Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:518/17.6BESNT
Secção:CT
Data do Acordão:01/11/2018
Relator:CRISTINA FLORA
Descritores:AUXÍLIO DAS AUTORIDADES POLICIAIS
EFECTIVAÇÃO DA POSSE DO IMÓVEL
Sumário:Havendo a necessidade de arrombamento e substituição da fechadura para efectivar a posse de imóvel vendido no âmbito da execução fiscal que constitua um domicílio, a competência para determinar o auxílio das autoridades policiais no arrombamento da porta e a substituição da fechadura para efectivar a posse do imóvel é do juiz do tribunal tributário de 1.ª instância.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A FAZENDA PÚBLICA requereu no T.A.F de Sintra, nos termos do disposto no artigo 151º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), “(que se) determine o arrombamento da porta e substituição da fechadura para efectivar a posse do imóvel" que identifica "e proceder à sua entrega ao adquirente", nos autos de execução fiscal que correram termos no Serviço de Finanças de ... sob processo n.º ... e apensos.

Por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra foi julgada procedente a excepção de falta de interesse em agir suscitada pelo Magistrado do Ministério Público, indeferindo a petição nos termos do disposto no art. 590.º, n.º 1 do CPC.

Inconformada com o assim decidido, a Fazenda Pública recorre para este Tribunal Central, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
«
A - O presente recurso interposto vem reagir contra o douto despacho proferido pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo”, o qual recusou o pedido de auxílio da força policial, para a entrega do bem imóvel, designado pela letra C, sito na Rua ..., n.ºs 18 e 20, ..., inscrito na matriz predial urbana da união de freguesias de ... e ..., concelho de ..., sob o artigo 3028, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... ... sob o n.º 807/20031024-C.
B - O Meritíssimo Juiz indeferiu a pretensão da Fazenda Pública, por entender, que dos autos, não resulta provado que o imóvel se encontra habitado, apoiando-se no facto de ninguém responder ao chamado à porta do imóvel, bem como à inexistência de contador de gás.
C - Ora, não pode a Fazenda Pública concordar com tal despacho, uma vez que a fundamentação do mesmo não é suficiente para assegurar que o imóvel se encontra desabitado.
D - Não obstante, resulta da lei aplicável ao caso sub júdice, que estando em causa o arrombamento de uma casa de habitação, terá de existir por parte do órgão da execução fiscal um pedido fundamentado ao juiz, para a obtenção de despacho que autorize o auxílio das forças policiais para o arrombamento da porta e substituição da fechadura, para efectivar a posse do imóvel e proceder à sua entrega à legítima adquirente.
E - Assim, salvo o devido respeito, entende a Fazenda Pública que o douto despacho padece de erro de julgamento de facto, por equívoco de interpretação, valoração e consideração da prova produzida nos autos, tornando-se inadmissível o indeferimento do requerimento apresentado pela Fazenda Pública, onde se solicita o auxílio das forças policiais para a efectivação da entrega do bem imóvel.»

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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O Magistrado do Ministério Público foi notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, tendo emitido parecer no sentido da não admissão do recurso por irrecorribilidade decorrente do valor da causa.
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Com dispensa de vistos, cumpre decidir.
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As questões invocadas pelo Recorrente nas suas conclusões das alegações de recurso, que delimitam o objecto do mesmo, e que cumpre apreciar e decidir consiste em aferir da admissibilidade do presente recurso, e, sendo admissível, aferir se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento de facto ao ter indeferido o pedido da Fazenda Pública de arrombamento e substituição da fechadura relativamente ao imóvel em causa nos autos.

II. FUNDAMENTAÇÃO

A decisão recorrida deu como provada a seguinte matéria de facto:

“A) No serviço de finanças de ... foi instaurado o processo de execução fiscal 3557-2007/010 e apensos contra M... – cfr. fls. 10 dos autos.

B) Para garantia da dívida exequenda foi penhorada, no processo executivo supra referido, uma fracção autónoma designada pela letra C, correspondente ao 1.º esq. do prédio urbano sito na Rua ..., n.ºs 18 e 20, em ..., inscrito na matriz predial urbana da União de Freguesias de ... e..., concelho de ..., sob o art. n.º 3028 e descrito na Conservatória do Registo Predial ...-... sob o n.º 807/20031024-C da freguesua de ... –cfr. fls. 7 dos autos de execução.

C) A executada foi nomeada fiel depositária na penhora supra descrita – cfr. fls. 8 dos autos.

D) Em 15/01/2015 procedeu-se à venda do bem penhorado e descrito em B), tendo sido o mesmo adjudicado à C..., SA – cfr. verso fls. 8 dos autos.

E) Notificada para não proceder à entrega do imóvel vendido à adquirente, a executada, por carta datada de 16/03/2017, cujo teor aqui se dá por reproduzido, informou o órgão de execução, que não dispunha da chave e não habitava o imóvel em apreço e que o mesmo foi habitado, na sequência do divórcio, pelo seu ex-cônjuge, G..., que veio a falecer em 19/04/2016 – cfr. verso de fls. 19 a fls. 22 dos autos.

F) Em 21.03.2017 o órgão de execução desencadeou as diligências descritas a fls 12 (verso), onde concluiu, além do mais, ninguém atender e não existir contador de gás para a fracção em apreço nos autos – cfr. verso de fls. 2 (verso) dos autos.

G) O órgão de execução notificou a executada para a entrega do imóvel na morada Rua ..., n.º 15, sub-cave Dta, ... ...-... – cfr. verso de fls. 11 (verso) dos autos.

Não existem outros factos, com relevo para a decisão do mérito da causa, que importe dar como provados ou não provados.
O Tribunal alicerçou a sua convicção sobre os factos provados no teor dos documentos supra identificados.”
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Com base na matéria de facto supra transcrita a Meritíssima Juíza do TAF de ... julgou procedente a excepção de falta de interesse em agir suscitada pelo Magistrado do Ministério Público, indeferindo a petição do incidente previsto no art. 151.º do CPPT, sendo desta decisão que a Recorrente fazenda Pública interpõe recurso.

Antes de mais, cumpre conhecer da excepção suscitada pelo Magistrado do Ministério Público junto deste TCAS, designadamente, da admissibilidade do presente recurso em razão do valor ser 2.635,71€.

Conforme resulta dos autos, o Representante da Fazenda Pública apresentou requerimento dirigido ao Juiz do TAF de ... a solicitar, nos termos do disposto no art. 151.º do CPPT, que “determine o arrombamento da porta e substituição da fechadura para efectivar a posse do imóvel acima identificado e proceder à sua entrega ao adquirente”, imóvel que havia sido penhorado no âmbito do processo de execução fiscal n.º ... e posteriormente vendido e lavrado o respectivo auto de adjudicação, e relativamente ao qual o adjudicatário requereu ao serviço de finanças a entrega efectiva, sendo que até à data o executado não entregou o imóvel. O presente incidente foi deduzido em 10/04/2017, tendo sido indicado o valor do processo de 2.635,71€, pese embora o valor da adjudicação do imóvel, cujo arrombamento da porta e da fechadura se requereu para efectivar a posse do mesmo, é de 47.600,00€.



Ora, na decisão recorrida não foi fixado valor ao incidente, pelo que cumpre, neste momento, fixar esse valor, para efeitos de aferirmos da admissibilidade do presente recurso, sob pena de uma restrição injustificada ao direito ao recurso, e portanto violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva constitucionalmente consagrado no n.º 4 do art. 268.º da CRP.

Nos termos do disposto no art. 304.º, n.º 1 do CPC o valor dos incidentes é o da causa a que respeitam, salvo se o incidente tiver realmente valor diverso do da causa, porque neste caso o valor é determinado em conformidade com os artigos anteriores.

In casu, o valor do incidente deve ser fixado pelo valor da adjudicação do imóvel (47.600,00€), cujo arrombamento da porta e da fechadura se requereu para efectivar a posse do mesmo, na medida em que dispõe o art. 302.º do CPC que “[s]e a ação tiver por fim fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, o valor desta determina o valor da causa.”.

Pelo exposto, fixo ao incidente o valor de 47.600,00€, e por conseguinte, o recurso é admissível, julgando-se não verifica a questão prévia suscitada pelo Ministério Público.

Passemos ao conhecimento do mérito do recurso que consiste em aferir se a decisão recorrida enferma de erro de julgamento de facto por equívoco de interpretação, valoração e consideração da prova produzida, ao não ter determinado o auxílio das forças policiais para a efectivação da entrega do bem imóvel.

Vejamos.

Como resulta dos autos, a executada (também fiel depositária do imóvel adjudicado) foi notificada pelo serviço de finanças para entregar as chaves do imóvel vendido no âmbito da execução fiscal, para a sua efectiva entrega ao respectivo adquirente que havia dirigido ao órgão de execução fiscal requerimento nesse sentido.

Na verdade, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 256.º do CPPT o adquirente pode requerer ao órgão de execução fiscal a entrega dos bens com base no título de transmissão, e nos termos do art. 861.º do CPC se o executado não fizer voluntariamente a entrega da coisa, à efectivação dessa entrega são subsidiariamente aplicáveis, com as necessárias adaptações as disposições referentes à realização da penhora.

Sucede que, apesar daquela notificação a executada não entregou o bem, invocando que não tinha a chaves e que o mesmo foi habitado pelo seu ex-cônjuge, entretanto falecido.

A Fazenda Pública perante a não entrega das chaves por parte da executa e fiel depositária, pretendendo entregar o imóvel ao seu adquirente veio peticionar a intervenção do tribunal para que o tribunal “determine o arrombamento da porta e substituição da fechadura para efectivar a posse do imóvel” ao adquirente.

É neste contexto que surge o presente incidente, cabendo ao juiz tributário, depois de ouvido o Magistrado do Ministério Público, nos termos do disposto no art. 151.º do CPPT, a competência para determinar o auxílio das autoridades policiais no arrombamento da porta e a substituição da fechadura para efectivar a posse do imóvel.

Com efeito, o art. 103.º, n.º 3 da LGT estabelece que o processo de executivo fiscal tem natureza de processo judicial, porém, “sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional”.

Por outro lado, nos termos do n.º 1 do art. 151.º do CPPT “[c]ompete ao tribunal tributário de1.ª instância da área onde correr a execução, depois de ouvido o Ministério Público nos termos do presente Código, decidir os incidentes, (…)”

Conforme se decidiu no acórdão do STA de 10/11/2010, proc. n.º 0631/10 “O artº 151º do CPPT tem de interpretar-se no sentido de o juiz do tribunal tributário gozar também de competência para determinar o auxílio das autoridades policiais no arrombamento de imóvel urbano penhorado em execução fiscal, mediante requerimento fundamentado do órgão de execução fiscal, ao abrigo do artº 840º, nº 3 do CPC e à semelhança do que sucede na execução comum com o agente de execução.”

Actualmente, no Novo CPC, o regime jurídico da entrega efectiva do imóvel encontra-se previsto no art. 757.º, pelo que, traspondo o regime aí previsto para o processo de execução fiscal, temos então duas situações em que o órgão de execução fiscal pode solicitar directamente o auxílio das autoridades policiais (cfr. n.º 2 e n.º 3) no arrombamento e substituição da fechadura para efectivar a posse do imóvel, desde que, em qualquer dos casos, não se trate de domicílio:

_ Quando seja oposta alguma resistência, ou haja receio justificado de oposição de resistência;
_ Quando seja necessário o arrombamento da porta e a substituição da fechadura para efectivar a posse do imóvel.

Por outras palavras, desde que o imóvel em causa não se trate de domicílio, nas situações previstas no n.º 3 e 4 do art. 757.º do CPC, o órgão de execução fiscal pode solicitar directamente o auxílio das autoridades policiais.

Regime diverso é o aplicável aos casos em que o imóvel seja domicílio, nesses casos, verificando-se qualquer uma daquelas duas situações previstas no n.º 2 ou n.º 3, a solicitação de auxílio das autoridades policiais carece de prévio despacho judicial (n.º 4).

O conceito de domicílio, para efeito de protecção constitucional (art. 34.º da CRP), corresponde ao espaço funcionalmente utilizado como habitação humana, ou seja, "aquele espaço fechado e vedado a estranhos, onde, recatadamente e livremente, se desenvolve toda uma série de condutas e procedimentos característicos da vida privada e familiar" (cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 195/2016, de 23/05/2016).

Regressando ao caso dos autos, a Meritíssima Juíza do TAF de ... proferiu despacho de indeferimento da pretensão da Fazenda Pública com fundamento em “falta de interesse em agir”, por entender, em síntese, que no caso em apreço não há necessidade de intervenção judicial para efectuar diligências no sentido da entrega do imóvel, uma vez que a executada informou que não é detentora do imóvel, a notificação não foi efectuada para a morada do imóvel, mas para a da executada, e existem indícios de que a executada não era detentora do imóvel.

Porém, tal decisão não se pode manter.

Com efeito, e desde logo, importa sublinhar que o que a Fazenda Pública pretende é o auxílio das formas policiais para arrombar e substituir a fechadura um imóvel que é um domicílio (não tendo necessariamente de ser domicílio do executado), ou seja, que é um espaço normalmente utilizado para habitação, pois é a própria executada que refere que a fracção em causa se encontrava a ser habitada pelo seu ex-marido para efectivar a posse do mesmo.

Portanto, revestindo o imóvel ora em causa a característica de domicílio, a situação dos autos subsume-se ao disposto no n.º 4 do art. 757.º do CPC, carecendo sempre de intervenção judicial.

In casu, face aos elementos junto aos autos verificam-se os pressupostos do n.º 3, e n.º 4 do art. 757.º do CPC, ou seja, a necessidade do arrombamento e substituição da fechadura para efectivar a posse do imóvel.

Com efeito, a necessidade consubstancia-se, desde logo, no facto de a executada que é a fiel depositária do imóvel não ter entregue a respectiva chave quando notificada especificamente para esse efeito, incumprido o dever de apresentação de bens (cfr. artigos 1187.º do Código Civil e art. 233.º, n.º 1 do CPPT), apesar de ter sido advertida de que se não procedesse à entrega voluntária se procederia ao arrombamento com auxílio das forças policiais.

Portanto, o primeiro facto a ter em consideração é que as chaves do imóvel não foram entregues pela executada e fiel depositária, o que impediu a sua posse efectiva pelo adquirente, pelo que estamos perante uma situação em que para efectivar a posse do adquirente do imóvel ter-se-á de proceder ao arrombamento e substituição da fechadura nos termos estipulados no art. 757.º do CPC face ao incumprimento voluntário de quem é executada e fiel depositária.

E ao contrário do entendimento da Meritíssima Juíza da 1.ª instância, o facto de ninguém responder à porta do imóvel ou a inexistência de contador de gás, não significa, necessariamente, que o imóvel esteja desocupado, sendo certo que sempre seriam necessários sinais evidentes e inequívocos de desocupação do imóvel, atento o carácter de definitividade, face ao direito constitucional ao domicílio.

Repare-se que as pessoas que habitam o imóvel poderiam estar ausentes por motivos tão banais como estar a trabalhar ou às compras, ou seja, podemos estar perante uma ausência no regular desenvolvimento de tarefas do dia-a-dia, ou ausência de médio prazo em gozo de férias, ou até mesmo por razões de saúde, etc.

Por outro lado, o facto de inexistir contador de gás também não tem o relevo que a Meritíssima Juíza da 1.ª instância parece-lhe atribuir, pois nem em todas as habitações utilizam gás, podendo facilmente ser substituído pela electricidade, e as que utilizam ainda assim poderá ser em engarrafado.

Estando em causa o direito constitucional ao domicílio o legislador pretendeu rodear de garantias jurisdicionais qualquer intervenção policial, e por conseguinte justifica-se que se apreciem as circunstâncias com muito cuidado, e ainda que possa haver dúvidas sobre se o imóvel se encontra efectivamente habitado, se ainda se encontra a ser utilizado enquanto domicílio, ainda assim, deve ser o juiz a determinar a intervenção policial, não podendo demitir-se dessa intervenção, pois o arrombamento de um imóvel que é um domicílio para a efectiva posse do imóvel deve ser efectuado com respeito pelo direito constitucional da inviolabilidade do domicílio (art. 34.º, n.º 1 da CRP), pelo que a “entrada no domicílio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente, nos casos e segundo as formas previstos na lei.” (n.º 2).

Pelo exposto, verifica-se que a decisão proferida no presente incidente ao abrigo do art. 151.º do CPPT enferma de erro de julgamento de facto, devendo ser revogada, e nessa medida, o recurso merece provimento.
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Sumário

Havendo a necessidade de arrombamento e substituição da fechadura para efectivar a posse de imóvel vendido no âmbito da execução fiscal que constitua um domicílio, a competência para determinar o auxílio das autoridades policiais no arrombamento da porta e a substituição da fechadura para efectivar a posse do imóvel é do juiz do tribunal tributário de 1.ª instância.

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III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso, revogar-se a decisão recorrida, e consequentemente, determina-se o auxílio das autoridades policiais para o arrombamento da porta e a substituição da fechadura do imóvel em causa nos autos, a efectuar nos termos da lei, de modo a efectivar ao adquirente, a respectiva posse.
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Sem custas.
D.n.
Lisboa, 11 de Janeiro de 2018.

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Cristina Flora



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Ana Pinhol

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Jorge Cortês