Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2083/20.8BELSB
Secção:CA
Data do Acordão:06/02/2021
Relator:ANA CELESTE CARVALHO
Descritores:CONTENCIOSO PRÉ-CONTRATUAL;
DEVER DE ADJUDICAÇÃO;
ATO DE NÃO ADJUDICAÇÃO;
PANDEMIA PELA COVID 19;
CIRCUNSTÂNCIAS SUPERVENIENTES;
PERDA DO INTERESSE EM CONTRATAR. 
Sumário:I. Aferido o respeito pelas exigências legais colocadas ao impugnante do julgamento da matéria de facto, a relevância dos factos alegados e sua comprovação por meios de prova, será de aditar factos ao julgamento da matéria de facto.

II. Comprovada a situação de pandemia e a declaração do estado de emergência em momento posterior à decisão de contratar e de apresentação de propostas pelos concorrentes, verificam-se circunstâncias supervenientes em relação à decisão de contratar.

III. Estabelece o artigo 79.º, n.º 1, d) do CCP, que não há lugar a adjudicação, extinguindo-se o procedimento, quando circunstâncias supervenientes relativas aos pressupostos da decisão de contratar o justifiquem.

IV. O artigo 76º, nº 1 do CCP, além de estabelecer o dever de adjudicação, cuidou de prever os termos em que a decisão deve ser tomada e ainda as consequências do seu incumprimento.

V. Salvo a ocorrência de circunstâncias que determinam a não adjudicação, previstas nas várias alíneas do nº 1 do artigo 79º do CCP, a entidade adjudicante tem o dever legal de adotar a decisão final do procedimento pré-contratual num determinado prazo.

VI. Não existe um poder discricionário em torno da decisão de adjudicação, sendo de recusar que a entidade adjudicante disponha da liberdade de adjudicar ou de não adjudicar, antes estando em causa uma decisão vinculada, em que existe o dever de adjudicação, salvo a verificação de um dos eventos típicos, previstos na lei de forma expressa, que legitimam a não adjudicação.

VII. Estando em causa a previsão legal das circunstâncias em que a entidade adjudicante pode licitamente não adjudicar, a decisão de não adjudicação não deixa de estar sujeita ao princípio da legalidade e ao escrutínio do juiz na verificação dos respetivos pressupostos factuais e de Direito.

VIII. Tal decisão, como ato administrativo que é, está sujeita ao dever de fundamentação, na dupla perspetiva de fundamentação formal (enquanto vício de forma) e fundamentação substantiva (de controle do eventual erro grosseiro do mérito da decisão de não adjudicação cometido) para além da admissibilidade, como regra, da sindicabilidade dos conceitos jurídicos indeterminados.

IX. Sendo o estado de pandemia no país e a declaração de estado de emergência circunstâncias novas e supervenientes à decisão de contratar, que não foram previstas pela entidade adjudicante, admitindo que fossem mesmo imprevisíveis, não resulta que as mesmas, apesar de ocorrerem, puseram em causa a razão de ser ou os pressupostos da decisão de contratar.

X. Admitindo a superveniência dos factos invocados pela entidade adjudicante como justificando a não adjudicação, já não se mostram demonstrados factos donde resultem a perda do interesse em contratar.

XI. A decisão de não adjudicação fundada na al. d) do n.º 1 do artigo 79.º do CCP configura uma derrogação ao dever de adjudicar consagrado no artigo 76.º. do CCP e sendo convocada a ocorrência de circunstâncias supervenientes e imprevistas para não adjudicar, não pode a entidade adjudicante refugiar-se numa margem de discricionariedade para, sem uma justificação devidamente alicerçada no plano factual, pretender furtar-se ao cumprimento do dever imposto pelo artigo 76.º do CCP.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – RELATÓRIO

C………, Lda., inconformada, veio interpor recurso jurisdicional da decisão do Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, datada de 02/02/2021, que no âmbito da ação de contencioso pré-contratual instaurada contra a SPMS, EPE – Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E.P.E. e as Contrainteressadas, I......, Lda. e A………., Lda., todas melhor identificadas em juízo, julgou improcedente o pedido de anulação da decisão de não adjudicação e consequente revogação da decisão de contratar e julgou extinta a instância, por impossibilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277.º, alínea e) do CPC, quanto ao pedido de condenação à prática do ato de adjudicação.


*

Formula a Autora, ora Recorrente, nas respetivas alegações de recurso, as seguintes conclusões que se reproduzem:

A) Da impugnação da matéria de facto

1. O Tribunal a quo não considerou, para a relevância da decisão a proferir, todos os factos pertinentes, com base na posição assumida pelas partes e na prova documental junta aos autos.

2. Deveria ter sido dado como provado que “À data em que foi lançado o procedimento em questão, já a doença respiratória por infeção de Coronavírus (2019-NCOV), se tinha eclodido e desenvolvido por vários países do mundo, inclusivamente por países geograficamente próximos de Portugal.” – cf. artigo 21º do requerimento de alteração da instância da Recorrente.

3. O aludido facto, expressamente alegado pela Recorrente no artigo 21º do requerimento de alteração da instância, foi admitido por acordo, é um facto notório, e é manifestamente relevante para a decisão da causa, dado que demonstra a ausência da superveniência do evento de alteração de circunstâncias invocado pela Recorrida.

4. Deveria ainda ter sido dado como provado o seguinte: “No decurso do ano de 2020, e após ter lançado o concurso público em apreço, a Ré promoveu e transmitiu em livestreaming, pelo menos os seguintes eventos:

- Em 11/02/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento Webinar Comunicação Digital | Novas formas de comunicar na Administração Pública, com o objetivo de promover e disseminar o conhecimento, destacando as oportunidades decorrentes da transformação digital na saúde, em que participou como orador P..... da TVI, e como moderadores D..... da SPMS e R..... da APAH;

- Em 07/04/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento do ciclo de Webinars Transformação Digital na Saúde, dedicado ao tema: A inovação não- clínica na saúde: gestão de tecnologias inovadoras, em que participou como orador M..... da Faculdade Engenharia da Universidade do Porto, e como moderadores J..... da SPMS, e A..... da APAH;

- Em 13/05/2020, pelas 17:00 horas, a Ré promoveu o evento Teleconsulta em tempo real;

- Em 20/05/2020, pelas 9h:45m, a Ré promoveu o evento: Sessão de Informação SICC;

- Em 09/06/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento do ciclo de Webinars Transformação Digital na Saúde, dedicado ao tema: Lean Agile Hospitalar, em que participou como orador C..... da Winning, e como moderadores B..... da SPMS, e Z..... da APAH;

- Em 17/06/2020, pelas 17:00 horas, a Ré promoveu um novo evento Webinar sobre a RSE Live, dedicado ao tema: Teleconsulta em tempo real;

- Em 07/07/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento do ciclo de Webinars Transformação Digital na Saúde, dedicado ao tema:

Interoperabilidade, em que participou como orador V..... do Centro Hospitalar Trás-os-Montes e Alto Douro [CHTMAD], e como moderadores R..... da SPMS, e A..... da APAH;

- Em 05/08/2020, pelas 17:00 horas, a Ré promoveu o evento Webinar sobre a PEM – Prescrição Eletrónica Médica | Versão 2.4.0., em que participaram como oradores C..... da SPMS e M..... da SPMS, e como moderador D..... da SPMS;

- Em 15/09/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento do ciclo de Webinars Transformação Digital na Saúde, dedicado ao tema: A Qualidade dos Dados no Futuro Digital, no qual participou como oradora C..... da H..... IT, e como moderadores R..... da SPMS e J..... da APAH;

- Em 13/10/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento do ciclo de Webinars Transformação Digital na Saúde, dedicado ao tema: Desafios da Gestão dos STI Hospitalar, o qual contou como oradora A....., Diretora do Serviços de Sistemas de Informação do Hospital Prof. Dr. Fernando Fonseca, EPE, e como moderadores A..... da SPMS, e C..... APAH;

- Em 29/10/2020, pelas 10:00 horas, a Ré promoveu o evento Sessão de Informação SICC | 2º Webinar;

- Em 30/10/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento Webinar | Códigos STAYAWAY COVID e Declarações de Isolamento Profilático;

- Em 04/11/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento Webinar | Registo Clínico de Violência em adultos;

- Em 10/11/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento do ciclo de Webinars Transformação Digital na Saúde”, dedicado ao tema: “Estratégia do Digital na Saúde, o qual contou como orador R...., Diretor de Sistemas de Informação do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, e como moderadores A.... da SPMS, e Z..... da APAH;

- Em 15/12/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento do ciclo de Webinars Transformação Digital na Saúde, dedicado ao tema: HIMSS 7 * Case Study LUSÍADAS SAÚDE, o qual contou como orador L....., CIO/CTO da Lusíadas Saúde, e como moderadores D..... da SPMS, e T..... da APAH.”.

5. Os aludidos factos, expressamente alegados no artigo 44º, als. i) a xv) do requerimento de alteração da instância da Recorrente, foram admitidos por acordo, constam da prova documental junta pela Autora, no seu requerimento de alteração da instância (cf. doc. nº 3 do aludido articulado da Recorrente), e são manifestamente relevantes para a boa decisão da causa, atendendo a que demonstram, inequivocamente, a inexistência de perda do interesse em contratar os serviços de transmissão em livestreaming, por parte da Recorrida, apesar do evento de alteração de circunstâncias invocado.

6. Deveria, igualmente, constar da matéria de facto dada como provada na sentença do Tribunal a quo, o seguinte facto: “Por despacho da Sra. Vogal Executiva do Conselho de Administração da Ré, de 13 de julho de 2020, exarado sobre a informação nº 2020/DCBST/0790, da Direção de Compras de Bens e Serviços Transversais, foi autorizado o início do procedimento de aquisição de serviços para garantir a realização, gestão e organização de eventos, ao abrigo dos Lotes 11 e 15 do Acordo Quadro “Serviços de Produção de Eventos e Serviços de Catering na Área da Saúde” (AQ nº UAQT2017011), em vigor à data em questão na SPMS, EPE, para a Direção Geral da Saúde, bem como aprovadas as peças procedimentais e o júri de condução do procedimento na formação do contrato”.

7. Deveria também ter sido dado como provado que: “Na sequência do referido anúncio, e por despacho da Sra. Vogal Executiva do Conselho de Administração da Ré, de 12 de agosto de 2020, exarado sobre a informação nº 2020/DCBST/0846, da Direção de Compras de Bens e Serviços Transversais, foi deliberada a adjudicação de serviços para garantir a realização, gestão e organização de eventos, ao abrigo dos Lotes 11 e 15 do Acordo Quadro “Serviços de Produção de Eventos e Serviços de Catering na Área da Saúde” (AQ nº UAQT2017011), em vigor na SPMS, EPE, para a Direção Geral da Saúde, à empresa C....., Lda., com sede na Avenida…….., Lote 15, 4º C, 1950 – 375 Lisboa, pelo preço contratual de €101.100,00, acrescido à taxa legal em vigor.”

8. O tribunal a quo, deveria, igualmente, ter dado como provado o seguinte facto: “Foi assim celebrado o contrato ao abrigo do acordo quadro nº UAQT2017011, para a prestação de serviços de produção de eventos e serviços de catering na área da saúde.

9. Deveria constar da matéria de facto dada como provada, o seguinte facto: “O contrato em questão, tinha por objeto a aquisição de serviços de gravação e transmissão audiovisual e de serviços de reportagem fotográfica, tal como resulta da cláusula 1ª do Anexo IV – Especificações técnicas.”

10. Por último deveria, igualmente, ter sido dado como provado que: “Decorre da cláusula 7ª do Anexo IV – Especificações técnicas do aludido contrato, o seguinte: os serviços de gravação e transmissão audiovisual incluem captação de conteúdo audiovisual e transmissão direto (Livestreaming) de conferências e palestras.”

11. Os factos constantes dos números 5 a 10 das presentes conclusões, foram expressamente alegados pela Recorrente nos artigos 50º, 51º, 52º, 53º e 55º do seu requerimento de alteração da instância, encontra-se admitidos por acordo, constam da prova documental junta pela Autora, no seu requerimento de alteração da instância (cf. documento 4, junto no aludido articulado pela Recorrente), e têm manifesto interesse para a boa decisão da causa, na medida em que demonstram que a Recorrida manteve interesse em contratar serviços de transmissão em livestreaming, apesar do evento de alteração de circunstâncias invocado.

12. Neste conspecto, deverá o Tribunal ad quem, aditar à matéria de facto dada como provada, a factualidade alegada pela Recorrente nos artigos 21º, 44º, als. i) a xv), 50º, 51º, 52º, 54º, e 55º do seu requerimento de alteração da instância.

B) Da impugnação da matéria de direito

13. A decisão do Tribunal a quo, violou o disposto nos artigos 76º, nº 1, 79º, nº 1, al. d), ambos do CCP, e artigos 20º e 266º, nº 2 da CRP, e 3º do CPA.

14. Destarte, entendeu o Tribunal a quo, erradamente, que as circunstâncias invocadas pela Recorrida, na respetiva decisão de não adjudicação de 03 de dezembro de 2020, permitem a esta de forma lícita, revogar a respetiva decisão de contratar no procedimento em apreço, nos termos do disposto na al. d) do nº 1 do artigo 79º do CCP.

15. Conclui o tribunal a quo, que a eclosão e o desenvolvimento da pandemia Covid 19, constitui um evento superveniente à decisão de contratar, apesar de à data em que foi tomada a referida decisão, já a situação pandémica se tinha alastrado por todo o mundo, inclusivamente para países geograficamente próximos de Portugal.

16. Por outro lado, mais grave ainda, entendeu o Tribunal a quo, que a decisão de não adjudicação tomada pela Recorrida, é lícita ao abrigo do disposto na al. d) do nº 1 do artigo 79º do CCP, apesar de esta ter continuado a organizar e a promover eventos que foram transmitidos em livestreaming ao longo do ano de 2020, pelo que continuou a necessitar dos serviços objeto do procedimento revogado, lançando inclusivamente outros procedimentos de contratação pública com o mesmo objeto.

17. Quando a este último aspeto, é mister salientar que o Tribunal a quo, entendeu que não são atendíveis na presente ação os eventos organizados pela Recorrida durante o ano de 2020, que foram alvo de transmissões em livestreaming, bem como outros procedimentos que terão sido lançados por esta, com o mesmo objeto, na medida em que têm subjacentes pressupostos próprios da margem livre de decisão da Recorrida, e do seu poder discricionário de atuação na prossecução do interesse público.

18. Com o devido respeito, cumpria ao tribunal a quo, tomar em consideração, na respetiva decisão, os argumentos suscitados pela Recorrente, referentes aos eventos transmitidos em livestreaming que a Recorrida continuou a promover ao longo do ano de 2020, bem como ao procedimento, posteriormente lançado por esta que tinha por objeto, precisamente a transmissão de eventos em livestreaming, na medida em que tais argumentos demonstram inequivocamente que a Recorrida não perdeu o interesse na decisão de contratar, muito pelo contrário.

19. Com efeito, ao contrário do que sustenta o Tribunal a quo, a possibilidade de a entidade adjudicante pôr fim ao procedimento sem a adjudicação de qualquer proposta não pode estar sujeita a meros juízos de oportunidade, nem tão pouco à margem de livre apreciação da entidade adjudicante.

20. A apreciação do impacto que um evento de alteração de circunstâncias possa ter sobre o interesse público depende de uma avaliação estritamente vinculada e, como tal, sindicável pelo Tribunal.

21. Não se pode olvidar, que é aqui convocado o dever de adjudicação previsto no artigo 76º nº 1 do CCP.

22. O Tribunal a quo, impediu que a Recorrente sindicasse a decisão tomada pela entidade adjudicante no procedimento em apreço, ao não considerar nenhum dos argumentos apresentados por aquela que demonstram a inexistência de pressupostos de facto e de direito para a Recorrida revogar o procedimento sem adjudicar qualquer proposta, nos termos do disposto na al. d) do nº 1 do artigo 79º do CCP, especialmente no que toca à inexistência de perda do interesse em contratar por parte da Recorrida.

23. Cumpre, nestes termos, ao Tribunal ad quem, anular a decisão proferida, e substituí-la por uma nova que avalie a decisão de não adjudicação tomada pela entidade adjudicante, analisando se a mesma cumpre todos os pressupostos de facto e de direito, à luz da al. d) do nº 1 do artigo 79º do CCP.

24. Ora, compulsada a decisão de não adjudicação proferida pela Recorrida, forçoso se torna concluir que o evento de alteração de circunstâncias invocado, não é superveniente à decisão de contratar, e por outro lado, não ocorreu perda do interesse em contratar por parte da Recorrida.

25. Tal como é sabido ocorre, uma alteração de circunstâncias quando um evento altera pelo menos um dos pressupostos de facto ou de direito em que decisor fundou a sua convicção em termos tais que, se essa alteração tivesse ocorrido antes da decisão de contratar, i) esta não teria sido de todo praticada; ou ii) teria sido praticada uma decisão de contratar de conteúdo distinto, o que é verificável pela circunstância de impor a mudança do tipo ou do objeto do contrato ou a mudança de aspetos relevantes do clausulado contratual que, necessariamente, constam do caderno de encargos (artigo 42º, nº 1, do CCP).

26. No caso em apreço, o evento invocado pela Recorrida para fundamentar o recurso à alteração de circunstâncias não é superveniente à decisão de contratar, nem em termos objetivos, nem tão pouco em termos subjetivos.

27. Tal como são factos notórios e do conhecimento geral, à data em que foi lançado o procedimento em questão, já a doença respiratória por infeção de Coronavírus, se tinha eclodido e desenvolvido por vários países do mundo, inclusivamente por países geograficamente próximos de Portugal.

28. Nesta senda, forçoso se torna concluir que à data em que foi proferida a decisão de contratar já vigorava, a nível mundial, uma situação de gravidade por força do surto da doença Covid 19, ou pelo menos seria expectável à data em questão, que a situação atingisse proporções de maior gravidade no território português.

29. Termos em que, deverá ser alterada a decisão do Tribunal a quo, anulando- se a decisão de não adjudicação proferida pela Recorrida, e condenando-se esta na prática do ato de adjudicação devido.

30. Sem prescindir, e ainda que se entenda que o evento de alteração de circunstâncias invocado pela Recorrida é superveniente à decisão de contratar, o que desde já não se concede e só por mero dever de patrocínio a questão se coloca, sempre se dirá que no caso em apreço não ocorreu perda do interesse em contratar por parte da Recorrida.

31. Para justificar a não adjudicação do procedimento, nos termos do disposto na al. d) do nº 1 do artigo 79º do CCP, o decisor deve realizar uma apreciação casuística para verificar se algum evento modificou os elementos de facto e de direito em que inicialmente se apoiou quando decidiu recorrer ao mercado.

32. É essa alteração objetiva, e não uma mera alteração subjetiva da sua ponderação – por exemplo, uma alteração de prioridades políticas em resultado de uma mudança de orientação política ou partidária – que permite à entidade adjudicante interromper o procedimento.

33. No caso em apreço, veio a Recorrida justificar o recurso à causa de não adjudicação prevista na al. d) do nº 1 do artigo 79º do CCP, com o seguinte fundamento: “é evidente que a realidade existente à data de decisão de contratar se alterou por completo, por razões alheias e imprevisíveis à Entidade Adjudicante, afetando os pressupostos da decisão de contratar, na medida em que, na ausência de eventos, a necessidade que se visava satisfazer com a celebração do contrato, consubstanciada na sua transmissão em livestreaming, pura e simplesmente, desapareceu.”

34. Em primeiro lugar, é mister referir que não resultam da decisão de não adjudicação quais os eventos que em concreto foram cancelados pela Ré, por força da eclosão e desenvolvimento da pandemia de Covid 19, e que consequentemente fizeram desaparecer a necessidade de a Recorrida contratar os serviços de livestreaming em apreço.

35. A decisão da Recorrida de não adjudicação, alegadamente motivada pelo cancelamento/desistência de eventos, por força da pandemia Covid 19, é manifestamente conclusiva e carece de fundamentação, no que toca à especificação e concretização dos eventos que a Recorrida alegadamente cancelou/desistiu, e para os quais necessitou, outrora, de adquirir serviços em livestreaming.

36. Não é possível, neste conspecto, avaliar se a Recorrida perdeu de facto o interesse em contratar em virtude da eclosão e desenvolvimento da pandemia Covid 19, na medida em que a mesma não especifica na respetiva decisão de não adjudicação, quais os eventos que em concreto foram cancelados pela Recorrida, de forma à Recorrente e ao Tribunal poderem fiscalizar se de facto tais eventos foram mesmo cancelados pela Recorrida e se os serviços de transmissão em livestreaming de tais eventos não foram adjudicados a outras entidades, por forma a concluir-se pela perda do interesse em contratar por parte da entidade adjudicante.

37. Ademais, e conforme invocado pela Recorrente na factualidade alegada no seu requerimento de alteração de instância, bem como pela prova documental junta aos autos, a pandemia Covid 19 não impediu a promoção e realização de eventos por parte da Recorrida, eventos esses que foram transmitidos em livestreaming, ao longo do ano de 2020, e que ocorreram após a decisão de contratar e durante a situação pandémica provocada pela Covid 19.

38. Destarte, durante o ano de 2020, mormente entre 11-02-2020 e 15-12-2020, a Recorrida promoveu a realização de pelo menos 15 eventos, que foram transmitidos em livestreaming.

39. Por outro lado, a Recorrida lançou um novo procedimento em 13 de julho de 2020, muito após a data de decisão de contratar do concurso em apreço, e em plena pandemia de Covid 19, com vista à aquisição de serviços de captação de conteúdo audiovisual e transmissão em direto (Livestreaming) de conferências e palestras, ao abrigo do Lote 11 do Acordo Quadro “Serviços de Produção de Eventos e Serviços de Catering na Área da Saúde” (AQ nº UAQT2017011), em vigor à data em questão na SPMS, EPE, para a Direção Geral da Saúde.

40. Pelo que, os 15 eventos promovidos pela Recorrida ao longo do ano de 2020, que foram alvo de transmissões em livestreaming, bem como o procedimento lançado pela Recorrida em 13 de julho de 2020, com vista à aquisição de serviços de captação de conteúdo audiovisual e transmissão em direto (Livestreaming) de conferências e palestras, ao abrigo do Lote 11 do Acordo Quadro “Serviços de Produção de Eventos e Serviços de Catering na Área da Saúde” (AQ nº UAQT2017011), em vigor à data em questão na SPMS, EPE, para a Direção Geral da Saúde, demonstram claramente que Recorrida não perdeu o interesse em contratar.

41. Nada na factualidade trazida ao processo sugere, nestes termos, que o interesse público que presidiu à decisão de contratar tenha deixado de carecer das prestações que poderia obter com a execução do contrato.

42. Por último, a própria atuação procedimental da Recorrida, demonstra ao abrigo das regras de experiência comum, que esta não perdeu o interesse em contratar, por força da pandemia Covid 19.

43. Com efeito, a Recorrida emitiu a decisão de não adjudicação, volvidos sensivelmente 11 meses após a decisão de contratar.

44. A Recorrida, por outro lado, profere a decisão de não adjudicação, depois de ultrapassado o prazo de obrigação de manutenção de propostas, e consequentemente após incumprir o respetivo dever de adjudicação, quando instada pela Recorrente, judicialmente, a praticar o ato administrativo devido.

45. Ademais, o relatório final onde foi proposto ao Conselho de Administração da Recorrida, a adjudicação da proposta da Recorrente, foi elaborado e notificado pelo júri do procedimento, a todos os concorrentes em 13 de março de 2020, precisamente dois dias após a declaração da Organização Mundial de Saúde, da doença de Covid 19 como pandemia.

46. No limite sempre se dirá que a ter existido alguma alteração superveniente das circunstâncias em que assentaram os pressupostos da decisão de contratar, decorrente da eclosão e desenvolvimento da pandemia da Covid 19, a mesma já teria ocorrido em 13 de março de 2020, data em que a Recorrida notificou os concorrentes do Relatório Final.

47. Neste conspecto, é insofismável que se a eclosão e desenvolvimento da pandemia Covid 19 constituísse um evento idóneo a provocar uma alteração superveniente das circunstâncias em que assentaram os pressupostos da decisão de contratar, a Recorrida em 13 de março de 2020, ao invés de ter notificado todos os concorrentes do Relatório Final, e da correspondente proposta de adjudicação do contrato à Recorrente, teria certamente emitido a correspondente decisão de não adjudicação.

48. Destarte, a 13 de março de 2020, por força da declaração emitida pela Organização Mundial de Saúde, a Recorrida sabia ou pelo menos tinha a obrigação de saber que todos os eventos que tinha planeado para o ano de 2020, poderiam ser cancelados por força da eclosão e desenvolvimento da pandemia de Covid 19.

49. Apenas se compreende que a Recorrida só tenha proferido a decisão de não adjudicação do procedimento em 03 de dezembro de 2020, isto depois de incumprir o seu dever de adjudicação, e de instada, judicialmente, a praticar o ato de adjudicação devido, e não a 13 de março de 2020, na medida em que a eclosão e o desenvolvimento da pandemia de Covid 19, não provocou qualquer alteração superveniente das circunstâncias em que assentaram os pressupostos da decisão de contratar.

50. Termos em que, deverá o Tribunal ad quem, revogar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, anulando a decisão de não adjudicação praticada pela Recorrida a 03 de dezembro de 2020, na medida em que não existiu perda do interesse em contratar por parte da mesma, apesar do evento de alteração de circunstâncias invocado.”.

Pede o provimento do recurso, a revogação da sentença, substituindo-a por outra que anule a decisão de não adjudicação proferida pela Recorrida, e condene a mesma à prática do adjudicação devido no procedimento.


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A Entidade Demandada, aqui Recorrida, notificada da interposição do recurso, apresentou contra-alegações, mas sem formular conclusões.

Reitera as posições anteriormente assumidas, respeitantes à legalidade do ato de não adjudicação.


*

O Ministério Público junto deste Tribunal, notificado nos termos e para efeitos do disposto no artigo 146.º do CPTA, não emitiu parecer.

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O processo vai, sem vistos dos Exmos. Juízes-Adjuntos, à Conferência para julgamento, por se tratar de um processo urgente.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO - QUESTÕES A APRECIAR

Cumpre apreciar e decidir as questões colocadaa pela Recorrente, sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1, 2 e 3, todos do CPC ex vi artigo 140.º do CPTA, não sendo lícito ao Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso.

As questões suscitadas resumem-se, em suma, às seguintes:

1. Erro de julgamento de facto, devendo ser aditada matéria de facto relevante;

2. Erro de julgamento de direito, em violação dos artigos 76.º, n.º 1 e 79.º, n.º 1, d), do CCP, artigos 20.º e 266.º, n.º 2 da CRP e artigo 3.º do CPA, quanto à alteração das circunstâncias ser superveniente à decisão de contratar e quanto à perda do interesse na decisão de contratar.

III. FUNDAMENTOS

DE FACTO

O Tribunal a quo deu como assentes os seguintes factos:

A) Em 28/01/2020, foi publicado no Diário da República nº 19, II Série, o anúncio do procedimento nº 842/2020, relativo ao concurso público sem publicidade internacional para “Aquisição de serviços de transmissão em livestreaming para eventos diversos”.

B) Dou aqui por integralmente reproduzido o Caderno de Encargos.

C) A Autora e as contrainteressadas apresentaram proposta ao concurso identificado na alínea A) supra.

D) Em 13/03/2020, a Autora e os restantes concorrentes foram notificados do relatório final, que dou aqui por integralmente reproduzido.

E) Em 23/10/2020, a Autora remeteu à ED. uma carta, registada com aviso de receção, que dou aqui por integralmente reproduzida.

F) A Autora intentou a presente ação em 16/11/2000 (cfr. resulta do SITAF).

G) Em 11/12/2020, a Autora foi notificada da deliberação do Conselho de Administração da ED., de 03/12/2020, do seguinte teor “Determina-se a não adjudicação nos termos e fundamentos propostos, revogando-se, em consequência, a decisão de contratar tomada em 23/01/2020.” e com a seguinte fundamentação «


«imagem no original»


DE DIREITO

Importa, agora, entrar na análise dos fundamentos do recurso jurisdicional, segundo a sua antecedente enunciação.

1. Erro de julgamento de facto, devendo ser aditada matéria de facto relevante

Nos termos invocados no presente recurso, entende a Recorrente que a sentença recorrida incorre em erro de julgamento de facto, omitindo factos relevantes para a decisão da causa, os quais, por isso, devem ser aditados.

Alega que deveria ser dado como facto provado, por ser facto notório, que à data em que foi lançado o procedimento já a doença Covid 19 tinha eclodido e desenvolvido em vários países do mundo, inclusivamente em países geograficamente próximos de Portugal, o qual foi alegado pela Recorrente no artigo 21º do requerimento de alteração da instância e foi admitido por acordo, sendo pertinente à discussão da questão controvertida acerca da não superveniência do evento de alteração de circunstâncias invocado pela Recorrida, face ao momento em que foi tomada a respetiva decisão de contratar.

Mais sustenta que deveriam ser dados como provados os vários eventos que foram promovidos e transmitidos em livestreaming no decurso do ano de 2020, os quais identifica no presente recurso e que alega terem sido expressamente alegados no artigo 44º, alíneas i) a xv) do requerimento de alteração da instância da Recorrente, os quais também eles foram admitidos por acordo e constam da prova documental junta pela Recorrente, no seu requerimento de alteração da instância (documento nº 3, junto pela Recorrente no aludido articulado), sendo relevantes para a questão controvertida acerca da inexistência de perda do interesse em contratar por parte da Recorrida.

Entende ainda que deveria ser aditada à matéria de facto o despacho da Vogal Executiva do Conselho de Administração da Ré, de 13 de julho de 2020, exarado sobre a informação n.º 2020/DCBST/0790, da Direção de Compras de Bens e Serviços Transversais, de autorização do início do procedimento de aquisição de serviços para garantir a realização, gestão e organização de eventos, ao abrigo dos Lotes 11 e 15 do Acordo Quadro “Serviços de Produção de Eventos e Serviços de Catering na Área da Saúde” (AQ nº UAQT2017011), em vigor à data em questão na SPMS, EPE, para a Direção Geral da Saúde e que, em sequência, por despacho da Sra. Vogal Executiva do Conselho de Administração da Ré, de 12 de agosto de 2020, exarado sobre a informação nº 2020/DCBST/0846, da Direção de Compras de Bens e Serviços Transversais, foi deliberada a adjudicação de serviços para garantir a realização, gestão e organização de eventos, ao abrigo dos Lotes 11 e 15 do Acordo Quadro “Serviços de Produção de Eventos e Serviços de Catering na Área da Saúde” (AQ nº UAQT2017011), em vigor na SPMS, EPE, para a Direção Geral da Saúde, à empresa C....., Lda., pelo preço contratual de €101.100,00, acrescido à taxa legal em vigor, seguida da celebração do contrato, o qual tem por objeto a aquisição de serviços de gravação e transmissão audiovisual e de serviços de reportagem fotográfica, tal como resulta da cláusula 1ª do Anexo IV – Especificações técnicas.

E entende ainda que deveria dar-se como provado que decorre da cláusula 7ª do Anexo IV – Especificações técnicas do aludido contrato, que os serviços de gravação e transmissão audiovisual incluem captação de conteúdo audiovisual e transmissão direto (Livestreaming) de conferências e palestras.

Alega a Recorrente que os factos em questão foram expressamente alegados pela Recorrente nos artigos 50º, 51º, 52º, 54º e 55º do seu requerimento de alteração da instância, encontram-se admitidos por acordo, constam da prova documental junta pela Recorrente no seu requerimento de alteração da instância e têm manifesto interesse para a boa decisão da causa, respeitando à questão controvertida acerca da inexistência de perda do interesse em contratar por parte da Recorrida, no seguimento da alteração de circunstâncias invocada.

Vejamos.

A fim de tomar posição sobre a relevância dos factos que a Recorrente considera ser pertinentes para a boa decisão da causa, enquanto questão fundamento do recurso, importa dilucidar o objeto do litígio.

Na presente ação de contencioso pré-contratual veio a Autora primeiramente demandar a ora Recorrida pedindo a sua condenação à prática de ato devido de adjudicação, no âmbito do “Concurso público sem publicidade internacional para aquisição de serviços para transmissão em livestreaming para eventos diversos”.

Analisando a matéria de facto julgada provada e contra a qual a Recorrente não dirige qualquer censura, resulta demonstrado que em 28/01/2020 foi publicado o anúncio do procedimento n.º 842/2020, relativo ao concurso público sem publicidade internacional para “Aquisição de serviços de transmissão em livestreaming para eventos diversos”, no âmbito do qual a Autora apresentou proposta e foi notificada do relatório final, em 13/03/2020, com a proposta de adjudicação a seu favor.

Decorridos vários meses sem que fosse praticado o ato de adjudicação, em 23/10/2020, a Autora remeteu à Entidade Demandada uma carta e, em sequência, mantendo-se a omissão do ato de adjudicação, em 16/11/2000 veio intentar a presente ação de contencioso pré-contratual.

Na pendência da ação, em 11/12/2020, a Autora foi notificada da deliberação do Conselho de Administração da Entidade Demandada, datada de 03/12/2020, de não adjudicação e de revogação da decisão de contratar tomada em 23/01/2020.

Tal factualidade superveniente motivou a apresentação pela Autora do requerimento de alteração da instância e a alegação de outros factos pertinentes para o objeto do litígio, destinados a prova a ilegalidade da decisão de não adjudicação e de revogação da decisão de contratar.

Em face da presente delimitação do objeto do litígio, não podem existir dúvidas quanto à pertinência dos factos invocados pela ora Recorrente no requerimento de alteração da instância e que ora pretende que sejam aditados ao julgamento da matéria de facto, por entender serem relevantes para o conhecimento das questões a decidir na ação e no presente recurso.

Coisa diferente consiste na valoração de tais factos e o seu impacto para a decisão a proferir.

Posto isto, antes de analisar criticamente a matéria de facto posta em crise pela Recorrente, importa aferir se se mostram respeitadas as exigências legais colocadas para a impugnação do julgamento da matéria de facto, procedendo ao enquadramento de direito dos termos em que o julgamento de facto pode ser impugnado em sede de recurso e em que condições está este Tribunal ad quem habilitado a reexaminar a matéria de julgado julgada em primeira instância.

Como anteriormente decidido, entre outros, no Processo 03522/08, de 19/01/2012, deste TCAS, nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 640.º do CPC, incumbe ao recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto “obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição”:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”.

Segundo o n.º 2 do citado artigo 640.º do CPC, no caso previsto na alínea b) do número anterior:

“(…) b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”.

Nas citadas disposições impõe-se um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, que impende sobre a aqui Recorrente e que a mesma satisfez, como decorre do teor das alegações produzidas em juízo.

A Recorrente não só especifica a concreta factualidade que pretende que seja aditada ao julgamento dos factos assentes, por a considerar relevante e provada, como indica o respetivo articulado em que os factos foram alegados e ainda os respetivos meios probatórios.

Por isso, nada obsta a que este Tribunal de recurso aprecie do fundamento do recurso.

Compulsada a matéria de facto julgada provada e a que pretende a Recorrente que seja aditada, formulado o juízo da sua pertinência para as questões que integram o objeto da causa e integram o fundamento do presente recurso, assim como aferido o respeito pelas exigências legais colocadas à impugnação do julgamento de facto, será de entender pela procedência do fundamento do recurso, devendo ser aditada matéria de facto alegada pela Autora, ora Recorrente.

Pelo que, em face do que antecede, será de conceder provimento ao fundamento do recurso, por provado.


*

Assim, em face do exposto, adita-se a seguinte factualidade ao elenco dos factos provados:

H) À data da abertura do procedimento, já a doença respiratória por infeção de Coronavírus (2019-NCOV), se tinha eclodido e desenvolvido por vários países do mundo, inclusivamente por países geograficamente próximos de Portugal – artigo 21º do requerimento de alteração da instância da Recorrente e admissão por acordo;

I) No decurso do ano de 2020 e após ter lançado o concurso público em apreço, a Entidade Demandada promoveu e transmitiu, pelo menos os seguintes eventos:

i) Em 11/02/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento Webinar Comunicação Digital | Novas formas de comunicar na Administração Pública, com o objetivo de promover e disseminar o conhecimento, destacando as oportunidades decorrentes da transformação digital na saúde, em que participou como orador P..... da TVI, e como moderadores D..... da SPMS e R..... da APAH;

ii) Em 07/04/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento do ciclo de Webinars Transformação Digital na Saúde, dedicado ao tema: A inovação não-clínica na saúde: gestão de tecnologias inovadoras, em que participou como orador M..... da Faculdade Engenharia da Universidade do Porto, e como moderadores J..... da SPMS, e A..... da APAH;

iii) Em 13/05/2020, pelas 17:00 horas, a Ré promoveu o evento Teleconsulta em tempo real;

iv) Em 20/05/2020, pelas 9h:45m, a Ré promoveu o evento: Sessão de Informação SICC;

v) Em 09/06/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento do ciclo de Webinars Transformação Digital na Saúde, dedicado ao tema: Lean Agile Hospitalar, em que participou como orador C..... da Winning, e como moderadores B..... da SPMS, e Z..... da APAH;

vi) Em 17/06/2020, pelas 17:00 horas, a Ré promoveu um novo evento Webinar sobre a RSE Live, dedicado ao tema: Teleconsulta em tempo real;

vii) Em 07/07/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento do ciclo de Webinars Transformação Digital na Saúde, dedicado ao tema: Interoperabilidade, em que participou como orador V..... do Centro Hospitalar Trás-os-Montes e Alto Douro [CHTMAD], e como moderadores R..... da SPMS, e A..... da APAH;

viii) Em 05/08/2020, pelas 17:00 horas, a Ré promoveu o evento Webinar sobre a PEM – Prescrição Eletrónica Médica | Versão 2.4.0., em que participaram como oradores C..... da SPMS e M..... da SPMS, e como moderador D..... da SPMS;

ix) Em 15/09/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento do ciclo de Webinars Transformação Digital na Saúde, dedicado ao tema: A Qualidade dos Dados no Futuro Digital, no qual participou como oradora C..... da H..... IT, e como moderadores R..... da SPMS e J..... da APAH;

x) Em 13/10/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento do ciclo de Webinars Transformação Digital na Saúde, dedicado ao tema: Desafios da Gestão dos STI Hospitalar, o qual contou como oradora A....., Diretora do Serviços de Sistemas de Informação do Hospital Prof. Dr. Fernando Fonseca, EPE, e como moderadores A..... da SPMS, e C..... APAH;

xi) Em 29/10/2020, pelas 10:00 horas, a Ré promoveu o evento Sessão de Informação SICC | 2º Webinar;

xii) Em 30/10/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento Webinar | Códigos STAYAWAY COVID e Declarações de Isolamento Profilático;

xiii) Em 04/11/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento Webinar | Registo Clínico de Violência em adultos;

xiv) Em 10/11/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento do ciclo de Webinars Transformação Digital na Saúde”, dedicado ao tema: “Estratégia do Digital na Saúde, o qual contou como orador R...., Diretor de Sistemas de Informação do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, e como moderadores A.... da SPMS, e Z..... da APAH;

xv) Em 15/12/2020, pelas 15:00 horas, a Ré promoveu o evento do ciclo de Webinars Transformação Digital na Saúde, dedicado ao tema: HIMSS 7 * Case Study LUSÍADAS SAÚDE, o qual contou como orador L....., CIO/CTO da Lusíadas Saúde, e como moderadores D..... da SPMS, e T..... da APAH – artigo 44º, alíneas i) a xv) do requerimento de alteração da instância da Recorrente, admissão por acordo e documento nº 3, junto com o aludido articulado;

J) Por despacho da Vogal Executiva do Conselho de Administração da Entidade Demandada, de 13/07/2020, exarado sobre a informação nº 2020/DCBST/0790, da Direção de Compras de Bens e Serviços Transversais, foi autorizado o início do procedimento de aquisição de serviços para garantir a realização, gestão e organização de eventos, ao abrigo dos Lotes 11 e 15 do Acordo Quadro “Serviços de Produção de Eventos e Serviços de Catering na Área da Saúde” (AQ nº UAQT2017011), em vigor à data em questão na SPMS, EPE, para a Direção Geral da Saúde, bem como aprovadas as peças procedimentais e o júri de condução do procedimento na formação do contrato – artigo 50º do requerimento de alteração da instância, admissão por acordo e prova documental junta pela Recorrente;

K) Em sequência do referido anúncio, por despacho da Vogal Executiva do Conselho de Administração da Entidade Demandada, de 12/08/2020, exarado sobre a informação nº 2020/DCBST/0846, da Direção de Compras de Bens e Serviços Transversais, foi deliberada a adjudicação de serviços para garantir a realização, gestão e organização de eventos, ao abrigo dos Lotes 11 e 15 do Acordo Quadro “Serviços de Produção de Eventos e Serviços de Catering na Área da Saúde” (AQ nº UAQT2017011), em vigor na SPMS, EPE, para a Direção Geral da Saúde, à empresa C....., Lda., pelo preço contratual de €101.100,00, acrescido à taxa legal em vigor – artigo 51º do requerimento de alteração da instância, admissão por acordo e prova documental junta pela Recorrente;

L) A que se seguiu a celebração do contrato ao abrigo do acordo quadro nº UAQT2017011, para a prestação de serviços de produção de eventos e serviços de catering na área da saúde, tendo por objeto a aquisição de serviços de gravação e transmissão audiovisual e de serviços de reportagem fotográfica, tal como resulta da cláusula 1ª do Anexo IV – Especificações técnicas – artigos 52º e 54.º do requerimento de alteração da instância, admissão por acordo e prova documental junta pela Recorrente;

M) Decorre da cláusula 7.ª do Anexo IV – Especificações técnicas do aludido contrato, o seguinte: os serviços de gravação e transmissão audiovisual incluem captação de conteúdo audiovisual e transmissão direto (Livestreaming) de conferências e palestras – – artigo 55º do requerimento de alteração da instância, admissão por acordo e prova documental junta pela Recorrente.

2. Erro de julgamento de direito, em violação dos artigos 76.º, n.º 1 e 79.º, n.º 1, d), do CCP, artigos 20.º e 266.º, n.º 2 da CRP e artigo 3.º do CPA, quanto à alteração das circunstâncias ser superveniente à decisão de contratar e quanto à perda do interesse na decisão de contratar

No demais, insurge-se a Recorrente contra o julgamento da questão de direito da sentença recorrida, entendendo que incorre em violação dos artigos 76.º, n.º 1 e 79.º, n.º 1, d), do CCP, artigos 20.º e 266.º, n.º 2 da CRP e artigo 3.º do CPA, quanto às duas questões essenciais controvertidas, respeitantes à alteração das circunstâncias ser superveniente à decisão de contratar e à perda do interesse na decisão de contratar.

Alega que a principal questão controvertida prende-se com os pressupostos da decisão de não adjudicação, emitida em 03/12/2020, no decurso da presente ação e que motivou o requerimento de alteração da instância.

Sustenta que, ao contrário do decidido na sentença recorrida, a eclosão e o desenvolvimento da pandemia, não constitui um evento superveniente à decisão de contratar, nem é lícita a decisão de não adjudicação ao abrigo do artigo 79.º, n.º 1, d) do CCP, por a entidade adjudicante continuar a promover eventos que foram transmitidos em livestreaming ao longo do ano de 2020, continuando a necessitar e a adjudicar os serviços objeto do procedimento revogado a outras entidades, além de lançar outros concursos com o mesmo objeto, implicando que não tenha perdido o interesse na celebração do contrato.

Põe a Recorrente em causa o entendimento assumido na sentença recorrida de a abertura de outros procedimentos pela entidade demandada terem subjacentes pressupostos próprios da livre margem de decisão da Recorrida e do seu poder discricionário de atuação na prossecução do interesse público, por entender que a possibilidade de a entidade adjudicante tem para pôr fim ao procedimento sem a adjudicação não pode estar sujeita a meros juízos de oportunidade, nem a margem de livre apreciação da entidade adjudicante.

Ao contrário do decidido na sentença sob recurso, entende a Recorrente que a apreciação do impacto que um evento de alteração das circunstâncias possa ter sobre o interesse público depende de uma avaliação vinculada e, como tal sindicável pelo Tribunal, convocando o dever de adjudicação previsto no artigo 79.º do CCP.

Defende a não superveniência do evento de alteração das circunstâncias alegado pela Recorrida na decisão de não adjudicação tomada em 03/12/2020 e ainda a inexistência da perda de interesse em contratar.

Vejamos.

Conforme se extrai da matéria de facto, em 28/01/2020 foi publicado o anúncio do procedimento nº 842/2020, relativo ao concurso público sem publicidade internacional para “Aquisição de serviços de transmissão em livestreaming para eventos diversos”, no âmbito do qual a Autora apresentou proposta e foi notificada do relatório final, em 13/03/2020, que concluía com a proposta de adjudicação a seu favor.

Depois de a ora Recorrente ter remetido uma carta à Entidade Demandada em 23/10/2020 questionando-a sobre a delonga da adjudicação e mantendo-se a omissão da prática do ato de adjudicação, veio intentar a presente ação em 16/11/2000.

Na pendência da ação, em 11/12/2020, veio a ora Recorrida notificar a Autora da deliberação do Conselho de Administração, datada de 03/12/2020, de não adjudicação e de revogação da decisão de contratar tomada em 23/01/2020.

A primeira questão a apreciar é se incorre a sentença recorrida em erro de julgamento ao decidir pela superveniência da alteração das circunstâncias.

A segunda questão é se a entidade adjudicante perdeu o interesse em contratar e se essa apreciação depende essencialmente de critérios de oportunidade ou livre decisão administrativa.

Decidiu-se na sentença recorrida, o seguinte, que ora se reproduz:

O Conselho de Administração da ED., na qualidade de entidade adjudicante, deliberou em 03.12.2020, tendo em conta a informação nº 0870/DAG- UAP/2020, de 02.12.2020, “a não adjudicação nos termos e fundamentos propostos, revogando-se, em consequência, a decisão de contratar tomada em 23/01/2020” (cfr. alínea G) do probatório).

Constituem, assim, fundamentos da invocada alteração dos pressupostos da decisão de contratar a mencionada informação nº 0870/DAG- UAP/2020, na qual são invocadas razões relativas à pandemia COVID19, na sequência da aprovação do primeiro estado de emergência pela Assembleia da República em 18/03/2020 e atos subsequentes, que levou a ED. a adiar todos os eventos organizados, por forma a acautelar a segurança e proteção de todos os participantes, e a redefinir as suas prioridades de forma a ajudar as instituições prestadoras de cuidados de saúde no combate à pandemia. Perante a eclosão de uma 2ª vaga da pandemia, com aprovação de novo estado de emergência pela Assembleia da República em 6/11/2020 e da possibilidade de uma 3ª vaga no primeiro trimestre de 2021, não é possível a ED. prever quando poderá ser retomada a atividade de organização de eventos, tendo a eclosão da pandemia e o seu desenvolvimento determinado o cancelamento de todos os eventos anteriormente planeados e a desistência da realização de novos eventos, perante as condicionantes resultantes das diretrizes da DGS, assim como as regras e limitações impostas à realização de eventos que impliquem a concentração de pessoas no mesmo local.

Com a fundamentação invocada, que é suficiente, clara e congruente, a ED. enquadrou a situação descrita na alínea d) do nº 1 do artigo 79º do CCP, por considerar evidente que a realidade existente à data da decisão de contratar se alterou por completo, por razões que lhe são alheias e imprevisíveis e que afetaram os pressupostos da decisão de contratar, com o desaparecimento da necessidade que se visava satisfazer com a celebração do contrato por ausência de eventos.

Todas estas razões constituem pressupostos próprios da margem de livre decisão administrativa, pois, a entidade adjudicante tem liberdade de apreciação das situações de facto existentes à data da tomada da decisão de contratar e subsequente abertura do procedimento (cfr. artigo 36º do CCP) e as que venham a ocorrer e existam à data da decisão de não adjudicação (cfr. artigo 79º do CCP), como exerce um poder discricionário na escolha das várias hipóteses de atuação jurídica admissível, não sendo aqui atendíveis quaisquer outros procedimentos invocados pela Autora, que têm também subjacentes pressupostos próprios da margem livre de decisão da ED. e do seu poder discricionário de atuação na prossecução do interesse público.

Aos tribunais apenas compete julgar o cumprimento pela Administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua atuação, no respeito pelo princípio da separação e interdependência dos poderes.

Nas circunstâncias invocadas, não só estão em causa circunstâncias supervenientes, que são factos notórios, relativas aos pressupostos da decisão de contratar, como a superveniência da aprovação do 1º estado de emergência pela Assembleia da República, na sequência da Declaração da Organização Mundial de Saúde nesse sentido, e demais atos subsequentes do Presidente da República, da Assembleia da República e do Governo na gestão da pandemia.

Para o tribunal, as razões invocadas integram um interesse público forte e altamente relevante para exceder a confiança que foi depositada pela Autora na prossecução do procedimento de formação do contrato, no qual apresentou proposta e viu a mesma graduada em primeiro lugar no relatório final, que lhe foi notificado para efeitos de audiência prévia, ou seja, as razões invocadas são subsumíveis na previsão do artigo 79º nº 1 alínea d) do CCP, e conduzem à extinção do procedimento concursal.”.

A antecedente fundamentação não se pode manter, traduzindo uma incorreta análise e valoração da matéria de facto e incorreto enquadramento da questão de direito.

Tendo presente a matéria de facto julgada provada na sentença recorrida e a que foi aditada nesta instância de recurso, nos termos antecedentes, importa considerar a questão do dever de adjudicação e das causas de não adjudicação.

A adjudicação é o ato administrativo central do procedimento pré-contratual com vista à celebração do contrato, sendo, nos termos do artigo 73.º, n.º 1 do CCP, o ato pelo qual “o órgão competente para a decisão de contratar aceita a única proposta apresentada ou escolhe uma de entre as propostas apresentadas”.

Consagra o disposto no artigo 76.º, n.º 1 do CCP, o dever de adjudicação, segundo o qual “Sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 79.º, o órgão competente para a decisão de contratar deve tomar a decisão de adjudicação e notificá-la aos concorrentes até ao termo do prazo da obrigação de manutenção das propostas.”.

Estabelece o artigo 79.º, n.º 1, d) do CCP, o seguinte:

Não há lugar a adjudicação, extinguindo-se o procedimento, quando:

(…)

d) Circunstâncias supervenientes relativas aos pressupostos da decisão de contratar o justifiquem;”.

Por isso, releva antes de mais aferir se existem ou se verificam no presente caso “Circunstâncias supervenientes relativas aos pressupostos da decisão de contratar”.

Como antes por nós entendido, “Até ao CCP a posição maioritária da doutrina seguia o entendimento de que, aberto um procedimento, não recaía sobre a entidade adjudicante o dever de adjudicar.

Para MARCELLO CAETANO cabia na discricionariedade da Administração (i) o poder de declarar sem efeito o concurso chegado à fase da adjudicação ou (ii) de recusar todas as propostas por inconveniência, sendo que o direito de não adjudicar só conhecia as restrições que a lei estabelecia para protecção da confiança dos concorrentes.

A decisão de não adjudicar podia ter dois fundamentos distintos:

(i) Baseado no juízo negativo quanto a todas as propostas apresentadas, traduzido no exercício da discricionariedade de escolha; ou ainda

(ii) Por razões supervenientes de interesse público, que determinassem que a Administração tinha perdido interesse na celebração do contrato.

O poder de não adjudicar resultava da posição assumida pela entidade adjudicante de não ser proponente, mas mera destinatária de propostas, em relação às quais tem toda a liberdade de aceitar ou não aceitar.

Embora tal posição tivesse sido posteriormente temperada, no sentido de, com a abertura do procedimento, a entidade adjudicante se vincular perante os concorrentes a apreciar as suas propostas com a finalidade de escolher a melhor e a tomar a decisão final de adjudicação, mantendo-se o poder de não adjudicar por razões alheias à qualidade das propostas dos concorrentes, de acordo com o princípio da legalidade, apenas com o CCP se tomou posição assertiva, pela mão do legislador, sobre a consagração do dever legal de adjudicação.

Assim, por a ordem jurídica estabelecer a imposição do dever legal de adjudicar a cargo da entidade adjudicante, não podem hoje fundar-se mais dúvidas sobre a existência do dever de adjudicação.

(…)

Assim, se até à entrada em vigor do CCP alguma doutrina considerava ainda existir espaço para se falar em discricionariedade entre as decisões de adjudicar e de não adjudicar, maxime quando se concluísse que nenhuma das propostas apresentadas se apresentasse idónea ou satisfatória para a prossecução do interesse público, o que decorria ainda da finalidade última em prosseguir o interesse público subjacente à decisão de contratar, entendemos que hoje a questão deve ser vista em termos diferentes.

Associava-se à decisão de adjudicar o poder discricionário de decidir adjudicar ou não adjudicar conforme a valia ou perfomance das propostas, mas, nos termos que resultam do CCP, é de afastar este tipo de análise, por uma dupla razão:

(i) Não só a decisão de adjudicação encerra em si um momento autónomo no âmbito do procedimento pré-contratual, traduzindo uma fase ou momento procedimental distinto da fase de avaliação das propostas; como

(ii) Decorre de forma clara do CCP uma maior preocupação conferida ao modelo de avaliação das propostas, que mais não visa limitar a margem de livre apreciação da entidade adjudicante.

(…)

Porém, o CCP, no artigo 76º, nº 1, além de estabelecer o dever de adjudicação, cuidou de prever os termos em que a decisão deve ser tomada e ainda as consequências do seu incumprimento.

Salvo a ocorrência de circunstâncias que determinam a não adjudicação, previstas nas várias alíneas do nº 1 do artigo 79º, a entidade adjudicante tem o dever legal de adoptar a decisão final do procedimento pré-contratual num determinado prazo, a que se associa o correspondente dever de manutenção das propostas pelos concorrentes.

(…)

Apenas é de conceber um dever de não adjudicação no caso de verificação de um dos fundamentos legais, situação em que não só o princípio da legalidade, como o princípio da competência, previstos nos artigos 266º, nº 2 da Constituição e 3º do CPA, o impõe, como a finalidade do procedimento pré-contratual o deve ditar, isto é, numa lógica de correcta prossecução do interesse público, fora do domínio da autonomia da vontade.

Não existe um poder discricionário em torno da decisão de adjudicação, sendo de recusar que a entidade adjudicante disponha da liberdade de adjudicar ou de não adjudicar, antes estando em causa uma decisão vinculada, em que existe o dever de adjudicação, salvo a verificação de um dos eventos típicos, previstos na lei de forma expressa, que legitimam a não adjudicação.

O que dizemos releva igualmente quanto à consideração da decisão de contratar e do acto que procede à abertura do procedimento pré-contratual, no sentido de não serem decisões livremente revogáveis pela entidade adjudicante, sendo de recusar que a mesma possa, a qualquer momento, optar pela revogação do procedimento.

Com a prática da decisão de contratar a Administração vincula-se a levar o procedimento até ao fim, com a tomada de decisão que lhe ponha termo a qual, salvo alteração das circunstâncias, será a da adjudicação.

(…) a possibilidade de não adjudicação estar confinada às situações legais previstas no artigo 79º, nº 1 do CCP, donde (apenas) as circunstâncias objectivamente “imprevistas” e “supervenientes” são de admitir.

Neste âmbito, cabe questionar se o carácter imprevisível e superveniente poderá ser subjectivo, decorrente de uma nova ponderação da entidade adjudicante ou se antes é exigível que essa ponderação ocorra antes da decisão de contratar.

(…)

Assim, não devem existir dúvidas quanto à previsão de um verdadeiro dever legal, isto é, de no caso da decisão de adjudicação estar em causa o exercício de um poder vinculado quanto ao dever de agir por parte da entidade adjudicante, por estar excluído do elenco de matérias em que predomine o exercício de poderes discricionários, quanto ao modo de agir, quanto ao sentido ou conteúdo do dever de agir e ainda quanto ao juízo de oportunidade do agir, incluindo-o na legalidade estrita.

(…) o dever de adjudicação apenas se encontra derrogado no caso da ocorrência de qualquer das circunstâncias do artigo 79º, nº 1, do CCP, que se traduz no poder de não adjudicação, em casos em que si mesmos (…) não dizem respeito à valia da proposta.

Isto porque, nos termos em que as causas de não adjudicação se encontram previstas, (…) se extrai a sua natureza pretensamente objectiva, sem atender às características da(s) proposta(s) apresentada(s), numa aparente limitação do poder de não adjudicação. (…)

Estando em causa a previsão legal das circunstâncias em que a entidade adjudicante pode licitamente não adjudicar, não deixa a decisão de não adjudicação de estar sujeita ao princípio da legalidade e ao escrutínio do juiz na verificação dos respectivos pressupostos factuais e de Direito.

Reconhecendo-se ampla margem de decisão e espaço de discricionariedade administrativa no preenchimento de algumas das alíneas do nº 1, do artigo 79º (domínio em que por respeitar ao mérito ou oportunidade da decisão, em face do disposto no artigo 3º, nº 1, do CPTA, se encontra excluída a intervenção do poder judicial) não é, contudo, de afastar in totum o poder dos tribunais administrativos na apreciação da legalidade de tal decisão de não adjudicação.

Tal decisão, como acto administrativo que é, está sujeita ao dever de fundamentação, enquanto importante “arma” dos interessados, na dupla perspectiva de fundamentação formal (enquanto vício de forma) e fundamentação substantiva (de controle do eventual erro grosseiro do mérito da decisão de não adjudicação cometido) para além da admissibilidade, como regra, da sindicabilidade dos conceitos jurídicos indeterminados.

Assim, este escrutínio não deve ser muito apertado, concedendo-se margem à Administração, conquanto essa decisão se apresente suficientemente fundamentada. (…)”, Ana Celeste Carvalho, “A Decisão de Adjudicação e do Dever de Adjudicação”, Contratação Pública – I, Centro de Estudos Judiciários, 2017, pp. 30 e segs., in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/Administrativo_fiscal/eb_ContratacaoPublicaI.pdf.

Efetuado o enquadramento normativo do dever de adjudicação, importa revertê-lo para o litígio em presença, considerando os fundamentos invocados pela entidade adjudicante para não praticar o ato de adjudicação.

Segundo a Entidade Demandada na pendência do procedimento de contratação pública, após a notificação dos interessados, em 13/03/2020, para audiência prévia em relação ao relatório final, foi decretado o estado de emergência em 18/03/2020, o que levou a adiar múltiplos eventos, sendo a decisão de contratar tomada cerca de um mês e meio antes, em 23/01/2020.

Estando esta factualidade inteiramente demonstrada em juízo, é de entender que o estado de pandemia vivido no país e o estado de emergência que veio a ser decretado constituem efetivamente eventos supervenientes, não apenas em relação à decisão de contratar, como em relação ao marco temporal para a apresentação de propostas pelos concorrentes.

São supervenientes quer do ponto de vista objetivo, quer do subjetivo, porque não só estão em causa eventos temporalmente posteriores à abertura do procedimento, como tais circunstâncias, maxime o decretamento do estado de emergência, não poderiam ser do conhecimento da entidade adjudicante aquando a tomada da decisão de contratar.

No entanto, embora o estado de pandemia no país e a declaração de estado de emergência sejam circunstâncias novas e supervenientes à decisão de contratar, que não foram previstas pela entidade adjudicante, admitindo que fossem mesmo imprevisíveis, importa aferir se as mesmas, apesar de ocorrerem, puseram em causa a razão de ser ou os pressupostos da decisão de contratar.

Invoca a entidade demandada que em consequência do estado de pandemia foram adiados ou cancelados múltiplos eventos, justificando a perda do interesse em contratar.

Admitindo a superveniência dos factos invocados pela entidade adjudicante como justificando a não adjudicação, já não se mostram demonstrados factos donde resultem a perda do interesse da Entidade Demandada em contratar, porque continuou a desenvolver a sua atividade e, consequentemente, a realizar múltiplos eventos.

Segundo o estatuto da entidade demandada, a mesma é uma pessoa coletiva de direito público de natureza empresarial, constituída pelo D.L. n.º 19/2010, de 22/03, a qual é a Central de Compras para o setor específico da saúde, abrangendo a sua atividade a aquisição de bens e serviços, mediante contrato de mandato administrativo a celebrar entre esta entidade e os estabelecimentos e serviços do Serviço Nacional de Saúde e quaisquer outras entidades quando executem atividades específicas da área da saúde.

Como decorre da Informação n.º 0059/DCPI-UA/2020 que fundamenta a decisão de contratar do procedimento objeto do presente litígio, a SPMS, EPE – Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, E.P.E. “tem por missão a prestação de serviços partilhados nas áreas de compras e logística serviços financeiros, recursos humanos e sistemas e tecnologias de informação e comunicação entidades com atividade específica na área da saúde, de forma a “centralizar, otimizar e racionalizar” a aquisição de bens e serviços no Serviço Nacional de Saúde.”.

Por isso, não podem ser extraídos dos factos aditados neste Tribunal ad quem, nos termos anteriormente decididos, todas as valorações pretendidas pela ora Recorrente.

Na verdade, a matéria de facto provada não permite comprovar que todos os eventos realizados durante o ano de 2020 tenham sido promovidos pela Entidade Demandada ou se insiram exclusivamente no desenvolvimento da sua atividade, como resulta em relação aos webinares realizados em 07/04/2020, 09/06/2020, 15/09/2020 e 13/10/2020, em que intervém, além da Entidade Demandada, também a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares.

Além disso, não se pode afirmar que tais eventos correspondam integralmente ao objeto do procedimento pré-contratual objeto do presente litígio, nem que o mesmo coincida com o procedimento pré-contratual posteriormente aberto pela entidade adjudicante, por ser necessário distinguir os eventos presenciais e transmitidos em livestraming, dos eventos em formato de webinar.

O objeto do procedimento pré-contratual em causa nos autos é a aquisição de serviços de transmissão em livestreaming para eventos diversos decorrentes da manifestação da necessidade n.º 075/DCRP/2019, que não coincide com o objeto do procedimento pré-contratual posteriormente aberto pela Entidade Demandada, nos termos que resultam das alíneas J), K), L) e M) do julgamento da matéria de facto, relativo a procedimento para a prestação de serviços de produção de eventos e serviços de catering na área da saúde, tendo por objeto a aquisição de serviços de gravação e transmissão audiovisual e de serviços de reportagem fotográfica.

No entanto, não podendo dar-se por provada a coincidência entre o objeto de ambos os procedimentos pré-contratuais, nem que todos os eventos realizados pela Entidade Demandada no decurso do ano de 2020 se integrem no objeto do procedimento em causa na presente ação, importa aferir se estão demonstrados os pressupostos em que a Entidade Demandada fundou a decisão de não adjudicação.

Em primeiro lugar resulta que a Entidade Demandada não suspendeu a sua atividade, o que significa que a pandemia e o estado de emergência não impediram a realização de múltiplos eventos.

Em segundo lugar não logra a Entidade Demandada substanciar os termos em que tais eventos supervenientes, da pandemia e da declaração do estado de emergência, se repercutiram na sua atividade ou conduziram a uma perda do interesse em contratar.

A decisão de não adjudicação fundada na al. d) do n.º 1 do artigo 79.º do CCP configura uma derrogação ao dever de adjudicar consagrado no artigo 76.º. do CCP e sendo convocada a ocorrência de circunstâncias supervenientes e imprevistas para não adjudicar, não pode a entidade adjudicante refugiar-se numa margem de discricionariedade para, sem uma justificação devidamente alicerçada no plano factual, pretender furtar-se ao cumprimento do dever imposto pelo artigo 76.º do CCP.

O artigo 79.º do CCP consagra certos pressupostos para que se coloque a possibilidade de não adjudicação, os quais, sendo vinculados, exigem da parte da entidade adjudicante não só a sua invocação, como a sua devida comprovação, por estar em causa a derrogação de um dever legal.

O que determina que o artigo 79.º do CCP não confira à entidade adjudicante qualquer margem de livre decisão para não adjudicar, não sendo uma decisão livre ou incondicionada nos seus pressupostos, antes exigindo uma alegação devidamente alicerçada em pressupostos de facto que a legitime.

Como decidido pelo STA no Acórdão datado de 11/03/2021, Proc. n.º 01445/19.8BEBRG, “A entidade adjudicante que convoca a ocorrência de circunstâncias imprevistas para não adjudicar não pode refugiar-se numa margem de discricionaridade – que o artigo 79.º do CCP claramente não lhe confere – para, sem qualquer justificação minimamente válida, se descartar daquele dever imposto pelo artigo 76.º do CCP.”.

No presente caso, comprovando-se a verificação de circunstâncias novas e supervenientes, que não existiam à data da abertura do procedimento, não se mostra comprovado que essas circunstâncias ponham em causa os pressupostos da decisão de contratar ou que sejam a causa da perda do interesse em contratar ou que, tão pouco, impossibilitem a adjudicação.

Não só a Entidade Demandada não logrou concretizar factualmente a alegação vaga e genérica que aduziu para fundamentar a decisão de não adjudicação, como se mostra demonstrada factualidade demonstrativa da continuação durante todo o ano de 2020 de múltiplos eventos em livestreaming e a abertura de um novo procedimento com objeto parcialmente semelhante ao que foi revogado.

Em face do dever de adjudicação, previsto no artigo 76.º, n.º 1 do CCP e das cláusulas típicas de não adjudicação previstas nas várias alíneas do artigo 79.º do CCP, não pode a entidade adjudicante limitar-se a uma alegação vaga e pouco concretizada para fundamentar a decisão de não adjudicação e da revogação da decisão de contratar, sob pena de ilegalidade.

Por isso, a margem que assiste à entidade adjudicante é no preenchimento dos pressupostos vinculados previstos no artigo 79.º, n.º 1 do CCP e nada mais, sendo de recusar o entendimento assumido na sentença recorrida quanto à existência de uma margem de livre decisão para não adjudicar, já que isso redundaria em derrogar o dever de adjudicação consagrado no artigo 76.º, n.º 1 do CCP.

A lei ressalva a possibilidade de não adjudicar para as situações típicas enunciadas no artigo 79.º, n.º 1 do CCP, por nesses casos a não adjudicação constituir também uma forma de prosseguir o interesse público, não impondo ao decisor público prosseguir com um procedimento que já não é apto a prosseguir a sua finalidade ou escopo inicial, mas claramente que a possibilidade de não adjudicar não visa proteger a desistência, o arrependimento ou a mera mudança de planos.

Por isso, conforme decidido no Acórdão do STA, de 11/03/2021, Proc. n.º 01445/19.8BEBRG: “No caso concreto dos autos, a entidade adjudicante goza de um poder discricionário na exacta estrita medida em que está na sua disponibilidade decidir se, verificando-se uma circunstância imprevista, adjudica ou recusa-se a adjudicar com base na al. c) do n.º 1 do artigo 79.º do CCP (vale por dizer, não se trata de decisão automática uma vez objectivamente constatada a existência de uma circunstância imprevista). Mas não mais do que isto, ou seja, trata-se de um poder discricionário praticamente reduzido a zero. E isto, por várias razões facilmente compreensíveis: porque a decisão de não adjudicar só pode ocorrer quando se verifiquem objectivamente as situações do n.º 1 do artigo 79.º do CCP; porque a entidade adjudicante é obrigada a dar início a um novo procedimento no prazo máximo de seis meses (n.º 3); porque há um dever indemnizatório pelo interesse contratual negativo nos termos do n.º 4 do artigo 79.º do CCP; e porque a decisão de não adjudicar tem de ser devidamente fundamentada (n.º 2). Ou seja, a possibilidade de lançar mão de uma causa de não adjudicação, assim prevista em termos tão apertados, dificilmente pode ser equiparada a uma cláusula cum voluerit ou si voluerit. Já inversamente, a ideia de visualizar a convocação de uma causa de não adjudicação como uma “gritante e injustificável fuga ao dever de adjudicação consagrado no artigo 76º CCP” esvazia totalmente de sentido a solução que o legislador do CCP consagrou no dispositivo em apreço.”.

Também porque está em causa uma exceção ao dever de adjudicar, a sua convocação tem de ser devidamente fundamentada do ponto de vista material, pois está em causa saber se se verificam as circunstâncias invocadas pela entidade adjudicante que possibilitam não adjudicar.

Nestes termos, quer porque a entidade adjudicante não explicitou ou concretizou devidamente a decisão de não adjudicar, sob uma alegação sucinta e simplista de razões, quer porque se mostra demonstrada factualidade que não permite fundar a perda do interesse em contratar, não existindo o dever de não adjudicar, mas antes o dever de adjudicar, salvo a verificação de alguma das circunstâncias típicas previstas nas alíneas do n.º 1 do artigo 79.º do CCP, recusando-se qualquer margem de discricionariedade para não adjudicar, será de entender pela procedência do erro de julgamento de direito da sentença recorrida, determinante da sua revogação e, em substituição, do juízo de procedência da ação, por ilegalidade da decisão de não adjudicação e de revogação da decisão de contratar.

As razões invocadas pela entidade adjudicante não logram sustentar as razões da perda do interesse em contratar, não permitindo associar o estado de pandemia à perda do interesse na adjudicação, ou seja, não logra a entidade adjudicante justificar em que medida o estado de pandemia conduziu à perda do interesse em contratar e, nem ainda, que esse desinteresse efetivamente tenha ocorrido, pela continuação da realização de certos eventos e da abertura de um novo procedimento que, embora não tenha o mesmo objeto contratual ao que foi revogado, visa também assegurar a realização de múltiplos eventos.

A Entidade Demandada ao não justificar a perda do interesse em contratar, também não explica de que modo as circunstâncias supervenientes da pandemia e do estado de emergência se repercutiram no desenvolvimento da sua atividade, em termos que comprometesse o interesse na decisão de adjudicação.

Por isso, não logra a entidade adjudicante fundar a decisão de não adjudicação e a consequente revogação da decisão de contratar no disposto na al. d) do n.º 1 do artigo 79.º do CCP.

Como decidido no citado aresto do STA: “Ora, essa deficiente/insuficiente exposição das razões concretas e reais que justificariam lançar mão da excepção desse n.º 1, (…), apenas pode ser imputada à entidade adjudicante, que não cumpriu aquilo que pode ser visto como um acrescido dever de fundamentação que acompanha a convocação de uma das causas de não adjudicação (ou de uma das excepções) consagradas no artigo 79.º, n.º 1, do CCP. O legislador faz questão sublinhar no n.º 2 do mesmo dispositivo que “A decisão de não adjudicação, bem como os respetivos fundamentos, deve ser notificada a todos os concorrentes”. Fundamentação que há-de ser de molde a esclarecer de forma devidamente circunstanciada e clara por que razão se dá a derrogação da solução regra que consta do artigo 76.º do CCP, qual seja, a da imposição de um dever de adjudicar ao decisor público. Estamos no domínio da contratação pública, domínio este em que valores como a concorrência, a transparência, a igualdade e não discriminação e a imparcialidade assumem um papel relevantíssimo, e se, por um lado, o legislador permitiu que, em face das circunstâncias específicas de um caso concreto, um interesse público maior se sobreponha ao interesse público genericamente tutelado pela solução do artigo 76.º, por outro lado, só o permite se a derrogação a essa solução regra for devidamente justificada. Ao não fazê-lo, ao apresentar razões frágeis, confusas, conclusivas, incompletas, supostamente suficientes em virtude de uma margem de discricionariedade de que erradamente entende gozar, a entidade adjudicante está a favorecer um clima de suspeição e consequente litigiosidade, nada favorável ao interesse público. A latere, pode considerar-se que estamos aqui ‘paredes meias’ com aquelas situações em que, além da imposição genérica do dever de fundamentação, a lei especificamente prescreve “uma declaração dos fundamentos da decisão em termos tais que se possa concluir que ela representa a garantia única ou essencial da salvaguarda de um valor fundamental da juridicidade, ou então da realização do interesse público específico servido pelo acto fundamentando” situação em que “a fundamentação é funcionalmente equiparável a um momento constitutivo, negativo ou positivo, da perfeição do acto e, sem ela, os efeitos normativos não podem produzir-se” (cfr. J.C. Vieira de Andrade, O dever da fundamentação expressa de actos administrativos, Coimbra, 1991, p. 293).”.

Assim, em face de todo o exposto, com base na fundamentação de facto e de direito antecedente, não se mostrando juridicamente justificada a aplicação da al. d) do n.º 1 do artigo 79.º do CCP, será de julgar procedente, por provado, o fundamento do recurso, incorrendo a sentença recorrida em erro de julgamento de direito, o que determina a sua revogação e, em substituição, julgar a ação procedente, determinando a anulação do ato impugnado de não adjudicação e a consequente revogação da decisão de contratar e condenar a entidade adjudicante, aqui Recorrida, a adjudicar a proposta da Autora, ora Recorrente, nos termos constantes do Relatório Final notificado aos concorrentes, sem prejuízo da aplicação do disposto no artigo 45.º do CPTA.


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Pelo exposto, será de conceder provimento ao recurso, por provados os seus respetivos fundamentos e, em consequência, revogar a sentença recorrida.

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Sumariando, nos termos do n.º 7 do artigo 663.º do CPC, conclui-se da seguinte forma:

I. Aferido o respeito pelas exigências legais colocadas ao impugnante do julgamento da matéria de facto, a relevância dos factos alegados e sua comprovação por meios de prova, será de aditar factos ao julgamento da matéria de facto.

II. Comprovada a situação de pandemia e a declaração do estado de emergência em momento posterior à decisão de contratar e de apresentação de propostas pelos concorrentes, verificam-se circunstâncias supervenientes em relação à decisão de contratar.

III. Estabelece o artigo 79.º, n.º 1, d) do CCP, que não há lugar a adjudicação, extinguindo-se o procedimento, quando circunstâncias supervenientes relativas aos pressupostos da decisão de contratar o justifiquem.

IV. O artigo 76º, nº 1 do CCP, além de estabelecer o dever de adjudicação, cuidou de prever os termos em que a decisão deve ser tomada e ainda as consequências do seu incumprimento.

V. Salvo a ocorrência de circunstâncias que determinam a não adjudicação, previstas nas várias alíneas do nº 1 do artigo 79º do CCP, a entidade adjudicante tem o dever legal de adotar a decisão final do procedimento pré-contratual num determinado prazo.

VI. Não existe um poder discricionário em torno da decisão de adjudicação, sendo de recusar que a entidade adjudicante disponha da liberdade de adjudicar ou de não adjudicar, antes estando em causa uma decisão vinculada, em que existe o dever de adjudicação, salvo a verificação de um dos eventos típicos, previstos na lei de forma expressa, que legitimam a não adjudicação.

VII. Estando em causa a previsão legal das circunstâncias em que a entidade adjudicante pode licitamente não adjudicar, a decisão de não adjudicação não deixa de estar sujeita ao princípio da legalidade e ao escrutínio do juiz na verificação dos respetivos pressupostos factuais e de Direito.

VIII. Tal decisão, como ato administrativo que é, está sujeita ao dever de fundamentação, na dupla perspetiva de fundamentação formal (enquanto vício de forma) e fundamentação substantiva (de controle do eventual erro grosseiro do mérito da decisão de não adjudicação cometido) para além da admissibilidade, como regra, da sindicabilidade dos conceitos jurídicos indeterminados.

IX. Sendo o estado de pandemia no país e a declaração de estado de emergência circunstâncias novas e supervenientes à decisão de contratar, que não foram previstas pela entidade adjudicante, admitindo que fossem mesmo imprevisíveis, não resulta que as mesmas, apesar de ocorrerem, puseram em causa a razão de ser ou os pressupostos da decisão de contratar.

X. Admitindo a superveniência dos factos invocados pela entidade adjudicante como justificando a não adjudicação, já não se mostram demonstrados factos donde resultem a perda do interesse em contratar.

XI. A decisão de não adjudicação fundada na al. d) do n.º 1 do artigo 79.º do CCP configura uma derrogação ao dever de adjudicar consagrado no artigo 76.º. do CCP e sendo convocada a ocorrência de circunstâncias supervenientes e imprevistas para não adjudicar, não pode a entidade adjudicante refugiar-se numa margem de discricionariedade para, sem uma justificação devidamente alicerçada no plano factual, pretender furtar-se ao cumprimento do dever imposto pelo artigo 76.º do CCP.


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Por tudo quanto vem de ser exposto, acordam os Juízes do presente Tribunal Central Administrativo Sul, em conceder provimento ao recurso, por provados os seus respetivos fundamentos, em revogar a sentença recorrida e, em substituição, julgar a ação procedente, anulando o ato impugnado de não adjudicação e a consequente revogação da decisão de contratar, e condenar a Recorrida a adjudicar a proposta da Autora, sem prejuízo da aplicação do disposto no artigo 45.º do CPTA.

Custas pela Recorrida, em ambas as instâncias.

Registe e Notifique.

A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13/03, aditado pelo artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 20/2020, de 01/05, tem voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Juízes integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores, Pedro Marchão Marques e Alda Nunes.


(Ana Celeste Carvalho - Relatora)