Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:08465/12
Secção:CA- 2º JUÍZO
Data do Acordão:03/08/2012
Relator:PAULO PEREIRA GOUVEIA
Descritores:LEI Nº 59/2008, MEDIDA DE COAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO, RETRIBUIÇÃO
Sumário:Como o requerente deste processo cautelar não trabalha, devido a estar sujeito a medida de coação de obrigação de permanência na sua residência, não pode manter a retribuição como trabalhador por conta de outrem – v. arts. 185º-2-d, 191º-3, 231º-1, 232º-1 da Lei 59/2008.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam, em conferência, na 1ª Secção do Tribunal Central Administrativo Sul:

I.RELATÓRIO
· RUTE .............................., com os sinais nos autos, intentou no T.A.C de Lisboa processo cautelar contra
· IMTT - INSTITUTO DA MOBILIDADE E DOS TRANSPORTES TERRESTRES, I.P.,

pedindo
A) Ser decretada a suspensão da eficácia da deliberação do Conselho Directivo do IMTT, de 11/08/2011, que determina a suspensão do contrato em funções públicas da A., e o fim da obrigação do dever de assegurar a remuneração, por parte do IMTT, I.P, com todas as legais consequências.
B) Deve ser o IMTT condenado a pagar a remuneração à A.

Por despacho muito singelo de 5-12-2011, o referido tribunal decidiu assim:

Nestes termos, defiro a providência decretada (?), impondo à entidade requerida a obrigação de pagar mensalmente, desde a data da suspensão do processamento, 5/6 do vencimento base da categoria de assistente técnica especialista enquanto se mantiver o pressuposto apontado.

Em aclaração de 19-12-2011, a Mmª Juiza disse que quis impor o pagamento da dita remuneração de categoria desde 24-6-2011 inclusive.

Inconformado, o INSTITUTO DA MOBILIDADE E DOS TRANSPORTES TERRESTRES recorre para este Tribunal Central Administrativo Sul, formulando nas alegações as seguintes conclusões:
1. No âmbito do exercício de funções na Direcção Regional de Mobilidade e Transportes de Lisboa e Vale do Tejo, na área de condutores e títulos de condução, a Requerente foi constituída arguida no processo de Investigação Penal n. 9290/09.2JFL5B, com sujeição, com efeitos a partir de 24/5/2011, às medidas de coacção de Termo de Identidade e Residência, Permanência na Habitação sujeita a Vigilância Electrónica e Proibição de Contactos.
2. Como, a partir daquela data, a Requerente ficou impossibilitada de prestar trabalho efectivo ao Requerido, o Conselho Directivo do Requerido, por deliberação proferida em 11/8/2011, determinou a suspensão do contrato de trabalho em funções públicas da Requerente, com perda de vencimento, em virtude da efectiva suspensão de funções.
3. Esta deliberação foi tomada em obediência ao disposto no art. 199.° do Código de Processo Penal, conjugado com o disposto no n. 1 do art. 201.° do mesmo código, uma vez que "a obrigação de permanência na habitação" implica, necessariamente, a suspensão do exercício de funções públicas por impossibilidade de cumprimento do contrato de trabalho, nos termos dos art. 231.° e 232.° do Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas (RCTFP), aprovado pela Lei n. 59/2008, de 11 de Setembro. (1)
4. Com efeito, pese embora o facto de, nos termos do art. 185.0 da RCTFP, se considerarem justificadas as faltas, "motivadas por impossibilidade de prestar trabalho devido a facto que não seja imputável ao trabalhador, nomeadamente doença, acidente ou cumprimento de obrigações legais",
5. Não significa que essas faltas, mesmo justificadas, confiram o direito à retribuição durante o período de suspensão do exercício de funções públicas, já que, nos termos do n. 1 do art 232.° do RCTFP, o impedimento temporário por facto não imputável ao trabalhador que se prolongue por mais de um mês determina a suspensão do contrato.
6. E quando há suspensão do contrato, dispõe o n 1 do art 231 do RCTFP que mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes na medida em que não pressuponham a efectiva prestação do trabalho.
7. Pelo que, a contrario, como o pagamento da retribuição pressupõe a efectiva prestação de trabalho, como a Requerente não está a prestar o trabalho ao Requerido, não pode manter o direito à remuneração.
8. Assim não se aceita, porque contrária à lei, a sentença do Tribunal "a quo" ao impor à entidade requerida a obrigação de pagar mensalmente, desde a data da suspensão do processamento, 5/6 do vencimento base da categoria, à Requerente,
9. Porque a referida sentença não contém qualquer fundamentação, quer de facto, quer de direito, que a sustente.
10. Com efeito, o Regime de Contrato de Trabalho em Funções Públicas, que é o agora aplicável, não prevê as modalidades de "vencimento de exercício" e "vencimento de categoria" como se extrai do art 67 da Lei n. 12-A/2008, de 27 de Fevereiro.(2)
11. Tais conceitos, se bem que estivessem contidos no Decreto-Lei n. 353-A/89, de 16 de Outubro, deixaram de fazer parte das componentes remuneratórias dos trabalhadores que exercem funções públicas,
12. Em resultado da revogação expressa deste diploma pela alínea u) do art. 116.0 do RCTFP e pelo disposto no art. 67 do RCTFP.
13. Acresce que o regime do RCTFP adopta as mesmas regras do Código de Trabalho (aprovado pela Lei n. 7/2009, de 12 de Fevereiro), ou seja, os artigos 2310 e 232.° do RCTFP, que regulam a "Redução da actividade e suspensão do contrato", contêm a mesma disciplina jurídica aplicável aos contratos de trabalho de direito privado.
14. E, em matéria de suspensão temporária de funções em resultado de medida de coação aplicada em processo penal, existe já jurisprudência que aponta no sentido da suspensão da remuneração por suspensão do contrato.
15. Como é o caso do acórdão do Tribunal da Relação de Évora no Proc. n. 168/10.8TTPTG.E1, de 6 de Julho de 2011.

Nas contra-alegações, a recorrida apresenta as seguintes conclusões:

A. Ao contrário do que pretende a Recorrente, à Recorrida em momento algum foi decretada a medida de coacção de suspensão do exercício de profissão, função ou actividade, públicas ou privadas.

B. Pelo que não foi aplicada à Recorrida a medida de coacção de suspensão do exercício da profissão no IMTT.

C. Tendo os ora Recorrentes decidido por mote próprio actuar como se esta tivesse sido decretada.

D. As faltas da Recorrida, uma vez que derivam do cumprimento de obrigações legais, nomeadamente o cumprimento da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação estão justificadas, nos termos do art. 1850 da Lei 59/2008, na alínea d) do n° 2, "As motivadas por impossibilidade de prestar trabalho devido a facto que não seja imputável ao trabalhador, nomeadamente doença, acidente ou cumprimento de obrigações legais".

E. Nos termos do n 1 do art. 2310 da lei 59/2008 "Durante a redução ou suspensão mantem-se os direitos, deveres e garantias das partes no medido em que não pressuponham a efectiva prestação do trabalho."

F. Refere o art. 70° da Lei 12 -A/2008, nos seus n 1 e 2:

"1 - A remuneração base mensal é o montante pecuniário correspondente ao nível remuneratório, conforme os casos, da posição remuneratório onde o trabalhador se encontra na categoria de que é titular ou do cargo exercido em comissão de serviço.

2 - A remuneração base está referenciada à titularidade, respectivamente, de uma categoria e o respectivo posicionamento remuneratório do trabalhador ou à de um cargo exercido em comissão de serviço."

G. Ou seja, a remuneração base da Recorrida está referenciada à titularidade de uma categoria (no caso, a categoria de assistente técnica especialista).

H. Titularidade essa que a Recorrida mantém, não obstante a suspensão da prestação do trabalho por impedimento prolongado.

I. Do recibo da A decorre que a mesma não faz descontos para a SS, nem para seguro de acidentes, antes para a ADSE e CGA, pelo que no caso de baixa por doença o serviço assegura o pagamento das faltas de todos os trabalhadores.

J. Se assim é na doença, também será no acidente e no cumprimento de obrigações legais.

K. Não pode a Recorrida. ser privada da sua remuneração base pelo facto de estar impossibilitada de prestar o trabalho, mercê do cumprimento de obrigações legais.

L. Acresce que a medida de coacção aplicada é provisória, não existindo ainda sequer uma acusação, muito menos uma sentença, pelo que se mantém a presunção de inocência.

M. Sendo que a privação da remuneração nos moldes em que a recorrente o pretende fazer consubstanciariam uma verdadeira punição.

N. E estaríamos a transformar uma medida cautelar numa punição efectiva sem que tenha existido julgamento.

O. Ora isto não é admissível num Estado de Direito.

*

A Mmª Juiza aclarou e depois sustentou a sua decisão cautelar.

*

O Exmº representante do Ministério Público junto deste Tribunal foi notificado para, em defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos, de interesses públicos especialmente relevantes ou de algum dos valores ou bens referidos no n. 2 do artigo 9.° do CPTA, se pronunciar sobre o mérito do recurso (art. 146° n° 1 do CPTA).

Cumpridos os demais trâmites processuais, importa agora decidir em conferência.

*

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. FACTOS CONSIDERADOS PROVADOS

1

À Requerente foi aplicada como medida de coação a obrigação de permanência na sua residência, cf. doc. n.º 2 junto ao r.i.

2

A entidade requerida deixou de processar o vencimento da Requerente a partir de Agosto de 2011, cf. art. 4.º da oposição.

Ao abrigo do art. 712º-1-b CPC, aditam-se os seguintes factos articulados (no r.i.) pertinentes e não impugnados:

3

Dou aqui por reproduzido o teor do DOC. 3 do r.i. (art. 5º do r.i.)

4

A A. é mãe de dois filhos menores (Doc. 5), tem um marido que se encontra actualmente desempregado (Doc. 6) e era, até o IMTT ter decidido parar de lhe pagar a remuneração devida, o único sustento do agregado familiar.

5

O vencimento da A. não era grande (Doc. 13), até tendo em conta o número de pessoas que dele dependiam, mas sempre dava para irem sobrevivendo e fazendo face aos compromissos assumidos.

6

O agregado familiar da A. tem compromissos assumidos que não pode honrar, uma vez que a A. deixou de ser remunerada (Docs. 7, 8 e 9).

7

A A. tinha já uma execução a correr contra ela, mercê da qual se encontrava penhorado 1/3 do seu vencimento (Doc. 10).

8

A A não aufere qualquer outro rendimento, tem 2 filhos e o seu único rendimento era o seu vencimento.

9

A A vive hoje da ajuda de familiares e amigos.

*

II.2. APRECIAÇÃO DO RECURSO

Objecto do recurso

O âmbito do recurso jurisdicional, cujo objecto é a decisão recorrida e seus fundamentos, é delimitado pelo Recorrente nas conclusões das suas alegações (conclusões necessariamente sintéticas e com a indicação das normas jurídicas violadas) e apenas podendo incidir sobre questões (coisa diversa das considerações, argumentos ou juízos de valor (3)) que tenham sido ou devessem ser anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal superior com questões novas (4) ou cobertas por caso julgado (sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso).

Assim, no caso sub judice e summo rigore, este tribunal ad quem deve apreciar dum modo sempre concretizante (e numa perspectiva lógico-objectivante, atenta ao sentido social da normação das situações de vida (5), utilizando a argumentação jurídica como a lógica jurídica a se (6)) as seguintes questões invocadas contra a decisão recorrida (7):
i) A decisão cautelar não está fundamentada?
ii) Como o requerente deste processo cautelar não trabalha, devido a estar sujeito a medida de coação de obrigação de permanência na sua residência, não pode manter-se a sua retribuição de trabalho?
iii) No caso presente, as faltas do requerente são justificadas por cumprimento de obrigação legal?

*

Decisão recorrida

Já vimos a decisão recorrida, i.e. o dispositivo:

«Nestes termos, defiro a providência decretada (?), impondo à entidade requerida a obrigação de pagar mensalmente, desde a data da suspensão do processamento, 5/6 do vencimento base da categoria de assistente técnica especialista enquanto se mantiver o pressuposto apontado».

A fundamentação de direito foi apenas esta:

«A questão que importa decidir é se a suspensão do contrato de trabalho por força da aplicação da referida medida de coação implica a perda de remuneração nos termos em que foi entendido pela entidade requerida na decisão suspendenda proferida em 11.8.2011 ou se dá lugar apenas à suspensão do pagamento do vencimento de exercício, mantendo-se o direito ao vencimento de categoria, ou seja, a 5/6 da remuneração base da categoria detida pela Requerente.

«Adianta-se que, não tendo sido imposta à Requerente a título de medida de coação a suspensão do direito de exercício da profissão, a suspensão do contrato de trabalho da A., por impossibilidade total temporária, face à obrigação de permanência na sua residência e proibição de contactos com os colegas, não implica a perda do direito ao vencimento de categoria, ou seja, a 5/6 da remuneração base da categoria de assistente técnica especialista até que coisa diferente seja decidida no processo crime. Com efeito, a medida de coacção aplicada serve os fins e utilidade da instrução do processo-crime e ao não ter sido suspenso o direito ao exercício de funções públicas, tal não pode deixar de significar que os indícios de ilícitos imputados à Requerente não seriam de molde a configurar tal medida justificada. Ou seja, o afastamento das suas funções por banda da Requerente não decorre directamente da sua idoneidade, mas sim da necessidade de assegurar a investigação e recolha de prova, razão pela qual não pode ser privada da remuneração de categoria por aplicação do disposto no n.º 1 do art. 231.º da Lei n.º 59/2008, de 11.9. (8) »

*

Nulidade decisória

Embora a fundamentação de facto e a de direito da decisão cautelar recorrida seja insuficiente, lacunar e muito concisa, a fundamentação de facto e a fundamentação de direito estão presentes nesta decisão cautelar.

Pelo que não existe a invocada nulidade decisória por falta (absoluta) de fundamentação (v. art. 668º-1-b CPC).

*

Factos pertinentes e relevantes provados

A nosso ver, o art. 712º CPC permite ao TCA:

1) Alterar, oficiosamente ou não, a decisão sobre a matéria de facto, porque o que consta dos autos assim o impõe;

2) Determinar, oficiosamente ou não, a renovação dos meios de prova imposta pelo princípio do inquisitório e da verdade material;

3) Anular, total ou parcialmente, oficiosamente ou não, a decisão sobre a matéria de facto, com base em deficiência, obscuridade ou contradição da decisão sobre pontos determinados da matéria de facto ou com base na natureza indispensável da ampliação da matéria de facto controvertida (ainda) a necessitar de resposta (aqui, com eventual produção de mais prova);

4) Determinar, a requerimento da parte e se necessário, que o tribunal de 1ª instância fundamente a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, tendo em conta os depoimentos gravados/registados ou repetindo a produção da prova.

Ora, no caso presente, a omissão total pelo tribunal a quo de factualidade pertinente à causa e que conta para a solução do pleito (em sede de periculum in mora) invocada nos arts. 39ss do r.i., factualidade aliás não impugnada na oposição, impõe que os mesmos sejam por nós aditados à factualidade provada (ao abrigo do art. 712º-1-b CPC).

Sobre o que seja matéria de facto (= determinar o que aconteceu; J. ALBERTO DOS REIS, CPC Anot., III, 4ª ed., reimpressão, 1985, p. 207) a seleccionar, cf. J. ALBERTO DOS REIS, CPC Anot., III, 4ª ed., reimpressão, 1985, p. 216ss; PAULO CUNHA, Cadeira de Proc. Civil e Comercial, V, Da Marcha do Processo, p. 379ss; e ANTONIO GERALDES, Temas da Reforma…, II, 4ª ed.).

*

Fumus boni iuris

As medidas ou providências cautelares referidas no art. 112º CPTA (umas típicas (9), outras não), a decretar como previsto no art. 120º CPTA, visam,
· com base num julgamento muito sumário da questão de direito,
· assegurar que o tempo do julgamento do processo principal não determine a inutilidade da sentença nele proferida e, consequentemente, impedir que o Requerente, aquando do fim do processo principal, fique numa situação de facto consumado ou numa situação em que o volume ou a qualidade dos prejuízos sofridos inviabilize a possibilidade de reverter à situação que existiria se a ilegalidade (por ora, meramente aparente (10)) não tivesse sido cometida.

A lei exige como requisitos da procedência de um processo cautelar:

(1) o periculum in mora (art. 120º-1-b-1ª parte-ou-c-1ª parte do CPTA) - i.e. fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal,

(2) o fumus boni iuris (art. 120º-1-c-in fine do CPTA – i.e. ser provável que a pretensão formulada ou a formular nesse processo venha a ser julgada procedente, ou o fumus non malus iuris (art. 120º-1-b-in fine do CPTA - i.e. não ser manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular nesse processo ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito,

(3) a ponderação dos danos para os interesses em questão segundo critérios de proporcionalidade, ou seja que a atribuição da providência não cause danos desproporcionados (art. 120º-2 CPTA) (11), bem como

(4) a necessidade, adequação e suficiência da concreta providência (art. 120º-3 CPTA) (12).

O fundado receio referido nas alíneas b) e c) do art. 120º-1 CPTA ou periculum in mora (o interesse em agir qualificado da tutela cautelar (13)) há-de corresponder a uma prova, em princípio a cargo do requerente, de que as consequências das eventuais providências são suficientemente prováveis para que se possa considerar "compreensível ou justificada" a cautela que é solicitada, não bastando ao Tribunal, para a formulação do tal juízo de prognose ou a mera alegação vaga e abstracta dos prejuízos, devendo os autos conter razões, isto é, factos que fundamentem o pedido, para que se possa concluir pelo deferimento da pretensão.

No âmbito das providências conservatórias em que o interesse do requerente seja de mera conservação do status quo, no tocante à aparência do bom direito, ou fumus boni iuris, a intensidade exigida basta-se com que não seja manifesta a falta de fundamento da pretensão no processo principal ou a existência de causa obstativa do conhecimento de mérito - uma espécie de fumus negativo ou fumus non malus - cfr. artº 120º nº 1 b) CPTA.

E, para os efeitos do art. 120º-2 CPTA, a ponderação resolve-se pela comparação do peso relativo dos prováveis danos em presença, comparação a fazer à luz do circunstancialismo fáctico do caso concreto, cumprindo assegurar que, entre dois prejuízos, a decisão cautelar seja aquela que objectivamente provoque prejuízos em menor grau. Limitando-se eventualmente o requerente a alegar meros juízos ou conclusões, recorrendo a generalidades e a conceitos indeterminados, sem concretizar através de factos e exemplos da vida corrente os específicos prejuízos que advirão da execução do acto, não está preenchido o requisito referido. Esta ponderação judicial é feita com referência directa aos danos ou prejuízos em jogo e não com referência directa aos interesses. Por exemplo, constituem prejuízos de difícil reparação os danos morais cuja especial intensidade desaconselhe que o lesado os sofra, podendo ser deles livrado, bem como aqueles cuja indemnização só seja atingível por um processo de cálculo mais árduo, problemático e controverso do que é usual nos danos dessa espécie.

O CPTA, ao contrário de outros ordenamentos jurídicos, admite todos os meios de prova desde que estritamente necessários e úteis ao esclarecimento sumário do caso concreto objecto de tutela cautelar, sendo certo que o juiz deve evitar, sob a égide da celeridade e da utilidade probatórias, que a prova no processo cautelar seja profunda ou demorada como no processo principal. Por exemplo, tem pouco sentido a prova pericial, designadamente a colegial. Cabe ao juiz cautelar exercer bem os poderes de conformação da instrução da lide cautelar conferidos pelo art. 118º-3 CPTA, afastando-se quer da lentidão própria do processo principal, quer de excessiva pressa em “despachar um processo urgente” (cfr. Acs. deste TCAS de 20-9-2007, pr. nº 02829/07, de 18-3-2009, pr. nº 04674/08, de 28-4-2011, pr. nº 07119/11, e de 19-5-2011, pr. nº 07073/10; MIGUEL P. ROQUE, in Cadernos de Justiça Administrativa nº 76, p. 80).

Funcionam no processo cautelar administrativo as regras gerais do ónus da prova (arts. 342º ss CC, 112º-2-a, 114º-3-f-g, 118º e 120º CPTA, e 514º CPC). Pelo que, fora do caso previsto na al. a) do nº 1 do art., 120º CPTA, o requerente, além da aparência do bom direito, tem de descrever detalhadamente e provar os factos consubstanciadores do periculum in mora. Sobre o ónus da prova, cfr. CARLOS CADILHA, in Cadernos de Justiça Administrativa nº 69.

Nenhuma das partes arguiu a omissão de conhecimento (A. VARELA) ou de pronúncia (J. ALBERTO DOS REIS) (arts. 660º-2 e 668º-1-d CPC) do seguinte:
· do invocado periculum in mora ou do fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal (arts. 39ss do r.i.),
· da invocada violação do direito de audiência prévia regulado nos arts. 100º ss do CPA,
· da ponderação exigida no art. 120º-2 do CPTA.

E, como se sabe, resulta do art. 668º CPC que as nulidades decisórias previstas nas al. b) a e) do seu nº 1 não são de conhecimento oficioso.

Aqui chegados, há que fazer o enquadramento jurídico de todos os factos relevantes provados, mas considerando apenas as conclusões do recurso.

Como o requerente deste processo cautelar não trabalha, devido a estar sujeito a medida de coação) de obrigação de permanência na sua residência, não pode manter a retribuição como trabalhador por conta de outrem, do IMTT? No caso presente, se as faltas do requerente forem justificadas por cumprimento de obrigação legal, isso terá consequências positivas para a tese da recorrida?

Ora, o acto suspendendo, não identificado na decisão recorrida, é o invocado no art. 5º do r.i. e consta do seu doc. 3. (14)

O recorrente apenas põe aqui em causa o acerto desta decisão cautelar quanto ao fumus boni iuris (não ser manifesta a falta de fundamento da pretensão formulada ou a formular nesse processo ou a existência de circunstâncias que obstem ao seu conhecimento de mérito). Foi, aliás, a única questão abordada na fundamentação de direito.

Ninguém aborda agora o periculum in mora (fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que o requerente visa assegurar no processo principal).

A Mmª juiz a quo considerou ser de (suspender a eficácia do acto identificado no art. 5º do r.i. e) impor à entidade requerida a obrigação de pagar mensalmente, desde certa data, 5/6 do vencimento base da categoria de assistente técnica especialista. Terá tido em conta que a remuneração base integra em geral a remuneração de categoria e a remuneração de exercício, iguais, respectivamente, a cinco sextos e a um sexto da remuneração base (v. art. 85º-1 da Lei 12-A/2008 - Regimes de vinculação, de carreiras e de remunerações dos trabalhadores que exercem funções públicas).

Não compreendemos, nem se explicita na decisão recorrida, o motivo de tal distinção, concluindo ali pelos 5/6 do vencimento base da categoria.

Além do que já vimos no art. 231º-1 (15), de acordo com o art. 232º da Lei n.º 59/2008 temos o seguinte quadro legal aqui pertinente:

1 - Determina a suspensão do contrato o impedimento temporário por facto não imputável ao trabalhador que se prolongue por mais de um mês, nomeadamente doença.

2 - O contrato considera-se suspenso, mesmo antes de decorrido o prazo de um mês, a partir do momento em que seja previsível que o impedimento vai ter duração superior àquele prazo.

3 - O contrato caduca no momento em que se torne certo que o impedimento é definitivo.

4 - O impedimento temporário por facto imputável ao trabalhador determina a suspensão do contrato nos casos previstos na lei.

A tese da requerente/recorrida é de que as ausências de funcionário (indirectamente) impedido de sair de casa por decisão judicial, como é o caso presente, são justificadas, não fazendo por isso sentido perder a retribuição. Desde logo, parece excessivo, parece ilógico.

A tese do requerido/recorrente é a de que não pode haver retribuição alguma, porque não há prestação do trabalho, nem disponibilidade para o mesmo.

É verdade que o JIC não decretou a suspensão do exercício de funções. Mas decretou (licitamente) uma medida coactiva que, objectivamente, impede a trabalhadora de ir cumprir o seu contrato com o IMTT, por facto não relacionado com a entidade empregadora.

O art. 232º-1 da Lei 59/2008 dispõe claramente que o impedimento temporário do trabalhador por facto não imputável ao mesmo (ex: doença, acidente, serviço militar, obrigação judicial de permanência na habitação), que se prolongue por mais de um mês, determina a suspensão do contrato. Esta, obviamente, determina a suspensão do pagamento da retribuição.

Por sua vez, os arts. 231º-1 cit. (16), 185º-2-d (17) e 191º-3 (18) da Lei 59/2008 significam que não há direito a retribuição no caso de faltas para “cumprimento de obrigação legal” (aqui, obrigação de permanência na sua residência) por mais de 30 dias; aplica-se aí o regime de suspensão da prestação do trabalho por impedimento prolongado (art. 179º (19)). A suspensão do contrato de trabalho em funções públicas por facto relacionado com o trabalhador implica, hoje, a suspensão do pagamento da retribuição a partir de certo momento.

Assim, resulta da letra da lei que é manifesto que a requerente desta providência não tem razão: o contrato dela suspendeu-se, ao abrigo dos arts. 231º-1, 232º-1 e 191º-3 da Lei 59/2008. E, por isso, não há dever de a entidade ora requerida pagar retribuição (seja de exercício, seja de categoria) a partir do 31º dia sem trabalhar referido no doc. 3 do r.i. O que é lógico e razoável. Simplesmente, há um motivo legal expresso para a suspensão do contrato de trabalho. E a entidade patronal não tem de retribuir um trabalho que não é prestado devido a uma causa a que ela é alheia.

Portanto, concluímos que neste caso é simples e claro que não há fumus, que não há a invocada “aparência do bom direito”.

Não está de todo em causa a presunção de inocência (que se mantém), nem o Estado de Direito (art. 2º CRP).

Cf. o Ac.STJ de 2-5-2007, P. nº 358/07: IV - O trabalhador que seja preso preventivamente deixa de ter direito à retribuição, pelo menos depois de terem decorrido 30 dias sobre a data da prisão, quer se entenda que as faltas motivadas por aquela prisão são justificadas, quer se entenda que são injustificadas. V - Com efeito, se se entender que são justificadas, o contrato de trabalho ficará suspenso, decorridos que sejam 30 dias sobre a data da prisão, com a consequente perda do direito à retribuição. VI - Por sua vez, se se entender que tais faltas são injustificadas, não haverá lugar à suspensão do contrato, mas o trabalhador deixará de ter direito à retribuição, exactamente por elas serem injustificadas.

Sobre esta matéria em geral, v. ainda:

- Ac.STJ de 4-6-2008, P. nº 4292/07;

- Ac.STJ de 1-10-2008, P. nº 1688/08.

*

III- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juizes da Secção do Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul em

-conceder provimento ao recurso,

-ampliar a matéria de facto provada,

-revogar a decisão recorrida e

-julgar improcedente o processo cautelar.

Custas a cargo da requerente em ambos os tribunais.

Lisboa, 8-3-2012


(Paulo Pereira Gouveia; relator)

(António C. da Cunha)

(J. Fonseca da Paz)


(1)Art. 231º:
1 - Durante a redução ou suspensão mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes na medida em que não pressuponham a efectiva prestação do trabalho.
2 - O tempo de redução ou suspensão conta-se para efeitos de antiguidade.
3 - A redução ou suspensão não interrompe o decurso do prazo para efeitos de caducidade, nem obsta a que qualquer das partes faça cessar o contrato nos termos gerais.
Art. 232º:
1 - Determina a suspensão do contrato o impedimento temporário por facto não imputável ao trabalhador que se prolongue por mais de um mês, nomeadamente doença.
2 - O contrato considera-se suspenso, mesmo antes de decorrido o prazo de um mês, a partir do momento em que seja previsível que o impedimento vai ter duração superior àquele prazo.
3 - O contrato caduca no momento em que se torne certo que o impedimento é definitivo.
4 - O impedimento temporário por facto imputável ao trabalhador determina a suspensão do contrato nos casos previstos na lei.
(2) Artigo 67.ºComponentes da remuneração
A remuneração dos trabalhadores que exerçam funções ao abrigo de relações jurídicas de emprego público é composta por:
a) Remuneração base;
b) Suplementos remuneratórios;
c) Prémios de desempenho.
(3) Até porque “de minimis non curat praetor”.
(4) Daqui ser essencial que se tenha presente o invocado nos articulados.
(5) Assim: BAPTISTA MACHADO, Prefácio, in HANS KELSEN, A Justiça e o Direito Natural, Almedina, 2001, p. 14ss.
(6) Portanto, uma lógica não formal – assim: CHAIM PERELMAN, Ética e Direito, Ed. Martins Fontes (S. Paulo, Brasil), 1996, p. 490ss. Entendemos este quadro jusfilosófico e judiciário como um lugar “científico” em que o juiz não age, logicamente, como académico.
(7) Sobre os tribunais administrativo «recai o sagrado dever de fazer cumprir a lei e o Direito em toda a extensão em que a conduta da Administração se deva pautar por regras e princípios jurídicos» (cfr. MÁRIO AROSO…, “Sobre as acções de condenação à prática de actos administrativos”, in Temas e Problemas de Processo Administrativo, 2.ª Edição Revista e Actualizada, Intervenções dos Cursos de Pós-graduação sobre o Processo Administrativo, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas, p. 108, em http://icjp.pt/publicacoes), assim se proporcionando a adequada tutela jurisdicional.
(8) Art. 231º:
1 - Durante a redução ou suspensão mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes na medida em que não pressuponham a efectiva prestação do trabalho.
2 - O tempo de redução ou suspensão conta-se para efeitos de antiguidade.
3 - A redução ou suspensão não interrompe o decurso do prazo para efeitos de caducidade, nem obsta a que qualquer das partes faça cessar o contrato nos termos gerais.
(9) Por exemplo, entre outros (suspensão de eficácia), o pedido cautelar de intimação de alguém para que provisoriamente se abstenha de um certo comportamento, alegadamente violador de normas de direito administrativo, supõe que haja um vazio decisório, isto é, que não exista ou subsista uma qualquer pronúncia justificativa de tal comportamento (Ac. do STA de 10.1.2008, Rec. nº 0675/07).
Sobre este tema, ver: FREITAS DO AMARAL, in Cadernos de Justiça Administrativa nº 43, e MÁRIO AROSO DE ALMEIDA et al., Comentário ao CPTA, 3ª ed., 2010, notas ao art. 112º.
(10) Não existem elementos que tornem evidente a improcedência ou a inviabilidade da pretensão material.
(11) 2 - Nas situações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior, a adopção da providência ou das providências será recusada quando, devidamente ponderados os interesses públicos e privados, em presença, os danos que resultariam da sua concessão se mostrem superiores àqueles que podem resultar da sua recusa, sem que possam ser evitados ou atenuados pela adopção de outras providências.
(12) 3 - As providências cautelares a adoptar devem limitar-se ao necessário para evitar a lesão dos interesses defendidos pelo requerente, podendo o tribunal, ouvidas as partes, adoptar outra ou outras providências, em cumulação ou em substituição daquela ou daquelas que tenham sido concretamente requeridas, quando tal se revele adequado a evitar a lesão desses interesses e seja menos gravoso para os demais interesses, públicos ou privados, em presença.
(13) Assim: A. VARELA, Manual…, 2ª ed., p. 189; MÁRIO AROSO…, Comentário ao CPTA, 3ª ed., p. 796; RUI PINTO, A Questão de Mérito na Tutela Cautelar…, pp. 588 ss, maxime p. 598.
(14)
" (...)"
(15) 1 - Durante a redução ou suspensão mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes na medida em que não pressuponham a efectiva prestação do trabalho.
(16) 1 - Durante a redução ou suspensão mantêm-se os direitos, deveres e garantias das partes na medida em que não pressuponham a efectiva prestação do trabalho.
(17) 2 - São consideradas faltas justificadas:

d) As motivadas por impossibilidade de prestar trabalho devido a facto que não seja imputável ao trabalhador, nomeadamente doença, acidente ou cumprimento de obrigações legais…
(18) 3 - Nos casos previstos na alínea d) do n.º 2 do artigo 185.º, se o impedimento do trabalhador se prolongar efectiva ou previsivelmente para além de um mês, aplica-se o regime de suspensão da prestação do trabalho por impedimento prolongado.
(19) 1 - No ano da suspensão do contrato por impedimento prolongado, respeitante ao trabalhador, se se verificar a impossibilidade total ou parcial do gozo do direito a férias já vencido, o trabalhador tem direito à remuneração correspondente ao período de férias não gozado e respectivo subsídio.
2 - No ano da cessação do impedimento prolongado o trabalhador tem direito às férias nos termos previstos no n.º 2 do artigo 172.º
3 - No caso de sobrevir o termo do ano civil antes de decorrido o prazo referido no número anterior ou antes de gozado o direito a férias, pode o trabalhador usufruí-lo até 30 de Abril do ano civil subsequente.
4 - Cessando o contrato após impedimento prolongado respeitante ao trabalhador, este tem direito à remuneração e ao subsídio de férias correspondentes ao tempo de serviço prestado no ano de início da suspensão.