Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:3860/23.3BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:03/19/2024
Relator:JOANA COSTA E NORA
Descritores:NULIDADE PROCESSUAL
FALTA DE CONTRADITÓRIO
REJEIÇÃO LIMINAR
INTIMAÇÃO PARA PROTECÇÃO DE DIREITOS, LIBERDADES E GARANTIAS
PRESSUPOSTOS
SUBSTITUIÇÃO DA PETIÇÃO
Sumário:I - A falta de audição do autor previamente à decisão de rejeição liminar da p.i. não consubstancia qualquer nulidade processual.
II - Cabe a quem se pretenda valer da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, a demonstração da verificação dos pressupostos previstos no artigo 109.º, n.º 1, do CPTA, a qual deve assentar em factos cuja alegação se lhe impõe.
III - Para o efeito, deve o autor descrever uma situação factual de “lesão iminente e irreversível” dos direitos que invoca, não lhe bastando afirmar uma mera lesão dos mesmos.
IV - O estrangeiro que não se encontre nem resida em Portugal não goza do direito de se deslocar e fixar livremente em qualquer parte do território nacional, nos termos do artigo 44.º da Constituição, por não beneficiar da extensão prevista no artigo 15.º da mesma lei.
V - O deferimento tácito do pedido de autorização de residência apenas está previsto na Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, para a autorização de residência para reagrupamento familiar, e não para a autorização de residência para actividade de investimento.
VI - A substituição da petição por requerimento de providência cautelar, prevista no n.º 1 do artigo 110.º-A do CPTA, pressupõe, não só que se revele indispensável uma célere decisão de mérito para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, mas também que seja possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, os juízes da subsecção comum da secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul:


I – RELATÓRIO

M…, de nacionalidade britânica, residente no Reino Unido, intentou intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, contra o Ministério da Administração Interna. Pede que o Tribunal proceda, “(…) em substituição do antigo SEF, atual AIMA, ao agendamento de uma data com vista à entrega dos documentos necessários à emissão da Autorização de Residência para Investimento , nos termos e ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 109.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, condenando, por isso, a Requerida a emitir, em seguida, as guias/taxas necessárias para emissão do título de autorização de residência para investimento, nos termos e ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 109.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e com os efeitos previstos no supracitado n. º 3 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março (…).” Alega, para tanto e em síntese, que: (i) Apresentou pedido de autorização de residência para investimento, ao abrigo do n.º 1 do artigo 90.°-A da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, e da subalínea ii), da alínea d) do n.º 1 do artigo 3.º da mesma lei, uma vez que criou, pelo menos, 10 postos de trabalho em território nacional, cumprindo todos os requisitos legais para o efeito, pelo que tem direito a ser recebido pela entidade demandada para entrega de documentação original e recolha de dados biométricos, para posterior emissão do título de autorização de residência para investimento; (ii) O requerimento para autorização de residência foi apresentado em 13.05.2022, tendo o autor submetido digitalmente os documentos legalmente exigidos, e, em 02.06.2022, efectuado o pagamento da quantia de € 539,66; (iii) Nos termos do artigo 82.º, n.º 5, da referida lei, o SEF deveria, sob cominação de deferimento tácito, ter emitido uma pronúncia sobre o seu pedido até 02.09.2022 – correspondente ao termo do prazo de 90 dias -, procedido ao agendamento de data para recolha de documentos e dados biométricos, e enviado a guia de pagamento para a correspondente emissão de autorização de residência, o que não fez até à presente data; (iv) A omissão de decisão do seu pedido de autorização de residência põe em causa os direitos do autor à circulação e fixação de residência em território nacional, nos termos dos artigos 15.º, n.º 1, e 44.º da Constituição, estando o autor limitado na sua permanência em território nacional por períodos de 90 dias; (v) O autor é sócio único e gerente de uma empresa com cerca de 20 trabalhadores e desenvolve projectos que obrigam à sua presença, cujo trabalho e equipa quer acompanhar de perto, por vezes por longos períodos; (vi) Esta é a única via adequada para obter uma decisão de mérito com vista à emissão do título de autorização de residência para investimento, revelando-se a mesma indispensável, por não ser suficiente, nas circunstâncias do caso, o mero decretamento provisório de uma providência cautelar.
Pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa foi proferida sentença a rejeitar liminarmente a petição por o autor não ter alegado factos justificativos da tutela principal urgente subjacente à intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias, nos termos do art.º 109.º do CPTA, e por não ter aplicação ao caso o previsto no artigo 110.º-A, n.º 1, do CPTA, considerando que os pedidos formulados não permitem o recurso à tutela cautelar com idêntico objecto, e que não foi alegada uma situação de facto urgente.
O autor interpôs o presente recurso de apelação, cujas alegações contêm as seguintes conclusões:
“1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferido pela Mma. Juiz a quo que rejeitou liminarmente o requerimento inicial apresentado pelo Requerente de Intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias, porquanto, no seu entender, não se encontram preenchidos os pressupostos de aplicação de tal procedimento, desde logo a necessidade de urgência de uma decisão.
2. O ora recorrente solicita, no pedido da intimação apresentado, o seguinte: “Proceder, em substituição do antigo SEF, atual AIMA, ao agendamento de uma data com vista à entrega dos documentos necessários à emissão da Autorização de Residência para Investimento , nos termos e ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 109.° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, condenando, por isso, a Requerida a emitir, em seguida, as guias/taxas necessárias para emissão do título de autorização de residência para investimento, nos termos e ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 109.° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, e com os efeitos previstos no supracitado n. ° 3 do artigo 16.° do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março.
3. O recorrente é requerente de uma autorização de residência para investimento (ARI), ao abrigo do exposto no n.º 1 do artigo 90.°-A da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, que estabelece o Regime Jurídico de Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros doravante designada, abreviadamente, por Lei dos Estrangeiros, e na subalínea ii), da alínea d) do número 1 do artigo 3.° da mesma Lei, ou seja, uma vez que criou, pelo menos, 10 postos de trabalho em território nacional.
4. Salvo o devido respeito, e erradamente, o despacho liminar de que se recorre “seleciona” as matérias, factos e legislação que permitam, apenas, indeferir o pedido apresentado em juízo, referindo, sucintamente, não terem sido alegados quaisquer factos que justifiquem a tutela principal urgente.
5. Mais lamentável é o facto de o tribunal a quo entrar num verdadeiro raciocínio de prova de um facto negativo, pois refere o tribunal a quo que o meio processual adequado a reagir contra a inércia da administração é a acção de condenação à prática do acto devido ou a acção de condenação à adopção de comportamento, não excluindo, contudo, que se possa lançar mão da presente acção de intimação para DLG’s, mas conclui, sem mais, que nada é alegado sobre os concretos motivos pelos quais não podem aguardar o desfecho de uma ação principal.
6. O tribunal conclui, sem mais que o requerente deveria ter avançado para uma ação comum administrativa, pese embora conclua o mesmo tribunal que o requerente/recorrente não alegue factos concretos que permitam concluir que pode aguardar por uma ação principal. O que não pode!
7. O requerente/recorrente alegou e demonstrou - como se demonstrará - que a inércia do SEF, através da não marcação de um agendamento, impede de forma clara os seguintes direitos, a saber:
- a sua livre circulação no espaço Schengen,
- impede o requerente do cabal desempenho das funções de gerente da empresa que criou em Portugal e que conta actualmente com 19 trabalhadores e que encontra altamente prejudicada pela ausência do seu elemento mais importante!
- impede, indiretamente, o ora requerente possa sair do Reino Unido em tempo útil, e bem assim,
- coloca em causa e viola vários direitos fundamentais, além do referido no artigo 15.° da CRP, ao qual o tribunal a quo se “amarra” para inferir o pedido dos autos, como se esse fosse o único preceito constitucional violado e, também o único que careceria de protecção e tutela por este tribunal.
8. Se o tribunal a quo não admite que as situações alegadas (e provadas) em sede de intimação permitem concluir que a situação concreta, carece de uma decisão urgente e definitiva para prevenir ou reprimir uma ameaça iminente dos direitos do requerente/recorrente, estamos, assim, perante uma verdadeira prova diabólica, pois parece-nos um pouco óbvio que a impossibilidade, em si, de entrar em sair em território nacional, e nele permanecer, por período ilimitado, é prova bastante da violação dos direitos do requerente.
9. Ademais, o tribunal a quo não refere uma única vez quais as provas, nem quais os factos concretos insuficientes, dos autos que lhe permitem concluir pelo indeferimento liminar, parecendo inclusive ao recorrente que se está perante uma decisão que permita apenas "deitar por terra” as intimações como a do ora requerente/recorrente, o que não escapará à sindicância dos Venerandos Juízes.
10. O Tribunal de 1.ª instância decidiu liminarmente sem a realização das necessárias formalidades legais, sem direito a qualquer esclarecimento, nem tão pouco permitindo o contraditório, um caso que se revela manifestamente abusivo, urgente de tutela, e imprescindível para o Recorrente, por violação directa de direitos fundamentais como já se referiu antes.
11. O recorrente submeteu toda a documentação requerida pelo SEF em Maio de 2022 e nessa mesma data pagou a taxa de análise no montante de € 539,66, estando a candidatura em análise com vista a ser validade pelo SEF, actualmente AIMA, no portal do ARI, desde Maio de 2022, ou seja há cerca de 1 ano e meio em "análise”!
12. Não deixa de ser chocante que o Tribunal a quo refira que o Requerente não alega quaisquer factos que justifiquem a tutela principal urgente quando a própria natureza do pedido é, em si, demonstração da necessidade dessa mesma urgência.
13. O Recorrente investiu em Portugal, não através da mera aquisição de um imóvel, mas constituindo uma sociedade comercial, uma empresa ligada à decoração de interiores e arquitectura da qual é um dos criadores artísticos, criou postos de trabalho, contando actualmente com 19 trabalhadores, e pretendendo desenvolver e fazer crescer a empresa da qual é sócio e gerente, o que somente consegue se acompanhar de perto e frequentemente os trabalhos, projectos e equipa.
14. Considerando o tipo de trabalho que desenvolve, naturalmente, não consegue acompanhar a equipa, angariar e desenvolver convenientemente projectos em Portugal com a limitação que subjaz a sua entrada e permanência actualmente permitida em território nacional (90 dias ano).
15. O Recorrente não é mero gerente da sociedade, mas é o director criativo da empresa, arquitecto que dá nome à empresa e pessoa que idealiza os projectos. Grande parte da actividade da empresa, nomeadamente a angariação de clientes e novos projectos, gravita à volta do Requerente.
16. Tal é a importância da presença do Recorrente em território nacional que, em virtude da sua ausência, tem-se perdido alguns projectos, tendo recentemente se visto forçado a cessar o vínculo laboral com alguns trabalhadores em virtude da diminuição de trabalho. A morosidade da tomada de decisão por parte do SEF/AIMA está a pôr em causa a própria subsistência da empresa, que lamentavelmente, a pouca presença do Requerente está a ser determinante para a diminuição de actividade!
17. A acrescer, pese embora o recorrente não tenha, ainda, transferido a sua residência para Portugal, o que pretende logo que lhe seja concedida essa possibilidade, por intermédio da empresa de que é sócio único, adquiriu um imóvel, na cidade do Porto, para permanecer por longos períodos, logo que lhe seja dada essa possibilidade.
18. Ao não ver proferida qualquer decisão pelo SEF/AIMA e com o indeferimento de que se recorre está a ser-lhe vedado o direito à livre circulação e fixação de residência em território nacional, bem como a limitar o livre exercício da sua actividade profissional e, indirectamente, ser-lhe vetado o desenvolvimento, e mesmo subsistência, da empresa por si criada!
19. Se estar impedido de gozar o seu direito fundamental a entrar e circular no espaço europeu, particularmente em Portugal, desenvolver cabalmente a sua actividade e fazer crescer a empresa que constituiu em Portugal, não é suficiente, o que será?
20. Como quer o tribunal que o Requerente esteja em Portugal ou aqui organize a sua vida se está impedido de entrar em território nacional e nele permanecer pelo período ilimitado, por não ter o famigerado título.
21. Parece-nos Kafkiana toda esta situação, à qual o requerente e ora recorrente é totalmente alheio dado que, em tempo cumpriu com tudo o que lhe foi requerido:
- fez o investimento através da constituição de uma empresa, criou postos de trabalho, criou e cria negócio no país, paga todos os impostos em Portugal inerentes ao desenvolvimento da actividade da empresa, arrenda um espaço, comprou equipamentos e angaria clientes nacionais e estrangeiros, contribuindo verdadeiramente para o desenvolvimento do país;
- Comprou casa em Portugal, através da sociedade, para nela permanecer, tal é a necessidade de se estabelecer em Portugal por períodos superiores aos 90 dias a que se encontra limitado;
-Apresentou toda a documentação que lhe foi requerida à data
-Pagou a taxa de análise - 539,66 euros - também em tempo.
22. Ao contrário do que refere o Tribunal a quo, o recorrente alegou, demonstrou e provou que a inexistência de atuação do SEF, e a inexistência de marcação/agendamento, coloca em causa gravemente a tutela de vários direitos liberdades e garantias do ora recorrente e atente-se no exposto antes sobre o tema.
23. Contudo, entende ainda o Requerente que, face à importância e URGÊNCIA, da decisão, caso o tribunal a quo considerasse, como considerou, estar perante ausência de prova, deveria ter sido dada oportunidade ao Requerente do exercício do contraditório, juntando-a, ou aperfeiçoando a sua petição inicial, se fosse caso disso, ao abrigo do princípio de adequação que é dado ao julgador.
24. A verdade é que a inércia do SEF e inexistência de agendamento para recolha de dados biométricos (e posterior emissão de um cartão) fere direta e irremediavelmente os direitos fundamentais do ora recorrente na medida em que este - não pode (por inoperabilidade do SEF) há quase 2 ANOS, proceder.
25. Consequentemente os direitos fundamentais e a eles inerentes estão pura e simplesmente a serem denegados pela simples falta de não marcação de recolha de dados biométricos.
26. Trata-se de uma violação grosseira e gritante com contornos Kafkianos da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, baseada numa mera preterição de formalidade legal pelo estado - a recolha dos biométricos e consequente emissão do cartão de residência.
27. Há aqui uma clara violação da lei e dos direitos fundamentais, negar isto é negar o óbvio!
28. Não se concebe que o Tribunal recorrido não reconheça como urgente e imediatamente tutelável o facto de existir na esfera jurídica do recorrente um direito de residência (em Portugal) e o direito de circulação (entre outros), que depende há mais de 18 meses da emissão do seu título de residência (sendo necessária a recolha de dados biométricos), pelo AIMA.
29. Trata-se de um processo em que o investimento está feito e actualmente altamente prejudicado em virtude do atraso dos serviços estaduais portugueses (SEF ou AIMA), tendo o Recorrente, em virtude da perda de projectos por ausência de devido a atempado acompanhamento, já cessado o vínculo laboral com trabalhadores da empresa, equacionando, infelizmente, a necessidade de recorrer a outras medidas , tais como o regime de Layoff, com vista a sobrevivência da empresa e dos postos de trabalho existentes.
30. O Tribunal faz uma errada subsunção dos factos ao direito.
31. Salvo o devido respeito que, merece opinião do tribunal recorrido, a aplicação efetuada do artigo 15.° da CRP, ao caso concreto do recorrente, ofende o princípio da igualdade (artigo 13.° da CRP) projetado na garantia de acesso aos tribunais previsto no artigo 20.° da Constituição, na medida em que, sem visar a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, restringem o direito de acesso à justiça e aos tribunais.
32. Denegar o acesso à intimação dos autos (e citação do SEF), com base no artigo 15.° da CRP, porque supostamente o visado e lesado (recorrente), não reside habitualmente em Portugal (por inércia do SEF, diga-se), ataca essencialmente, a garantia de acesso à tutela judicial.
33. O tipo de autorização de residência requerida não obriga à residência em Portugal, pelo que este argumento não deveria nunca ser levantado. E a ser, recorde-se que seria sempre imputável aos serviços (SEF) ou mesmo ao estado português - a não residência do ora requerente - , pois foi este mesmo Estado (como já se referiu antes) que não recolheu os biométricos nem emitiu o cartão, este ónus é do estado não do requerente que tudo fez para que esta recolha fosse marcada mas, como sempre o SEF não responde a ninguém, nem por telefone, nem tão pouco se digna a responder aos e-mails que lhe são enviados.
34. A realização do direito ao agendamento do SEF - que impõe o controlo judicial da inércia do SEF - e o acesso aos tribunais - integra o núcleo irredutível do princípio da equiparação de tratamento entre nacionais e estrangeiros e apátridas, estabelecido no artigo 15°, n.° 1, da Constituição.
35. A acrescer, já se encontra reconhecido o direito à residência do mesmo, por deferimento tácito por força do disposto no art. artigo 82.°, n.º 7, da Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho, pois que há muito se encontra ultrapassado o prazo de 90 dias previsto no n.º 5 da mesma norma.
36. Seria, no mínimo, pouco razoável e até inconstitucional - aliás como já se referiu - não se lhe reconhecer também o direito de acesso à justiça, nos mesmo moldes dos residentes/ou nacionais.
37. Importa ainda elucidar que, sendo as entidades públicas as primeiras destinatárias das normas constitucionais nesta matéria, independentemente do modo e do lugar de atuação escolhido, esta vinculação impõe-se e por isso o artigo 18.°, n° 1, da CRP, na parte em que prevê a vinculação das entidades públicas aos direitos fundamentais como direitos de todos, foi alegado e demonstrado, na medida em que incumbe ao SEF/AIMA atuar, nos termos da Lei e em prazo razoável (o que não fez).
38. A humanidade e sensibilidade do tribunal recorrido (uma vez que estava reunida toda a formalidade legal para citar a entidade requerida) deveria ter adotado como perspetiva de análise a eficácia extraterritorial das normas de direitos fundamentais na atuação dos poderes estaduais, sendo que esta vinculação não pode deixar de se reconhecer como relevante. Negar isto é negar o óbvio e atropelar os direitos dos cidadãos (que só não é formalmente residente, por responsabilidade e ineficácia do SEF).
39. Erigir a urgência como pressuposto autónomo do meio processual em apreço implica ignorar as “circunstâncias do caso”, designadamente, o tipo de direito ameaçado por um prejuízo irreparável, o tipo de ameaça (iminente actual ou iminente latente), a ocorrência de factos lesivos supervenientes;
40. É lamentável o Tribunal recorrido ignorar se a lesão do direito causa prejuízo apenas a esse direito ou se produz consequências danosas noutros direitos (ou seja, a lesão de um direito pode ocasionar a lesão de outros direitos, o que também terá repercussão numa “contagem de tempo” entre o acto lesivo e a propositura da acção). Pois na verdade, conforme referido, a ausência do Requerente em Portugal pelo período necessário está a por em causa a própria subsistência da empresa e dos postos de trabalho que criou!
41. Em síntese, o despacho liminar recorrido assentou o seu julgamento numa interpretação do artigo 109.° do CPTA que não corresponde inteiramente ao nele preceituado, conduzindo a uma errada perspectivação dos pressupostos previstos nesse preceito.
42. Isabel Fonseca, a propósito do artigo 109.° do CPTA, sublinha que, “Enfim, há situações claras de urgência que são propícias a exigir decisões de fundo. De uma forma generalista, podemos dizer que a situação de urgência pode manifestar-se pela sua configuração em função do tempo: Podem configurar igualmente casos de urgência situações de carência pessoal ou familiar, em que esteja em causa a própria sobrevivência pessoal de alguém. Casos relativos à situação civil ou profissional de uma pessoa podem constituir igualmente uma situação de urgência”. (cfr. Isabel Celeste M. Fonseca, Dos Novos Processos Urgentes no Contencioso Administrativo (Função e Estrutura), Lisboa, 2004, p. 84). (negrito e sublinhado nosso)
43. Mais grave é o Tribunal admitir que o facto do recorrente estar à espera há mais de 18 meses pela recolha de dados biométricos e emissão do cartão de residência, se coaduna com a utilidade caso fosse concedida através da ação administrativa, que bem sabemos o tempo que demora a ser decidida...
44. Existe, por motivos óbvios, urgência em obter uma recolha dos dados biométricos (e posterior) autorização de residência, para circular livremente em Portugal, e além disso o direito à ao exercício da sua actividade profissional não pode esperar, por uma decisão tramitada nos moldes de uma ação administrativa, como sugere o Tribunal recorrido.
45. O investimento efetuado pela Recorrente - e consequente verificação dos requisitos para a autorização de residência de investimento - pode assim ficar comprometido, irremediavelmente, com a inércia do SEF, podendo, no limite perder a sua autorização de residência deitando por “terra” todo o processo e recursos nele investidos, nomeadamente pondo os 19 trabalhadores que tem no desemprego!
46. Pelo exposto percebe-se a gravidade da não marcação dos biométricos e da consequente emissão do título, que se traduz numa acção contra o estado Português, por inércia do SEF
47. A acrescer, e mais preocupante, num estado de direito, é o facto do Tribunal recorrido, (através de uma questão puramente processual/formal - e que viola o artigo 110- A do CPTA, como veremos) não vislumbrar como urgente (e erradamente) que esteja a ser violado o artigo 45° da carta dos direitos Fundamentais da EU, no seu n° 2, pois estamos efetivamente, perante uma situação civil e pessoal do Recorrente que carece (urgentemente) de tutela requerida, ao contrário do alegado no despacho liminar.
48. A não emissão atempada do seu título de residência, compromete (irremediavelmente) e coloca em causa, o direito do recorrente em se deslocar para entrar em território nacional e circular no Espaço Schengen, bem como coloca em causa a própria sobrevivência da empresa/investimento que criou em território nacional.
49. A tudo isto acresce o facto do Tribunal recorrido deixar assim para outro Tribunal/Juiz a “obrigação” - urgente - de decidir sobre a vexata quaestio dos autos, na medida em que, salvo o devido respeito analisou incorrectamente o caso concreto dos autos, à luz do artigo 110.°- A do CPTA.
50. Tendo o Tribunal a quo decidido sem ouvir as partes sobre uma solução jurídica, omitido um ato processual relevante prescrito por lei, ou seja, a garantia do contraditório prevista no art. 3°, n° 3 do CPC (por exemplo).
51. O Tribunal não teve em conta o alegado pelo recorrente, nomeadamente quanto aos factos concretos que exigem uma decisão que obrigue o SEF a agendar uma simples data de recolha de dados de biométricos, nem tampouco ponderou, como devia, globalmente a situação trazida ao seu julgamento.
52. Mais grave ainda é o facto do Tribunal a quo incorrer em erro de julgamento manifesto, ao não ponderar devidamente a convolação da intimação em processo cautelar. Só se compreende a decisão do Tribunal recorrido, com uma errada perceção da realidade prática e de funcionamento do SEF, facto que, infelizmente é público!
53. O despacho liminar recorrido violou o disposto nos arts. 109° e 110°-A do CPTA, arts. 13.° 15.° 20°, n.° 5, 26° e 44° da CRP e art. 3.°, n.°s 1 e 2 do CPC.
54. Se o juiz considerar que o alegado e pedido na p.i não estão em conformidade com o exigido no artigo 109° do CPTA, deve: Fixar prazo para o autor substituir a petição, para o efeito de requerer a adoção de providência cautelar, seguindo-se, se a petição for substituída, os termos do processo cautelar; ou
55. Quando, seja de reconhecer que existe uma situação de especial urgência que o justifique, o juiz deve, no mesmo despacho liminar, e sem quaisquer outras formalidades ou diligências, decretar provisoriamente a providência cautelar que julgue adequada, sendo, nesse caso, aplicável o disposto no artigo 131.° CPTA;
56. Nesta conformidade, atenta a posição do Tribunal - de ausência de alegação de factos que justifiquem a tutela urgente (que não se aceita), - face aos direitos que se encontram a ser violados, e por se encontrarem verificados os pressupostos de recurso ao presente processo de intimação, deveria a Tribunal a quo ordenar o eventual aperfeiçoamento da PI; Ou, em prescindir, caso assim não entendesse,
57. Aplicando o disposto no n.° 1 do artigo 110.°- A do CPTA, seria de julgar verificada a possibilidade de aproveitamento ou convolação da presente intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias em processo cautelar, nos termos do art. 110°- A do CPTA.”
A entidade recorrida não respondeu à alegação do recorrente.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, pugnou pela improcedência do recurso, reiterando a fundamentação da sentença recorrida, referindo ainda que “(…) face ao alegado na petição inicial e para tutela dos interesses aí invocados, é suficiente e adequada a definição cautelar, pois o decretamento de uma providência cautelar que intime o réu a emitir uma autorização de residência provisória mostra-se suficiente para assegurar o exercício, em tempo útil, dos direitos que o autor invoca, dando resposta às necessidades invocadas pelo mesmo.”
Sem vistos dos juízes-adjuntos, por se tratar de processo urgente (cfr. n.º 2 do artigo 36.º do CPTA), cumpre apreciar e decidir.


II – QUESTÕES A DECIDIR

As questões que ao Tribunal cumpre solucionar são as de saber se:
a) Ocorre nulidade processual em virtude de a sentença recorrida não ter sido antecedida de contraditório;
b) A sentença recorrida padece de erro de julgamento por:
i. Ter considerado não verificados os pressupostos de que depende o recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias;
ii. Restringir o direito de acesso do recorrente aos tribunais;
iii. Se impor a convolação da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, em processo cautelar, nos termos do artigo 110.º-A do CPTA.


III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida não fixou factos.


IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A. Da nulidade processual

Alega o recorrente que o Tribunal a quo, ao proferir decisão de rejeição liminar sem observar o princípio do contraditório, violou o disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC.
Vejamos.
Sobre as nulidades processuais, o n.º 1 do artigo 195.º do CPC consagra a regra geral de que a prática de um acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. Assim, para que estejamos perante uma nulidade processual, é necessário, não só (i) que ocorra a prática de um acto que a lei não admita ou que haja omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, mas também (ii) que a lei o declare ou que a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
Relativamente à audição das partes, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do CPC, “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.” Acerca do âmbito do princípio do contraditório, cumpre, por se mostrar pertinente, citar a seguinte passagem do Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27.02.2013, proferido no processo 0787/12 (in www.dgsi.pt): “Num processo de estrutura dialéctica, o direito ao contraditório, como decorrência do princípio da igualdade das partes, é um direito que se atribui à parte de conhecer as condutas assumidas pela contraparte, de tomar posição sobre elas e de ser ouvida antes de ser proferida qualquer decisão. A essência do princípio do contraditório está pois no facto de cada parte processual ser chamada a apresentar as respectivas razões de facto e de direito, a oferecer as suas provas ou a pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras. E por isso, a relevância do direito à audiência prévia e do direito de resposta dá-se sobretudo quando o seu exercício representa a garantia de uma parte relativamente à conduta processual da contraparte. Mas, o âmbito de aplicação do nº 3 do artigo 3º parece incluir também o contraditório relativamente a “decisões-surpresa”, com que as partes não podiam contar, por não terem sido objecto de discussão no processo. Nesses casos, para que a parte não seja confrontada e atingida como uma decisão inesperada, impõe-se garantir o contraditório. Razões ligadas à boa administração da justiça e à justa composição do litígio justificam que também nesses casos a contraditoriedade se efective.”
Todavia, o princípio do contraditório não tem aplicação nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, a petição é apresentada a despacho liminar e indeferida por o pedido ser manifestamente improcedente ou por ocorrerem, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, nos termos previstos no artigo 590.º, n.º 1, do CPC, precisamente porque se trata de deficiências insusceptíveis de ser sanadas. É o que acontece no processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, no âmbito do qual o n.º 1 do artigo 110.º do CPTA prevê a prolação de despacho liminar com vista a aferir da admissibilidade da petição, podendo a mesma ser indeferida liminarmente nas referidas situações, de manifesta improcedência do pedido ou de ocorrência evidente de excepções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente.
Com efeito, as mesmas evidência e insusceptibilidade de sanação das deficiências da petição que sustentam o indeferimento liminar, justificam a dispensa de audição do autor, o qual, ao apresentar uma petição, deve estar ciente da consequência jurídica do indeferimento liminar nas referidas situações, situação em que tal audição constituiria um acto inútil e, como tal, processualmente ilícito, nos termos do artigo 130.º do CPC – neste mesmo sentido, cfr. o citado Acórdão.
Atento o exposto, a falta de audição do autor previamente à decisão de rejeição liminar da p.i. não consubstancia qualquer nulidade processual, com o que improcede este fundamento do recurso.


B. Do erro de julgamento

Alega o recorrente que a sentença recorrida assenta na prova diabólica de factos negativos, que reconduz aos concretos motivos pelos quais o autor não pode aguardar o desfecho de uma acção principal, sem, no entanto, os referir. Argumenta ainda que está em causa uma situação urgente e de violação do artigo 45.º, n.º 2, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, atendendo a que a não emissão atempada do seu título de residência compromete os seus direitos a entrar em território nacional e aqui circular livremente, a desenvolver cabalmente a sua actividade e a fazer crescer a empresa que constituiu em Portugal, entendendo que tal alegação é suficiente para requerer uma tutela principal urgente. Acrescenta que, no caso, a acção administrativa, pelo tempo que é sabido que demora, não é apta a tutelar os interesses do recorrente. Conclui que erigir a urgência como pressuposto autónomo do meio processual em apreço implica ignorar as “circunstâncias do caso”, designadamente o tipo de direito ameaçado, o tipo de ameaça e a ocorrência de factos lesivos supervenientes.
Analisemos.
A sentença recorrida rejeitou liminarmente a petição por o autor não ter alegado factos justificativos da tutela principal urgente subjacente à intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias, nos termos do art.º 109.º do CPTA, tendo apenas aduzido que a ausência de decisão do seu pedido de autorização de residência viola os seus direitos à circulação e fixação de residência em território nacional, sem concretizar minimamente tal violação, e que é o único sócio e gerente de uma sociedade comercial, necessitando de acompanhar de perto o trabalho da empresa e a equipa, sem alegar a produção de danos imediatos ou previsíveis. Mais se entendeu que, retirando-se da p.i. que o autor não reside em Portugal, o princípio da equiparação, previsto no artigo 15.º, n.º 1, da Constituição, não lhe é aplicável. Conclui que não tem aplicação ao caso o previsto no artigo 110.º-A, n.º 1, do CPTA, considerando que os pedidos formulados não permitem o recurso à tutela cautelar com idêntico objecto, e que não foi alegada uma situação de facto urgente. Mais precisamente, consta o seguinte da sentença recorrida:
“(…)
Ora, no caso sub judice, o Requerente não alega quaisquer factos que justifiquem a tutela principal urgente, apenas aduziu que a ausência de decisão até ao momento viola o direito à circulação e fixação de residência em território nacional.
Desde logo, a alegação dos direitos supra elencados sem uma concretização mínima da forma como se mostram beliscados os aludidos direitos não permite ao Tribunal conhecer a questão por não ser possível perceber de que modo se mostram ameaçados.
Destarte, o Requerente não cuidou de alegar, com recurso a factos concretos, de que modo a tutela dos direitos fundamentais invocados carece de uma decisão definitiva urgente.
Acresce que, a mera alegação de que é o único sócio e gerente de uma sociedade comercial e necessita de acompanhar de perto o trabalho da equipa, desacompanhada da respetiva prova que corrobore o alegado, não permite concluir pela urgência a que supra se aludiu e, assim, afigura-se insuficiente para o emprego do presente meio processual, por se verificar, desde logo, que não está demonstrado o pressuposto da indispensabilidade que subjaz à intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias.
Por outro lado, colhe-se do intróito do requerimento inicial que o Requerente não reside em Portugal, razão pela qual o princípio da equiparação previsto no art.º 15.º, n.º 1 da CRP, não lhe é aplicável (v. neste sentido, Acórdão do STA de 10/09/2020, Proc. n.º 01798/18.5BELSB, e Acórdão do TCAS de 5/07/2017, Proc. n.º 532/17.1BELSB, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Assim, perante a ausência de motivos que justifiquem que a alegada demora na obtenção do título de residência implica a produção de danos imediatos ou previsíveis, e bem assim, justificar a urgência na tutela principal urgente, torna-se forçoso concluir que não pode o Requerente lançar mão da intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias, nos termos do art.º 109.º do CPTA.
Importa referir que, não é aplicável ao caso trazido à liça, a prerrogativa prevista no art.º 110.º-A, n.º 1, do CPTA, pois considerando os pedidos formulados pelo Requerente, não é possível o recurso à tutela cautelar com idêntico objeto.
(…)
No entanto, no caso sub judice não é possível lançar mão do preceituado no art.º 110.º-A, n.º 1 do CPTA, atendendo a que tal norma só é aplicável quando vem alegado no requerimento inicial uma situação de urgência para o decretamento da providência, e conforme se expôs, o Requerente não demonstrou qualquer facto atinente à necessidade e urgência de uma decisão definitiva ou provisória.
(…).”

Vejamos.

A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias “(…) pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar.” - cfr. artigo 109.º, n.º 1, do CPTA. Trata-se de um meio processual sumário e principal, pois que visa a prolação de uma decisão urgente e definitiva, recortado para “situações de especial urgência (lesão iminente e irreversível de DLG)” e “destinado a conferir protecção qualificada aos direitos, liberdades e garantias, no âmbito da concretização do comando constitucional consignado no n.º 5 do artigo 20.º da CRP.” – cfr. FERNANDA MAÇÃS, “Meios Urgentes e Tutela Cautelar”, «A Nova Justiça Administrativa», Centro de Estudos Judiciários, 2006, Coimbra Editora, pp. 94 e 95. Por isso mesmo, esta intimação tem carácter excepcional, só se justificando se constituir o único meio para obstar à violação de um direito, liberdade e garantia, sendo a regra a da utilização da acção não urgente, sempre que esta, ainda que conjugada com o processo cautelar, seja apta a satisfazer a pretensão deduzida em juízo.
Nestes termos, a intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, apenas pode ser utilizada quando se verifiquem os referidos pressupostos; ou seja, não só (i) que a célere emissão de uma decisão de mérito se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, mas também (ii) que, nas circunstâncias do caso, não seja possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar. Assim, cabe a quem pretenda valer-se deste meio processual alegar factos concretos idóneos ao preenchimento dos referidos pressupostos, de modo a demonstrar que a situação concreta reclama uma decisão judicial definitiva e urgente.
No que concerne ao primeiro pressuposto – o da indispensabilidade da emissão de uma célere decisão de mérito para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia -, como escrevem Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª edição, Almedina, 2017, p. 883, o seu preenchimento“(…) pressupõe que o requerente concretize na petição os seguintes aspectos: a existência de uma situação jurídica individualizada que caracterize um direito, liberdade e garantia, cujo conteúdo normativo se encontre suficientemente concretizado na CRP ou na lei para ser jurisdicionalmente exigível por esta via processual; e a ocorrência de uma situação, no caso concreto, de ameaça do direito, liberdade e garantia em causa, que só possa ser evitada através do processo urgente de intimação. Não releva, por isso, a mera invocação genérica de um direito, liberdade ou garantia: impõe-se a descrição de uma situação factual de ofensa ou preterição do direito fundamental que possa justificar, à partida, ao menos numa análise perfunctória de aparência do direito, que o tribunal venha a intimar a Administração, através de um processo célere e expedito, a adoptar uma conduta (positiva ou negativa) que permita assegurar o exercício em tempo útil desse direito.”
Quanto ao segundo pressuposto – o da impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar -, “A impossibilidade poderá resultar do facto de o juiz, para se pronunciar, ter necessariamente de ir ao fundo da questão, o que, como é sabido, lhe está vedado no âmbito dos procedimentos cautelares. Por sua vez, a insuficiência respeita à incapacidade de uma decisão provisória satisfazer as necessidades de tutela do particular, posto que estas apenas lograrão obter satisfação com uma tutela definitiva, sobre o fundo da questão. Estamos a referir-nos àquelas situações sujeitas a um período de tempo curto, ou que digam respeito a direitos que devam ser exercitados num prazo ou em datas demarcadas, maxime, questões relacionadas com eleições, actos ou comportamentos que devam ser realizados numa data fixa próxima ou num período de tempo determinado (como exames escolares ou uma frequência do ano lectivo), situações de carência pessoal ou familiar em que esteja em causa a própria sobrevivência pessoal de alguém, ou, ainda, casos relativos à situação civil ou profissional de uma pessoa.” – cfr. CATARINA SANTOS BOTELHO, “A intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias: quid novum?”, O Direito, n.º 143, I, 2011, pp. 31-53.

Considerando o descrito enquadramento jurídico, cumpre aferir se se mostram verificados no caso os pressupostos de recurso ao meio processual utilizado pelo autor.

Em primeiro lugar, ao contrário do que defende o recorrente, e conforme bem se afirmou na sentença recorrida, àquele que lança mão de uma intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, cabe alegar factos que traduzam uma situação de indispensabilidade de uma tutela definitiva urgente, o que, naturalmente, se associa à demonstração da insuficiência de tutela através de uma acção administrativa, de natureza não urgente, ainda que associada ao decretamento de uma providência cautelar. Dependendo a utilização de tal meio processual da verificação de pressupostos legalmente definidos, a demonstração dessa verificação cabe a quem do mesmo se pretenda valer, devendo tal revelação assentar em factos cuja alegação se lhe impõe. Tal ónus que sobre o mesmo impende não o coloca, de modo algum, perante uma situação de “prova diabólica”, pois está em causa a alegação de factos, e não a prova dos mesmos, sendo equacionáveis variadíssimas situações de facto de carácter urgente, que podem ser alegadas para o efeito.
Ora, o recorrente limita-se a alegar que a não emissão atempada do seu título de residência compromete (irremediavelmente) os seus direitos a entrar em território nacional e aqui circular livremente, a desenvolver cabalmente a sua actividade e a fazer crescer a empresa que constituiu em Portugal, mas, como bem se refere na sentença recorrida, não concretiza minimamente a ameaça de tais direitos, de modo a aferir-se da necessidade de uma tutela definitiva urgente. Efectivamente, o autor recorrente não descreve uma situação factual de “lesão iminente e irreversível” dos direitos que invoca – necessária ao preenchimento dos pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias -, limitando-se a afirmar uma mera lesão dos mesmos, não sendo possível extrair da sua alegação qualquer urgência para o recorrente na concessão de autorização de residência.
Em segundo lugar, e também diferentemente do que o recorrente pretende fazer crer, a sentença recorrida não afastou a existência de indispensabilidade de tutela de mérito urgente com a circunstância de o autor não estar em Portugal nem aqui organizar a sua vida; antes, a urgência foi afastada pela falta de alegação de uma situação de facto reveladora de uma “lesão iminente e irreversível” dos direitos que invoca.
Em terceiro lugar, não basta estar em causa um direito, liberdade e garantia, sendo ainda necessário demonstrar que é urgente a sua tutela, o que o recorrente, nos termos expostos, não fez.
Em quarto lugar, não assiste ao recorrente o direito que invoca, de circular livremente em Portugal. É verdade que o artigo 44.º da Constituição da República Portuguesa garante a todos os cidadãos o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional, e que o artigo 15.º estende o gozo dos direitos do cidadão português aos estrangeiros e apátridas que se encontrem ou residam em Portugal. Sucede que o recorrente nem se encontra nem reside em Portugal, como, além do mais, o próprio admite na p.i., pelo que, não beneficiando de tal extensão, não lhe assiste aquele direito de livre circulação em território nacional. De igual modo, o n.º 2 do artigo 45.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, ao estabelecer que “Pode ser concedida liberdade de circulação e de permanência, de acordo com os Tratados, aos nacionais de países terceiros que residam legalmente no território de um Estado-Membro.”, não é aplicável ao recorrente, pois que o mesmo não reside legalmente em Portugal. Contrapõe o recorrente que lhe assiste tal direito de livre circulação em Portugal uma vez que o seu pedido de autorização de residência foi tacitamente deferido. Mas não tem razão, precisamente porque o deferimento tácito do pedido de autorização de residência apenas está previsto na Lei n.º 23/2007, de 04 de Julho – que aprova o regime jurídico de entrada, permanência, saída e afastamento de estrangeiros do território nacional, e ao abrigo da qual o recorrente requereu autorização de residência –, para a autorização de residência para reagrupamento familiar, prevista nos artigos 98.º e ss., e não para a autorização de residência para actividade de investimento, prevista no artigo 90.º-A, ao abrigo do qual o recorrente apresentou o seu pedido.

Ante o exposto, concluímos que não foi alegada uma situação de facto carente de tutela definitiva urgente de um direito, liberdade e garantia, pelo que não se mostra verificado o primeiro dos pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias.

O recorrente alega ainda que a sentença recorrida, ao rejeitar liminarmente a sua petição de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias, restringe o seu direito de acesso aos tribunais.
Porém, antes de mais, tal alegação não se mostra minimamente consubstanciada, não se vislumbrando em que termos é que a recusa de utilização de um meio processual urgente contende com o direito de acesso aos tribunais para defesa de direitos e interesses legalmente protegidos, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição. Ademais, face ao decidido, o recorrente pode sempre aceder à justiça por outra via não urgente para obter a tutela pretendida, deste modo estando assegurado o seu direito de acesso aos tribunais.

Finalmente, o recorrente alega que a sentença recorrida padece de erro de julgamento porquanto não procedeu à convolação da intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias em processo cautelar, nos termos do artigo 110.º-A do CPTA.
Mas também neste ponto não lhe assiste razão.
Nos termos do n.º 1 do artigo 110.º-A do CPTA, “Quando verifique que as circunstâncias do caso não são de molde a justificar o decretamento de uma intimação, por se bastarem com a adoção de uma providência cautelar, o juiz, no despacho liminar, fixa prazo para o autor substituir a petição, para o efeito de requerer a adoção de providência cautelar, seguindo-se, se a petição for substituída, os termos do processo cautelar.” Como notam Carlos Alberto Fernandes Cadilha e Mário Aroso de Almeida, “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 4.ª edição, Almedina, 2017, p. 903, prevendo o n.º 1 do artigo 110.º a rejeição liminar da petição por falta de verificação dos pressupostos de recurso à intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, não é possível convolação quando não esteja preenchido o primeiro dos pressupostos previstos no n.º 1 do artigo 109.º, o da indispensabilidade de uma célere decisão de mérito para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia. Quer dizer, a convolação apenas pode operar se, estando preenchido tal pressuposto – ou seja, revelando-se indispensável uma célere decisão de mérito para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia -, se concluir que é possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar. No mesmo sentido, decidiu já o Supremo Tribunal Administrativo, por Acórdão de 07.04.2022, proferido no processo n.º 036/22.0BALSB (in www.dgsi.pt), no qual se conclui que, quando o uso da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias não se revele indispensável, o artigo 110.º-A do CPTA não impõe a convolação do processo numa providência cautelar.
Retornemos ao caso em apreço.
A sentença recorrida afastou a aplicação da norma do n.º 1 do artigo 110.º-A por considerar que os pedidos formulados na p.i. não possibilitam “o recurso à tutela cautelar com idêntico objecto” e que o autor “não demonstrou qualquer facto atinente à necessidade e urgência de uma decisão definitiva ou provisória”. Esta fundamentação vai de encontro àquilo que acaba de se expor, no sentido em que obstam à convolação as circunstâncias de o autor não ter alegado uma situação de facto carente de tutela urgente, e de não lhe assistir o direito que invoca, de livre circulação em Portugal, não se mostrando, assim, verificado o primeiro dos pressupostos de recurso à intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias.
Não estando demonstrada a indispensabilidade de uma célere decisão de mérito para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, impõe-se a rejeição liminar da petição, não tendo lugar o convite à substituição da petição nos termos previstos no n.º 1 do artigo 110.º-A do CPTA, pelo que bem andou a sentença recorrida ao assim determinar.

Termos em que se impõe julgar improcedentes os fundamentos de recurso invocados.
*
Sem custas, nos termos do artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do Regulamento das Custas Processuais.


V – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da Subsecção comum da Secção administrativa do Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso interposto e, em consequência, confirmar a sentença recorrida.

Sem custas.


Lisboa, 19 de Março de 2024

Joana Costa e Nora (Relatora)
Marta Cavaleira
Pedro Nuno Figueiredo