreciação das provas não abrange os factos que estejam plenamente provados por documentos, confissão ou acordo - como disposto no artigo 607°, n°5, parte final do CPC.

J) No caso vertente, todos os factos acima indicados estão plenamente provados, por documentos, confissão ou acordo. Do processo constam todos os elementos de prova, pelo que o Tribunal "ad quem" poderá (e deverá) ampliar e alterar a deci­são da matéria de facto - art. 662°, n°s l e 2, al.ª c) do C.P.C.

K) Ao contrário da sentença recorrida, o que verdadeiramente resultou da instrução e se comprovou, conforme os concretos meios de prova indicados que impunham decisão diversa, é o que segue nas conclusões L) a Z) destas alegações, a saber:

L) O Requerente é filho de José ………….. e Maria ………..(facto B) do probató­rio), acontece que estes interessados faleceram antes da decisão final (prova: cf. Declaração do Requerente, por confissão, nos artigos 2° e 15° do RI e Mo­delo I do Imposto de Selo a fls. 150, 150vs e 151 do PI, relativo à mãe).

M) Encontra-se inscrito a favor da falecida mãe do Requerente (MARIA ………….., Divorciada, Morada: Rua ………….., n°7, 3°, ……..), pela AP. ….. de 1997/04/30, o registo definitivo da aquisição da fracção desig­nada pela letra "F", correspondente ao 2° andar direito, matriculada na 1a Con­servatória do Registo Predial de .............. n° ……../………, e inscrita na matriz sob o artigo U-………..-F da união das freguesias de ……… e São …………, ………. e ……. (prova: cf. Certidão Permanente n°…………………. a fls. 514 do Sitaf e IMI de 04/03/2009 a fls. 514 do Sitaf)

N) O Requerente era filho único e herdou da mãe (MARIA ……………) a mesma fracção autónoma invocada, situada em .............., inscrita na matriz predial urba­na sob o artigo U-…… da união das freguesias de .............. e S. .............. da .............., ---------- e .............. (antes inscrita sob o n° 792 - F da freguesia de .............. e S. .............. da ..............) - (prova: cf. certidão dos Serviços das Finanças de ....... junta como Doc. 14 do RI e contante no PI (fls. 153); Modelo I do Imposto de Selo (fls. 150, 150vs e 151 do PI), Certidão Permanente n°……………………… a fls. 514 do Sitaf, cf. declarações a fls. 81-82 do PI)

O) Conforme bilhete de identidade militar de 16/05/2008, pode ler-se que o Re­querente morava em .............., i.e., na mesma fracção que era da sua mãe (MARIA ………….) e passou a ser sua por herança - (prova: cf. fls. 72 o processo ins­trutor, cf. fls. 392 do Sitaf)

P) Além de possuir uma habitação em .............. de que é proprietário (certidão per­manente a fls. 515 do Sitaf), reside noutra em ......., nomeadamente na ……………., n° 10, 2° Esq. - (prova: cf. declarações a fls. 32-33, 68, 81-82 do Processo Instrutor, cf. contas de água e luz fls. 19 a 25 do Processo Instrutor, cf. Contas de água e luz a fls. 393 e 394 do Sitaf, cf. Domicílio fiscal no regis­to de contribuinte a fls. 395 do Sitaf)

Q) Salvo o devido respeito, o facto G) do probatório sofre de erro de julgamento da matéria de facto, porque incompleto, na medida em que baseou a sua decisão no doc. n°16 com o R.I., pelo que deveria necessariamente dar como provado o rele­vante local de residência indicado no mesmo documento, ou seja: Em 04/08/2009, os pais do Requerente outorgaram-lhe Procuração em nome de ambos, na qual se lê: «JOSÉ …………………, divorciado, residente na ………….., n°10, 2° esquerdo, 800-544 .......» - (prova: cf. alínea G) do probatório que reproduz o doc n° 16 do R.I., cf. a mesma procuração a fls. 31-35 do Processo Instrutor)

R) A notificação para audiência dos interessados a que se refere o facto O) do probatório, de 20/07/2010, foi notificada nesta mesma morada, na ………….., n°10, 2° ESQ, 800-544 ......., e recebida pelo Requerente. - (prova: cf. fls. 77 e 80 do Processo Instrutor).

S) Por escrito entrado 29/07/2010, assinado pelo próprio Requerente, a rogo de seus pais, foi por ele declarado: - (prova: cf. fls. 81-82 do Processo Instrutor)

Justificação:
Urb. ……………., n° 10-2° Esq. 8005-544 .......: é a direcção de correspondência indicada à ……… e …….por José ……………… em quem José ………. e Maria ……… seus pais, delegaram poderes de representação por procuração notarial (cópia do documento entregue na P…….).
Direcção de morada para a F………. e E…….. é a do contrato referenciada em todas as facturas.
Direcção de Morada: é a indicada à Direcção de Finanças de ....... e à Segurança Social, organismos do estado para quem a direcção de correspondência tem de coincidir (nem sempre foi assim) com a direcção de morada.
Devo acrescentar, embora a Sociedade ....... tenha Urb. ……………, n° 10-2° Esq. 8005-544 ....... como direcção de correspondência também pode mandar a dita correspondência para a direcção de morada, a saber: José ………. ou Maria ………, Praia de ....... Prolongamento ………. - Apartado …… Praia de ....... 8005-520 .......: é indiferente.
(…)
José ………. de 90 e Maria …… de 91 anos, devido a doenças crónicas e prolongadas, que criaram em ambos grande dependência, têm passado, desde fins de 2008, longos períodos junto do filho. Desta situação resultou a pouca visibilidade e o consumo residual de electricidade e água.

T) O facto Q) do probatório sofre de erro de decisão da matéria de facto, porque não é isso que se lê no documento a fls. 87 do Processo Instrutor, que impunha decisão diversa, e por isso a resposta dada deve ser alterada para o teor do mesmo docu­mento, ou seja, foi «feita uma consulta nos serviços da Segurança Social relati­vamente às moradas registadas no sistema para o beneficiário José .......».

U) O facto M) do probatório sofre de erro de julgamento da matéria de facto, porque não é isso que resulta da certidão permanente a fls. 499-514 do Sitaf, que impunha decisão diversa da recorrida, ou seja, o imóvel adquirido por Maria ......... não é " o 3° andar do n°7 do imóvel sito na Rua…………., em .......", como erradamente indicado na al.ª M) do probatório sentença, mas sim a fracção "F", correspondente ao 2° andar direito, matriculada na 1a Conservatória do Registo Predial de .............. sob o n° …………., e inscrita na matriz sob o ar­tigo U-.. da união das freguesias de .............. e São .............. da .............., P………….e ...............

V) Não foi oferecido nenhum elemento de prova, nada se provou, nem consta do pro­batório, sobre o ponto de saber se o Requerente se dedica à actividade no viveiro de amêijoas, sujeito a prova legal - art. 34° do R.I., manifestamente não provado.

W) Para formular a sua convicção acerca do requisito de primeira (e única) habitação do Requerente, a sentença recorrida baseou-se nos factos provados nas alíneas B), C), E), F), G), N), O), P), e Q) do probatório; sucede que todos estes factos dizem respeito aos pais do Requerente (interessados à data, mas entretanto falecidos), e não respeitam ao próprio Requerente, único actual interessado e parte desta acção.

X) Sendo as alíneas K) (art. 26° da Oposição e doc. n°l), M), Q), S), T), U), W), V), X), Y), Z), AA) e BB) do probatório infirmadas pela contraprova (art. 346° do Cód. Civil), que impunha decisão diversa da recorrida, concretamente, morada no bilhete de identidade militar (fls. 392 do Sitaf) e certidão predial comprovativa da propriedade do referido apartamento em .............. (fls. 499-514 do Sitaf); com­provativo de residência na ………………., n°10, 2° ESQ, 800-544 ......., indi­cada pelos seus próprios pais, solenemente, na procuração notarial outorgada em 04/08/2009 (alínea G) do probatório que teria de reproduz o doc n°16 do R.I.), o próprio Requerente ter recebido e assinado o A/R da notificação envia­do para esta morada em ....... (al.ª O) do probatório e fls. 77 e 80 do processo instrutor), o próprio Requerente a rogo de seus pais ter declarado que era indi­ferente as notificações serem enviadas para a Praia de ....... ou para a ……………, n° 10, 2° Esq, em ....... (fls. 81-82 do processo instrutor), o resultado da acareação (acta a fls. 719 e gravação de 02:09:50 a 02:29:24) o depoimen­to do vizinho Manuel …………….., única testemunha que não tem relação de pa­rentesco ou afinidade com o Requerente (gravação de 00:00.00 a 00:15:19), bem como os concretos meios de prova indicados em L) a X) destas conclusões

Y) A sentença recorrida sofre de erro grosseiro na valoração e julgamento da ma­téria de facto, tendo fundado a sua decisão das al.ªs T), U), W), V), X), Y), Z), AA) e BB) do probatório com base no depoimento de Maria ……………………. (gravação de 00:57:10 a 01:37:10), que aos costumes (fls. 719), declarou ser a namorada (em união de facto) há 20 anos e que declarou ali também co-habitar, o filho da namorada e uma tia - todos com interesse directo na demanda - em de­trimento da versão dada pela testemunha Manuel ………….., vizinho, a única tes­temunha que não tem relação de parentesco ou afinidade com o Requerente (gravação de 00:00.00 a 00:15:19)

Z) Ao contrário da sentença, provou-se que somente após a morte dos pais (tendo o óbito da mãe ocorrido em 25/06/2011), o Requerente foi morar na construção B143 S em causa. Ou seja, o Requerente age em fraude e alterou o local da sua verdadeira residência, muito após o encerramento da instrução levada a cabo no processo administrativo, com o único propósito de obter uma vantagem ilegí­tima, não fazendo jus a realojamento, que não carece e que, aliás, nunca requereu.

AA) A sentença recorrida violou frontalmente o ónus de alegação e prova da matéria de facto integradora dos requisitos legais de que depende a concessão da providência requerida, que recai sobre o requerente da suspensão de eficácia [cfr. arts. 342.° do Código Civil, 114.°, n.°3, al.g), 118° e 120° do CPTA, 365.°, n.°1 do CPC]

BB) Como referido no sumário do douto acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul de 28/04/2015, proc. n°12110/15, aqui em causa: "É ao Requerente da provi­dência que compete demonstrar - ónus de alegação e de prova que lhe está come­tido de acordo com as regras gerais do ónus da prova -, o (eventual) prejuízo qualificado derivado da execução do acto suspendendo", ónus de alegação e pro­va que o Requerente não logrou minimamente satisfazer.

CC) Acresce o erro de valoração do facto D) do probatório, referente ao atestado da Junta de Freguesia de Montenegro, de 01/09/1987, manifestamente desactualiza­do, e referente ao pai do Requerente, insusceptível de preencher o requisito de primeira e única residência, para efeitos do artigo 37° do POOC, e que não atesta a razão de ciência, pelo que tanto o atestado como a sentença recorrida violam o disposto no artigo 34°, n°l do Decreto-Lei n° 135/99, de 22 de Abril.

DD) A sentença recorrida também operou uma errada interpretação e aplicação das re­gras de direito probatório material e de repartição do ónus da prova do requisito de primeira e única habitação, decorrentes do artigo 37°, n°2, alínea b), do POOC (que exige uma confirmação, liqued) e do artigo 88°, n° 1 do CPA, quando, todavia, o que se apurou é que o Requerente dispõe de habitação alternativa em .............. e também em ......., na ………………., n°10, 2° ESQ, ........

EE) A sentença recorrida sofre de erro de julgamento, por errada subsunção e estatuição do artigo 120°, n° 1, al.ª b) do CPTA, porque não se encontrarem preenchidos os requisitos ao fumus boni iuris e periculum in mora, antes pelo contrário.

FF) Nada se alegou, nem provou, no procedimento ou nestes autos, que evidencie a impossibilidade do Requerente obter habitação pelos próprios meios, seja por ar­rendamento, comodato, alojamento, compra, ou qualquer outro título, como qual­quer cidadão.

GG) Não ocorre, pois, qualquer violação daquilo a que VITAL MOREIRA e GOMES CANOTILHO chamam «o direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma» (CRP Anotada, 3ª ed., 1993, p. 344).

HH) Face aos elementos do probatório, que devem ser seleccionados e provados com os factos instrumentais indicados, é evidente que a alegação do Requerente não tem a menor hipótese de procedência na pretensão a formular por ele na acção principal (cf. parecer do Ministério Público no processo principal de que esta pro­vidência depende (n° 115/15.0BELLE), a fls. 499 do Sitaf, secundado pelos dou­tos pareceres a fls. 515, 518, 521, 527 do Sitaf.

II) A questão suscitada pelo Requerente como causa de pedir não é nova, e já tem vindo sucessivamente a ser indeferida por este TCAS, como a título exemplificativo referimos os doutos acórdãos de 09/07/2015, proc. n°12253 (a fls. 532 do Sitaf), de 21/08/2015, proc. n°12360/15, e de 21/08/2015, proc. n° 12385/15.

JJ) No cerne de toda a alegação do Requerente está um flagrante erro, porque o Re­querente confunde o Plano Estratégico com os instrumentos de gestão territorial.

KK) O Plano Estratégico é apenas um documento de programação e de enquadra­mento da acção, tendo como finalidade a promoção da coordenação de actuações de vários agentes territoriais, integrando e enquadrando as mesmas, tendo em vista o objectivo comum.

LL) Não sendo o Requerente proprietário da construção aqui em apreço (que reconhe­ce ter sido edificada no domínio público marítimo), não há que proceder a qual­quer expropriação: este instituto só é aplicado quando é necessário que um deter­minado bem privado passe para a esfera pública, o que não é o caso dos autos.

MM) O direito de utilização privativa do DPH só pode ser atribuído por licença ou por concessão, qualquer que seja a natureza e a forma jurídica do seu titular, não po­dendo ser adquirido por usucapião ou por qualquer outro título - artigos 17° e 18° do Decreto-Lei n°468/71, de 05/11, conjugado com os artigos 3° e 55° do Decreto-Lei n°46/94, de 22/02, actualmente correspondentes ao artigo 59°, n°2 da Lei n° 58/2005, de 29/12 (Lei da Água), e Decreto-Lei n° 226-A/2007 e de 31/05.

NN) Sendo absolutamente infundadas e ilegítimas quaisquer expectativas que o Reque­rente possa ter tido, bem sabendo que não dispunha de título jurídico para tal.

OO) Face ao exposto, é forçoso concluir que a sentença recorrida violou o artigo 120°, n° 1, alínea b) do CPTA, ao considerar encontrar-se preenchido o requisi­to "aparência de bom direito", pelo contrário, o que ocorre é "fumus malus": é manifesta a falta de fundamento da pretensão a formular na acção principal.

PP) Com a devida vénia, a sentença recorrida também sofre de erro de julgamento por ter julgado verificado o requisito do periculum in mora, previsto na alínea b), do n° 1, do artigo 120°, do CPTA.

QQ) Desde logo, porque não foi seleccionado, nem julgado, qualquer facto constitutivo do requisito atinente ao periculum in mora, como seria mister, em face do ónus geral de alegação e prova, em clara violação dos artigos 342° do Código Civil, 114°, n°3, al. g), 118.° e 120.° do CPTA, 5°, n°1 e 365.°, n.° 1 do C.P.C.

RR) Nada se provou acerca do (eventual) prejuízo qualificado derivado da execução do acto suspendendo, que não é automático como decorrência necessária da demoli­ção, ao contrário do que sugere a sentença, mas carece de alegação e prova (ainda que indiciaria), como requisito da providência cautelar, que não foi produzida.

SS) Não se verifica o requisito do periculum in mora, desde logo, porque não se con­firmou que a construção na ilha barreira é a primeira e única habitação do Reque­rente, antes pelo contrário; comprovou-se que a construção aqui em causa foi edi­ficada, sem qualquer licença, em local classificado pelo artigo 37° do POOC como "espaços edificados a renaturalizar" (pressupostos de facto que o Requerente não coloca em causa), sendo que as construções ilegalmente edificadas, a descoberto de uso privativo, não têm qualquer valor comercial (art. 202°, n°2, C.C).

TT) Tão-pouco se pode considerar atendível um fundado receio nestas circunstâncias, onde o prejuízo invocado é apenas indemnizatório; e não existe qualquer legítimo direito privado a tutelar, mas antes o bem público protegido e até mesmo criminalmente relevante, nos termos da Lei n° 32/2010, de 02/09, que aditou o crime de Violação de regras urbanísticas, no artigo 278°-A, n°l do Código Penal.

UU) Sem conceder, a douta sentença recorrida também operou uma errada ponderação dos interesses em presença, tendo violado o requisito previsto no artigo 120°, n°2 do CPTA, já que os danos que resultam para o interesse público da concessão se mostram desproporcionais e muito superiores àqueles que poderiam resultar para o Requerente da sua recusa, conforme tem sido jurisprudência pacífica e reiterada deste TCAS em inúmeros acórdãos e pareceres do M.P..

VV) Deve ser revogada a decisão quanto a custas, e as mesmas ficarem a cargo dos re­corridos, por se considerar que às mesmas deram causa, nos termos e para os efei­tos do disposto nos artigos 527° e 539° do Código de Processo Civil.

WW) Ao não ter julgado de acordo com as antecedentes conclusões, a douta sentença recorrida violou as sobrecitadas disposições legais.

NESTES TERMOS, e com o douto suprimento de V. Exas., deve ser con­cedido provimento a esta apelação e, consequentemente, revogada a douta deci­são recorrida e substituída por outra decisão que indefira a providência cautelar, por não provada, absolvendo-se a Recorrente do pedido, como é de JUSTIÇA!

MAIS REQUER a V. Exas. excepcional urgência e prioridade na tramita­ção e julgamento do presente recurso, tendo em conta o interesse público dos actos e intervenções suspendendos, legalmente reconhecido pelo n°3 da Resolução do Con­selho de Ministros n°90/2008, de 3 de Junho, e as invocadas desproporcionalidade e grave lesão do interesse público enquanto a decisão recorrida se mantiver.

Contra-alegou o Recorrido, pugnando pela manutenção do julgado e apresentando, para tanto, a seguinte e única conclusão:

Assim, tendo em consideração os Doutos Acórdãos do TCAS, acima citados, a Douta Sentença recorrida, não padece de qualquer nulidade ou erro de julgamento, estando conforme com o direito, pelo que deverá ser confirmada.



Neste Tribunal Central Administrativo, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.


Com dispensa de vistos, atenta a sua natureza urgente, vem o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para decisão.


I. 1. Questões a apreciar e decidir:

As questões suscitadas pelo Recorrente, delimitadas pelas alegações de recurso e respectivas conclusões, traduzem-se em saber:

- Se o tribunal a quo incorreu numa nulidade processual ao não ter deferido o requerimento da ora Recorrente para alegar, finda a inquirição das testemunhas;

- Se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de facto, ao ter concluído pela ausência de outra habitação do Recorrido,

- Se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao não considerar como manifesta a falta de fundamento da pretensão a formular na acção principal;

- Se sentença recorrida incorreu em erro de julgamento por ter julgado verificado o requisito do periculum in mora, previsto na alínea b), do n° l, do artigo 120°, do CPTA; e

- Se sentença recorrida errou no juízo que fez de ponderação dos interesses em presença, tendo violado o requisito previsto no artigo 120°, n°2 do CPTA, já que os danos que resultam para o interesse público da concessão se mostram desproporcionais e muito superiores àqueles que poderiam resultar para o Requerente da sua recusa.



II. Fundamentação

II.1. De facto

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos, em decisão que aqui se reproduz ipsis verbis:

«A) Pelo ofício da Entidade Requerida de 20014.11.18, com o assunto:
"Espaços Edificados a Renaturalizar na …………….
Notificação da decisão final
Núcleo Nascente da …………., construção n°……
Interessado: José ….......
Processo n° ……….. do Núcleo ………. ", o Requerente foi notificado para a AVª Nascente- ………. nºB-….., Praia de ......., 8005-520. ......., da deliberação de 2014.11.14 (cfr doc n° 1 da petição inicial);

B) O Requerente é filho de José ....... e Maria ......... (cfr doc n°2 da petição inicial);

C) Na Licença para cais, emitido em 1954.08.24, pela Câmara Municipal de ......., em nome do pai do Requerente pode ler-se designadamente o seguinte: "profissão: marítimo, residente em Praia de ....... " (cfr doc n° 4 da petição inicial);

D) No Atestado, emitido em 1987.09.01, pela Junta de Freguesia da Sé, em ......., pode ler-se designadamente, o seguinte: "Atesto (...) que José ....... de 65 anos de idade, no estado civil de casado, de profissão pescador (...) natural da freguesia de São Pedro, concelho de ......., residente na Praia de ......., …………, desta freguesia" (cfr doc n° 8 da petição inicial);

E) No Cartão de Mariscador, emitido em 1998.01.06, pela Capitania do Porto de ......., em nome de José ......., pode ler-se designadamente o seguinte: "Residência: ……… - Ilha ……….. Praia de ......." (cfr doc n° 9 da petição inicial);

F) Na Acta da 2ª Conferência de 1991.04.10, lavrada no tribunal de Família e Menores de ......., pode ler-se designadamente, o seguinte: "a utilização da casa de morada de família fica por acordo de ambos adjudicada à Cônjuge mulher" (cfr doc n° 10 da petição inicial);

G) Em 2009.08.04, os pais do Requerente outorgaram-lhe Procuração em nome de ambos (cfr doc n° 16 da petição inicial);

H) No Relatório de Avaliação – Casa na Ponta Nascente da Praia de ......., com a identificação do Requerente, pode ler-se designadamente, o seguinte: “O valor do recheio é de aproximadamente 6000.00€.
É portanto parecer do Perito Avaliador, depois de ponderados e homogenizados os valores em causa, que deve avaliar a habitação em causa, propriedade do Requerente, em 50.000,00€” (cfr doc nº 13 junto com a petição inicial);
I) No Edital da Sessão Pública de 2008.02.29, da Assembleia Municipal ……….., consta designadamente o seguinte: “c) – Proposta 11/2008 – Aprovação da participação do Município de ………….na Sociedade Anónima de Capitais exclusivamente públicas – ....... Litoral, SA – ………….. (…)” (cfr doc nº 20 junto com a petição inicial);

J) No Edital nº 2/2008, de 2008.03.03, da Assembleia Municipal de …….., consta designadamente, o seguinte: “1. Aprovar, sob proposta da Câmara, o Quadro Estratégico da Operação produzida pelo grupo de trabalho nomeado pelo Ministro do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional, o qual será desenvolvido para um Plano Estratégico contendo os objectivos da “....... LITORAL ………… – Operação Integrada de Requalificação e Valorização da ……………”.
Posto à votação foi aprovado por unanimidade” (cfr doc nº 22 junto com a petição inicial);

K) Data de Janeiro de 2010, a ‘Avaliação Ambiental do Plano Estratégico da Intervenção de Requalificação e Valorização da ……………, elaborado pela Entidade Requerida (cfr doc junto com a oposição);

L) Em 2015.01.12, a Entidade Requerida emitiu Resolução Fundamentada (cfr doc junto com a oposição);

M) Na Certidão Permanente do Registo Predial Online de 2015.06.05, que Maria ......... adquiriu em 1997.04.30, o 3º andar do nº 7 do imóvel sito na Rua ……………….., em ....... (cfr doc junto a fls 499 e ss);

N) Na Declaração de 2010.01.19, a Requerida declara designadamente que “José ....... do nº ……….do Núcleo Nascente da Ilha de ....... entregou os seguintes documentos: (…) Declaração assinada pelo casal, atestando sob compromisso de honra que têm residência permanente na habitação, conforme modelo a fornecer pela ....... ……… ou com conteúdo similar” (cfr fls 6 do processo administrativo);

O) Pelo ofício de 2010.07.20, a Entidade Requerida, notificou o Requerente, nomeadamente do seguinte:
“Concluída a instrução do procedimento, comunica-se a V. Ex.ª o sentido provável da decisão final, a qual será a não consideração da construção supra identificada como única e primeira habitação, pelos factos indicados em anexo. (…)
Existência de documentação mencionando morada diversa da invocada como primeira habitação no núcleo: Morada: Urb. …………….., nº 10 – 2º Esq. .......
Documento: Facturas da E…….. e F……… )…)” (cfr fls 77 a 80 do processo administrativo);

P) Na sequência do ofício referido em O), o Requerente pronunciou-se em conformidade (cfr fls 81 e 82 do processo administrativo);

Q) Os técnicos da Entidade Requerida, em 2010.09.14, no historial, do Processo de Identificação das Situações de Primeira Habitação, referem, designadamente:
“Data de alteração Morada
(…)
12-12-2007 URB ……… 10 2 ESQ, 8000-544 .......
26-05-2009 PRACETA PROF. ……….. N8 RC DTO, 8000-271 .......
29-12-2009 AV ……………… …….. PRAIA DE ....... AP . …………, 8005 -520 .......” (cfr fls 87 do processo administrativo).

R) Os pais do Requerente viviam na casa …………da Praia de ....... à qual mesmo quando trabalhava o Requerente ia (cfr testemunho de Manuel …………..);

S) O Requerente desde há uns anos vive, come e dorme, na casa …………. da Praia de ....... (cfr testemunho de Manuel ………………);

T) O Requerente vive permanentemente na casa n° ……….. da Praia de ....... desde a reforma (cfr testemunhos de Hugo ……………, Maria ……………. e Matilde …………..);

U) Desde 2003, altura em que passou à reserva, que o Requerente vive na casa ………… da Praia de ....... (cfr testemunhos de ……………….. e Matilde …………..);

W) Durante o período de doença dos pais, estes foram para a casa da tia do Requerente na ………………., em ......., e depois para a casa dos filhos do Requerente, na …………., em ......., sendo que o Requerente mesmo durante essa fase apesar de acompanhar a doença dos pais sempre morou na casa n°…………., na Praia de ....... (cfr testemunhos de Hugo ……………, Maria …………… e Matilde …………);

V) Na fase de doença dos pais, estes foram cuidados e acompanhados por Maria …………., e por uma questão de proximidade quer da cuidadora quer de assistência médica que lhes era prestada, foram para a casa da tia do Requerente na Rua ………….., em ....... (cfr testemunhos de Hugo ……………… e Maria …………..);

X) O Requerente sempre teve a casa dos pais como casa dele (cfr testemunho de Maria ……………..);

Y) O Requerente não é proprietário de nenhuma casa em ....... (cfr testemunhos de Maria ……………… e Matilde ………..);

Z) A morada que o Requerente a certa altura deu para receber correspondência, na ……………, em ......., é a da casa dos filhos e tal deveu-se à vandalização das caixas do correio e ao extravio da correspondência na Praia de ....... (cfr testemunhos de Hugo ……………. e de Maria ……………………);

AA) A fracção habitacional dos filhos do Requerente sita na ………, em ......., foi comprada com dinheiro dado pela tia do Requerente e pelo avô materno (cfr testemunhos de Maria ………………..e Matilde …………);

BB) O Requerente não tem outra casa que não a n° ……., na Praia de ....... (cfr testemunhos de Hugo ………………., Maria …………… e Matilde ……………).


II.2. De direito

Começa a Recorrente por imputar ao tribunal recorrido o cometimento de uma nulidade secundária, com influência na decisão da causa. Alega que, apesar de o ter requerido, não lhe foi deferido o requerimento para alegar oralmente, finda a inquirição das testemunhas.

Vejamos.

Desde já se diga que se apresenta como discutível a admissibilidade de alegações orais pelos advogados após a produção de prova, em sede de procedimentos cautelares. Com efeito, nada se prevê a esse propósito na marcha do processo consagrada no CPTA, não se fazendo qualquer alusão a um momento para alegações ou para debate (como se prevê no art. 91.º do CPTA, na redacção aplicável).

Como ensinam Mário Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, (cfr. Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, 3.ª. ed., 2010, p. 791): “o artigo 119°, n .° 1, fixa um prazo para o juiz ou relator proferir a decisão final, que se conta da «data da apresentação da última contestação ou do decurso do respectivo prazo, ou da produção de prova, quando esta tenha tido lugar», o que parece significar que, mesmo quando se realizem diligências de prova, não há espaço para qualquer outra formalidade processual que não seja a imediata decisão sobre o deferimento ou indeferimento da providência [sublinhado nosso]”.

E era também essa a posição adoptada por Abrantes Geraldes em face da anterior redacção do CPC, se bem que o Autor mencionasse como defensável uma outra solução que admitisse o enxerto de abreviadas alegações, com algum apoio no art. 3.º, n.º 3, do CPC (cfr. Temas da Reforma do Processo Civil, III vo., 2.ª ed., 2000, p. 209).

Na verdade, o (actual) art. 295.º do CPC veio clarificar a questão, prevendo expressamente que finda a produção de prova, cada um dos advogados, pode fazer uma breve alegação oral. Ou seja, no processo civil, mais concretamente na marcha do processo cautelar comum, são admitidas alegações orais breves, após a produção de prova.

No entanto, certo é que o legislador da Reforma do CPTA optou por não incluir esta previsão na redacção dada ao actual art. 118.º; isto apesar de conhecer as alterações efectuadas ao processo civil, que aliás refere no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro, invocando a necessidade da harmonização do texto do CPTA com a reforma profunda efectuada ao CPC. Sendo que optou por efectuar alterações expressas neste domínio, como fez ao nível dos meios de prova admissíveis, nada dizendo quanto à admissibilidade de alegações nesta sede. E embora o art. 1.º do CPTA remeta subsidiariamente para o processo civil, a sua aplicação subsidiária (sempre com as necessárias adaptações), enquanto tal, só será autorizada se o princípio da especialidade do processo o permitir.

Sem embargo do que se vem de dizer, certo é que a questão que vem colocada no recurso terá forçosamente que soçobrar.

Com efeito, estando perante uma nulidade secundária – estas nulidades consistem na prática de um acto proibido, na omissão de um acto prescrito na lei ou na realização de um acto sem observância das formalidades prescritas, posto que tais irregularidades possam influir no exame ou na decisão da causa –, o seu regime de arguição é o previsto no art. 199.º do CPC. Dispõe este artigo, aplicável aqui subsidiariamente, que:

1- Quanto às outras nulidades, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar; se não estiver, o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.

(…)”

Ora, da invocada irregularidade tomou o Ilustre advogado conhecimento presencialmente, como se constata da acta de fls. 651-655, uma vez que a Exma. Juiz a quo proferiu oralmente o despacho agora sancionado, do mesmo ficando imediatamente aquele notificado.

Assim, deveria o Ilustre advogado, mandatário da ora Recorrente, considerando ter sido cometida pelo Tribunal a quo uma nulidade processual, ter arguido a mesma no próprio acto, o que não fez, uma vez que se verifica da leitura da acta que a diligência foi encerrada (v. fls. 659) sem ter sido suscitada a dita alegada nulidade. Pelo que, a nulidade processual só agora suscitada sempre teria que se considerar sanada, por ausência da sua tempestiva arguição.

Improcede, pois, o recurso nesta parte.

Vejamos agora se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de facto, ao ter concluído pela ausência de outra habitação do Recorrido.

Neste ponto conclui a Recorrente que:

E) Em face da prova documental e testemunhal carreada nos autos, a sentença recor­rida sofre de erro grosseiro no julgamento da matéria de facto, pois que não se provou que o Requerente e ora Recorrido não tem mais qualquer outra residência, nem é proprietário de qualquer casa de habitação, como por si alegado.

F) E não fez essa prova, cujo ónus impendia sobre o Requerente, seja reportada à da­ta do término da instrução no procedimento administrativo, que é a data que aqui releva e importa considerar (art. 100° do CPA/91, i.e., a data do projecto de decisão final, no sentido de a construção em causa não ser considerada primeira e única habitação, notificado por ofício de 20/07/2010, nos termos da alª O) do probatório), seja reportada à data do encerramento da audiência de julgamento.

G) A Recorrente considera incorrectamente seleccionada e julgada a matéria de facto, por omissão de selecção e decisão sobre os factos essenciais alegados nos artigos 1°, 22°, 26 (fls. 146 Sitaf), 35°, 41°, 42° (fls. 168 Sitaf), 135° a 144° (fls. 311-313) da Oposição, completados com os factos instrumentais resultantes da instrução da causa indispensáveis para a boa decisão da causa, que devem ser dados "prova­dos", estando infirmada a alegada ausência de outra habitação do Recorrido, em face da contraprova (art.346° do C.C), concretamente indicada nestas conclusões

H) Do mesmo modo, a Recorrente considera incorrectamente julgada a matéria de facto, no que respeita à resposta dada às alªs K), M), Q), S), T), U), W), V), X), Y), Z), AA) e BB) do probatório, que deve ser alterada para "não provado".

I) Com a devida vénia, o princípio da liberdade de julgamento não significa que o juiz é livre para escolher os factos e valorar a prova de forma subjectiva ou arbi­trária, pois que o mesmo está vinculado ao indicado critério de selecção dos fac­tos, bem como à força probatória fixada na lei, designadamente nos artigos 376°, n° 1 e 358°, n°s 1 e 2 do C.C., sendo que a livre apreciação das provas não abrange os factos que estejam plenamente provados por documentos, confissão ou acordo - como disposto no artigo 607°, n°5, parte final do CPC.

J) No caso vertente, todos os factos acima indicados estão plenamente provados, por documentos, confissão ou acordo. Do processo constam todos os elementos de prova, pelo que o Tribunal "ad quem" poderá (e deverá) ampliar e alterar a deci­são da matéria de facto - art. 662°, n°s l e 2, al.ª c) do C.P.C.

K) Ao contrário da sentença recorrida, o que verdadeiramente resultou da instrução e se comprovou, conforme os concretos meios de prova indicados que impunham decisão diversa (…)”.

Ou seja, pretende a Recorrente que os factos levados ao probatório não permitem sustentar a alegada ausência de outra habitação do Recorrido, antes pelo contrário.

Na verdade, a questão colocada esteve na génese da anulação da sentença anteriormente determinada por este tribunal ad quem e levou à produção de prova testemunhal que o tribunal recorrido efectuou.

Foi o seguinte o discurso fundamentador da Mma. Juiz a quo:

Resulta dos autos que o Requerente, indica como residência, a construção n° …………. da Avenida Nascente - -…………., na Praia de ....... e foi esta inclusive que foi a referida no intróito da petição inicial.

Por sua vez, desde logo dos documentos constantes nos autos não se retira que o Requerente não viva na habitação que era dos seus pais, casa essa, a de morada de família sendo que, sem qualquer resquício de dúvida, a prova testemunhal, confirmou que nela vive permanentemente.

Com efeito, resulta inequivocamente da prova testemunhal que o Requerente vive permanentemente na casa n° ………. da Praia de ....... desde 2003, altura em que passou à reserva.

Importa que mesmo durante o período de doença dos pais, estes foram cuidados e acompanhados pela testemunha, Maria …………, e por uma questão de proximidade quer da cuidadora quer de assistência médica que lhes era prestada, foram para a casa da tia do Requerente na Rua …………, em ........ Posteriormente, por uma questão logística, foram para a casa dos filhos do Requerente, na ………………, em ......., sendo que o Requerente mesmo durante essa fase apesar de acompanhar a doença dos pais sempre morou na casa n° ……………, na Praia de ........

Ora, a relevância, no sentido da manutenção das construções na Praia de ......., desde fogo, assenta que a casa n° 143 - B, por ser a única habitação do Requerente, não pode ser demolida, acrescendo que resulta da Resolução do Conselho de Ministros n° 103/2005, de 27 de Junho, que aprovou o 'Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC) …………-Vila Real …………, do qual, interessa o art°37°, que estabelece o seguinte: "1 - Estes espaços, assinalados na planta de síntese, são objecto de elaboração de acções de renaturalização a definir em função das exigências de equilíbrio natural e de acordo com o estado actual de degradação e ou risco.

2 - As acções de renaturalização serão enquadradas em planos de intervenção e requalificação a realizar pelo ministério responsável pela área do ambiente e do ordenamento do território para cada núcleo a renaturalizar, que deverão contemplar obrigatoriamente o seguinte:

a) A elaboração, no prazo de um ano a contar da aprovação do presente diploma, de um levantamento de todas as ocupações existentes que permita identificar:

i) A tipologia das construções, designadamente se consistem em primeiras habitações ou segundas habitações;

ii) A actividade dos residentes nas primeiras habitações, designadamente se esta está associada à pesca ou à exploração dos recursos da ria;

b) A indicação das alternativas de realojamento dos residentes que se confirmarem ser a habitação no aglomerado da ilha barreira a sua única residência;

c) A criação de incentivos para o realojamento referido na alínea anterior, sendo que o mesmo deverá contemplar preferencialmente a transferência para os núcleos a reestruturar na mesma ilha barreira;

(...) " (o sublinhado é nosso).

Tal matéria, é a pedra de toque quanto à causa de pedir e ao pedido, tendo ficado provado que o Requerente não é proprietário de nenhuma casa em ....... e - passe a redundância - não tem outra casa que não a n° ………, na Praia de ........

Acresce que se pode ler na Certidão Permanente do Registo Predial Online de 2015.06.05, que Maria ......... adquiriu em 1997.04.30, o 3° andar do n° 7 do imóvel sito na Rua ………………, em ......., dela retirando a Entidade Requerida, o argumento de que o Requerente possui esta morada para viver, mas resultou da prova testemunhal que essa casa é da tia do Requerente. O que, flagrantemente, confronta com a Declaração de 2010.01.19, mediante a qual, a Requerida declara designadamente que "José ....... do nº……do Núcleo Nascente da Ilha de ....... entregou os seguintes documentos: (...) Declaração assinada pelo casal, atestando sob compromisso de honra que têm residência permanente na habitação, conforme modelo a fornecer pela ....... Ria ......... ou com conteúdo similar".

Reitera-se que se provou que o Requerente não é proprietário de nenhuma outra casa que a da Praia de ....... que, por sua vez, já era dos seus pais.

(…).”

Apesar da impugnação da matéria de facto que vem efectuada pela Recorrente, temos desde logo, e como primeira premissa de análise, que evidenciar que o meio processual em uso é de natureza cautelar e que, portanto, nos movemos no âmbito de prova indiciária ou meramente perfunctória.

Por outro lado, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 607º, nº 5, 1ª parte, do CPC: “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”. O que está deferido ao tribunal da 1ª instância.

Na verdade, “contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo”// «O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 1984, p. 643; Lebre de Freitas/Montalvão Machado/Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2001, p. 635 e Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348).

Ora, certo é que na reapreciação da matéria de facto apenas cabe ao tribunal de recurso um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no Tribunal a quo lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo em todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou (v., sobre esta questão, o ac. de 11.06.2015, proc. n.º 11211/14, e o ac. de 10.03.2016, proc. n.º 11901/15, ambos por nós relatados).

Na verdade, a questão colocada neste âmbito pela Recorrente, reconduz-se a sindicar a valoração dos meios de prova efectuada pelo Tribunal a quo, consubstanciando a questão uma divergência quanto à valoração dada, principalmente, aos depoimentos das testemunhas inquiridas em Juízo (para além da valoração efectuada relativamente à prova documental carreada para os autos). Neste domínio importa desde logo ter presente, tal como se disse anteriormente, que a garantia de duplo grau de jurisdição em matéria de facto (art.º 662.º do CPC) deve harmonizar-se com o princípio da livre apreciação da prova (art. 607.º, n.º 5).

Como se refere, a este propósito no Acórdão do STA de 18.03.2004, Recurso n.º 065/04: “A valoração do depoimento das testemunhas situa-se no domínio da livre apreciação da prova enunciada no artigo 655º do C.P.C., intimamente conexionado com o princípio da mediação. As respostas do tribunal colectivo não constituem proposições isoladas. O sentido da decisão sobre determinado ponto da matéria de facto pode ser extraído, por interpretação, no contexto das demais respostas e da respectiva fundamentação e em conjugação com a fonte de que emerge a formulação do respectivo quesito”.

De igual modo, se concluiu no Acórdão do STA de 19.10.2005, Recurso n.º 0394/05: “O Tribunal de recurso só deve modificar a matéria de facto quando a convicção do julgador, em 1ª instância, não seja razoável, isto é, quando seja manifesta a desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando-se assim a devida relevância aos princípios da oralidade, da imediação e da livre apreciação da prova e à garantia do duplo grau de jurisdição sobre o julgamento da matéria de facto.

O art. 690-A do CPC impõe ao recorrente o ónus de concretizar quais os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e de indicar os meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida.

Este artigo deve ser conjugado com o 655° do C.P.Civil [o art. 662.º do CPC] que atribui ao tribunal o poder de apreciar livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto. Daí que dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto deva resultar claramente uma decisão diversa. É por essa razão que a lei utiliza o verbo “impor”, com um sentido diverso de, por exemplo, “permitir” [na redacção actual permanece a expressão verbal: “impuserem”]. Esta exigência decorre da circunstância do tribunal de recurso não ter acesso a todos os elementos que influenciaram a convicção do julgador, só captáveis através da oralidade e imediação e, muitas vezes, decisivos para a credibilidade dos testemunhos. (‘É pacifico o entendimento dos Tribunais da Relação, neste ponto. Só deve ser alterada a matéria de facto nos casos de manifesta e clamorosa desconformidade dos factos assentes com os meios de prova disponibilizados nos autos, dando assim prevalência ao princípio da oralidade, da prova livre e da imediação - cfr. ANTONIO SANTOS ABRANTES GERALDES, in “TEMAS DA REFORMA DO PROCESSO CIVIL”, II volume, 4ª edição, 2004, págs. 266 e 267 e o Acórdão da Relação do Porto de 2003-01-09, na Internet, in www.dgsi.pt, JTRP00035485 e o Acórdão da Relação de Lisboa de 2001-03-27, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVI-2001, Tomo II, págs. 86 a 88). Entendimento semelhante posto em causa no Tribunal Constitucional por ofensa da garantia do duplo grau de jurisdição, foi considerado conforme à constituição (...): “A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte, nem pode subverter, o princípio da livre apreciação das provas e não se pode perder de vista que na formação da convicção do julgador entram, necessariamente, elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova e factores que não são racionalmente demonstráveis”, de tal modo que a função do Tribunal da 2ª-. Instância deverá circunscrever-se a “apurar a razoabilidade da convicção probatória do 1° grau dessa mesma jurisdição face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos” Acórdão de 13.10.2001, in Acórdãos do T. C. vol. 51°, pág. 206 e ss..)” [sublinhado nosso].

Ou seja, dos meios de prova concretamente indicados como fundamento da crítica ao julgamento da matéria de facto deve resultar claramente uma decisão diversa (cfr. também o acórdão do STA de 6.07.2006, Recurso n.º 220/06, bem como, i.a., os acórdãos do TCAN de 8.03.2007, processo n.º 110/06 e de 12.07.2013, processo n.º 123/05.0BEVIS; também o acórdão deste TCAS de 16.10.2014, proc. n.º 7685/14, por nós relatado).

Como já defendia Alberto dos Reis (in Código de Processo Civil Anotado, vol. IV, p. 137): “É já hoje lugar-comum a nota de que tanto ou mais do que o que o depoente diz vale o modo por que o diz, é que se as declarações contam, contam também as reticências, as hesitações, as reservas, enfim a atitude e a conduta do declarante no acto do depoimento (…).”

Com efeito, como se escreveu no referido ac. do TCAN de 8.03.2007, por nós já reproduzido no ac. deste TCAS de 16.10.2014 (idem, o acórdão por nós relatado de 9.07.2015, proc. n.º 9619/13): “Daí que a convicção do tribunal se forma de um modo dialéctico, pois, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas produzidas nos autos, importa atender também à análise conjugada das declarações produzidas e dos depoimentos das testemunhas, em função das razões de ciência, da imparcialidade ou falta dela, das certezas e ainda das lacunas, das contradições, das hesitações, das inflexões de voz, da serenidade, dos “olhares de súplica” para alguns dos presentes, da "linguagem silenciosa e do comportamento", da própria coerência de raciocínio e de atitude demonstrados, da seriedade e do sentido de responsabilidade evidenciados, das coincidências e inverosimilhanças que transpareçam no decurso da audiência de julgamento entre depoimentos e demais elementos probatórios.

Ao invés do que acontece nos sistemas da prova legal em que a conclusão probatória está prefixada legalmente, nos sistemas da livre apreciação da prova, como o nosso, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do discussão em sede de julgamento, com base apenas no juízo que se fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.

Note-se, contudo, que este sistema não significa puro arbítrio por parte do julgador. É que este, pese embora, livre, no seu exercício de formação da sua convicção, não está isento ou eximido de indicar os fundamentos onde aquela assentou por forma a que, com recurso às regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquele processo de formação da convicção sobre a prova ou não prova daquele facto, permitindo, desta feita, sindicar-se o processo racional da própria decisão.

Aliás, a nossa lei processual determina e faz impender sobre o julgador um ónus de objectivação da sua convicção, através da exigência da fundamentação da matéria de facto (da factualidade provada e da não provada), devendo aquele analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (cfr. art. 653.º, n.º 2 do CPC).

É que não se trata de um mero juízo arbitrário ou de simples intuição sobre veracidade ou não de uma certa realidade de facto, mas antes duma convicção adquirida por intermédio dum processo racional, objectivado, alicerçado na análise critica comparativa dos diversos dados recolhidos nos autos na e com a produção das provas e na ponderação e maturação dos fundamentos e motivações, sendo que aquela convicção carece de ser enunciada ou explicitada por expressa imposição legal como garante da transparência, da imparcialidade e da inerente assunção da responsabilidade por parte do julgador na administração da justiça.

À luz desta perspectiva temos que se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da lógica, da ciência e da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.

(…)

Para além disso e na sequência com que anteriormente fomos referindo importa ainda ter em atenção que pese embora a maior amplitude conferida pela reforma de processo civil a um segundo grau de jurisdição em sede de matéria de facto a verdade é que, todavia, não se está perante um segundo julgamento de facto (tribunal “ad quem” aprecia apenas os aspectos sob controvérsia) e nem o tribunal de recurso naquele julgamento está colocado perante circunstâncias inteiramente idênticas àquelas em que esteve o tribunal “a quo” apesar do registo da prova por escrito ou através de gravação magnética dos depoimentos oralmente prestados.

É que o Tribunal “ad quem” não vai à procura duma nova convicção, não lhe sendo pedido que formule novo juízo fáctico e sua respectiva fundamentação. O que se visa determinar ou saber é se a motivação expressa pelo Tribunal “a quo” encontra suporte razoável naquilo que resulta do ou dos depoimento(s) testemunhal(ais) (registados a escrito ou através de gravação) em conjugação com os demais elementos probatórios existentes ou produzidos nos autos.

Tal como tem sido jurisprudencialmente aceite, a garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação das provas (cfr. art. 655.º, n.º 1 do CPC) já que o juiz aprecia livremente as provas e decide segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, sendo que, na formação dessa convicção, não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que, em caso algum, podem ser importados para o registo escrito, para a gravação vídeo ou áudio.

Será, portanto, um problema de aferição da razoabilidade, à luz das regras da ciência, da lógica e da experiência da convicção probatória do julgador no Tribunal “a quo”, aquele que, no essencial, se coloca em sede de sindicabilidade ou fiscalização do julgamento de facto pelo Tribunal “ad quem”.

Em conclusão, como a jurisprudência tem consistente e reiteradamente afirmado, na reapreciação da matéria de facto ao tribunal de recurso apenas cabe um papel residual, limitado ao controle e eventual censura dos casos mais flagrantes, como sejam aqueles em que o teor de algum ou alguns dos depoimentos prestados no Tribunal a quo lhe foram indevidamente indiferentes, ou, de outro modo, eram de todo em todo inidóneos ou ineficientes para suportar a decisão a que se chegou. Dito de outro modo, ao tribunal de recurso apenas e só é dado alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais de manifesto erro na apreciação da prova, de flagrante desconformidade entre os elementos probatórios disponíveis e essa mesma decisão.

Ora, estabelecidos estes princípios orientadores, não podemos perder de vista que no caso concreto foi efectuada uma acareação de testemunhas Manuel ……….. e Maria ……………….., precisamente sobre o ponto em discussão, devidamente formalizada nos termos da lei (cfr. fls. 653-654).

A primeira testemunha, residente na casa ………., Av. ……., Praia de ......., ao que aqui releva, afirmou expressamente que o requerente da providência, depois do falecimento dos pais, foi morar para a casa em questão nos autos. A segunda testemunha disse que o requerente sempre teve a casa dos pais como a casa dele e que quando aquele saiu da tropa em 2003, a casa dele passou a ser a da Praia de ....... (ficando uma vezes em casa da testemunha).

Razão pela qual, teremos que acompanhar a conclusão tirada pelo Tribunal a quo de que “resulta inequivocamente da prova testemunhal que o Requerente vive permanentemente na casa n.º ………….., da Praia de ....... desde 2003, altura em que passou à reserva” (cfr. fls. 15 da sentença). Sendo que a contra-prova avançada pela Recorrente quanto a este ponto, não é susceptível de contrariar eficazmente a conclusão alcançada, nem sequer no presente recurso foram atacadas as concretas declarações das testemunhas sujeitas ao incidente de acareação, apenas o sendo a valoração que das mesmas foi efectuado pelo Tribunal recorrido.

Assim, nada há a alterar à factualidade fixada em S) a U) do probatório que vem fixado.

Insiste a Recorrente que o Recorrido detém outra habitação, por um lado, e que, por outro, também nada se provou relativamente à sua impossibilidade de adquirir ou arrendar uma outra. Porém, podemos já adiantar, esta última arguição, independentemente da sua (ir)relevância para a decisão da causa, sempre constitui uma questão nova, enquanto tal insusceptível de ser conhecida por este tribunal de recurso.

E quanto à questão sobrante, de ser ou não o requerente da providência e ora Recorrido proprietário de uma outra habitação, temos que pelo Tribunal a quo entendeu como provado que aquele não é proprietário de nenhuma outra casa que a da Praia de ....... que, por sua vez, já era dos seus pais.

Por sua vez, alega a Recorrente que “a sentença recorrida também operou uma errada interpretação e aplicação das re­gras de direito probatório material e de repartição do ónus da prova do requisito de primeira e única habitação, decorrentes do artigo 37°, n°2, alínea b), do POOC (que exige uma confirmação, liqued) e do artigo 88°, n° 1 do CPA, quando, todavia, o que se apurou é que o Requerente dispõe de habitação alternativa em .............. e também em ......., na ………………, n°10, 2° ESQ, ........

Isto porque, nos termos da sua alegação:

N) O Requerente era filho único e herdou da mãe (MARIA .........) a mesma fracção autónoma invocada, situada em .............., inscrita na matriz predial urba­na sob o artigo U-1882-F da união das freguesias de .............. e S. .............. da .............., P………..e .............. (antes inscrita sob o n° 792 - F da freguesia de .............. e S. .............. da ..............) - (prova: cf. certidão dos Serviços das Finanças de ....... junta como Doc. 14 do RI e contante no PI (fls. 153); Modelo I do Imposto de Selo (fls. 150, 150vs e 151 do PI), Certidão Permanente n°………….. a fls. 514 do Sitaf, cf. declarações a fls. 81-82 do PI)

O) Conforme bilhete de identidade militar de 16/05/2008, pode ler-se que o Re­querente morava em .............., i.e., na mesma fracção que era da sua mãe (MARIA .........) e passou a ser sua por herança - (prova: cf. fls. 72 o processo ins­trutor, cf. fls. 392 do Sitaf)

P) Além de possuir uma habitação em .............. de que é proprietário (certidão per­manente a fls. 515 do Sitaf), reside noutra em ......., nomeadamente na ……………, n° 10, 2° Esq. - (prova: cf. declarações a fls. 32-33, 68, 81-82 do Processo Instrutor, cf. contas de água e luz fls. 19 a 25 do Processo Instrutor, cf. Contas de água e luz a fls. 393 e 394 do Sitaf, cf. Domicílio fiscal no regis­to de contribuinte a fls. 395 do Sitaf)

No entanto, a sentença recorrida não desvaloriza essa factualidade, contrariamente ao afirmado pela Recorrente, antes a equaciona de modo integrado considerando o que ficou provado em Z) e AA):

Z) A morada que o Requerente a certa altura deu para receber correspondência, na ………………., em ......., é a da casa dos filhos e tal deveu-se à vandalização das caixas do correio e ao extravio da correspondência na Praia de ....... (cfr testemunhos de Hugo ………………. e de Maria …………………);

AA) A fracção habitacional dos filhos do Requerente sita na …………., em ......., foi comprada com dinheiro dado pela tia do Requerente e pelo avô materno (cfr testemunhos de Maria ………….. e Matilde ………..);

Ou seja, o que resulta indiciariamente provado nos autos – prova que o requerente da providência logrou efectuar – é que o ora Recorrido só tem em ....... a casa onde vive e que é aquela em questão nos autos. Só tem, pois, aquela como sua única e exclusiva residência. Como se diz na sentença recorrida: “(…) dos documentos constantes nos autos não se retira que o Requerente não viva na habitação que era dos seus pais, casa essa, a de morada de família sendo que, sem qualquer resquício de dúvida, a prova testemunhal, confirmou que nela vive permanentemente. // Com efeito, resulta inequivocamente da prova testemunhal que o Requerente vive permanentemente na casa n° ………… da Praia de ....... desde 2003, altura em que passou à reserva.

E, considerando o meio processual em uso e a causa de pedir estruturada no requerimento inicial, tanto basta para sancionar positivamente o entendimento do tribunal a quo, tornando irrelevante o conhecimento do demais alegado pela Recorrente neste capítulo.

Pelo que, improcede, também, nesta parte o recurso.

Estabelecida a conclusão fáctica de que “o Requerente vive permanentemente na casa n° ……… da Praia de ....... desde 2003”, sendo essa a sua única residência, é tempo de verificar do imputado erro de julgamento quanto à existência de “fumus boni iuris”, alegando a Recorrente que existe sim uma situação de “fumus malus”. Dito de modo diverso, cumpre apreciar se a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento ao não considerar como manifesta a falta de fundamento da pretensão a formular na acção principal.

Sobre esta questão a Mma. Juiz a quo escreveu na sentença recorrida o seguinte:

Estão aqui em causa providências destinadas a manter o statu quo, não permitindo que ele se altere, como paradigmaticamente sucede com a tradicional suspensão da eficácia de actos administrativos, cuja concessão não dependia, anteriormente, da formulação de qualquer juízo sobre a aparência de bom direito.

A introdução do critério do fumus boni iuris é, neste domínio, mais suave, intervindo apenas na sua formulação negativa: se não existirem elementos que tornem evidente a improcedência ou a inviabilidade da pretensão material, não será por esse lado que a providência será recusada.

Ficou demonstrado, apesar da feita de valores concretos, que para o Requerente o acto sob escrutínio lhe acarreta prejuízos de vária índole, nomeadamente, quer pela circunstância de a habitação em apreço, sita na Praia de ......., ser a única detida pelo Requerente, não sendo proprietário de qualquer outra, e, nesse âmbito, a deliberação sob escrutínio viola os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos, da igualdade e da proporcionalidade, denotando que a demolição consubstancia de modo acrescido, a perda do local das memórias de vivência com os pais.

Afirmando também que:

Isto porque numa análise perfunctória, parece evidente que nos encontramos perante um acto administrativo que se mostra ilegal por não ter tomado em conta que a construção nº ……….. sita na ……………, Praia de ......., se trata da única habitação do Requerente”.

Em situação em tudo idêntica à presente, teve já este TCA oportunidade de se pronunciar, como ilustra o ac. de 1.10.2015, proc. 12434/15 (por nós relatado) e que nos permitimos transcrever na sua parte aqui relevante:

“(…)

O acto administrativo suspendendo tem como parâmetro de validade, como resulta evidenciado nos autos, o Plano de Ordenamento da Orla Costeira Vilamoura-Vila Real de Santo António, que abreviadamente designaremos por POOC, o qual foi aprovado por Resolução do Conselho de Ministros n.º 103/2005, publicada no Diário da República, 1.ª série – B, n.º 121, de 27 de Junho de 2005.
Este plano, finalisticamente ordenado à protecção de zonas particularmente sensíveis da orla costeira, veio estabelecer regimes de salvaguarda de recursos e valores naturais e fixar os usos e o regime de gestão a observar na sua própria execução com vista a assegurar a permanência dos sistemas indispensáveis à utilização sustentável do território na sua área de intervenção (cf. artigos 1.º e 2.º do respectivo Regulamento).

Integrado na categoria dos planos especiais de ordenamento do território, constitui um «meio supletivo de intervenção do Governo, tendo em vista a prossecução de objectivos de interesse nacional com repercussão espacial», tem natureza regulamentar e eficácia jurídica plurisubjectiva, vinculando as entidades públicas e ainda directa e imediatamente os particulares [cf. artigos 2.º, nº, 2, alínea c), e 3.º, n.º 2, 42.º, n.º 1 e 3, do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro].

Com ele devem conformar-se, por isso, os planos municipais e intermunicipais de ordenamento do território, bem como os programas e projectos, de iniciativa pública ou privada, a realizar na sua área de intervenção (cf. artigos 1.º, n.º 1, do respectivo Regulamento, e artigo 24.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 380/99).

Ora, no que ao caso interessa, determina o referido POOC, no artigo 37.º do seu Regulamento, estabelecendo o regime aplicável aos espaços edificados a renaturalizar que se reconduzem a uma das categorias do solo rural, nos termos do artigo 14.º, alínea b), subalínea v) - nos quais se integra a parcela de terreno onde está implantada a edificação em apreço, o seguinte:

(…)

E de harmonia com esta norma, delimita o próprio plano, no artigo 83.º do Regulamento, uma unidade operativa de planeamento e gestão (a UOPG III – Ilha de .......) para a área do território que abrange a parcela ora em discussão, nos seguintes termos:


Artigo 83.º

UOPG III - Ilha de .......


1 - Esta UOPG contempla:

a) A realização de um projecto de intervenção e requalificação para a área do domínio hídrico, a elaborar pelo ministério responsável pela área do ambiente;
b) A realização de plano de pormenor para a área desafectada do domínio hídrico a elaborar pela Câmara Municipal de ........
2 - O programa desta UOPG resultará da articulação entre o projecto de intervenção e requalificação e o plano de pormenor, os quais devem conter as seguintes medidas:
a) Elaboração de uma análise do custo/benefício que equacionará a remoção programada das edificações existentes na área desafectada do domínio hídrico em alternativa a soluções a adoptar para salvaguarda das edificações localizadas em faixa de risco;
b) Realojamento dos residentes em primeiras habitações que se encontram no domínio hídrico (e) na área desafectada do domínio hídrico;
c) Na área de domínio hídrico, demolição e remoção das edificações;
(…)

Verifica-se, pois, face ao exposto, que o POOC impôs, para esta categoria de solos reconhecidamente ocupados com construções, a sua “renaturalização”, impondo a elaboração de “acções” a definir “em função das exigências de equilíbrio natural e de acordo com o estado actual de degradação e ou risco”, nas quais incluiu expressamente a extinção (demolição e remoção) de todas as edificações existentes no domínio público (não desafectado).

E pré-ordenando a sua própria execução e a respectiva programação, determinou que essas acções de renaturalização fossem enquadradas num “projecto de intervenção e requalificação”, a elaborar pelo ministério responsável pela área do ambiente, tendo delimitado, com vista a uma concretização faseada e coordenada das suas disposições, uma unidade operativa de planeamento e gestão abrangendo a Ilha de ....... que contempla, precisamente, a realização desse “projecto de intervenção e requalificação” para a área do domínio hídrico não desafectada (na qual se inclui a parcela de território ora em discussão). É no contexto do programa estabelecido para esta unidade operativa de planeamento e gestão que o POOC veio exigir, obrigatoriamente, entre os demais objectivos e medidas estabelecidas, o realojamento dos residentes em primeiras habitações, ao qual, como se afigura, condicionou a demolição das edificações existentes [cf. artigo 37.º, n.º 2, alíneas b), c) e d), e artigo 83.º, n.º 1.º, alínea a), e n.º 2, alíneas b) e c)].(…)

Revertendo à situação dos autos, e no que à mesma importa, constata-se, ainda que em termos meramente sumários, que a edificação em causa foi construída numa parcela do domínio público hídrico - o qual, nos termos da Lei nº 54/2005, de 15 de Novembro, pertence ao Estado - e que nela se tem mantido, sem que o requerente disponha de título de utilização validamente emitido que permita esse uso privativo, nos termos exigidos, actualmente, pelos artigos 2.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio (cf., também, artigo 89.º).

Verifica-se, outrossim, que, atendendo à vinculação situacional do solo em que está erigida, esta edificação não se pode manter no local, sendo insusceptível de legalização, por a tanto obstarem as normas do POOC, e concretamente o artigo 37.º do respectivo Regulamento, o qual, prescrevendo a demolição e remoção de todas as edificações existentes no local, vincula as entidades públicas e ainda directa e imediatamente os particulares.

É incontroverso também, quando se sabe que os bens do domínio público são, por natureza, indisponíveis, incomerciáveis, e insusceptíveis de posse privatística ou de aquisição por usucapião (artigo 202.º, n.º 2 do Código Civil), que o requerente não é titular (nem, aliás, invoca ser) do direito de propriedade privada sobre a parcela do domínio público hídrico ocupada pela edificação em causa.

Como igualmente não é (nem invoca ser) titular de qualquer direito real sobre a própria construção a demolir, em relação ao qual poderá, quanto muito, ser havido, não como possuidor, mas como simples detentor ou possuidor precário, que até ora se aproveitou de uma “tolerância implícita” do Estado.

A verdade, porém, é que o requerente não pretende, através destes autos, como parece pressupor a entidade requerida, lançar mão de uma tutela possessória, nem tão pouco acautelar a lesão de um suposto direito de propriedade ou posse, que, aliás, nunca disse ter. Pretende, sim, prevenir a violação do direito à habitação de que se arroga titular, dizendo que não tem qualquer outra alternativa para morar e abrigando-se no disposto no artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa, o qual, no seu n.º 1, prescreve que todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.[sublinhado nosso]

A verdade é que, independentemente da tutela de que possa ou não beneficiar directamente ao abrigo deste preceito constitucional, cujo conteúdo é essencialmente programático, o exercício de facto que alegadamente se terá mantido durante um significativo período de tempo sem qualquer intervenção das autoridades para o fazer cessar ou evitar, pese embora não seja constitutivo de uma relação jurídica de posse, confere ao requerente um interesse, ainda que meramente de facto, sobre a construção em causa, na qual o mesmo alegadamente fez a sua residência permanente: e nessa medida, compreende-se que ele não possa ser privado arbitrariamente deste exercício do poder de facto, que se concretiza em termos de habitação, a menos que haja, nesse sentido, uma determinação de um órgão ou entidade que legalmente esteja autorizado, neste caso a ordenar a respectiva demolição, que actue ao abrigo da lei e do direito, dentro dos limites dos poderes que lhe estejam atribuídos e em conformidade com os fins para que os mesmos poderes lhe foram conferidos (cf. artigo 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa e artigo 3.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo).

Ora, a prova indiciária recolhida nos autos, e concretamente aquela que acima especificámos nas alíneas g) a j), basta-nos para, em termos de cognição meramente sumária e num juízo perfunctório, reconhecer pelo menos como controverso ou duvidoso o pressuposto de que a entidade requerida se serviu para ordenar a demolição em causa sem previamente assegurar o realojamento do requerente: face aos elementos disponíveis, não é evidente que a edificação em causa não fosse, efectivamente, a primeira e única residência do requerente.

E nessa medida, importará, acção principal, apurar se o acto administrativo padece ou não de um erro quanto a este pressuposto de facto e, consequentemente, de um vício de violação de lei, do qual dependerá, a julgar-se verificado, a existência de um dever de assegurar uma alternativa de realojamento, por imposição das disposições do POOC, e concretamente da alínea b) do n.º 2 do artigo 37.º e da alínea b) do n.º 2 do artigo 83.º do seu Regulamento, realojamento que, como se afigura, emerge como condição necessária da execução da medida de demolição da edificação em causa. [sublinhado nosso]

Com efeito, como vimos, ao estabelecer a sua própria programação e execução, o POOC definiu como medida obrigatória, a enquadrar num plano de intervenção e requalificação a elaborar a jusante, o realojamento dos residentes em primeiras habitações que se encontrassem no domínio hídrico em causa.

E sendo assim, este realojamento, como se pressupõe, servindo como condição sine qua non à execução do próprio plano, não podia deixar de ser assegurado em momento prévio ao da demolição, sob pena de frustração da tutela dos interesses daqueles que, por haver considerado merecerem protecção, o plano terá pretendido salvaguardar.

E, efectivamente, atento o quadro normativo citado na sentença recorrida e considerando a factualidade provada neste caso concreto, bem como a causa de pedir em que se sustenta a ilegalidade assacada ao acto suspendendo (erro nos pressupostos de facto e violação do direito à habitação), a conclusão a que chegamos é a mesma: não se apresenta como manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada no processo principal. Com o que, e de acordo com a mesma fundamentação que aqui se reitera, também não pode proceder a alegação da Recorrida de que se está perante uma situação de fumus malus.

Ainda neste ponto importa deixar estabelecido que, atento o regime jurídico de referência, pouco importa a alegação da Recorrente de que o ora Recorrido nunca havia requerido o seu realojamento. Na verdade, o regime legal traçado garante o direito ao realojamento dos residentes em primeiras habitações que se encontram no domínio hídrico (e) na área desafectada do domínio hídrico, pelo que compete, no caso à ora Recorrente, assegurar o exercício desse direito. E se o interesse não formular espontaneamente pedido de realojamento, a ele tendo direito, à Administração caberá oficiosamente promovê-lo.

Razões que reforçam a conclusão anteriormente alcançada: também perante a situação de facto com que somos confrontados, temos por seguro que da execução do acto suspendendo resultará para o ora Recorrido um prejuízo irreparável, pela ablação do seu direito à habitação. Ou dito de outra forma, dos factos concretos alegados pelo requerente, mostrando-se indiciariamente provado que a casa objecto da demolição era a única habitação daquele, é possível perspectivar a criação de uma situação de impossibilidade da reintegração específica da sua esfera jurídica, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente (segundo segmento normativo da alínea b) do n.º 1 do artigo 120.º do CPTA, na redacção aplicável).

Ou seja, a sentença recorrida não incorreu em erro de julgamento por ter julgado verificado o requisito do periculum in mora, previsto na alínea b), do n° l, do artigo 120°, do CPTA (na redacção aplicável).

Posto isto, vejamos agora do acerto do Tribunal a quo no que respeita à ponderação dos interesses públicos e privados em presença, o que integra igualmente o objecto do recurso (cfr. conclusão UU).

Dispõe o nº 2 do artigo 120º do CPTA, na redacção então vigente, que “a adopção das providências será recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados, em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências.” Regra que foi mantida inalterada pelo legislador da Reforma (Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro).

Como se sumariou no acórdão deste TCAS de 17.09.2015, proc n.º 12386/15: “A imposição da “recusa” da adopção da providência requerida, tal como é consagrada pelo n.º 2 do art. 120º, do CPTA, emerge de três juízos que, apesar de interactivos, são metodologicamente distintos: - o juízo de ponderação sobre os interesses públicos e privados, em presença; - o juízo sobre a superioridade dos danos que resultariam da concessão da providência, em face daqueles que podem resultar da sua recusa; - e o juízo sobre a possibilidade de evitar ou de atenuar aqueles primeiros danos, através da adopção de outras providências.

Sendo que, in casu o requerente cautelar e ora Recorrido não se limitou a invocar o interesse em manter a detenção da construção em causa, antes concretizou os danos que resultariam da recusa da providência e que o Tribunal a quo evidenciou na sentença.

Neste ponto escreveu-se na sentença recorrida:

“(…) na circunstância de a Entidade Requerida proceder à demolição da construção do Requerente, não se vislumbra, pelo menos, por enquanto, que fosse reposta a sua morada noutro focal, considerando a procedência da sua pretensão na acção principal, sendo que o período de tempo em que estaria a aguardar o desfecho dos autos principais se constituiria numa situação de prejuízo, desde logo, em termos habitacionais.

Traz-se à colação o já referido supra, ou seja, competia à Entidade Requerida provar, o que não foi concretizado, designadamente que a execução dos trabalhos requer que se laçam todos de seguida, sem interrupções, bem como a demonstração, efectiva, da percentagem, se for o caso, que a execução da empreitada corresponde a determinados valores necessários para a renaturalização e que todas as construções da Praia de ....... são demolidas.

Aqui chegados, de modo breve cabe, pois, acentuar que do ponto de vista da ponderação de interesses, se evidencia não se mostrar, in casu, adequada a prolação da deliberação de 2014.11.14, visto que, perfunctoriamente, não existe fundamento sólido, que a sustente, como ficou demonstrado aquando da análise do previsto na alínea a) do n° 1 do art°120° do CPTA.

Tal aliado à mineração do interesse público perante a égide devida ao direito do Requerente (de manter a sua habitação na Avenida Nascente. casa n° 143 -B, na Praia de .......) ou de terceiros concretamente afectados pelo decretamento da presente providência, leva-nos à conclusão favorável ao deferimento da providência..

Ora, sendo certo que a Recorrente defende neste processo o interesse público do ambiente, ordenamento do território, urbanismo e segurança das populações e bens, temos para nós que, de acordo, por um lado, com o que vem provado e, por outro, com os motivos avançados pela Recorrente para justificar a prevalência do interesse público (valores e direitos implicados na opção feita pelo legislador do POOC, danos patrimoniais genericamente alegados, bem como prejuízos não quantificados na paralisação da empreitada e em alegadas dificuldades na execução de obras), não se apresenta demonstrado nem que o retardamento na execução da deliberação suspendenda implique o agravamento das condições ambientais do local em causa – nada vem de concreto alegado nesse sentido e muito menos demonstrado – nem que ponha em causa a execução da Empreitada de Intervenção de Requalificação em questão – apenas vindo feita uma única alegação genérica a esse propósito (cfr., no mesmo sentido e em situação análoga, os ac.s deste TCAS de 1.10.2015, proc. n.º 12434/15, e o ac. de 1.10.2015, proc. n.º 12434/15, por nós relatados).

O prejuízo também alegado pelo Ministério Público consubstancia-se afinal num prejuízo para o ambiente: protecção das espécies, da biodiversidade e conservação da natureza e da paisagem. Não se nega a relevância da intervenção da Recorrente para protecção do ambiente e dos interesses com este conexos; o que não vem demonstrado (ou pelo menos suficientemente) é que o deferimento da presente providência seja susceptível de prejudicar (gravemente) a sua persecução. Ou seja, não se mostra possível, em face dos dados que os autos relevam, formular um juízo afirmativo sobre a superioridade dos danos que resultariam da concessão da providência, em face daqueles que podem resultar da sua recusa.

E tanto basta para dar como improcedente o suscitado erro de julgamento em que a sentença recorrida aqui teria incorrido.

Donde, improcedendo o recurso, também, nesta parte e assim integralmente, tem pois a decisão recorrida que ser confirmada.



III. Conclusões

Sumariando:

i) Relativamente às nulidades secundárias, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que forem cometidas, podem estas ser arguidas enquanto o acto processual não terminar (art. 199.º, n.º 1, do CPC), após o que devem considerar-se sanadas por ausência da sua tempestiva arguição.

ii) Preenchida a previsão do artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do CPTA (na redacção então vigente, da Lei n.º 4-A/2003, de 19 de Fevereiro), a providência será concedida sem ulteriores indagações; não sendo evidente a procedência da pretensão de fundo, a concessão da providência depende da demonstração do periculum in mora, em articulação com o critério do fumus boni juris, como resulta das alíneas b) e c) daquele n.º 1. Isto, sem prejuízo da limitação – pressuposto negativo – consubstanciada no princípio da proporcionalidade (art. 120.º, n.º 2) e, em qualquer dos casos, da observação das dimensões de necessidade e adequação (art. 120.º, n.ºs 3 e 4).

iii) Não se apresenta como manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada no processo principal, quando a causa de pedir assenta, nomeadamente, em erro nos pressupostos de facto e a matéria de facto indiciariamente provada é susceptível de sustentar essa conclusão.

iv) Mostrando-se indiciariamente provado que a casa objecto da demolição era a única habitação do requerente da providência, de acordo com um juízo de prognose é possível perspectivar a criação de uma situação de impossibilidade da reintegração específica da sua esfera jurídica, no caso de o processo principal vir a ser julgado procedente.

v) Apesar de reconhecida a lesão, em abstracto, do interesse público envolvido na defesa dos bens e valores referenciados no processo de Avaliação Ambiental do Plano Estratégico da Intervenção de Requalificação e Valorização da Ria ........., não vindo demonstrada a gravidade e superioridade da mesma por referência à conservação da edificação em concreto objecto dos autos, durante a pendência da acção principal, não pode concluir-se pela prevalência do interesse público perante os prejuízos invocados pelo destinatário da medida administrativa de demolição da sua (única) habitação, ficando assim sem alojamento.



IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 30 de Junho de 2016



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Pedro Marchão Marques


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Helena Canelas


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António Vasconcelos