Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:1786/19.4 BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:12/19/2023
Relator:VITAL LOPES
Descritores:CONTRIBUIÇÃO EXTRAORDINÁRIA SOBRE O SECTOR ENERGÉTICO
JUÍZO DE INCONSTITUCIONALIDADE
REFORMA DO ACÓRDÃO
Sumário:É inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição, o artigo 2.º, alínea d) do Regime Jurídico da CESE (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2018 pela Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro), na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do activo a que se refere o n.º1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas colectivas que integram o sector energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direcção efectiva ou estabelecimento estável em território português que, em 1 de Janeiro de 2018, sejam concessionárias das actividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de Julho, na sua redacção actual).
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais: Subsecção tributária comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA NA SUBSECÇÃO COMUM DA SECÇÃO DO CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I. RELATÓRIO

Por acórdão deste TCAS de 10/03/2022 foi negado provimento ao recurso interposto por LISBOAGÁS GDL – Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A. da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou improcedente a impugnação judicial apresentada, no seguimento da decisão de indeferimento da reclamação graciosa, contra a autoliquidação da Contribuição Extraordinária sobre o Sector Energético (CESE), respeitante ao ano de 2018, no valor de EUR. 4.164.461,44, bem como contra a liquidação de juros decorrente do não pagamento do valor apurado na autoliquidação, no valor de EUR.6.649,94.

Do acórdão do TCAS a impugnante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional que por douto Acórdão n.º 101/2023, de 16/03/2023, proferido no proc.º 480/2022 (3.ª Secção), decidiu:
«a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição, o artigo 2.º, alínea d) do Regime Jurídico da CESE (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro, cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2018 pela Lei n.º 114/2017, de 29 de Dezembro), na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do activo a que se refere o n.º1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas colectivas que integram o sector energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direcção efectiva ou estabelecimento estável em território português que, em 1 de Janeiro de 2018, sejam concessionárias das actividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de Julho, na sua redacção actual);
b) Conceder provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade».

Em execução do referido ac. do Tribunal Constitucional, procede-se à reforma do ac. deste TCAS, proferido em 10/03/2022.
***

























Colhidos os vistos legais e nada mais obstando, vêm os autos à conferência para decisão.
II. QUESTÕES A RESOLVER


III. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Na sentença recorrida deixou-se factualmente consignado:
«







Ao abrigo do disposto no art.º 662/1 do CPC, altera-se o ponto 1. do probatório, dele passando a constar:

1. A Impugnante é uma empresa que integra o sector energético nacional, com sede em território nacional e actividade no domínio do aprovisionamento e distribuição de gás natural e outros gases combustíveis canalizados, estando enquadrada na previsão da alínea d) do artigo 2.º da CESE quanto aos seus activos relacionados com aquela actividade – cf. processo administrativo tributário apenso junto a fls. 196 a 387 dos autos, reportando sempre à tramitação eletrónica (doravante, PAT) e art.º 39.º da douta P.I..

B.DE DIREITO

Sobre as questões concretamente suscitadas no recurso jurisdicional interposto para este TCAS da decisão de 1.ª instância que julgou improcedente a impugnação judicial da CESE liquidada à impugnante e referenciada ao ano de 2018, pronunciou-se o Tribunal Constitucional, em recurso de constitucionalidade interposto do ac. do TCAS que negou provimento ao recurso, no seu Ac. n.º 101/2023, de 16/03/2023, tirado nos autos de Recurso n.º 480/22, decisão para cuja fundamentação se remete e de que se destacam as seguintes passagens:
«
Em primeiro lugar, retira-se das alegações da recorrente que o núcleo da questão de inconstitucionalidade suscitada perante o tribunal recorrido e colocada nos presentes autos se cinge à norma que determina a incidência subjetiva do tributo cuja liquidação foi impugnada, e em especial ao artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE, na medida em que determina que o tributo incide sobre as pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2018, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na sua redação atual), grupo em que a recorrente se insere.

É o que resulta, com clareza, da alegação reiterada de que a «base de incidência subjectiva atinge contribuintes que pouco ou nada têm a ver com os fins declarados da "contribuição" (não são de todo beneficiados com as actividades estaduais que a receita pretende financiar nem deram origem aos problemas que aquela é suposto colmatar) - designadamente todos aqueles que não actuam no âmbito do sector da produção de electricidade» (…). É sobre esta premissa que a recorrente apoia a conclusão de que a CESE é um imposto (...) sobre o rendimento presumido (...), que se sobrepõe ao Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas em termos discriminatórios e desproporcionais, designadamente por não configurar um gasto dedutível ao lucro tributável (...) e por não configurar um meio válido para a realização dos fins que através do Fundo para a Sustentabilidade Sistémica do Setor Energético se visa atingir (....). Em suma, é da inconstitucionalidade imputada à norma que modela a incidência subjetiva da CESE que a recorrente extrai os demais vícios apontados aos artigos 3.º, 4.º, 11.º e 12.º do respetivo regime jurídico.

Em segundo lugar, é imprescindível identificar, tomando em conta o conteúdo do ato de liquidação cuja impugnação foi julgada improcedente nos autos, as normas extraídas dos preceitos legais indicados no requerimento de interposição de recurso que foram objeto de efetiva aplicação pelo Tribunal a quo e cuja inconstitucionalidade pode ser apreciada por este Tribunal, nos termos do artigo 79.º-C da LTC. Se não há dúvida de que foram determinantes do sentido da decisão recorrida as normas que modelam a incidência da CESE, já o mesmo não pode dizer-se da norma que estabelece as respetivas isenções (artigo 4.º), já que a recorrente não se encontra isenta do tributo; da norma que determina o destino da receita (artigo 11.º); ou da norma que exclui os gastos suportados com a CESE do elenco dos encargos dedutíveis ao lucro tributável em IRC (artigo 12.º), já que em causa nos autos estava a impugnação de um ato de liquidação da CESE, e não daquele imposto (a este respeito, v. os Acórdãos n.os 301/2021, 303/2021, 532/2021, 756/2021 e 856/2021, entre outros). Trata-se de aspetos extrínsecos aos fundamentos do ato de liquidação em causa, cuja validade é questionada pela recorrente com o fito de ilustrar a violação dos parâmetros constitucionais invocados.

Tudo visto, impõe-se reduzir o objeto do presente recurso ao artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, e cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2018 pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro), na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2018, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na sua redação atual).».

Depois de referir exaustivamente a vasta jurisprudência anterior do TC em que não foram julgadas inconstitucionais as normas do regime jurídico da CESE vigentes em 2018, prossegue o douto acórdão:
«
Porém, decorridos vários anos desde a sua criação, importa averiguar se os pressupostos em que repousaram os reiterados juízos de não inconstitucionalidade proferidos pelo Tribunal Constitucional se mantêm largamente intocados, para o que importa atender à evolução do regime jurídico deste tributo no período que mediou até 2018, o ano a que se reporta o ato de liquidação impugnado nos autos.

8. Neste período, o regime jurídico da CESE foi objeto de algumas alterações (v. o artigo 238.º da Lei n.os 82-B/2014, de 31 de dezembro, a Lei n.º 33/2015, de 27 de abril e o artigo 264.º da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro), entre as quais se destaca o alargamento da base de incidência subjetiva aos comercializadores titulares dos contratos de aprovisionamento de longo prazo com obrigação alternativa de aquisição ou compensação (em regime comummente designado de «take or pay»), celebrados em data anterior à entrada em vigor da Diretiva n.º 2003/55/CE, do Parlamento e do Conselho, de 26 de junho (a que se refere o artigo 39.º-A do Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na redação vigente à data, para o qual remete a alínea m) aditada ao artigo 2.º do regime jurídico da CESE pela Lei n.º 33/2015).

Nestes casos, o tributo passou a incidir, primeiro, sobre o valor dos ativos a que se refere o artigo 3.º, n.º 1, do regime jurídico da CESE e sobre o valor económico equivalente dos contratos de aprovisionamento de longo prazo, a determinar nos termos previstos no n.º 5 do mesmo artigo, a que é aplicável uma taxa de 1,45% (v. o n.º 6 do artigo 6.º do regime, na redação da Lei n.º 33/2015). Com as alterações introduzidas em 2016, passou a incidir, adicionalmente, sobre «o excedente apurado para o valor económico equivalente dos contratos» de aprovisionamento, «tendo em conta a informação sobre o real valor desses contratos», a determinar nos termos dos n.os 6 a 8 do artigo 3.º, sendo aplicável a este valor a taxa de 1,77% (v. o n.º 3 do artigo 3.º e o n.º 7 do artigo 6.º, com a redação dada pela Lei n.º 42/2016, bem como a Portaria n.º 92-A/2017, de 2 de março).

Esta alteração encontra justificação, segundo o Preâmbulo da Portaria n.º 157-B/2015, de 28 de maio, na verificação de «desequilíbrios sistémicos do Sistema Nacional de Gás Natural» (adiante designado «SNGN»), pelo que a parcela da receita da CESE obtida por esta via ficou «totalmente afeta à minimização dos encargos do SNGN, devendo o FSSSE prever, para o efeito, mecanismos para abater o montante das respetivas cobranças que daí resultem na tarifa de uso global do sistema de gás natural, excluindo as tarifas aplicáveis aos centros eletroprodutores, e definir a respetiva periodicidade» (v. o n.º 4 do artigo 11.º do regime jurídico da CESE, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 42/2016, bem como o artigo 2.º-A da Portaria n.º 1059/2014, de 18 de dezembro, aditado pela Portaria n.º 133-A/2017, de 10 de abril, e o Despacho n.º 5238-A/2017, de 12 de junho).

Por sua vez, e durante este período, o Decreto-Lei n.º 55/2014, que criou o FSSSE, manteve-se inalterado. As tarefas integradas no amplo espectro das «políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética», que o Fundo em parte se destinava a financiar, não foram objeto de concretização ou desenvolvimento neste diploma. Porém, previa-se que continuassem a absorver a maior parcela da receita obtida com a CESE. Até à aprovação do Decreto-Lei n.º 109-A/2018, de 7 de dezembro, os artigos 2.º e 4.º deste diploma estabeleciam o seguinte:
«Artigo 2.º
Objetivos

O FSSSE visa contribuir para a promoção do equilíbrio e sustentabilidade sistémica do setor energético e da política energética nacional, designadamente através:

a) Do financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética;

b) Da redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional (SEN), mediante a receita obtida com a contribuição extraordinária sobre o setor energético prevista no artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro.
[…]
Artigo 4.º
Despesas

1 - Constituem despesas do FSSSE as que resultem de encargos decorrentes da aplicação do presente decreto-lei, designadamente:

a) Encargos necessários ou decorrentes da realização dos seus objetivos, conforme definidos no artigo 2.º;

b) Encargos de liquidação e cobrança da contribuição extraordinária sobre o setor energético incorridos pela AT, correspondentes a uma percentagem de 3 % da receita referida na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior.

2 - As verbas do FSSSE devem ser alocadas de acordo com a seguinte ordem de prioridade:

a) Cobertura de encargos decorrentes da realização do objetivo definido na alínea a) do artigo 2.º no montante correspondente a dois terços da receita referida na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior, até ao limite máximo de EUR 100 000 000,00;

b) Cobertura de encargos decorrentes da realização do objetivo definido na alínea b) do artigo 2.º no montante remanescente.
3 - O montante referido na alínea a) do número anterior inclui o montante referido na alínea b) do n.º 1.»

Esta ordem de prioridades foi, todavia, invertida pelo Decreto-Lei n.º 109-A/2018. Entendendo-se que os critérios de distribuição da receita obtida com a cobrança da CESE «se têm vindo a revelar demasiadamente rígidos, impedindo que, em cada ano, se possam ajustar os valores aos objetivos do FSSSE que se mostrem mais prementes» (v. o Preâmbulo do diploma), foram alterados os n.os 2 e 4 do artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 55/2014, que passou a dispor o seguinte:
«Artigo 4.º
Despesas

1 - Constituem despesas do FSSSE as que resultem de encargos decorrentes da aplicação do presente decreto-lei, designadamente:

a) Encargos necessários ou decorrentes da realização dos seus objetivos, conforme definidos no artigo 2.º;

b) Encargos de liquidação e cobrança da contribuição extraordinária sobre o setor energético incorridos pela AT, correspondentes a uma percentagem de 3 % da receita referida na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior.

2 - As verbas do FSSSE são afetas aos seguintes fins:

a) Cobertura de encargos decorrentes da realização do objetivo definido na alínea a) do artigo 2.º no montante até um terço da receita referida na alínea a) do n.º 1 do artigo anterior;

b) Cobertura de encargos decorrentes da realização do objetivo definido na alínea b) do artigo 2.º no montante remanescente.

3 - O montante referido na alínea a) do número anterior inclui o montante referido na alínea b) do n.º 1.

4 - A percentagem da alocação de verbas prevista na alínea a) do n.º 2 é definida por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da energia.»

Deste modo, ficou o Governo habilitado a decidir, com a mais larga discricionariedade, a percentagem de receita da CESE afeta ao financiamento das políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética, no intervalo de 0% a 33%, visto que a lei não define nenhum limite mínimo nem fixa critérios de decisão. Esta alteração terá permitido que, já no ano de 2018, segundo o Parecer do Tribunal de Contas sobre a Conta Geral do Estado, se tenha observado um «grande aumento (131 M€) registado nas transferências do FSSSE destinadas, na sua totalidade, à REN - Rede Elétrica Nacional, S.A., no âmbito da redução da dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional, proveniente da receita obtida com a contribuição extraordinária sobre o sector energético.» (v. o extrato do Parecer do Tribunal de Contas sobre a Conta Geral do Estado de 2018, publicado no Diário da República, 2.ª Série, n.º 17, Parte D, de 24 de janeiro de 2020, p. 353).

Cabe ainda sublinhar que esta alteração do destino típico das receitas da CESE ocorreu num contexto significativamente diverso daquele em que o tributo foi criado. Com efeito, superados os condicionamentos impostos pela execução do PAEF e pelo procedimento de défice excessivo, findo em 2017, observava-se já em 2018 uma «tendência de diminuição da dívida tarifária do SEN, iniciada em 2015» (v. o Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 109-A/2018). Depois de ter atingido o valor mais alto em 2015 (cinco mil e oitenta milhões de euros), estimava-se que em 2018 este diminuísse para cerca de três mil e setecentos milhões de euros (v. o Comunicado da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos sobre a Proposta de Tarifas e Preços para a Energia Elétrica em 2018, disponível em https://www.erse.pt/media/1r0c1sce/comunicado_propostas-tarifas-ee_2018_vfinal.pdf, p. 4). Era ainda expectável que essa tendência viesse a acentuar-se em resultado das medidas de redução de custos adotadas no âmbito da execução do PAEF a que se fez menção supra, bem como da consignação de outras receitas à redução do défice tarifário do setor energético (v.g., da parcela de receita dos leilões de licenças, a que se refere o artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 38/2013, transferida pelo Fundo Ambiental, criado pelo Decreto-Lei n.º 42-A/2016, de 12 de agosto, assim como das receitas provenientes da cobrança de impostos especiais sobre o consumo, a que se refere o artigo 251.º da Lei do Orçamento do Estado para 2018).

Tudo isto implica, como é bom de ver, uma alteração profunda dos pressupostos de facto e de direito em que repousaram as decisões proferidas sobre a CESE no período entre 2014 e 2017: quanto aos primeiros, consubstanciados nos fatores conjunturais atendidos no Acórdão n.º 7/2019, subsistindo embora em 2018 um considerável volume de dívida tarifária do Sistema Elétrico Nacional, verificava-se uma tendência firme de redução; quanto aos segundos, a ênfase dada nesse aresto, bem como na jurisprudência posterior deste Tribunal, ao financiamento de medidas de regulação, de apoio às empresas e de cariz social e ambiental, relacionadas com a eficiência energética, deixou de corresponder ao destino legal das receitas da CESE, em virtude das alterações introduzidas no regime jurídico do FSSSE.
9. Resta apreciar se a norma que integra o objeto do presente recurso, na medida em que determina a incidência sobre as empresas concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, descaracteriza o tributo ao ponto de o excluir, no que a estes sujeitos diz respeito, do universo das contribuições financeiras.

Segundo jurisprudência constante deste Tribunal, um tributo tem a natureza de contribuição financeira quando, cumulativamente, tiver como pressuposto uma relação bilateral entre uma entidade pública e um grupo homogéneo de sujeitos − que se presumem causadores ou beneficiários de determinadas prestações administrativas −, e quando tiver por finalidade angariar receitas destinadas a compensar os inerentes custos ou benefícios presumivelmente gerados ou aproveitados pelos elementos desse grupo (v. os Acórdãos n.os 539/2015, 7/2019, 344/2019 e 268/2021, bem como a jurisprudência aí citada). Tal como se sintetizou no Acórdão n.º 268/2021:

«14. […] O critério de distinção das contribuições financeiras em relação às demais categorias tributárias assenta, portanto, no tipo de relação jurídica que se estabelece entre o sujeito passivo e os benefícios ou utilidades que para este decorrem do tributo (critério estrutural, pressuposto), com especial destaque para a incidência e a natureza do aproveitamento esperado (geral, difuso, concreto, efetivo ou presumido). A contribuição financeira emerge, deste modo, como um tributo coletivo, fixado em função do grupo, pela utilização ou utilidade singular meramente presumida, numa relação de bilateralidade genérica. O mesmo é dizer que a qualidade de sujeito passivo de uma contribuição financeira não pressupõe a compensação de prestações efetivamente provocadas ou aproveitadas pelo sujeito, sendo a pertença ao grupo identificado pelo legislador condição necessária e suficiente para tal.»

Uma adequada conformação normativa, em especial, das regras que definem a incidência subjetiva, objetiva e as finalidades de um tributo deste tipo deve, pois, tornar apreensível o necessário nexo entre a ação pública e os seus destinatários, que permita afirmar a existência, não apenas de uma homogeneidade de interesses, mas sobretudo de uma responsabilidade de grupo, que justifica que sobre os sujeitos que o integram – e não sobre toda a comunidade – recaia a respetiva ablação patrimonial.

Ora, na sua configuração inicial, a CESE destinava-se, não apenas a acudir à premente resolução do problema do défice tarifário do SEN, mas principalmente a financiar políticas do setor energético de cariz social e ambiental, ações de regulação e medidas relacionadas com a eficiência energética. Trata-se, reconhecidamente, de objetivos muito amplos, assimiláveis às incumbências fundamentais e prioritárias do Estado e de inegável interesse geral (v., em especial, as alíneas d) e e) do artigo 9.º, as alíneas d) e f) do artigo 66.º, e as alíneas a), f) e m) do artigo 81.º da Constituição). De resto, são públicos e exigentes os compromissos assumidos pelo Estado português no plano internacional com vista à consolidação de um mercado energético liberalizado, autossuficiente, seguro, justo e sustentável (no período temporal aqui referido, v., em especial, as Resoluções do Conselho de Ministros n.º 29/2010, que aprovou a Estratégia Nacional para a Energia 2020, e n.º 20/2013, que aprovou o Plano Nacional de Ação para a Eficiência Energética para o período 2013-2016 e o Plano Nacional de Ação para as Energias Renováveis para o período 2013-2020).

Não obstante, a experiência mostra que as políticas e medidas de incentivo e de regulação adotadas pelo Estado com o intuito de realizar tarefas de evidente interesse público podem provocar relevantes custos de que os operadores económicos, integrados em determinados setores económicos, extraem especiais e relevantes benefícios (a respeito de setores, v. os Acórdãos n.os 539/2015 e 268/2021). Assim, não se pode excluir, em abstrato, que neste domínio pudesse ser criado um tributo cuja finalidade fosse, não a de suportar os gastos gerais da comunidade com a adoção de medidas indispensáveis à consolidação de um sistema energético sustentável, mas sim a de obter receitas destinadas a financiar, através de um fundo autónomo, determinadas prestações públicas que, concorrendo para esse fim, presumivelmente geram especiais benefícios para uma classe de operadores económicos integrados no setor energético.

10. No entanto, forçoso é reconhecer que os termos em que, a partir de 2018, se encontravam previstas as prestações públicas que a CESE se destinava a financiar, obstam a que se possa firmar o necessário nexo entre tais prestações e o grupo dos sujeitos passivos que exercem as atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural, a que diz respeito a norma sindicada no presente recurso.

Em primeiro lugar, tornou-se evidente que, por imposição legal, a maior parcela da receita se destinaria, a partir desse momento, a reduzir a dívida tarifária do setor elétrico, sem que sejam claras as razões pelas quais o legislador teve por adequado exigir a operadores não integrados nesse subsetor que participassem nos encargos daí advenientes, quando lhes não deram causa alguma, nem se vê que daí extraiam um especial benefício. Cabe notar que a mera circunstância de todos os operadores integrarem o «setor energético» não é manifestamente suficiente para afirmar que exista uma responsabilidade de grupo do subsetor do gás natural pelos encargos respeitantes a um problema específico do subsetor da energia elétrica. Embora seguramente exista alguma homogeneidade de interesses e interdependência entre os vários operadores do mercado energético, são diferentes as condições em que estes operam e bem assim os problemas de sustentabilidade que a propósito de cada um se colocam. Tanto assim que o próprio regime jurídico da CESE, desde as alterações introduzidas em 2015, passou a afetar ao SNGN uma parte da receita do tributo − a que é exigida aos comercializadores do SNGN, titulares de contratos de aprovisionamento de longo prazo −, com o intuito de prevenir os «desequilíbrios sistémicos» próprios deste subsetor.

O que daqui se depreende é que não há motivo algum para fazer correr por conta das empresas concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural encargos associados à redução da dívida tarifária do setor elétrico. Nem há razão nenhuma para supor que a prevenção dos riscos associados à instabilidade tarifária no setor elétrico aproveita em especial medida aos operadores dos demais subsetores − não se podendo admitir como contraprova a suposição de que um tal benefício advém, como que obliquamente, da circunstância de boa parte das empresas credoras da dívida tarifária serem grandes consumidoras de gás natural. Acresce que o regime não define critérios que imponham que uma parte relevante da receita da CESE se mantenha afeta ao financiamento de medidas tendentes a favorecer os interesses de todos os operadores económicos incluídos no seu âmbito de incidência subjetiva (e não isentos). Pelo contrário, na prática, é confiada ao Governo a possibilidade de, em função dos «objetivos que se revelem mais prementes», afetar toda a receita da CESE à redução da dívida tarifária do setor elétrico – ou seja, ao financiamento de prestações públicas de que os operadores do setor do gás natural não podem, como se viu, presumir-se causadores ou beneficiários.

Por fim, ainda que um terço da receita da CESE tivesse sido consignado ao «financiamento de políticas do setor energético de cariz social e ambiental, relacionadas com medidas de eficiência energética», a circunstância de as tarefas que o tributo se destina a financiar não terem sido objeto de densificação mínima, não permite sequer apreender se e em que medida cada um dos subsetores em causa é visado pelas medidas a adotar pelo FSSSE. De facto, mesmo em tais condições – estritamente hipotéticas −, não se poderia presumir que um terço da receita da CESE tivesse sido destinado a medidas de que seriam especiais beneficiários os operadores do subsetor do gás natural, de modo a garantir um certo equilíbrio na participação pelos subgrupos de operadores dos benefícios presumivelmente proporcionados pelo FSSSE.

A jurisprudência constitucional tem enfatizado que, em matéria de contribuições financeiras, o legislador tem o ónus de delimitar, com precisão, a base de incidência subjetiva do tributo. A este respeito, afirmou-se no Acórdão n.º 344/2019 o seguinte:

«Nesta última espécie de tributos – contribuições – o princípio da equivalência vincula o legislador a definir o universo de sujeitos passivos que se presume provocar ou aproveitar a prestação administrativa. Não podendo dar-se por seguro que cada um dos concretos sujeitos passivos provoca ou aproveita a prestação pública – como ocorre nas taxas – exige-se que o legislador isole os grupos de pessoas às quais estejam presumivelmente associados custos e benefícios comuns. Assim, o princípio da equivalência projeta-se na estruturação subjetiva do tributo através do recorte de um grupo de pessoas que tem interesses e qualidades em comum, que tem responsabilidades na concretização dos objetivos a que o tributo se dirige, e que a prestação tributária seja empregue no interesse dos membros grupo. A propósito destes “requisitos de legitimação” dos tributos de estrutura bilateral grupal refere Sérgio Vasques que “só a provocação de custos comuns e o aproveitamento de benefícios comuns garantem a homogeneidade capaz de legitimar a sobretributação de um qualquer grupo social ou económico no confronto com o todo da coletividade, mostrando-se discriminatória uma contribuição cobrada na sua falta” (O Princípio da Equivalência como Critério da Igualdade Tributária, Almedina, pág. 528).»

Ora, a partir de 2018, o legislador reduziu os objetivos a que a CESE se dirige em termos tais, que deixou de ser possível afirmar que as concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural podem ser consideradas responsáveis pela sua concretização, e muito menos presumíveis causadoras ou beneficiárias das prestações públicas que ao FSSSE incumbe providenciar. Resta, pois, concluir que a norma que integra o objeto do presente recurso viola o princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição
(…)
II. Decisão

Pelo exposto, decide-se:

a) Julgar inconstitucional, por violação do artigo 13.º da Constituição, o artigo 2.º, alínea d), do regime jurídico da CESE (aprovado pelo artigo 228.º da Lei n.º 83-C/2013, de 31 de dezembro, cuja vigência foi prorrogada para o ano de 2018 pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro), na parte em que determina que o tributo incide sobre o valor dos elementos do ativo a que se refere o n.º 1 do artigo 3.º do mesmo regime, da titularidade das pessoas coletivas que integram o setor energético nacional, com domicílio fiscal ou com sede, direção efetiva ou estabelecimento estável em território português, que, em 1 de janeiro de 2018, sejam concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural (nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 140/2006, de 26 de julho, na sua redação atual);

b) Conceder provimento ao recurso, determinando-se a reforma da decisão recorrida em conformidade com o presente juízo de inconstitucionalidade.».

Com os fundamentos expostos, reforma-se o acórdão deste TCAS de 10/03/2022, sendo de conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, julgar a impugnação procedente e anular os actos tributários impugnados de liquidação de CESE referente ao ano de 2018 no montante de 4.164.461,44€ e respectivos juros compensatórios, no montante de 6.649,94€, ao que se provirá na parte dispositiva do acórdão.
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A norma constante do n.º 7 do artigo 6º do Regulamento das Custas Processuais dá ao juiz a possibilidade de dispensar, no todo ou em parte, o pagamento do remanescente da taxa de justiça devida a final quando o valor da causa exceda o valor de € 275.000, desde que tal dispensa se justifique em função da complexidade da causa, da sua utilidade económica e da conduta processual das partes, sob a ponderação dos princípios da proporcionalidade e da igualdade. E a dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça poderá ser aplicada oficiosamente ou a requerimento da parte interessada.

Ponderados os elementos atendíveis, nomeadamente que o valor da causa é de EUR.4.171.131,38 mas também considerando que as questões colocadas foram decididas por remissão para jurisprudência constitucional, entende-se ajustado e proporcional conceder às partes dispensa total do remanescente de taxa de justiça devida no recurso.

IV. DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida, julgar a impugnação procedente e anular os actos de autoliquidação de CESE e juros compensatórios impugnados.

Custas a cargo da Recorrida Fazenda Pública, que não são devidas no recurso por não ter contra-alegado, sem prejuízo da concedida dispensa total de pagamento do remanescente de taxa de justiça devida no recurso.


Lisboa, 19 de Dezembro de 2023


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Vital Lopes



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Jorge Cortês



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Luísa Soares