Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:402/09.7BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:05/22/2019
Relator:BENJAMIM BARBOSA
Descritores:AVALIAÇÃO DIRECTA;
AVALIAÇAO INDIRECTA.
Sumário:Quando seja impossível comprovar a matéria tributável directa e exactamente a partir dos elementos da contabilidade, a Administração está legalmente vinculada a eleger a avaliação indirecta como método de apuramento dessa matéria, porque assim lhe impõe o artigo 90.º, n.º 1, da LGT.
Votação:VOTO DE VENCIDO
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL:
1. Relatório
1.1. As partes
M............. – ............., Lda., A............. e J............, impugnaram judicialmente contra a Fazenda Pública a liquidação oficiosa de IRC n.º ............., respeitante ao exercício de 2004.
Por sentença do Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria foi julgada improcedente a referida impugnação.
Inconformados vieram interpor recurso jurisdicional dessa sentença.
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1.2. O Objecto do recurso
1.2.1. Alegações
Nas suas alegações os recorrentes formulam as seguintes conclusões:
RECURSO DA MATERIA DE FACTO
1.ª Entre os factos do relatório de inspecção, não levados ao probatório consta a seguinte afirmação: “Pelos motivos já expostos no início deste relatório, não é possível obter elementos contabilísticos da “M............, Lda.”, pelo que a confirmação através da contabilidade nos parece definitivamente prejudicada”.
2.ª Para além desta, constam do mesmo relatório as seguintes afirmações, que também não foram levadas à matéria de facto provada:
“existem muitas facturas emitidas pelo sujeito passivo que não foram incluídas no nosso apuramento. Basta ver que a numeração dessas facturas não é sequencial. E será muito difícil à administração fiscal, conseguir obter qualquer informação sobre essas facturas. E que se, por um lado, não nos é possível proceder a uma análise contabilística, por outro, os clientes que não ultrapassem o montante total de € 25.000,00 de aquisições de bens e/ou serviços “M............, Lda.” em cada um dos anos, não inscreveram esse valor nos Anexos P das suas Declarações Anuais, de acordo com o estabelecido no artigo 28° do Código do IVA.” (fls. 9 e 10 do Relatório de Inspecção).
O apuramento efectuado no ponto III-1 deste relatório não teve em conta todas as facturas emitidas pelo sujeito passivo. Caso a administração fiscal tivesse conhecimento dessas facturas, as omissões de proveitos e de IVA liquidado seriam obviamente superiores as que são apuradas neste relatório” (fls. 13, in fine, do relatório de inspecção).
À semelhança do que sucede nos outros anos, também em 2004, foram emitidas inúmeras facturas que não foram tidas em conta no nosso apuramento. Caso tivesse sido possível incluir essas facturas, os valores de omissões apurados seriam obviamente superiores. Estes facto fica-se a dever à falta de elementos disponibilizados pelo sujeito passivo, associada à manifesta incapacidade da administração fiscal em conhecer todos os valores e/ou clientes das facturas emitidas pela “M............ Lda.”, uma vez que a obrigação de declarar os mesmos, existe apenas para valores totais anuais superiores a € 25.000,00” (fls. 19, in fine, do relatório de inspecção).
“após a análise dos elementos recolhidos, verificamos que se encontrava instalado o programa “PRIMAVERA Software”. No entanto, os ficheiros recolhidos não contêm informação contabilística relevante.” (fls. 7 do Relatório de Inspecção).
3.ª Estas afirmações constantes do relatório são factos provados e são essenciais para boa decisão da causa e por isso devem ser levadas ao probatório e consideradas factos provados:
DO DIREITO
4.ª A Administração fiscal ao fazer estas afirmações reconhece a sua impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável.
5.ª Daqui resulta que não foi possível a administração fiscal, proceder a determinação da matéria tributável por método directo que, nos termos do art. 83°, n° 1 da LGT, visa a determinação do valor real do rendimento.
6.ª A AT ao afirmar a existência de faturas cujo valor desconhece e ao assumir a impossibilidade de determinação da matéria coletável através da contabilidade, admitiu a impossibilidade de aplicação do método directo, mas ao não aplicar os métodos indirectos, renunciou a esforçar-se por apurar o rendimento de forma mais aproximada e exacta possível.
7.ª Apesar desta impossibilidade a Administração Fiscal determinou a matéria colectável por (suposto porque reconhecidamente não passível no caso) método directo.
8.ª Tal apuramento é ilegal pois que havendo impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis a correcta determinação da matéria tributável, a administração fiscal não poderia ter usado o método directo, mas o método indirecto.
9.ª A Administração Fiscal não tem nestas circunstâncias o poder de optar pelo método que entenda, pois tal poder a vinculado e não discricionário.
10.ª Esta contradição advém da circunstância de invocar fundamentos para aplicação dos métodos indirectos de apuramento da matéria colectável, mas acabar por propor o apuramento por método directo que, no caso, reconhece não ser possível.
11.ª Em consequência, os actos tributários sub-judice padecem ainda do vício de falta de fundamentação por equivalência, em função de contradição dos fundamentos, nos termos do art. 125.º, n.º 2, do CPA, o que constitui, também, fundamento de anulação dos actos tributários “sub judice”.
12.ª Contrariamente ao que é afirmado na douta sentença recorrida (pagina 13), a AT assume expressamente a impossibilidade de tributar diretamente o rendimento do sujeito passivo, quando afirma que o apuramento da matéria colectável através da contabilidade esta definitivamente prejudicada e também quando afirma que existiram outros proveitos que não conseguiu apurar.
13.ª A douta sentença recorrida errou quando sustenta - e bem - que que “Não se trata de um poder discricionário da AT a opção entre um e outro método, mas sim uma vinculação” (pág. 13), mas acaba, na realidade, por admitir que a AT escolhesse o “método directo”, quando simultaneamente o afirma não viável e expressamente, invoca factualidade que bem fundamentaria sim o recurso a métodos indirectos.
14.ª Admite-se, todavia, existir uma aparente aporia no sistema, admitindo-se que a solução que se preconiza poderá conduzir em certos casos a um benefício ou menor penalização do infractor, que diretamente causou a impossibilidade de aplicação do método directo por violação dos deveres de cooperação, sendo aparentemente pouco compreensível que venha prevalecer-se duma situação fática que ele próprio terá causado.
15.ª No entanto, não cabe a tributação uma função sancionatória, pois essa cabe ao direito penal fiscal e ao direito contra-ordenacional, sob pena de possível violação do principio “ne bis in idem”.
16.ª Por outro lado, caberá à AT, através duma rigorosa aplicação dos métodos indirectos procurar chegar o mais próximo passível da matéria coletável verdadeira, utilizando, naturalmente, também, todos os elementos de que disponha sendo ainda os infractores sujeitos ao direito sancionatório.
17.ª Não esta de acordo com os princípios que regem a administração pública, consignados no art. 266.° da Constituição, a tributação feita de acordo com um método, escolhido discricionariamente e que, na realidade não é directo (só nominalmente o é), nem indirecto.
18.ª Foram violados os art. 77°, 83°, 87°, n° 1, al. a) e 88°, al. a) da LGT, 104°, n° 2 e 266°, n° 2 da Constituição da República Portuguesa e 125°, n° 2 do Código do Procedimento Administrativo.
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1.2.2. Contra-alegações
A recorrida Fazenda Pública apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
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1.3. Parecer do Ministério Público
A Exm.ª Magistrada do Ministério Público (EMMP) junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido de não ser concedido provimento ao recurso.
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1.4. Questões a decidir
1. Saber se foram omitidos factos relevantes para a decisão,
2. Se a sentença padece de erro de julgamento por não reconhecer que a liquidação sofre de vício de violação de lei e de falta de fundamentação, por não ter sido utilizado o método indirecto na determinação da matéria colectável.
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2. Fundamentação
2.1. De facto
O probatório da sentença é do seguinte teor:
a. A impugnante M............ — ............, Lda. (doravante “M...........”) tinha por objeto social o exercício de atividades de investigação e seguranca (cfr. fls. 31, dos autos).
b. A impugnante M............ encontrava-se inscrita na Conservatória do Registo Comercial de Rio Maior, sendo seus sócios os impugnantes A............ e J............, tendo sido averbada, pela inscrição ... — ............, o cancelamento da respetiva matricula (cfr. fls. 21 e 22, dos autos).
c. A impugnante M........... foi objeto de ação de fiscalização, em cumprimento das Ordens de Serviço n.ºs 012..........., 012........... e 012............ pela Direcção de Finanças de Santarém (cfr. fls. 31, dos autos).
d. Da ação de fiscalizacao referida em 2), resultou um Relatório de Inspeção Tributaria (RIT), datado de 26 de agosto de 2008, do qual consta designadamente o seguinte:
“…. III — Descrição dos factos e fundamentos das correcções meramente aritméticas à matéria tributável:
Aquando do inicio do procedimento de inspecção de consulta, (...) o gerente do sujeito passivo, Sr. A............., informou que não seria possível apresentar os elementos contabilísticos, respeitantes aos anos definidos no despacho, necessários para dar cumprimento aos objectivos definidos para este procedimento inspectivo. (...) [D]eclarou “Que os mesmos foram roubados, em Alfragide de dentro de uma carrinha da empresa...” (...)
Nesse mesmo dia, tendo como base o despacho acima identificado e na presença do gerente do sujeito passivo, Sr. A............., foi analisado o computador que teria sido utilizado para emitir elementos/documentos. Efectuou-se a selecção dos ficheiros que poderiam conter informação relevante, tendo sido posteriormente copiados para o computador portátil do serviço (...) Após a analise dos elementos recolhidos, verificamos que se encontrava instalado o programa “PRIMAVERA Software”. No entanto, os ficheiros recolhidos não contém informação contabilística relevante.
Simultaneamente, foram solicitadas informações, no âmbito da colaboração com a Administração Fiscal, aos vários clientes e fornecedores da “M............, Lda.”, os quais foram identificados através do cruzamento informático entre os Anexos 0 e os Anexos P das Declarações Anuais entregues pelos contribuintes. (...)
1) As informações enviadas pelos clientes da “M............, Lda.”, nomeadamente, as facturas emitidas por esta, permitem apurar, nos anos de 2004, zoos e 2006, os seguintes valores:
(“texto integral no original; imagem”)
(...)
Após a recolha e tratamento das informações enviadas por clientes da “M..........., Lda.”, que conduziram ao apuramento dos valores indicados nos quadros anteriores, impunha-se proceder a confirmação da sua contabilização. Pelos motivos já expostos no inicio deste relatório, não é possível obter elementos contabilísticos da “M............., Lda.”, pelo que a confirmação através da contabilidade nos parece definitivamente prejudicada. Por conseguinte, temos que comparar os valores das facturas emitidas pela “M..........., Lda.” enviados pelas seus clientes, com os valores inscritos nas declarações fiscais, nomeadamente, nas declarações peri6dicas de IVA, as quais contem os valores declarados pelo sujeito passivo, discriminados por períodos e por taxas de IVA. Importa aqui esclarecer que, qualquer correcção proposta pela Administra45o Fiscal é feita sobre os valores inscritos pelo sujeito passivo nas declarações fiscais entregues. Ou seja, nesta acção inspectiva a observação da contabilidade serviria, principalmente, para confirmar que os valores das declarações fiscais coincidem com os que est5o ai registados.
2) As declarações periódicas de IVA entregues pelo sujeito passivo, respeitantes aos anos de 2004, 2005 e 2006, indicam-nos os seguintes valores declarados em cada um dos períodos, discriminados por taxas de IVA:

(...) 3) De seguida, os valores das facturas emitidas pela “M............, Lda.”, apurados com base nos elementos enviados pelos seus clientes (Quadros do ponto III deste relatório), foram confrontados com os valores inscritos nas declarações periódicas de IVA entregues pelo sujeito passivo (Quadros do ponto III -2 deste relatório). Nesta conferencia, foram detectadas omissões de IVA liquidado e de proveitos, em virtude dos valores apurados com base nas informações dos clientes (Panto III - 1 do relatório) serem superiores aos valores declarados pelo sujeito passivo (Ponto III — 2 do relatório). Estas omissões encontram-se quantificadas nos quadros seguintes e discriminadas por períodos de imposto:

(...)
4) EM RESUMO

(… )
5) EM SEDE DE IRC

7) Outro facto demonstrativo da omissão de proveitos e de IVA liquidado em falta é o que resulta do cruzamento dos Anexos 0 entregues pela “M..........., Lda.” com os Anexos P entregues pelos seus clientes.
Num primeiro momento, através da consulta ao sistema informático da DGCI, foram recolhidos os valores de aquisições de bens e serviços a sociedade “M............ Lda.”, declarados por vários contribuintes a Administrac5o Fiscal aquando da entrega das Declarações Anuais de Informac5o Contabilística e Fiscal. De seguida, procedeu-se é comparação entre os valores referidos no paragrafo anterior e aqueles que foram declarados pela sociedade “M............, Lda.”. Nos quadros seguintes são apresentados os resultados dessa comparação:

(“texto integral no original; imagem”)
(…)
Os prints do sistema informatico da DGCI, respeitantes a informação dos quadros anteriores, constam em anexo a este relatório:
Anexo no 9, Folhas n°s e 2 — Ano de 2004;
Anexo no 9, Folha no 3— Ano de 2005;
Anexo n° 9, Folha n° 4— Ano de 2006.
A informação que é dada pelos quadros anteriores foi importante para: 1— Identificar os clientes da “M............, Lda.” com valores mais elevados, permitindo assim obter, por via de terceiros, elementos relevantes para esta acção inspectiva, como por exemplo, as facturas emitidas nos anos em análise; 2— Perceber, desde logo, que existiam fortes indícios da omissão de proveitos e de IVA liquidado em falta.
Apesar disto, as divergências que se podem encontrar nos quadros anteriores não foram quantificadas, nem utilizadas no apuramento das omissões efectuado nos pontos III - 1, 2 e 3 deste relatório, atendendo a que: 1 — Impossibilidade de discriminar aqueles valores pelas diferentes taxas de IVA praticadas; 2 — Quando a “M............., Lda.” não indica, no seu Anexo 0, qualquer valor de vendas e/ou prestação de serviços a um determinado cliente, isso não significa que, a totalidade do valor comunicado pelo cliente no seu Anexo P esteja omisso na contabilidade e nas declarações fiscais da “M............., Lda.”. E que a obrigação de declarar esses valores só ocorre para valores superiores a € 25.000,00, conforme dispõe a artigo 28° do Código do IVA.
Vejamos um exemplo:
- Para o ano de 2004, a 'T............. Lda,” declarou ter efectuado aquisições num total de 29.202,00;
- Para o mesmo ano, a “M............, Lda.” não declarou qualquer valor de transmissões de bens e/ou serviços à ''T............., Lda''.
- Não podemos concluir que foram omitidas transmissões de bens e/ou serviços no total de € 29.202,00. Vamos, por hipótese, dizer que, para o ano de 2004, a “M............, Lda.” tinha contabilizado transmissões de bens e/ou serviços a “T............., Lda” no valor de € 20.000,00. A “M............., Lda.” não declarava esse valor no seu Anexo 0, de acordo com o limite imposto no artigo 28.º do CIVA, pelo que estaríamos perante omissões de apenas € 9.202,00.
Em suma, o resultado do cruzamento de dados efectuado neste ponto do relatório constitui mais um facto revelador da omissão de proveitos e de IVA liquidado em falta. No entanto, pelas razões já expostas esse resultado não foi, nem poderia ser, utilizado no apuramento dessas omissões...” (cfr. fls. 27 a 46, dos autos, cujo teor se da integralmente por reproduzido).
e. Foi emitida, pela Administração Tributaria, em nome da impugnante, a liquidacao adicional de IRC n.º ............., relativa ao exercício de 2004, no valor de € 175.573,68, incluindo juros compensatórios (cfr. fls. 17, dos autos).
f. A presente impugnação deu entrada neste Tribunal, via correio electrónico, a 06.03.2009 (cfr. fls. 1, dos autos).
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Não existem factos não provados, em face das possíveis soluções de direito, com interesse para a decisão da causa.
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A convicção do tribunal, no que respeita aos factos provados, assentou na prova documental junta aos autos, conforme indicado em cada um desses factos
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2.2. De Direito
2.2.1. Da insuficiência da matéria de facto
A primeira questão a resolver diz respeito à alegada omissão de factos, na sentença, que os recorrentes consideram provados, e que na sua opinião são importantes para a solução do litígio.
Os factos a que os recorrentes aludem não passam de meras passagens do relatório de inspecção (sendo que algumas se encontram consignados no probatório da sentença); por isso o único facto é de que tais passagens constam do relatório. Nada mais.
Assim, admitindo que as passagens em causa podem ser relevantes para a solução jurídica da questão nuclear dos autos – saber se a AT estava ou não legalmente vinculada a recorrer a métodos indirectos – admite-se a sua inclusão no acervo probatório, que pode ser feita pela simples remissão para o relatório de Inspecção, que se dá aqui por reproduzido para todos os devidos e legais efeitos.
Procede, nos termos do exposto, a primeira questão suscitada pelos recorrentes.
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2.2.1. Do mérito do recurso
Quanto à questão da errada utilização do método directo na determinação da matéria colectável:
De acordo com o artigo 87.º da LGT, a tributação indirecta pode ser baseada em uma de três hipóteses: (i) regime simplificado de tributação; (ii) impossibilidade de determinar directa e correctamente a matéria tributável; (iii) “controlo dos meios directos directos disponibilizados pelo sujeito passivo, de forma a evitar eventuais situações de fraude e evasão fiscal” (1)
Como é evidente, está em causa neste processo a segunda vertente.
Nesse contexto os fundamentos legais para que a Administração possa lançar mão dos métodos indirectos constam do artigo 88.º da LGT, que nos dispensamos de reproduzir. Segundo a alínea a), a Administração encontra-se vinculada a lançar mão da avaliação indirecta sempre que se verifique a “inexistência ou insuficiência de elementos de contabilidade ou declaração, falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução quando não supridas no prazo legal, mesmo quando a ausência desses elementos se deva a razões acidentais”.
A utilização da avaliação indirecta constitui, assim, um poder-dever da Administração, no sentido de que só ela o pode desencadear mas estando vinculada a fazê-lo perante a verificação de determinadas circunstâncias de facto: Tem como contrapeso o procedimento de revisão (cfr. artigo 91.º da LGT), que constitui um meio de tutela do contribuinte, projectando efeito suspensivo imediato à liquidação do imposto e que visa a obtenção de um acordo entre o perito nomeado pelo contribuinte e o perito nomeado pela Administração sobre o montante da quantia a liquidar. (2)
O pedido de revisão é condição de eventual impugnabilidade da liquidação, mas apenas quanto a erro na quantificação da matéria colectável” e erro nos pressupostos de aplicação de métodos indirectos (cfr. artigos 86.º, n.º 5, da LGT e 117.º, n.º 1, do CPPT), não ficando prejudicada por essa condição de impugnabilidade a apreciação de outros vícios do acto tributário. (3)
Conforme refere a doutrina espanhola, a avaliação (estimación) indirecta distingue-se da avaliação directa pelo carácter presuntivo da primeira, ao contrário da segunda, que fornece um conhecimento certo da matéria tributária. (4) (5) A avaliação directa apura a matéria tributária real a partir de elementos que retractam o rendimento real, distinguindo-se por isso do que em Espanha se designa por estimativa objetiva, que visa determinar a matéria tributável através do recurso a variáveis estatísticas sectoriais, método que em Portugal se integra na avaliação indirecta (cfr. artigos 89.º e 90.º da LGT).
Conquanto seja indiscutível que quer a avaliação directa, quer a indirecta, constituam métodos de determinação da matéria tributável visando apurar o an e o quantum da obrigação tributária, é manifesto que a segunda tem natureza excepcional em relação à primeira, na medida em que o apuramento da matéria tributável é feito a partir de elementos externos ao contribuinte, por se tornar impossível apurá-la com base nos elementos fornecidos por este ou em razão da sua inexistência ou recusa de exibição. (6)
Na verdade, sendo a avaliação indirecta dominada pelos princípios da subsidiariedade e da excepcionalidade, a avaliação indirecta só é possível de efectivar se falhar a tentativa de determinar a matéria tributável através da avaliação directa, como impõe o artigo 85.º da LGT. Como refere João Sérgio Ribeiro “é necessário respeitar a incontornável e essencial característica da subsidiariedade”. (7)
Acrescenta este autor: “previamente ao desencadear da avaliação indirecta, é necessário que a justificação apresentada pelo sujeito passivo não seja aceite, devendo a Administração justificar as razões da não-aceitação, na fundamentação da avaliação indirecta. Ora, essa fundamentação tem precisamente como âmago subjacente a impossibilidade da determinação da matéria tributável através da avaliação directa que ocorreria, caso as justificações dos sujeitos passivos fossem aceites”. (8)
Ou seja, só o descrédito das justificações do sujeito passivo e (ou) a impossibilidade absoluta de determinação directa da matéria tributável permitem à Administração, impõem até, o recurso a métodos indirectos.
Consequentemente, a avaliação indirecta é uma modalidade de determinação da matéria tributável que não tem natureza discricionária, no sentido de que não constitui uma alternativa ao dispor da Administração(9); outrossim, é um método que a Administração está vinculada a seguir quando seja impossível determinar a matéria tributável com base nos elementos fornecidos pelo contribuinte ou perante a sua inexistência.
Daqui resulta que, no caso em apreço, sendo impossível comprovar a matéria tributável directa e exactamente a partir dos elementos da contabilidade, a Administração estava legalmente vinculada a eleger a avaliação indirecta como método de apuramento dessa matéria, porque assim lhe impunha o artigo 90.º, n.º 1, da LGT.
Ora, a inspecção nada disse quanto à justificação apresentada para a não exibição da contabilidade por parte da sociedade recorrente, justificação essa que no plano da normalidade e das regras de experiência se afigura ser muito pouco plausível.
E no entanto a ausência dos elementos contabilísticos impedia (como impediu) a determinação da matéria tributável através de métodos directos. De facto, como se salientou a avaliação directa permite obter uma imagem certa da matéria tributável a partir de elementos objectivos, pelo que faltando estes não é possível efectuar tal tipo de avaliação.
Aliás, é a própria Administração que reconhece que não lhe ter sido foi possível apurar com todo o rigor a matéria tributável da primeira recorrente. Este reconhecimento não deixa de ser algo peculiar, visto que é obrigação da Administração procurar determinar a matéria tributável com o maior rigor possível, porque assim os impõem os princípios constitucionais da capacidade contributiva e da igualdade e porque, qualquer que seja o método utilizado, o resultado a obter será sempre “um verdadeiro facto tributário, tão verdadeiro como o que é revelado pelas contas do sujeito passivo”.(10)
Ao reconhecer que não lhe foi possível apurar com todo o rigor a matéria tributável da primeira recorrente, a Administração implicitamente reconheceu que a obtenção do facto tributário só podia ter sido feita por métodos indirectos, como efectivamente o foi, designadamente através do apuramento da matéria tributável da primeira recorrente com base em presunções extraídas das contabilidades, declarações e matéria tributável de terceiros.
Contudo, não exprimiu qualquer juízo que no plano formal exteriorizasse a inviabilidade e a impossibilidade do procedimento de avaliação directa, que por imposição legal prevalece sobre aquela. Com efeito, o artigo 87.º, al. b), da LGT (na redacção vigente à data dos factos) estabelecia que a “avaliação indirecta só pode efectuar-se em caso de impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta dos elementos indispensáveis à correcta determinação da matéria tributável de qualquer imposto”, sendo que o artigo 88.º dispunha que “a impossibilidade de comprovação e quantificação directa e exacta da matéria tributável para efeitos de aplicação de métodos indirectos, referida na alínea b) do artigo anterior, pode resultar das seguintes anomalias e incorrecções quando inviabilizem o apuramento da matéria tributável:
a) Inexistência ou insuficiência de elementos de contabilidade ou declaração, falta ou atraso de escrituração dos livros e registos ou irregularidades na sua organização ou execução quando não supridas no prazo legal, mesmo quando a ausência desses elementos se deva a razões acidentais”.
Da interpretação conjugada destas duas normas resulta que quando a falta de contabilidade inviabiliza o apuramento da matéria tributável é, não só legítimo como obrigatório, que a Administração recorra aos métodos indirectos.
Ora, no caso sub judice a falta de exibição da contabilidade da primeira recorrente foi absoluta, o que impedia a possibilidade de determinação da matéria tributável pelo método directo. Por isso essa matéria foi obtida através da análise dos proveitos omitidos com base em elementos fornecidos por terceiros, os clientes da primeira recorrente, que constam dos quadros que integram a matéria de facto. E foi somente através cruzamento dos valores constantes nas declarações da primeira recorrente e dos seus clientes que a Administração apurou a matéria tributável.
Trata-se, portanto, de aplicação de um verdadeiro método indirecto, isto é, de um método que determina a matéria tributável através de elementos que, embora sendo objectivos, não fornecem o resultado exacto que avaliação directa pressupõe (cfr. artigo 90.º, n.º 1, 1.ª parte, da LGT).
Numa situação semelhante à retratada nos presentes o acórdão deste tribunal de 15-03-2011 (11) obtemperou que “perante a situação descrita na matéria de facto provada (…) [de]ocorria objectivamente a impossibilidade de efectuar um controlo claro e inequívoco do valor dos rendimentos (…) [p]elo que, se justificava que a A. Fiscal lançasse mão do método indirecto de determinação da matéria tributável, porque impossibilitada de usar os meios de prova directa para cumprir com o seu poder-dever de liquidar o tributo no caso concreto, impossibilidade essa criada pelo mesmo recorrente devido ao não cumprimento de obrigações a que estava adstrito”.
E acrescenta o acórdão: “Tanto basta para que, forçosamente, devamos concluir que a liquidação impugnada sofre de ilegalidade ao nível da utilização do critério ou dos critérios de quantificação do valor tributável, por violação das regras de determinação da matéria colectável (…)”.
De facto, a aparente utilização do método directo (quando, na verdade, a metodologia concretamente seguida se ajusta ao método indirecto), frusta os direitos do contribuinte, que se vê impedido, por exemplo, de lançar mão do meio administrativo de revisão (artigo 91.º da LGT), o que inquina o acto de liquidação de vício de violação de lei, gerando a sua anulabilidade, por omissão de preterição de formalidade legal. E, para além disso, ao utilizar o método indirecto em concreto, sem exteriorizar qualquer juízo fundamentador dessa utilização, a Administração incorreu no vício de falta de fundamentação.
Em conclusão, procedem os fundamentos do recurso. Consequentemente, a decisão recorrida, que considerou lícita a conduta da AT, padece de erro de julgamento, devendo por isso ser revogada. E, como sequela dessa revogação cumpre, em substituição (cfr. artigo 665.º do CPC), julgar procedente a impugnação e anular a liquidação impugnada.
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3 - Dispositivo:
Em face de todo o exposto acordam em, concedendo provimento ao recurso:
a) Revogar a sentença recorrida;
b) Julgar a impugnação procedente, anulando a liquidação impugnada.
Custas pela Fazenda Pública.
D.n.
Lisboa, 2019-06-22
(Benjamim Barbosa, relator)
(Ana Pinhol) - Com voto de vencida
(Isabel Fernandes)

Voto de vencida
Contrariamente ao decidido, negaria provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida nos seus precisos termos.
(Ana Pinhol)
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(1) João Sérgio Ribeiro, Tributação Presuntiva do Rendimento, Coimbra, Almedina, 2010, p. 254..
(2) Serena Cabrita Neto, Introdução ao Processo Tributário, Coimbra, ISG, 2004, p. 55.
(3) Cfr., nomeadamente, neste sentido, na doutrina, Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário Anotado e Comentado, 6ª edição, II Vol., Lisboa, Áreas Editora, 2011, p. 273, e na jurisprudência, Ac. do TCAS de 09-03-2017, rec. n.º 08869/15, in www.dgsi.pt.
(4) Cfr. Duran Sindreu-Buxadé, Los métodos indiciarios para la determinación de la base imponible en el impuesto sobre sociedades, Estudios Tributários Aplicados, Barcelona, Fundacíon António Lacuentra, 1985, p. 85, e Sainz de Bujanda, Hacienda y Derecho, Tomo VI, Madrid, Instituto de Estudios Políticos, 1973, pp. 211 e ss.. Cfr. Neste sentido, vd. também Dino de Jarach, Curso Superior de Derecho Tributário, Tomo I, Buenos Aires, Liceo Profesional Cima, 1969, p. 309.
(5) A diferença entre a avaliação directa e a avaliação indirecta está bem patente na doutrina de Sainz de Bujanda, que se insurge contra a utilização do vocábulo estimácion para identificar tanto a avaliação directa como a avaliação indirecta, indiciária ou presuntiva. Para este autor a estimación pressupõe a impossibilidade de avaliar com certeza a matéria tributável, pelo que o termo se contrapõe ao de avaliação (cfr. Hacienda (6) Neste sentido, João Sérgio Ribeiro, op. cit., p. 205.. y Derecho, T. VI, op. cit., pp. 256 e ss.).
(7) Op. cit., p. 254..
(8) Idem, ibidem.
(9) Neste sentido, João Sérgio Ribeiro, op. cit., pp. 209 e ss
(10) Ac. do STA de 23-11-2005, rec. n.º 0827/05.
(11) Rec. 02899/09