Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:114/20.0BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:01/21/2021
Relator:CATARINA VASCONCELOS
Descritores:TRIBUNAL ARBITRAL DO DESPORTO
PROCESSO DISCIPLINAR SUMÁRIO
AUDIÊNCIA DO ARGUIDO
DIREITO DE DEFESA
Sumário:É nula, porque ofende o conteúdo essencial dos direitos fundamentais de defesa vertidos nos art.ºs 32º, n.º 10 e 269º, n.º 3 da CRP, a decisão do Conselho Disciplinar que, no âmbito de procedimento disciplinar sumário, não foi precedida da faculdade de exercício pelo arguido dos direitos de audiência e defesa.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I – Relatório:

A Federação Portuguesa de Futebol nos termos dos art.ºs 8º, n.ºs 1, 2 e 5 da LTAD, interpôs o presente recurso do acórdão do Tribunal Arbitral do Desporto (TAD) de 27 de outubro de 2020 que julgou procedente o recurso apresentado pela s....., SAD, que correu termos sob o n.º ....., declarando nula a deliberação do Conselho de Disciplina que, sob a forma de Acórdão, o condenou em multa pela prática de infração p.p. pelos artigos 127.º, n.º 1, 186.º, n.º 2, e 187.º, n.ºs 1, als. a) e b) do RD da LPFP, na medida em que tal decisão, ao não ter sido precedida de audiência do arguido, ofende o conteúdo essencial dos direitos fundamentais de defesa vertidos no artigo 32.º, n.º 10, e 269.º, n.º 3, ambos da CRP, padecendo assim do vício de violação de lei, sancionado com a nulidade, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 161º, n.º 2, alínea c) do CPA.
Formulou as seguintes conclusões:
1. O presente recurso tem por objeto o Acórdão Arbitral proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto, notificado em 27 de outubro de 2020, que julgou procedente o recurso apresentado pela ora Recorrida, que correu termos sob o n.º ......
2. Em concreto, o presente recurso versa sobre a decisão do Colégio Arbitral em declarar nula a deliberação do Conselho de Disciplina que, sob a forma de Acórdão, condenou em multa a ora Recorrida pela prática de infração p.p. pelos artigos 127.º, n.º 1, 186.º, n.º 2 e 187.º, n.ºs 1, als. a) e b) do RD da LPFP, porquanto decidiu que o artigo 214.º do Regulamento Disciplinar da LPFP é materialmente inconstitucional por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3, ambos da CRP.
3. A decisão arbitral de que ora se recorre é passível de censura porquanto existe um erro de julgamento na interpretação e aplicação do Direito invocado.
4. O Colégio Arbitral entendeu que o artigo 214.º do RD da LPFP é materialmente inconstitucional e, em consequência, não podendo ter aplicação, o ato punitivo sub judice, praticado no procedimento administrativo de primeiro grau é nulo, o mesmo valendo para a deliberação que o manteve, ou seja, para o ato colegial praticado no procedimento administrativo de segundo grau.
5. O TAD andou mal ao declarar a nulidade da deliberação impugnada, ignorando por completo todo o complexo normativo aplicável ao caso, designadamente o específico do ramo do Desporto, pelo que se impõe a confirmação da legalidade da decisão impugnada.
6. Atualmente, e no seguimento de um percurso histórico-legislativo, o quadro normativo que temos, constante do artigo 53.º do RJFD, é o seguinte: apenas é exigível processo disciplinar para as infrações mais graves; estabelecimento da necessidade de audiência do arguido apenas nos casos em que seja necessária a instauração de processo disciplinar; garantia de recurso quer tenha ou não existido processo disciplinar.
7. Tal pressupõe, a contrario, que: nas infrações menos graves não há necessidade de existir processo disciplinar, podendo as mesmas ser sancionadas sem atender a essa formalidade; não existindo processo disciplinar, não existe necessidade de audiência do arguido; tal é perfeitamente admissível e pretendido pelo legislador, tanto que existe garantia de recurso das sanções aplicadas quer tenha ou não existido processo disciplinar.
8. A celeridade do procedimento é uma preocupação facilmente constatável ao longo do RD da LPFP, bastando olhar para os prazos reduzidos que são estabelecidos em todas fases.
9. Tem lugar a aplicação do processo sumário quando estiver em causa o exercício da ação disciplinar relativamente a infrações disciplinares menos graves ou, em qualquer caso, infrações disciplinares puníveis com sanção de suspensão por período igual ou inferior à de suspensão por um mês ou por quatro jogos (artigo 257.º do RD da LPFP).
10. Nos termos do artigo 258.º, n.º 1 do RD da LPFP, o processo sumário é instaurado tendo por base o relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais ou dos delegados da Liga, ou ainda com base em auto por infração verificada em flagrante delito
11. O Processo Sumário é configurado, também neste Regulamento Disciplinar, como um procedimento especial, propositadamente célere - Atente-se, ao disposto no artigo 259.º do RD da LPFP.
12. Nesse sentido, para garantir a necessária celeridade deste tipo de processos, determina o artigo 214.º do RD da LPFF que “Salvo o disposto no presente Regulamento quanto ao processo sumário, a aplicação de qualquer sanção disciplinar é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido através da instauração do correspondente procedimento disciplinar.”.
13. Ora, no âmbito do processo sumário (artigo 259.º, número 1 do RD da LPFP) não se encontra consagrado o direito de audiência prévia ao arguido. E tal ocorre por existir flagrante delito, que para estes efeitos se traduz na perceção direta e clara de que aquele agente cometeu uma infração (artigo 258.º, número 2), ou baseado no relatório dos árbitros, da polícia ou do delegado, cujos factos deles constantes foram diretamente visionados pelos respetivos signatários.
14. A celeridade que se exige na tramitação de determinadas infrações disciplinares, que sublinhe-se correspondem a infrações leves ou cuja sanção não ultrapassa determinados limites, não se compadece com um procedimento disciplinar que consagre as garantias de defesa do arguido em toda a sua amplitude (como se, na verdade, de um procedimento criminal se tratasse).
15. É pois exigível, no especifico mundo das competições desportivas, um tipo de obtenção de decisão sancionatória que seja célere, de forma a acompanhar a dinâmica das competições e provas, que muitas vezes levam a que o jogo ou jogos seguintes, se venham a disputar no espaço de 48 ou 72 horas. Na verdade, não raras vezes, existem jornadas ao fim de semana e ao meio da semana.
16. Tal implica que o Conselho de Disciplina – composto por pessoas e não por máquinas – analise vários relatórios elaborados após cada jogo – de arbitragem, dos delegados, de policiamento disciplinar – que nem sequer ficam disponíveis logo após o jogo respetivo, 40 verifique e enquadre juridicamente as eventuais incidências disciplinares, elabore o ato final e o publicite, em tempo útil, ou seja, antes da próxima jornada.
17. Como se depreende do acima exposto, aquilo que se pretende (e exige) é que a aplicação de sanções seja efetiva, isto é, que se projete da forma mais breve possível na competição ou prova que se desenrola, sob pena de se perderem os seus efeitos úteis.
18. Dessa forma - e só dessa forma – a defesa dos valores desportivos e as finalidades da sanção – prevenção especial e geral – se veem alcançadas.
19. A preterição do direito de audiência prévia do arguido encontra fundamento nas especificidades do direito do desporto e, mais concretamente, na imposição de um normal desenrolar das competições desportivas, de forma a garantir a preservação da verdade desportiva e o equilíbrio da competição, através da aplicação de sanções em tempo célere e com efeito útil, para que as mesmas sejam cumpridas imediatamente ou nos jogos que se seguem.
20. As federações desportivas, embora sejam entidades de direito privado, participam na organização e gestão do serviço público desportivo, através da concessão do estatuto de utilidade pública desportiva.
21. A finalidade da atribuição desse estatuto às federações desportivas e, em particular, à ora Recorrente, é a de proporcionar meios e formas de atuação que revistam de interesse e utilidade para a comunidade em geral no âmbito do desporto.
22. Para isso são-lhe atribuídas um conjunto de prerrogativas de autoridade para o cabal exercício das suas legais competências, isto é, é investida dos poderes públicos, designadamente, de regulamentação e disciplina.
23. Através da concessão de poderes públicos, o Estado realiza as atribuições que lhe estão cometidas na Lei Fundamental: as federações exercem poderes de autoridade sobre as entidades integradas na sua organização e submetidas à sua ação reguladora.
24. O exercício do poder disciplinar, enquanto exercício de um poder público, no cumprimento de uma missão de serviço público, manifesta-se no sancionamento de uma multiplicidade de regras desportivas, de entre as quais, a violação das regras do jogo e as relativas à ética desportiva e ao combate à violência no desporto (cfr. artigo 52.º RJFD).
25. O exercício do poder disciplinar é, pois, não temos qualquer dúvida, um meio instrumental necessário da organização e gestão do desporto e uma forma de garantir o direito ao desporto constitucionalmente garantido.
26. Caso se garantisse o contraditório no âmbito dos processos sumários a própria continuidade das competições desportivas seria colocada em risco e, em última instância, a Recorrente não conseguiria promover e desenvolver a modalidade desportiva, dever no qual foi, como infra melhor se explanará, constitucionalmente incumbida, levando inclusivamente a que as federações se vissem impossibilitadas de preencher o requisito da subalínea i, da alínea a) do artigo 2.º, com a epígrafe “Conceito de federação desportiva” do Regime Jurídico das Federações Desportivas.
27. Os factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem e do delegado da Liga e dos autos de flagrante delito lavrados pelos membros da Comissão de Instrutores, e por eles percecionados no exercício das suas funções, enquanto a veracidade do seu conteúdo não for fundadamente posta em causa gozam de uma presunção de veracidade e é com base nesta presunção, ilidível em sede de recurso, que o Conselho de Disciplina irá aplicar as necessárias sanções, em prol do bom funcionamento e desenrolar das competições organizadas pela Recorrente e de uma boa administração da justiça.
28. O RD da LPFP consagra uma garantia mais ampla dos direitos do arguido do que aquela que é exigida pelo RJFD pois aquele Regulamento consagra uma real possibilidade de defesa, num segundo momento, através da previsão de recurso interno da decisão sumária, quer estejamos perante a aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva, ou não.
29. Atendendo, ainda, ao disposto no artigo 260.º, n.º 1 do RD da LPFP, a aplicação em sede de processo sumário só terá lugar quando o grau de certeza quanto à prática da infração disciplinar for quase absoluto. Existindo dúvidas quanto à prática da infração ou do infrator, dever-se-á proceder à instauração de processo disciplinar e cumprir-se com os trâmites, mais morosos, previsto para este procedimento comum.
30. A existência de processos sumários, sem audição do arguido, foi expressamente aprovada pela Recorrida, em sede de Assembleia Geral da LPFP pelo que, por essa via, operou uma verdadeira autorrestrição de direitos.
31. A garantia dos direitos de audiência e defesa do arguido no âmbito de processos sancionatórios terá de se harmonizar com o direito ao desporto que, tal como aquele, é um direito constitucionalmente consagrado.
32. É que, consabidamente, mesmo no âmbito dos direitos fundamentais plasmados na Constituição da República Portuguesa, ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, não existem direitos absolutos.
33. Desde logo, determina o artigo 79.º da CRP que “1. Todos têm direito à cultura física e ao desporto. 2. Incumbe ao Estado, em colaboração com as escolas e as associações e coletividades desportivas, promover, estimular, orientar e apoiar a prática e a difusão da cultura física e do desporto, bem como prevenir a violência no desporto.”.
34. Esta afirmação genérica de que todos têm direito ao desporto tem sido – e deve ser - lida com amplitude máxima, cobrindo todo o setor desportivo, incluindo o desporto profissional e o direito das pessoas coletivas, nos termos do disposto no artigo 12.º, n.º 2 da CRP, em dele serem também titulares não só na perspetiva da participação em competições e provas desportivas, mas ainda na da organização dessas mesmas competições desportivas.
35. A delimitação do «conteúdo essencial» dos direitos fundamentais só se coloca, porque estes podem ser objeto de restrições. Na verdade, como acima se mencionou, não existem direitos fundamentais absolutos. Sucede que, as restrições dos direitos fundamentais têm sempre um limite, já que não poderá ser ofendido aquele mínimo para além do qual o direito fundamental deixa de o ser, fica esvaziado enquanto tal.
36. Sendo verdade que o Direito ao Desporto, constitucionalmente consagrado, tem uma aceção bastante ampla, não temos qualquer dúvida que no núcleo essencial deste direito estão incluídos o desporto profissional e, ainda, o direito a organizar e participar em competições desportivas.
37. Caso se garantisse o contraditório no âmbito dos processos sumários que, sublinhe-se novamente, pretende sancionar infrações menos graves ou puníveis com sanção de suspensão por período de tempo igual ou inferior à de suspensão por um mês ou por quatro jogos, a própria continuidade das competições desportivas seria colocada em risco e, em última instância, a Recorrente não conseguiria promover e desenvolver a modalidade desportiva do Futebol nas suas diferentes variantes.
38. Ainda, não temos qualquer dúvida que a restrição do direito a uma audiência prévia, consagrado no artigo 32.º, n.º 10 da CRP, operado por via do RJFD e pela existência do processo sumário tal como consagrado no RD da LPFP – com preterição dessa audiência tal como previsto no artigo 214.º do mesmo Regulamento – é proporcional, isto é, afigura-se necessária, adequada e proporcional em sentido estrito.
39. Uma das características do direito do desporto é a integração das federações desportivas nacionais em organizações desportivas internacionais (no caso, a UEFA e a FIFA) as quais são dotadas de fortes poderes normativos e sancionatórios sobre as federações nacionais, num designado fenómeno de “administração transnacional não estadual” do desporto.
40. Este domínio normativo – normas do ordenamento jurídico desportivo e normas do direito estatal – tem vindo nas duas últimas décadas, cada vez mais, a pautar-se por relações de integração, procurando-se e obtendo-se as soluções possíveis à luz dos dois ordenamentos normativos (o privado desportivo e o estatal).
41. Em suma, a concordância/harmonização do direito ao desporto com a garantia de audiência e defesa num momento anterior à prolação do ato punitivo não pode ser outra senão a constante do RJFD e, por conseguinte, no RD da LPFP. Não obstante, esta audiência e defesa será sempre garantida quando, em sede de recurso, se passa para o Plenário do Conselho de Disciplina, como sucedeu, saliente-se, nos presentes autos.
42. O modelo, assim desenhado, é o único que permite a realização de milhares de competições desportivas federadas, as quais, a sufragar a leitura restrita do Tribunal, pura e simplesmente colapsariam.
43. Face ao exposto, fica demonstrado que o Acórdão recorrido merece a censura que lhe é apontada e deve ser revogado, sendo mantida a decisão proferida pelo CD.


O Recorrido contra-alegou tendo formulado as seguintes conclusões:

A. O processo sumário é um procedimento disciplinar com natureza sancionatória e pública, pelo que aí se impõe a aplicação de garantias constitucionais previstas para o próprio processo penal, designadamente as que constam dos artigos 32.º e o art.º 269.º, especialmente, os n.ºs 10 e 3.
B. Dentre as mencionadas garantias, avultam os direitos de audiência e de defesa consagrados em benefício do arguido e indiscutivelmente extensíveis a todos os processos de natureza sancionatória, de acordo com o prescrito no n.º 10 do art.º 32.º.
C. O artigo 214.º do RD permite concluir que o processo sumário não contempla a audição prévia do arguido; e não há alusão a tal fase processual no texto normativo que regula o processo sumário, de onde resulta que que a tramitação do mesmo globalmente considerada preclude, necessariamente, tal diligência.
D. Não há confronto de direitos fundamentais que justifique a preclusão da audiência prévia no processo sumário.
E. O direito ao desporto constitucionalmente consagrado só se afirmará num contexto em que garantias elementares dos indivíduos (constitucionalmente consagradas em benefício da protecção da dignidade da pessoa humana) sejam reconhecidas em nome de uma disciplina que procure chegar a decisões justas e que promova a verdade desportiva.
F. É materialmente inconstitucional a norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar no âmbito do processo sumário sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artgo 214.º do RD-LPF, por violação do direito de audiência e defesa plasmado no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
G. A decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da Recorrente no dia 14 de Janeiro de 2020, e mantida pelo Acórdão do Conselho de Disciplina proferido no dia 11 de Fevereiro de 2020, por intermédio da qual foi a S..... SAD condenada e punida pela prática de quatro infracções, por violação das normas constantes dos artigos 127.º, n.º 1, 186.º, n.º 2 e 187.º, n.º 1, a) e b), do RD não foi precedida de audiência da S..... SAD.
H. Deliberou bem o Colégio Arbitral do TAD ao declarar nula a decisão acima referida, já que tal decisão, por não ser precedida de audiência do arguido, ofende o conteúdo essencial dos direitos fundamentais de defesa vertidos nos artigos 32.º, n.º 10, e 269.º, n.º 3, da CRP, padecendo assim do vício de violação de lei, sancionado com a nulidade, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 161.º, n.º 2, alínea c), do CPA.
*
O Ministério Público, junto deste Tribunal, não emitiu parecer.
*
II – Objeto do recurso:
Em face das conclusões formuladas, cumpre decidir se o Tribunal Arbitral do Desporto errou ao julgar que o artigo 214.º do Regulamento Disciplinar da LPFP viola os artigos 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3 da CRP.
*
III - Fundamentação De Facto:

No acórdão recorrido não foi discriminada especificadamente a factualidade provada.
Resulta, da tramitação dos autos, o seguinte:

1. Em 14 de janeiro de 2020, no âmbito do processo disciplinar (sumário) n.º 23-19/20, foi proferida decisão, em formação restrita, pelo Conselho de Disciplina da Liga Portuguesa de Futebol nos termos da qual o S....., SAD foi condenado no pagamento de uma multa no valor total de € 19.636,00 (dezanove mil seiscentos e trinta e seis euros), por violação do disposto nos artigos 127.º, n.º 1, 186.º, n.º 2, e 187.º n.º 1, a) e b), do RD.

2. Tal decisão foi mantida por acórdão do Conselho de Disciplina proferido no dia 11de fevereiro de 2020.

3. O S....., SAD não foi ouvido no âmbito do processo disciplinar.


*
IV – Fundamentação De Direito:

O art.º 214º do RDLPFP, cuja aplicação viola, segundo julgou o Tribunal a quo, os art.ºs 32º, n.º 10 e 269º da CRP, tem por epígrafe “Obrigatoriedade de audição do arguido” e é o seguinte o seu teor:

“Salvo o disposto no presente Regulamento quanto ao processo sumário, a aplicação de qualquer sanção disciplinar é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido através da instauração do correspondente procedimento disciplinar.”

Sobre esta questão (relativa à constitucionalidade desta norma) pronunciou-se recentemente o Tribunal Constitucional em dois acórdãos - o acórdão n.º 594/2020 de 10.11.2020 (processo n.º 49/2020) e o acórdão n.º 742/2020 de 10.12.2020 (processo n.º 506/2020), ambos publicados em www.tribunalconstitucional.pt, em termos com os quais se concordam.
No mesmo sentido, aliás, já se pronunciou também este Tribunal Central Administrativo Sul em acórdãos proferidos no âmbito dos processos n.ºs 40/19.0BCLSB (em 10.12.2019), 35/19.0BCLSB (em 18.12.2019), 14/20.4BCLSB (em 16.04.2020), 13/20.6BCLSB (em 30.04.2020) e 94/20.2BCLSB (em 10.12.2020), todos publicados em www.dgsi.pt.
Como se evidenciou, concorda-se integralmente com a apreciação da questão a que procedeu o Tribunal Constitucional pelo que aderimos à fundamentação vertida no citado acórdão n.º 594/2020 que a seguir se transcreve:
“A República Portuguesa, enquanto Estado Democrático de Direito, garante a existência de um processo disciplinar justo. Sendo um instrumento para apurar e punir infrações disciplinares, o processo disciplinar apresenta relações com o Direito Processual Penal, designadamente na medida em que se encontra também necessariamente subordinado a princípios e regras que assegurem os direitos de defesa.

A Constituição assume aquela relação, no artigo 32.º, sob a epígrafe “garantias do processo penal”, ao assegurar, no n.º 10, as garantias do direito de audiência e defesa nos processos contraordenacionais e em «quaisquer processos sancionatórios». Esta norma constitucional foi introduzida pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios.

De acordo com Germano Marques da Silva e Henrique Salinas «O n.º 10 garante aos arguidos em quaisquer processos de natureza sancionatória os direitos de audiência e defesa. Significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qualquer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas. Neste sentido, entre outros, os Acs. n.ºs 659/06, 313/07, 45/08, e 135/09, esclarecendo-se ainda, no Ac. n.º 469/97, que esta exigência vale não apenas para a fase administrativa, mas também para a fase jurisdicional do processo» (cfr. Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda e Rui Medeiros (coord.), vol. I, Universidade Católica Editora, 2017, p. 537).

Pronunciando-se sobre o sentido da garantia prevista no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, o Tribunal Constitucional referiu no Acórdão n.º 135/2009, do Plenário, ponto 7:

«(…) [C]omo se sustentou nos Acór­dãos n.ºs 659/2006 e 313/2007, com a introdução dessa norma constitucional (efetuada, pela revisão constitucional de 1989, quanto aos processos de contraordenação, e alargada, pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios) o que se pretendeu foi assegurar, nes­ses tipos de processos, os direitos de audiência e de defesa do arguido, direitos estes que, na versão originária da Constituição, apenas estavam expressa­mente assegurados aos argui­dos em processos disciplinares no âmbito da função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspon­dente ao atual artigo 269.º, n.º 3). Tal norma implica tão-só ser inconstitucional a aplicação de qual­quer tipo de sanção, contraordenacional, administrativa, fiscal, laboral, disciplinar ou qual­quer outra, sem que o arguido seja previamente ouvido (direito de audição) e possa defen­der-se das imputações que lhe são feitas (direito de defesa), apresentando meios de prova e requerendo a realização de diligências tendentes a apurar a verdade (cf. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, Coimbra, 2005, p. 363). É esse o limitado alcance da norma do n.º 10 do artigo 32.º da CRP, tendo sido rejei­tada, no âmbito da revisão constitucional de 1997, uma proposta no sentido de se consagrar o asseguramento ao arguido, “nos processos disciplinares e demais processos sancionatórios”, de “todas as garan­tias do processo criminal” (artigo 32.º-B do Projecto de Revisão Constitu­cional n.º 4/VII, do PCP; cf. o correspondente debate no Diário da Assem­bleia da República, II Série-RC, n.º 20, de 12 de Setembro de 1996, pp. 541-544, e I Série, n.º 95, de 17 de Julho de 1997, pp. 3412 e 3466)».

No Acórdão n.º 338/2018, da 3.ª Secção, ponto 14, o Tribunal voltou a afirmar:

«No que diz respeito ao n.º 10 do artigo 32.º, referiu-se no Acórdão n.º 180/2014 que o mesmo releva “no plano adjetivo e significa ser inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção contraordenacional ou administrativa sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra, 2005, pág. 363, e acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 160/2004 e 161/2004)».


Em suma, e como se reconhece no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, os direitos de audiência – de ser efetivamente ouvido antes do decretamento da sanção –, e defesa – de apresentar a sua versão dos factos, juntar meios de prova e requerer a realização de diligências – constituem uma dimensão essencial tanto do processo criminal como dos processos de contraordenação como, finalmente, também de todos os processos sancionatórios. No caso dos processos sancionatórios disciplinares no contexto da função pública, a essencialidade dos referidos direitos de audiência e de defesa é reforçada ainda pelo artigo 269.º, n.º 3, da Constituição. O sentido útil desta «explicitação constitucional do direito de audiência e de defesa é o de se dever considerar a falta de audiência do arguido ou a omissão de formalidades essenciais à defesa como implicando a ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa» (Cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, 2010, p. 841).

Exigindo o n.º 10 do artigo 32.º da Constituição que o arguido nos processos sancionatórios não-penais ali referidos seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e alegando as suas razões, imperioso será concluir que uma norma que permita a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas se apresenta necessariamente como violadora da Constituição.


14. O processo sumário regulado no RD-LPF é um processo disciplinar. Visa punir o ilícito disciplinar com uma sanção disciplinar, tendo, portanto, natureza sancionatória. Nessa medida, encontra-se abrangido pelo âmbito de aplicação do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição. Sendo assim, inequívoco se afigura que a norma do referido Regulamento, que suprime o direito de audiência no âmbito do processo disciplinar sumário, contraria flagrantemente o disposto no artigo 32.º, n.º 10 da Constituição.

Em face do exposto, conclui-se pela inconstitucionalidade material da norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar no âmbito do processo sumário sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do RD-LPF, por violação do direito de audiência e defesa plasmado no n.º 10 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.

Concluímos, portanto, que o Tribunal a quo decidiu acertadamente. Não se tendo procedido à audiência do arguido, ofendeu-se efetivamente o conteúdo essencial dos direitos fundamentais de defesa vertidos no artigo 32.º, n.º 10, e 269.º, n.º 3, ambos da CRP, pelo que se impunha a declaração de nulidade da decisão do Conselho Disciplinar.
Não merece, portanto, o recurso, provimento.

*
As custas serão suportadas pela Recorrente Federação Portuguesa de Futebol, nos termos dos art.ºs 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
*
V – Decisão:

Nestes termos, acordam, em conferência, os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Tribunal, em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, manter o acórdão arbitral.

Custas pela Recorrente Federação Portuguesa de Futebol.

Registe e notifique.

Lisboa, 21 de janeiro de 2021



Catarina Vasconcelos
Paulo Pereira Gouveia
Catarina Jarmela


Nos termos e para os efeitos do artigo 15º-A do DL nº10-A/2020, de 13.03, a Relatora atesta que os Sr.s Juízes Desembargadores Adjuntos têm voto de conformidade.