Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:3760/23.7BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:03/19/2024
Relator:MARCELO MENDONÇA
Descritores:IPDLG
PRESSUPOSTOS – ARTIGO 109.º, N.º 1, DO CPTA
INDISPENSABILIDADE
SUBSIDIARIEDADE
Sumário:I - O recurso ao processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, ainda que intentado por cidadão estrangeiro que tenha despoletado o procedimento administrativo com vista à emissão de autorização de residência em território nacional, depende da verificação, ante os factos concretamente alegados no articulado inicial, do pressuposto da indispensabilidade desse meio processual, isto é, da sua necessidade para a emissão urgente de uma decisão de mérito imprescindível à protecção de um direito, liberdade e garantia, tendo em conta o estatuído pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
II - Tendo presente o pressuposto da indispensabilidade, impõe-se que do caso concreto, sobretudo, dos factos alegados, igualmente transpareça uma evidente situação de urgência que não possa ou não seja suficientemente acautelada, em tempo útil, pelo normal decretamento de uma providência cautelar, em processo que é igualmente de natureza urgente, eventualmente complementada pelo reforço de garantias que dimana da possibilidade do decretamento provisório da medida cautelar, no que se caracteriza pelo requisito da subsidiariedade, cuja exigência resulta da conjugação entre os artigos 109.º, n.º 1, e 110.º-A, n.º 1, do CPTA.
III - “In casu”, faltando a demonstração dos pressupostos supra descritos, não é de admitir o articulado inicial, devendo o juiz rejeitar liminarmente a petição inicial, atento o disposto no artigo 110.º, n.º 1, do CPTA, como efectivamente foi bem decidido pela decisão recorrida.
Votação:C/ DECLARAÇÃO DE VOTO
Indicações Eventuais:Subsecção COMUM
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: I - Relatório.

J... e A..., ambos de nacionalidade britânica, doravante 1.º e 2.º Recorrentes, que no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa deduziram intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias contra o Ministério da Administração Interna e contra a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P., com vista à intimação dos Recorridos para, no âmbito do procedimento de autorização de residência com fundamento em actividade de investimento/aquisição de bens imóveis, disponibilizarem aos ora Recorrentes uma data para o reagendamento da diligência de recolha dos seus dados biométricos, a fim de se concluir o procedimento de autorização de residência e de reagrupamento familiar, inconformados que se mostram com a sentença de 31 de Outubro de 2023, que rejeitou liminarmente o articulado inicial por falta de demonstração do “pressuposto da indispensabilidade que subjaz” ao referido processo de intimação, e, nessa base, pela concomitante falta de urgência no recurso a tal meio processual, contra a mesma vieram interpor recurso ordinário de apelação, apresentando alegações, nas quais formulam as seguintes conclusões:

«…

1. Vem o presente Recurso interposto da douta sentença proferida, em 31.10.2023, pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, que rejeitou liminarmente o requerimento inicial apresentado pelos Requerentes, ora Recorrentes, no qual peticionam a intimação dos Requeridos, ora Recorridos, para, no prazo de 10 dias úteis, disponibilizarem aos Recorrentes data para agendamento para a recolha dos dados biométricos, a fim de se concluir o pedido de autorização de residência e
reagrupamento familiar.
2. O 1.º Recorrente, J..., submeteu um requerimento junto do SEF tendo em vista obter autorização de residência para atividade de investimento, ao abrigo do art.º 90.º-A, n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho.
3. A 2.ª Recorrente, A..., apresentou a respetiva candidatura de reagrupamento familiar, no âmbito do processo de ARI.
4. Foi designada uma data para a recolha dos dados biométricos (para 20/04/2023) à qual não puderam comparecer por residirem no Reino Unido e não terem disponibilidade para se deslocarem a Portugal no período designado.
5. Pese embora a factualidade alega no requerimento inicial, mormente nos artigos 8.º a 17.º e 36.º a 40.º, o Tribunal a quo incorre em erro de julgamento, porquanto alega que “os Requerentes não cuidaram de alegar e depois provar, conforme se impunha, com recurso a factos concretos, de que modo a tutela do direito invocado carece de uma decisão definitiva urgente”.
6. Salvo o respeito que é muito, a interpretação do Tribunal a quo é manifestamente errada, pelo que se impõe a sua revogação.
7. Aliás, a sentença recorrida adota um entendimento diferente daquilo que têm sido as decisões do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, proferidas em processos da mesma natureza.
8. Com efeito, nos Processos n.º 809/23.7BELSB; 979/23.4BELSB; 832/23.1BELSB e 840/23.2BELSB, aquele douto Tribunal, não só admitiu os requerimentos iniciais, como condenou os Requeridos nos termos peticionados.
9. Bem se compreende o acerto daquelas decisões judicias, porquanto o Tribunal logrou compreender – em um raciocínio totalmente transponível para o presente recurso – que à luz da legislação que define o quadro jurídico ora aplicável, ao procedimento administrativo com vista à concessão de autorização de residência para atividade de investimento são aplicáveis as regras procedimentais vertidas no CPA, - enquanto manifestação dos princípios constitucionais que conformam a atuação da Administração, por força do artigo 266.º da Constituição da República Portuguesa - mormente, o direito a um procedimento célere, sendo que o incumprimento desse prazo, o mesmo é dizer, o não agendamento para a recolha de dados biométricos obsta ao prosseguimento do procedimento de concessão de autorização de residência, Condicionado, além disso, apreciação do pedido de reagrupamento
familiar.

10. Só é admissível o uso do processo de intimação previsto no artigo 109.º e seguintes do CPTA quando esteja em causa a lesão, ou a ameaça de lesão, de um direito, liberdade e garantia ou de um direito fundamental de natureza análoga, cuja proteção careça da emissão urgente de uma decisão de fundo (indispensabilidade) e não se verifique uma impossibilidade ou insuficiência do decretamento provisório de uma providência cautelar, instrumental de uma ação administrativa comum ou especial (subsidiariedade).
11. Delimitado o respetivo âmbito de aplicação, é entendimento do Tribunal a quo que os Recorrentes não lograram demonstrar o requisito da indispensabilidade.
12. Tal não se concede na medida em que os Recorrentes têm a sua situação jurídicofactual delimitada pela legislação vigente, em concreto, a ARI criada através do aditamento da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, pela Lei n.º 29/2012, de 9 de agosto.
13. Complementada nos termos do artigo 65.º-J do Decreto Regulamentar n.º 84/2007, de 5 de novembro, que regulamenta o Regime Jurídico de Entrada / Permanência / Saída / Afastamento de Estrangeiros, os procedimentos internos relativos à tramitação dos processos de autorização de residência para atividade de investimentos, são definidos em Manual de Procedimentos do SEF, que é aprovado pelo membro do Governo responsável pela área da Administração Interna.
14. O Manual de Procedimentos do SEF esclarece quais são os atos executórios da decisão de deferimento da ARI, nomeadamente, a agendamento no prazo de 10 a 60 dias, para a recolha dos dados biométricos.
15. Por outro lado, os cidadãos estrangeiros a quem seja concedida ARI têm o direito a requerer o Reagrupamento Familiar dos membros da família que com ele tenham vivido noutro país, que dele dependam ou que com ele coabitem, cabendo nos termos do artigo 103.º da Lei n.º 23/2007, de 4 de julho, cabe ao titular do direito ao Reagrupamento Familiar (in casu, o investidor) solicitar ao SEF a concessão de autorização de residência dos membros da família, conforme definido no artigo 99.º da mesma lei.
16. Aqui chegados, é ponto assente que os Recorrentes foram notificados do agendamento da sua deslocação a um posto de atendimento do SEF, a fim de procederem à recolha dos dados biométricos e concluírem o processo de ARI, que deveria ocorrer em 20.04.2023, não tendo comparecido ao referido agendamento.
17. Todavia, tendo decorrido seis meses, o SEF recusa-se a reagendar a sua deslocação ao posto de atendimento, para recolha dos dados biométricos e conclusão do processo de concessão de ARI, designadamente para efeitos da emissão do cartão de residência.
18. Dir-se-ia, antes de mais, que a recusa por parte do SEF de proceder ao agendamento configura, por si só, uma situação de urgência, visto que é causa bastante para impossibilitar os Recorrentes de exercer os direitos e prerrogativas que decorrem da situação jurídica de que são titulares.
19. Com efeito, na ponderação dos interesses em presença, por um lado temos os Recorrentes que desencadearam todas as diligências tendentes à regularização da sua situação jurídica no território nacional, e por outro, o SEF que, sem qualquer motivo atendível, permanece na mais absoluta inércia.
20. E a situação em concreto, agrava-se e continuará a agravar-se, se for tida em devida atenção que o 1.º Recorrente já investiu € 905.000,00 na aquisição de um imóvel, com todos os custos inerentes à manutenção do mesmo e ao pagamento de impostos associados, nomeadamente IMT e IMI, no pressuposto legítimo de que a legislação portuguesa concedia aos investidores estrangeiros ARI, expetativas que se veem manifestamente defraudadas, sem direito de usufruir do imóvel por impossibilidade de virem a Portugal devido a ausência de agendamento, o que dificulta a emissão de visto Schengen para entrada em Território Nacional.
21. O Tribunal a quo não pondera adequadamente a factualidade alegada no que concerne ao investimento com a aquisição do imóvel, no entanto, o decurso do tempo – a manter-se a indefinição atual – certamente acarreta a desvalorização do património dos Recorrentes, o que não se compagina com o espírito que levou o legislador a instituir o regime da ARI.
22. Por outro lado, o Tribunal a quo não logrou entender as diversas dimensões dos princípios da tutela da confiança e da liberdade de circulação.
23. Com efeito, a falta de um título que permita a entrada e permanência, em termos de legalidade, dos Recorrentes no território nacional, põe em causa princípio da dignidade da pessoa humana e da dignidade pessoal, uma vez que os Recorrentes, tendo feito um investimento tutelado pela legislação nacional, e da qual emerge um verdadeiro direito subjetivo, estão, de facto, impossibilitados de se deslocarem ao território nacional e de praticarem negócios jurídicos relativos à sua propriedade, isso quando, o Estado obtém todas as vantagens patrimoniais correspondentes.
24. E é assim única e simplesmente porque o SEF não deu qualquer resposta à situação dos Requerentes que, quase dois anos após ter dado entrada do processo de ARI e respetivo pedido de Reagrupamento Familiar e de ter obtido o deferimento pelo Diretor Nacional do SEF.
25. Quando é certo que, os Recorrentes não terem feito um investimento, fizeram-no na expetativa de poderem fixar livremente a sua residência em território nacional, e transferirem para aqui a sua vida quotidiana.
26. Relevam, pois, dimensões que têm a ver com própria liberdade individual, mas igualmente a garantia de uma decisão administrativa célere.
27. Ademais, com a omissão de comportamento pelo SEF, direito à família e ao reagrupamento familiar está diretamente ameaçado.
28. Com efeito, a entrada e permanência legal no território nacional, é a condição primeira para que os Recorrentes beneficiem de todos os demais direitos associados, mormente, a segurança, tranquilidade e liberdade de circulação.
29. O princípio da boa-fé assume-se como um dos princípios gerais que servem de fundamento ao ordenamento jurídico, princípio da proteção da confiança exige que
as pessoas sejam protegidas quando, em termos justificados, tenham sido levadas a acreditar na manutenção de um certo estado de coisas.
30. No caso, essa confiança foi criada não só pelo quadro jurídico que define o procedimento da ARI, e respetiva entrada e permanência de cidadãos estrangeiros, como foi acrescida pelo agendamento inicial para recolha de dados biométricos, que levou os Recorrentes a confiarem na conclusão do procedimento de ARI e do reagrupamento familiar.»

Os Recorridos não contra-alegaram.
O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 146.º, n.º 1, do CPTA, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, por se tratar de processo urgente (cf. artigo 36.º, n.º 2, do CPTA), mas com apresentação prévia do projecto de acórdão, o processo vem à conferência da Subsecção Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS para o competente julgamento.

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II - Delimitação do objecto do recurso.
Considerando que as conclusões das alegações de recurso delimitam o seu objecto, nos termos conjugados dos artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, aplicáveis “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, cumpre decidir, essencialmente, se a sentença recorrida, ao rejeitar liminarmente a petição inicial, fez uma correcta interpretação do estatuído no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
Importa ajuizar, fundamentalmente, se a sentença recorrida, tendo presente os factos concretamente alegados pelos ora Recorrentes em sede da petição de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, julgou bem, ou não, a falta do pressuposto da indispensabilidade que preside ao accionamento do aludido meio processual e que vincula quem do mesmo pretenda fazer uso.
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III - Fundamentação de facto.
A sentença recorrida, por consubstanciar uma decisão de rejeição liminar do articulado inicial dos Recorrentes, não elencou probatório.
Ainda assim, por considerarmos relevantes para a apreciação do presente recurso, dão-se por assentes os seguintes factos:
1.º - Os Recorrentes têm nacionalidade britânica e são portadores de passaportes britânicos (cf. docs. juntos com a p.i. – páginas 5 e 6 da numeração SITAF);
2.º - Em 06/12/2021, o 1.º Recorrente submeteu através do portal do SEF - “Portal ARI” – requerimento para obtenção de autorização de residência com fundamento em actividade de investimento/aquisição de bens imóveis (cf. docs. juntos com a p.i. – página 7 da numeração SITAF);
3.º - A 2.ª Recorrente apresentou candidatura de reagrupamento familiar (cf. docs. juntos com a p.i. – página 19 da numeração SITAF);
4.º - O 1.º Recorrente adquiriu um prédio habitacional em Portimão, pelo valor de €905.000,00 (cf. docs. juntos com a p.i. – página 10 da numeração SITAF);
5.º - Admitidas as candidaturas, os Recorrentes foram informados do agendamento para o posto de atendimento da delegação do SEF de Portimão, feito para o dia 20/04/2023, às 11h:00 (cf. docs. juntos com a p.i. – página 20 da numeração SITAF).
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III.I - Motivação da matéria de facto.
A nossa convicção quanto aos factos julgados provados assenta na prova documental indicada em cada um dos pontos do probatório supra, junta pelos Recorrentes com o articulado inicial e consultável no SITAF, tendo em conta o disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo CPC, e dos artigos 1.º e 140.º, n.º 3, do CPTA.
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IV - Fundamentação de Direito.
Conforme relato antecedente, vimos já que a sentença recorrida rejeitou liminarmente o articulado inicial por, no essencial, entender que falta, no caso concreto, a alegação e demonstração do “pressuposto da indispensabilidade que subjaz” ao processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, e, por inerência, por inexistir uma situação urgente ou premente que necessite da tutela excepcional que é concedida pelo processo de intimação, tendo presente os pressupostos prescritos pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, que dita o seguinte: “A intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias pode ser requerida quando a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a adoção de uma conduta positiva ou negativa se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia, por não ser possível ou suficiente, nas circunstâncias do caso, o decretamento de uma providência cautelar” (destaques nossos).
Na fundamentação da sentença recorrida pode ler-se, naquilo que aqui especificamente importa, o seguinte:
«…Assim, atendendo ao pedido enquanto pretensão material, o meio processual adequado a reagir contra a inércia da administração é a ação de condenação à prática de ato devido ou a ação de condenação à adoção de comportamento (cfr. art.º 66.º a 71.º do CPTA), o que não exclui a possibilidade de os Requerentes lançarem mão da intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias sempre que está em causa um procedimento que vise satisfazer direitos fundamentais.
No entanto, conforme acima se expôs, a urgência que justifica o recurso a este meio processual tem de ser aferida de acordo com as circunstâncias do caso em concreto, tendo em conta a alegação que é feita pelos Requerentes, de modo a permitir ao Tribunal apreciar se a inércia da administração está a ferir o direito fundamental invocado de tal forma que o titular necessita de uma tutela principal urgente, sob pena do exercício do próprio direito ficar posto em causa.
Ora, no caso sub judice, os Requerentes não alegaram quaisquer factos que justifiquem a tutela principal urgente, apenas aduziram que a ausência do agendamento de uma data para a recolha dos seus dados biométricos impede-os de exercerem o direito de livre circulação e têm suportado custos inerentes à manutenção do imóvel que adquiriram como pressuposto da candidatura, sem dele poderem usufruir.
Desde logo, os Requerentes não cuidaram de alegar e depois provar, conforme se impunha, com recurso a factos concretos, de que modo a tutela do direito invocado carece de uma decisão definitiva urgente.
Compulsado o requerimento inicial os Requerentes apenas alegaram de forma vaga e genérica a violação do direito de livre circulação, o que se afigura insuficiente para o emprego do presente meio processual, por se verificar que não está demonstrado o pressuposto da indispensabilidade que subjaz à intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias.
Por outro lado, colhe-se do art.º 13.º do requerimento inicial e fls. 7 do processo eletrónico, que os Requerentes não residem em Portugal, razão pela qual o princípio da equiparação previsto no art.º 15.º, n.º 1 da CRP, não lhes é aplicável (v. neste sentido, Acórdão do STA de 10/09/2020, Proc. n.º 01798/18.5BELSB, e Acórdão do TCAS de 5/07/2017, Proc. n.º 532/17.1BELSB, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Assim, perante a ausência de motivos que justifiquem que a alegada demora no agendamento de uma data e consequente obtenção do título de residência implica a produção de danos imediatos ou previsíveis, e bem assim, justificar a urgência na tutela principal urgente, torna-se forçoso concluir que não podem os Requerentes lançar mão da intimação para a defesa de direitos, liberdades e garantias, nos termos do art.º 109.º do CPTA.
Importa referir que, não é aplicável ao caso trazido à liça, a prerrogativa prevista no art.º 110.º-A, n.º 1, do CPTA, pois considerando o pedido formulado pelos Requerentes, não é possível o recurso à tutela cautelar com idêntico objeto.
Como consabido é, o processo cautelar visa assegurar a utilidade da sentença a proferir no processo principal, ou seja, impedir que se produza uma situação irreversível ou danos que coloquem em perigo a utilidade da decisão que se pretende com a lide principal que, por implicar uma cognição plena, demora mais tempo a ser decidido (cfr. art.º 268.º, n.º 4, da CRP, e art.º 112.º, n.º 1, do CPTA).
Destarte, o processo cautelar caracteriza-se pela instrumentalidade (dependência na estrutura e na função de uma ação principal que visa assegurar), sumariedade (cognição perfunctória de facto e de direito, própria de um processo provisório e urgente) provisoriedade (pois que não está em causa a resolução definitiva da demanda, mas apenas uma pronúncia provisória, na qual deve ser assegurada a possibilidade de reversão dos efeitos da decisão cautelar) e necessidade (requisito de admissibilidade a tutela cautelar tem de se afigurar necessária a assegurar a tutela principal.
O seu decretamento pressupõe a verificação cumulativa de dois requisitos positivos (periculum in mora e fumus boni iuris – art.º 120.º, n.º 1, do CPTA) e de um requisito negativo (ponderação de interesses – art.º 120.º, n.º 2, do mesmo diploma legal).
Em concreto, os Requerentes têm de demonstrar a existência de um fundado receio da constituição de uma situação de facto consumado ou da produção de prejuízos de difícil reparação para os interesses que pretendem acautelar no processo principal (periculum in mora) e que seja provável que a pretensão formulada ou a formular no processo principal venha a ser julgada procedente (fumus boni iuris).
No entanto, no caso sub judice não é possível lançar mão do preceituado no art.º 110.º-A, n.º 1 do CPTA, atendendo a que tal norma só é aplicável quando vem alegado no requerimento inicial uma situação de urgência para o decretamento da providência, e conforme se expôs, os Requerentes não alegaram qualquer facto atinente à necessidade e urgência de uma decisão definitiva ou provisória»

Tendo como ponto de partida o essencial das conclusões vertidas no recurso “sub judice”, constatamos que os Recorrentes logo manifestam a sua inconformidade contra a decisão do Tribunal a quo com base no argumento primacial de que a conduta omissiva dos serviços do então SEF, ao não procederem ao reagendamento da diligência de recolha dos dados biométricos, configura, por si só, uma situação de urgência.
Mais concluem os Recorrentes que já investiram €905.000,00 na aquisição de um bem imóvel, suportando os custos inerentes à manutenção do mesmo e ainda as despesas com o pagamento do IMT e do IMI, aduzindo que o Tribunal a quo não ponderou devidamente o investimento realizado pelos Recorrentes e a “desvalorização do património” que deriva da inércia dos serviços dos Recorridos e da indefinição actual quanto ao seu estatuto de cidadãos estrangeiros que pretendem residir em Portugal.
Perante tal cenário, os Recorrentes também concluem que a sentença recorrida não aventou as dimensões dos “princípios da tutela da confiança e da liberdade de circulação”, mais argumentando que a falta de um título de residência põe em crise “o princípio da dignidade humana e da dignidade pessoal”, pois que, segundo alegam, encontram-se “impossibilitados de se deslocarem ao território nacional e de praticarem negócios jurídicos relativos à sua propriedade”, dado que, conforme dizem nas suas conclusões recursivas, pretendem fixar-se livremente no território nacional.
Os Recorrentes aduzem ainda nas conclusões de recurso que a omissão da Administração ameaça o “direito à família e ao reagrupamento familiar”, visto que, pretendem beneficiar de segurança, tranquilidade e liberdade de circulação, não terminando tais conclusões recursivas sem antes alegarem que se encontra em causa, também, o “princípio da boa-fé”, porquanto, como dizem, confiaram no quadro legal português de atracção do investimento e no agendamento que os serviços do então SEF, no ano transacto, já haviam determinado para o seu caso concreto.
Apreciemos, pois, o mérito do recurso à luz da jurisprudência mais recente que tem vindo a ser firmada pela Subsecção Comum da Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS.
Antes de mais, importa frisar que a decisão recorrida não apreciou o mérito da causa nem os fundamentos da pretensão material que os Recorrentes formulam em sede do articulado inicial, já que, da sentença recorrida, não se infere em parte alguma qualquer pronúncia sobre o bem ou mal fundado dessa pretensão material, ou seja, o Tribunal a quo não emite qualquer decisão que concretamente se debruce sobre o direito dos Recorrentes ao requerido reagendamento da diligência de recolha dos dados biométricos ou sequer sobre o direito de autorização de residência (ou falta desses direitos).
Em rigor, a decisão recorrida deteve-se num aspecto adjectivo prévio, que se encontra inculcado a montante da fase de sindicância do mérito da causa. Isto é, tendo o Tribunal a quo que emitir um despacho liminar, a proferir no prazo máximo de 48 horas, nos termos do artigo 110.º, n.º 1, do CPTA, é nesse preciso momento inicial que se impõe ao juiz aquilatar sobre a verificação dos pressupostos do processo de intimação, que se encontram plasmados no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
Em resultado dessa primeira análise, o juiz da causa tanto pode admitir a petição inicial, seguindo-se a citação da outra parte, como pode rejeitá-la, neste último caso, se algum dos pressupostos enunciados no n.º 1 do artigo 109.º não se mostrar, em concreto, preenchido, e se não for viável a substituição da petição pela adopção de uma providência cautelar, com eventual decretamento provisório, nos termos do artigo 110.º-A do CPTA, atenta a relação de subsidiariedade entre o processo de intimação e a tutela cautelar.
“In casu”, foi precisamente o que ocorreu. A Meritíssima Juíza a quo, tendo que proferir o despacho inicial no processo de intimação que lhe calhou em distribuição, emitiu, ante as circunstâncias do caso concreto, a decisão liminar de rejeição da p.i. com base no fundamento já atrás veiculado: a falta do pressuposto da “indispensabilidade que subjaz ao processo de intimação” e, como tal, a ausência de uma situação de urgência, ao que se acoplou ainda o juízo de inviabilidade da substituição da p.i. de intimação pela adopção de providência cautelar.
Importa aqui precisar, num breve parêntesis, que o último segmento da fundamentação da sentença recorrida, que entendeu não ser viável a substituição da p.i. de intimação pela adopção de providência cautelar, se mantém incólume e excluído do âmbito do recurso que ora se cuida, porquanto, compulsado o teor das conclusões recursivas (que delimitam o objecto do recurso), nenhuma censura concreta lhe foi apontada pelos Recorrentes.
Prosseguindo, no confronto directo com o sentido da decisão recorrida, não procede a alegação dos Recorrentes no que toca à suposta ofensa dos “princípios da tutela da confiança e da liberdade de circulação” ou de livre fixação em território nacional, nem do “princípio da dignidade humana e da dignidade pessoal”, nem, muito menos, procede qualquer transgressão ao invocado “direito à família e ao reagrupamento familiar”, tal como, improcede qualquer alegação sobre violação da “segurança, tranquilidade e liberdade de circulação” dos Recorrentes, não procedendo, também, a alegação de que se encontra em crise o “princípio da boa-fé” ou da “protecção da confiança”, porquanto, consubstanciam meras alegações de carácter genérico, vago e conclusivo.
De resto, o que realmente importa salientar é que a sentença recorrida não recusou a tutela dos direitos inscritos na legislação infraconstitucional aos quais se arrogam os Recorrentes (seja o de reagendamento da diligência para a recolha dos dados biométricos, seja o da emissão da autorização de residência), assim como, não apreciou sequer a alegada violação dos supra mencionados princípios, nem, muito menos, sindicou a legalidade ou ilegalidade da alegada omissão dos Recorridos, posto que, como é cristalino, a decisão recorrida limitou-se a considerar na fase embrionária do processo que era inadequado ou impróprio o meio processual escolhido pelos Recorrentes em ordem à efectivação da tutela dos direitos por si clamados, sem que desse juízo liminar do Tribunal a quo tivesse emergido qualquer concreta apreciação sobre o mérito ou demérito dos direitos peticionados.
Neste mesmo sentido já se pronunciou a Subsecção Comum de Contencioso Administrativo deste TCAS, nomeadamente, no recente acórdão de 29/02/2024, proferido no processo sob o n.º 150/23.5BELSB, ainda não publicado no sítio da internet www.dgsi.pt, mas consultável no SITAF, destacando-se o seguinte excerto:
«De salientar que tal decisão, proferida em sede liminar, ao abrigo do disposto nos artigos 109º e 110º do CPTA, não apreciou do mérito da causa, mas apenas da (não) verificação dos pressupostos adjectivos para a admissão deste meio processual.
Assim, não pode proceder a alegação [genérica] de violação do nº 5 do artigo 20º e 13º, da CRP, dos princípios da confiança e da tutela dos seus direitos fundamentais e da igualdade ou não discriminação, porque não foi recusada a tutela dos direitos de que os Recorrentes se arrogam titulares, nem foi apreciada a violação destes princípios [ou sequer da legalidade ou não da actuação/omissão do Recorrido], mas apenas considerado inadequado o meio processual pelo qual pretendiam efectivar essa tutela.»
O processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias é de utilização excepcional, cujos requisitos encontram-se formulados no n.º 1 do artigo 109.º do CPTA “em termos intencionalmente restritivos”, segundo o entendimento sufragado no “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, de Mário Aroso de Almeida e de Carlos Alberto Fernandes Cadilha, 5.ª Edição, Almedina, página 929, em anotação ao artigo acabado de citar.
Entre os pressupostos do processo de intimação, prescritos pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, impõe-se destacar o da sua indispensabilidade, pois foi esse que, primeiramente, a decisão recorrida entendeu não se verificar no caso concreto.
Em termos sintéticos, a indispensabilidade do processo de intimação significa, de acordo com a doutrina inscrita na obra e pelos autores já atrás assinalados, que a intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias não é a via normal de reação a utilizar em situações de lesão ou ameaça de lesão de direitos, liberdades e garantias. A via normal de reação é a da propositura de uma ação não urgente (…)”, “associada à dedução do pedido de decretamento de uma providência cautelar, destinada a assegurar a utilidade da sentença que, a seu tempo, vier a ser proferida no âmbito dessa ação. Só quando, no caso concreto, se verifique que a utilização das vias não urgentes de tutela não é possível ou suficiente para assegurar o exercício, em tempo útil, do direito, liberdade ou garantia é que deve entrar em cena o processo de intimação” (cf. páginas 933 e 934 da obra citada).
Portanto, é sempre a partir do caso concreto e do alegado na p.i. que o juiz a quo, para efeitos do despacho liminar, perscruta a existência, ou não, de fundamentos factuais que justifiquem a indispensabilidade do recurso ao processo de intimação.
No caso vertente, conforme o que foi julgado na decisão recorrida, os ora Recorrentes não alegaram qualquer facto concreto que evidencie ser indispensável o recurso ao processo de intimação, ou seja, em termos factuais, não transparece da p.i., nem das conclusões de recurso, qualquer lesão séria ou ameaça de lesão dos direitos invocados que, a não ser travada pelo processo de intimação, já não será possível ou suficiente para impedir a ocorrência dessa lesão o decretamento de uma providência cautelar, ainda que provisoriamente, nos termos conjugados dos artigos 110.º-A, n.º 2, e 131.º do CPTA.
Tendo presente o teor das conclusões recursivas dos Recorrentes, a simples circunstância do pagamento pelos ora Recorrentes do IMI e do IMT relativo ao imóvel adquirido, ou até mesmo de outros gastos não discriminados, não traduz um facto suficientemente apto a justificar uma situação de indispensabilidade do processo de intimação, nem sustenta uma situação de urgência que importe acautelar ou prevenir de modo definitivo pelo aludido meio processual, pois que, desse singelo facto alegado (o pagamento dos referidos impostos ou de outras despesas não concretizadas), não se infere, por exemplo, que os Recorrentes não tenham meios financeiros suficientes para procederem ao pagamento dos impostos adstritos à sua condição de proprietários de um imóvel sito em território português, nem do mesmo resulta, por falta de alegação, que os Recorrentes, por terem de pagar tais impostos, acabem por ficar numa situação depauperada e, como tal, em risco de não poderem satisfazer a suas necessidades mais básicas de sobrevivência.
Por outro lado, também não justifica a indispensabilidade do processo de intimação a conclusão de recurso em que os Recorrentes aludem à “desvalorização” do seu património, que imputam à inércia da Administração, porquanto, para além de se tratar de uma alegação genérica e conclusiva, sem qualquer densificação factual e desprovida de qualquer avaliação objectiva ao imóvel, não é credível tal asserção, pois que, é público e notório que, nos tempos actuais, o mercado imobiliário em Portugal, em regra, não sofre da desvalorização aventada pelos Recorrentes.
Por outra via, os Recorrentes expressam nas suas conclusões de recurso que se encontram “impossibilitados de se deslocarem ao território nacional e de praticarem negócios jurídicos relativos à sua propriedade”. Ora bem, de novo, os Recorrentes limitam-se a alegar de modo vago e genérico, sem densificar qualquer facto que demonstre tal arrazoado. Os Recorrentes, novamente, não explicitam as concretas circunstâncias de tempo, modo e lugar em que, supostamente, foram impedidos ou impossibilitados pelas autoridades portuguesas de se deslocarem ao território nacional.
Aliás, ao contrário do que dizem nas conclusões de recurso, a circunstância dos Recorrentes ainda não serem portadores de autorização de residência não é de molde a impossibilitar a realização de negócios jurídicos relativos à propriedade, pois tal circunstância não os impediu de adquirir o bem imóvel referido no ponto 4.º do probatório, tanto mais que a escritura pública de compra e venda do prédio não foi outorgada presencialmente pelo 1.º Recorrente, mas sim por interposta pessoa, isto é, por procuradora constituída para o efeito (cf. escritura pública de compra e venda – cf. ponto 4.º do probatório).
Por último, não é demais enfatizar nesta instância que não passam de meras alegações genéricas e vagas as referências que os Recorrentes derramaram nas conclusões de recurso quanto à suposta afectação da “vida quotidiana”, da “liberdade individual”, da ameaça do “direito à família e ao reagrupamento familiar”, ou até mesmo, da “segurança, tranquilidade e liberdade de circulação”, posto que, do mesmo modo, voltamos a reiterar o nosso entendimento de que os ora Recorrentes não alegaram qualquer facto concreto que evidencie ser indispensável o recurso ao processo de intimação, ou seja, em termos factuais, não transparece da p.i., nem das conclusões das alegações de recurso, qualquer lesão séria ou ameaça de lesão dos direitos invocados que, a não ser travada pelo processo de intimação, já não será possível ou suficiente para impedir a ocorrência dessa lesão o decretamento de uma providência cautelar, ainda que provisoriamente, nos termos conjugados dos artigos 110.º-A, n.º 2, e 131.º do CPTA.
Em síntese, é de manter o julgamento do Tribunal a quo no aspecto em que falta, no caso concreto, a verificação do pressuposto da indispensabilidade do processo de intimação, exigido pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA, e, como tal, é de confirmar o julgado sobre a falta de idoneidade do meio processual.
Segue-se aqui a orientação de vasta e recente jurisprudência deste TCAS, ainda que proclamada a propósito da concreta pretensão material de emissão da autorização de residência, mas com plena aplicação no caso vertente (no que especificamente diz respeito ao aludido requisito da indispensabilidade), da qual destacamos, entre outros, o recente acórdão de 11/01/2024, tirado no processo sob o n.º 1777/23.0BELSB, consultável no SITAF, enfatizando-se a seguinte passagem: “…É também vasta a jurisprudência que sustenta, em casos em tudo idênticos ao aqui em apreço, que invocando-se o direito à concessão da autorização de residência, a intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é um meio processual inidóneo (cfr., neste sentido, a título de exemplo, os recentes acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul de 7 de junho de 2023, Processo n.º 166/23.1BEALM, de 13 de julho de 2023, Processo n.º 489/23.0BELSB, de 13 de julho de 2023, Processo n.º 1151/23.9BELSB, de 26 de julho de 2023, Processo n.º 458/23.0BELSB, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt).” – (destaque nosso).
No mesmo sentido, convoca-se o acórdão deste TCAS, de 13/07/2023, tirado no processo sob o n.º 489/23.0BELSB, “in” www.dgsi.pt, em cujo sumário consta o seguinte entendimento:
I Do art. 109º n.º 1, do CPTA, resulta que a utilização da intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias depende dos seguintes pressupostos:
1) - a necessidade de emissão urgente de uma decisão de mérito seja indispensável para protecção de um direito, liberdade ou garantia [indispensabilidade de uma decisão de mérito];
2) - não seja possível ou suficiente o decretamento de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa normal [impossibilidade ou insuficiência do decretamento de uma providência cautelar no âmbito de uma acção administrativa, isto é, o requisito da subsidiariedade (…)
Confirmando-se a falta do pressuposto da indispensabilidade, de igual modo, é de corroborar, no caso em apreço, a concomitante ausência de uma situação urgente ou premente, conforme foi tido em consideração na sentença recorrida. Neste particular aspecto, explicitam Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha na obra citada, na página 932, que “A utilização da intimação não está sujeita a prazo de caducidade (…)”, “mas, a nosso ver, só se justifica se esse for o único meio que em tempo útil permita evitar a lesão do direito, pelo que está necessariamente associada a uma situação de urgência” (destaque nosso).
Tal como atrás expusemos, e como sentenciou a decisão recorrida, inexiste uma concreta situação de urgência ou de premência que justifique aos ora Recorrentes lançarem mão do processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias. Vejamos os motivos:
i) Em primeiro lugar, considerando que os Recorrentes requereram a emissão das autorizações de residência em 06/12/2021 e que, ao tempo da apresentação do articulado inicial em juízo (30/10/2023 – cf. página 1 do SITAF), os Recorridos ainda não haviam concedido os requeridos títulos de residência, então, segundo a perspectiva dos próprios Recorrentes, persistiria ainda naquela última data uma situação de violação continuada de determinados direitos fundamentais, o que, com efeito, afasta a possibilidade de recurso ao processo de intimação, indo-se nesta questão ao encontro do entendimento vertido na obra atrás aludida, ao expender que “não faz, a nosso ver, sentido que o processo de intimação possa ser utilizado quando esteja em causa uma violação continuada ou já concretizada de um direito fundamental (…)” – (a página 932);
ii) Em segundo lugar, e que se prende com o decurso do tempo entre as datas supra referidas, o processo de intimação também não pode ser utilizado “quando tenham entretanto transcorrido os prazos de que o interessado dispunha para reagir pela via processual normal (designadamente, através do pedido de impugnação de ato administrativo…ou de condenação à prática de acto devido (…)” - (cf. excerto da obra e autores que temos vindo a citar, a página 932);
E aqui, no caso em análise, os Recorrentes, ante o silêncio ou a inércia da Administração por falta de decisão sobre os requerimentos administrativos para emissão de autorizações de residência, a partir de determinado momento, passaram a ter ao seu dispor o recurso à ação administrativa de condenação à prática de acto administrativo devido, nos termos do artigo 37.º, n.º 1, alínea b), do CPTA, que, todavia, não fizeram uso atempado, pois deixaram transcorrer o prazo de um ano preconizado no artigo 69.º, n.º 1, do CPTA. Poderiam, ainda, acoplar à predita acção principal o correspondente meio cautelar, complementado pelo seu decretamento provisório, o que igualmente não fizeram. Por tais razões, os ora Recorrentes encontravam-se inibidos de recorrer ao processo de intimação;
iii) Em terceiro lugar, e por último, observadas as conclusões de recurso, consideramos que a urgência na situação concreta dos Recorrentes deixou de ter sentido quando estes, agendados para comparecerem na delegação de Portimão do então SEF, no dia 20/04/2023, com vista à recolha presencial dos seus dados biométricos, faltaram a tal démarche, por motivos que disseram ser de ordem profissional e pessoal (nada mais explicando, todavia);
Postas as coisas assim, os Recorrentes, por um lado, eximiram-se à concretização ou justificação das causas que efectivamente ditaram a falta de comparência na delegação de Portimão do então SEF, e, por outro lado, e deveras o mais relevante, essa mesma ausência ao agendamento de 20/04/2023, que só aos Recorrentes é imputável, esvazia, no caso em apreço, o critério da urgência/premência que preside ao accionamento do processo de intimação, já que, os próprios Recorrentes só acabaram por recorrer ao processo de intimação “sub judice” seis meses após a não comparência ao primeiro agendamento (em 30/10/2023 – data da apresentação em juízo dos autos de intimação).
Por fim, não podemos deixar de considerar nesta instância, a propósito da relação de subsidiariedade que igualmente se impõe entre o processo de intimação e o processo cautelar, que o processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias foi instituído como um meio subsidiário de tutela, vocacionado para intervir como uma válvula de segurança do sistema de garantias contenciosas, nas situações – e apenas nessas – em que as outras formas de processo do contencioso administrativo não se revelem aptas a assegurar a proteção efetiva de direitos, liberdades e garantias” e que “Quando se afirma que o processo de intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias só deve intervir quando os processos não urgentes não se mostrem capazes de assegurar uma proteção adequada, esta afirmação tem, pois, em vista os processos não urgentes, devidamente complementados pelo sistema de tutela cautelar, com todas as possibilidades que ele comporta – com natural destaque, quando tal se mostre necessário, para a mais efetiva de todas, que é o decretamento provisório de providências cautelares” (cf. a obra e autores que temos vindo a citar, de páginas 935 a 937);
Aliás, neste conspecto, como revelação da propalada subsidiariedade do processo de intimação face à providência cautelar, veja-se, a título de exemplo, que a Secção de Contencioso Administrativo deste TCAS admite, inclusive, que “os limites da tutela cautelar, impostos pela provisoriedade que a estruturam, consentem a concessão da autorização de residência a título provisório, por esta não conduzir a uma situação definitiva e irreversível, isto é, por não levar ao esgotamento da respectiva acção principal.”, mais propugnando este TCAS que a emissão da autorização de residência é compatível com uma definição cautelar.” (destaques nossos), conforme o exposto no acórdão de 07/06/2023, proferido no processo sob o n.º 166/23.1BEALM, entendimento que voltou a ser reiterado pelo acórdão deste mesmo TCAS, de 13/07/2023, já precedentemente citado, e prolatado no processo sob o n.º 489/23.0BELSB, todos consultáveis em www.dgsi.pt;
É inultrapassável, portanto, a relação de subsidiariedade entre os mencionados meios processuais, cujo melhor exemplo reside na possibilidade de substituição da petição de intimação pela adopção de providência cautelar, com a possibilidade acrescida do seu decretamento provisório, nos termos conjugados dos artigos 109.º, n.º 1, e 110.º-A, n.ºs 1 e 2, do CPTA. Contudo, como atrás já deixámos expresso, não cabe aqui sindicar o juízo de inviabilidade dessa substituição, formulado na parte final da decisão recorrida, porquanto, foi temática deixada de fora do âmbito das conclusões recursivas dos Recorrentes.
Tudo visto, e porque os Recorrentes nada mais de relevante colocaram nas conclusões de recurso, confirmamos, no caso concreto, a falta do requisito da indispensabilidade que se impõe a quem do processo de intimação queira fazer uso, e, de igual modo, do próprio requisito da subsidiariedade, nos termos do exigido pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
Assim sendo, cabe negar provimento ao presente recurso jurisdicional, e, em consequência, com a presente fundamentação, manter a decisão recorrida.
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Sem custas, atenta a isenção prevista no artigo 4.º, n.º 2, alínea b), do RCP.
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Em conclusão, é elaborado sumário, nos termos e para os efeitos do estipulado no artigo 663.º, n.º 7, do CPC, aplicável “ex vi” do artigo 140.º, n.º 3, do CPTA, nos seguintes moldes:
I - O recurso ao processo de intimação para protecção de direitos, liberdades e garantias, ainda que intentado por cidadão estrangeiro que tenha despoletado o procedimento administrativo com vista à emissão de autorização de residência em território nacional, depende da verificação, ante os factos concretamente alegados no articulado inicial, do pressuposto da indispensabilidade desse meio processual, isto é, da sua necessidade para a emissão urgente de uma decisão de mérito imprescindível à protecção de um direito, liberdade e garantia, tendo em conta o estatuído pelo n.º 1 do artigo 109.º do CPTA.
II - Tendo presente o pressuposto da indispensabilidade, impõe-se que do caso concreto, sobretudo, dos factos alegados, igualmente transpareça uma evidente situação de urgência que não possa ou não seja suficientemente acautelada, em tempo útil, pelo normal decretamento de uma providência cautelar, em processo que é igualmente de natureza urgente, eventualmente complementada pelo reforço de garantias que dimana da possibilidade do decretamento provisório da medida cautelar, no que se caracteriza pelo requisito da subsidiariedade, cuja exigência resulta da conjugação entre os artigos 109.º, n.º 1, e 110.º-A, n.º 1, do CPTA.
III - “In casu”, faltando a demonstração dos pressupostos supra descritos, não é de admitir o articulado inicial, devendo o juiz rejeitar liminarmente a petição inicial, atento o disposto no artigo 110.º, n.º 1, do CPTA, como efectivamente foi bem decidido pela decisão recorrida.
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V - Decisão.
Ante o exposto, acordam, em conferência, os Juízes-Desembargadores que compõem a Subsecção Comum da Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul, em negar provimento ao recurso jurisdicional, e, em consequência, manter a decisão recorrida.
Sem custas.
Registe e notifique.
Lisboa, 19 de Março de 2024.
Marcelo Mendonça – (Relator)

Marta Cavaleira – (1.ª Adjunta) – (com declaração de voto)

Carlos Araújo – (2.º Adjunto)

Declaração de voto


Voto favoravelmente o Acórdão por entender que os Autores, ora Recorrentes, não alegam factos que permitam concluir que o recurso à intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias é indispensável para assegurar o exercício em tempo útil de direitos, liberdades ou garantias, mas não subscrevo alguns dos seus fundamentos.

Aderindo a entendimentos preconizados por Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha, refere-se, no Acórdão, que persistindo uma «situação de violação continuada de determinados direitos fundamentais (…), afasta a possibilidade de recurso ao processo de intimação» e que «o processo de intimação também não pode ser utilizado “quando tenham entretanto transcorrido os prazos de que o interessado dispunha para reagir pela via processual normal (designadamente, através do pedido de impugnação de ato administrativo…ou de condenação à prática de ato devido (…)”».

Conclui-se, por isso, que no caso em análise «os Recorrentes, (…) passaram a ter ao seu dispor o recurso à ação administrativa de condenação à prática de ato administrativo devido, nos termos do artigo 37.º, n.º 1, alínea b), do CPTA, que, todavia, não fizeram uso atempado, pois deixaram transcorrer o prazo de um ano preconizado no artigo 69.º, n.º 1, do CPTA. Poderiam, ainda, acoplar à predita ação principal o correspondente meio cautelar, complementado pelo seu decretamento provisório, o que igualmente não fizeram. Por tais razões, os ora Recorrentes encontravam-se inibidos de recorrer ao processo de intimação.»

Neste mesmo sentido, também o Supremo Tribunal Administrativo considerou, em acórdão recente, que «apesar de vir invocada uma “violação continuada” e atual, porque permanente, resultante da omissão de decisão por parte da entidade recorrida, no que respeita ao pedido de autorização de residência requerido pelo ora recorrente, a verdade é que a chamada proteção acrescida, já não deve ser assegurada porque o próprio requerente não reagiu atempadamente contra a omissão da entidade requerida, o que só por si, permite concluir que os alegados direitos não se encontram em perigo, face ao tempo entretanto decorrido até que fosse solicitada a intervenção do Tribunal » (cfr. Acórdão de 16 de novembro de 2023, processo n.º 455/23.5BELSB).

Não subscrevo estes entendimentos, desde logo porque os dois meios processuais não têm o mesmo objeto. A ação de condenação à prática do ato devido fundamenta-se no incumprimento do dever legal de decisão e visa o deferimento da pretensão do Autor ao passo que a intimação para proteção de direitos liberdades e garantias visa assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia. Assim, apesar de não se ter reagido atempadamente contra a falta de decisão, é de admitir que, designadamente face à ocorrência de factos supervenientes, em dado momento a célere emissão de uma decisão de mérito que imponha à Administração a prática do ato devido se revele indispensável para assegurar o exercício, em tempo útil, de um direito, liberdade ou garantia.

Como se refere no voto de vencido subscrito no referido Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 16 de novembro de 2023, Processo n.º 455/23.5BELSB, a «urgência não se determina pelo tempo de reação do requerente ao incumprimento dos prazos de decisão pela Administração, porque o direito fundamental em causa não é o direito à decisão. A urgência determina-se, sim, pelo risco de lesão do(s) direito(s) fundamental(ais) em que aquela decisão o investe (…)».

Como o referido voto de vencido, também discordo que seja atribuída uma relevância absoluta «à ultrapassagem dos prazos de reação pela via processual normal. O legislador não estabeleceu um prazo para que se requeira uma intimação para proteção de direitos, liberdades e garantias, precisamente, porque o pressuposto da mesma é a sua indispensabilidade para assegurar, em tempo útil, o exercício dos seus direitos, qualquer que seja a fonte da ameaça de lesão dos mesmos - neste sentido, v. o Acórdão deste Supremo Tribunal Administrativo, de 16 de maio de 2019, proferido no Processo n.º 02762/17.7BELSB.»

Marta Cavaleira