Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
| Processo: | 1586/12.2BELRS |
| Secção: | CT |
| Data do Acordão: | 07/13/2023 |
| Relator: | TÂNIA MEIRELES DA CUNHA |
| Descritores: | IRS MAIS-VALIAS VPT DEMONSTRAÇÃO DO PREÇO EFETIVO CAPACIDADE CONTRIBUTIVA |
| Sumário: | I. A norma que determina o valor de realização, no âmbito da tributação das mais-valias, com base no VPT do prédio, não pode ser aplicada sem que o contribuinte tenha à sua disposição um procedimento de demonstração do preço efetivo praticado na alienação do direito real em causa, sob pena de violação do princípio constitucional da capacidade contributiva. |
| Aditamento: |
| 1 |
| Decisão Texto Integral: | Acórdão
I. RELATÓRIO A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio recorrer da sentença proferida a 25.05.2020, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por A. G. (doravante Recorrido ou Impugnante), que teve por objeto o indeferimento da reclamação graciosa que, por seu turno, versou sobre a liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares (IRS) e a dos respetivos juros compensatórios, relativas ao ano de 2009. Nas suas alegações, concluiu nos seguintes termos: “I. O presente Recurso vem reagir contra a Sentença do Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação judicial referente a IRS de 2009. II. A Fazenda Pública considera que a douta decisão do Tribunal a quo ora recorrida, não faz, salvo o devido respeito, total e acertada aplicação das normas legais aplicáveis ao caso sub judice e, bem assim, uma correta apreciação da matéria de facto relevante. III. A impugnação tem por objeto a liquidação de IRS, referente a 2009, que resultou de ação de inspeção, ou seja, a liquidação nº 2011 5005077435, da qual resultaram correção tendo em conta o VPT que resultou da avaliação efetuada nos termos do CIMI. IV. A douta sentença recorrida julgou procedente a impugnação aludindo à inconstitucionalidade do artigo 44º, nº 2 do CIRS na medida em que este estabelecia uma presunção inilidível, tendo ainda considerado que o impugnante ilidiu a presunção. V. Contudo, importa salientar que a liquidação impugnada corrigiu a declaração de substituição entregue pelo sujeito passivo no sentido de fazer coincidir o valor de realização com o VPT à data da escritura, não sendo a liquidação resultante da declaração de substituição objeto da presente impugnação. VI. A douta sentença extravasa assim o objeto da ação e o pedido do impugnante que versa sobre as correções efetuadas, nomeadamente a correção de € 206.724,76 para € 391.510,00. VII. A Fazenda Pública não pode de modo algum concordar com a douta sentença recorrida ao considerar ilidida a presunção, sendo que a douta sentença não refere que documentos relevantes seriam esses que teriam ilidido a presunção. Acresce ainda referir que o valor declarado na escritura por si só não pode afastar a aplicação da regra anti abuso que resulta do artigo 44º nº 2 do CIRS, pois se assim fosse, a norma nunca seria aplicada, sendo o campo de aplicação da norma precisamente as situações em que o valor patrimonial é superior ao valor declarado. VIII. No caso dos autos é de referir que a venda em causa corresponde à primeira transmissão no âmbito da vigência do IMI, pelo que é aqui aplicável o disposto no artigo 15º e no artigo 27º ambos do DL 287/2003 de 12-11: relativamente as primeiras transmissões que ocorrerem após a entrada em vigor do código, o imposto é liquidado provisoriamente (à data da escritura) pelo valor constante no ato ou contrato ou pelo VPT inscrito na matriz à data da liquidação, consoante o que for maior, sendo a liquidação de IMT corrigida, sendo caso disso, logo que o VPT se torne definitivo. IX. Ora, por se tratar da primeira transmissão na vigência do CIMI, o VPT que resultar dessa avaliação do referido imóvel é aplicado para efeitos para efeitos de liquidação do IMT dessa mesma transmissão (e de IRS por força do artigo 44º, nº 2 do CIRS), tendo a liquidação de IMT sido corrigida logo que o VPT foi determinado. X. Fica assim demonstrado que o valor a ter em conta para efeitos de IRS não é o VPT que constava na matriz à data da escritura, mas o VPT que resultou da avaliação. XI. Importa ainda referir que o IMT pago pela sociedade adquirente do imóvel teve por base o VPT que resultou da avaliação efetuada na sequência da primeira avaliação, ou seja, € 391.510,00, pelo que este deverá ser acrescentado aos factos dados como provados, por resultar do doc 10/39 da p.i.). XII. Ao decidir como decidiu, a douta sentença recorrida incorre em erro de julgamento de facto e de direito ao afastar injustificadamente a aplicação da norma anti abuso, violando o disposto nas normas do artigo 44º, nº 2 do CIRS e o artigo 74º da LGT (ónus da prova). Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação improcedente. Porém, V. Exªas decidindo, farão a costumada JUSTIÇA”. O Recorrido apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões: “1- Deverá ser rectificada, na motivação de direito da Douta Sentença a quo, onde alude o valor de 189.000,00€, nos parágrafos 23° e 36° do título IV, como valor de alienação do imóvel artigo …. da freguesia de A. R. (Vila Franca de Xira - 2), devendo ser corrigido para 185.000€. 2 - A Sentença a quo faz a acertada aplicação das normas legais e uma correta apreciação da matéria de facto relevante, espelha a verdade e é absolutamente correta. 3 - Não extravasa o objeto da ação e o pedido, anula a liquidação oficiosa efetuada aos rendimentos do ano 2009, conforme peticionado pelo Recorrido. 4- Resulta provado que o Recorrido vendeu a 09.03.2009 a fração “..” com artigo … da freguesia de A. R. depois da entrada em vigor códigos do IMI e do IMT (2003), pelo preço de 185.000€ e não 189.000€ como, certamente por lapso, refere a Recorrente nos artigos 7o, 10° e 11º das suas alegações. 5- O Recorrido submeteu a declaração de IRS de 2009 refletindo no anexo G os respetivos valores de aquisição e de realização, os 185.000€. 6- Foi a AT que impôs que o Recorrido alterasse o valor de realização, no anexo “G” da sua declaração de rendimentos de 2009, para o VPT (206.724,76€), conforme notificação da AT junta aos presentes autos com a PI como Doc. 3. 7- A Sentença a quo anula a liquidação oficiosa n.° 2011 5005077435 e mantem a liquidação n.° 2011 5004877040 resultado desta declaração de substituição entregue pelo Recorrido. 8 - A liquidação oficiosa in casu, resultou da ação inspetiva tributária que, também de forma ilegal, considerou como valor de realização o VPT determinado a 30.09.2009, mais de seis meses depois da venda, de 391.510€ para o referido imóvel. 9- Desta forma ilícita procedeu à correção oficiosa que resultou na aludida liquidação n.° 2011 5005077435, com o montante a pagar de 31.932,16€. 10- Por ser ilegal e inconstitucional, o Recorrido não pagou, reclamou e impugnou e, desde então, tem sido alvo de sucessivas penhoras. 11- O ónus da prova foi cumprido pelo Recorrido junto dos Serviços da AT, conforme corrobora o RI, que dá como assente o valor de realização de 185.000€ sublinhando-o em vários pontos. 12- Os Serviços da AT aceitaram-no, porém interpretavam o n.° 2 do artigo 44° do CIRS (na versão à data dos factos) como uma presunção inilidível que veio a ser considerada inconstitucional por violação do princípio constitucional da capacidade contributiva. 13- Nos presentes autos a FP não impugnou e aceita o aludido valor de realização de 185.000€ e em sede de alegações de recurso, invocar que não tinha sido ilidida a presunção. 14- A FP argumenta que a venda do aludido imóvel corresponde à primeira transmissão no âmbito da vigência de IMI, que o IMT era liquidado provisoriamente (à data da escritura) pelo valor constante do ato ou pelo VPT inscrito na matriz à data, consoante o que fosse maior, sendo a liquidação de IMT corrigida logo que o VPT se tomasse definitivo. 15- A FP aplica esta fórmula, em clara violação do princípio da legalidade tributária dos artigos 103°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 8º da Lei Geral Tributária (LGT). 16— Em direito tributário impera a proibição da interpretação analógica (cfr. artigo 11º, n.° 4, da LGT), pelo que a AT também não pode aplicar normas de tributação do património à tributação do rendimento. 17- Está expressamente tipificado, através da conjugação da al. f) do n.° 1 e no n.° 2 do artigo 44° do CIRS com a al. a) do n.° 1 e n.° 3 do artigo 10° do mesmo diploma legal, que os ganhos se consideram obtidos no momento da pratica dos atos previstos no n.° 1 deste artigo 10° do CIRS, ou seja, na data da alienação. 18- Não podia a AT, por força destas disposições legais e dos princípios constitucionais da segurança jurídica e da proteção da confiança, fazer valer um VPT atribuído quase sete meses depois da venda, para efeitos de tributação dos incrementos patrimoniais, tributando este Sujeito Passivo por um rendimento que não auferiu! 19- No momento da venda, era impossível prever que, quase sete meses depois, fosse atribuído pela AT um VPT assaz excessivo, por erro grosseiro da própria AT que alterou oficiosamente a afetação do imóvel para serviços. 20- Inexiste a violação alegada pela FP do disposto nas normas do artigo 44°, n.°2, do CIRS e do artigo 74° da LGT. 21- Ao invés, foi a AT que violou, de entre outras, as supracitadas normas legais, os princípios constitucionais da legalidade tributária, da igualdade, da capacidade contributiva, bem como, da tributação real dos rendimentos. 22- Donde, inexiste erro de julgamento de facto e de direito na Douta Decisão recorrida, devendo a mesma ser mantida. Pelas razões expostas, deverá negar-se provimento ao recurso interposto pela Fazendo Pública, confirmando-se a Douta Decisão recorrida e assim se fará JUSTIÇA!”. O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso. Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.
São as seguintes as questões a decidir: a) Há erro na decisão proferida sobre a matéria de facto? b) A sentença extravasou o objeto da ação e o pedido? c) Verifica-se erro de julgamento, por não estar cabalmente explanado em que termos foi ilidida a presunção, sendo que o valor patrimonial tributário (VPT) a considerar é o que resultou da avaliação?
II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto: “ 1. Em 09.03.2009 o impugnante alienou à sociedade «C. & L. Lda.» a fração autónoma designada pela letra “..” correspondente ao R/c e 1.º andar, armazém, escritórios e serviços com os estacionamentos numerados de .. a .. e .., sito no P. A., E. N. …. Km…7,2 freguesia de A., concelho de Vila Franca de Xira, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Vila Franca de Xira sob o n.º … inscrito na matriz sob o artigo …; (Cf., Doc.1 junto com a PI) 2. O montante da venda, inscrito na escritura publica de Compra e Venda foi de €185.000,00 sendo que, à data da mesma, 09.03.2009, o VPT era de €206.724,76; (Cf., Doc.1 e 2 juntos com a PI) 3. Por ação de inspeção, o impugnante foi chamado a proceder à substituição do Anexo “G” da declaração de rendimentos de 2009, para o valor de alienação igual ao VPT determinado, à data da alienação, ou seja, para 206.724,76€; (Cf., Doc.3 e 4 juntos com a PI) 4. Da referida declaração de substituição de IRS referente ao ano de 2009, validada com o código ….XD – ……-64 submetida no dia 07.06.2011, resultou a liquidação adicional n.º 2011 5004877040 efetuada, em 13.07.2011 com um montante a pagar de 316,22€; (Cf., Doc. 5 e 6 juntos com a PI) 5. O impugnante efetuou o pagamento da liquidação adicional, em 24.08.2011 no valor de 334,50€; (Cf., doc. 7 junto com a PI) 6. O impugnante foi notificado do projeto de correções do relatório de inspeção tributária (RIT) para o exercício do direito de audição prévia, que exerceu com os fundamentos que se dão por reproduzidos; (Cf., Doc. 8 e 9 juntos com a PI) 7. Através do oficio n.º 082488 de 23.09.2011, o impugnante foi notificado das conclusões do RIT – Análise interna com um rendimento apurado de 146.052,00€ por correções efetuadas da seguinte forma: «(…)
Imagens: Originais nos autos
(…)
Imagem: original nos autos
(Cf., Doc. 10 junto com a PI) 8. O imóvel descrito na matriz predial sob o artigo …. da freguesia de Vila Franca de Xira foi avaliado em 03.07.2009 e registado na respetiva matriz em 30.09.2009, tendo sido determinado um VPT de 391.510,00, como resulta das conclusões da analise interna; 9. Das referidas correções à declaração Modelo 3 de IRS do Impugnante resultou uma liquidação oficiosa n.º 2022 50050774345 de IRS e juros compensatórios, efetuadas em 10.10.2011, relativas ao ano de 2009 com montante total a pagar de 31.932,16€, (Cf., Doc. 11, 12 e 13 juntos com a PI) 10. Em 25.11.2011, o impugnante deu entrada no serviço de finanças de Vila Franca de Xira -1 de Reclamação Graciosa com os fundamentos que se dão por reproduzidos, tendo sido objeto de indeferimento apesar do exercício de audição prévia pelo impugnante, por despacho do Chefe de Equipa da Divisão de Justiça Contenciosa – Por delegação de competências, datado de 19.04.2012; (Cf., doc.s 14 a 19 juntos com a PI ) 11. Pela alienação do imóvel em causa nos autos a sociedade adquirente efetuou o respetivo pagamento relativo a IMT, no montante de 13.437,11€ e, relativamente a Imposto do Selo, o montante de 1.653,80€; (Cf., doc.s 15/1 a 15 /3 juntos com a PI)”.
II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida: “Não se provaram outros factos com relevância para a decisão a proferir”.
II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto: “A matéria de facto, constante das alíneas do probatório foi a considerada relevante para a decisão da causa e, a formação da convicção do tribunal assentou na análise crítica dos documentos identificados e não impugnados, referenciados em cada uma das alíneas, para as folhas dos processos onde se encontram, bem como nos esclarecimentos efetuados ao tribunal pelo impugnante em declarações de parte”.
II.D. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto Entende a Recorrente que, tendo em conta a prova documental junta aos autos, deveria ser aditado o seguinte facto: “O IMT pago pela sociedade adquirente do imóvel teve por base o VPT que resultou da avaliação efetuada na sequência da primeira avaliação, ou seja, € 391.510,00, pelo que este deverá ser acrescentado aos factos dados como provados, por resultar do doc 10/39 da p.i.”. Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC]; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c), do CPC]. Transpondo estes conceitos para o caso dos autos, verifica-se que tais ónus foram cumpridos, pelo que se passa à apreciação do requerido. Considerando os elementos documentais mencionados pela Recorrente, decorre que a demonstração da liquidação adicional, emitida em nome da sociedade adquirente, teve por base o valor de 391.510,00 Eur., resultante da primeira avaliação. No entanto, não resulta de tal elemento documental que o valor liquidado tenha sido pago. Ademais, refira-se que este facto é perfeitamente irrelevante. Face ao exposto, indefere-se o requerido.
III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO III.A. Dos lapsos de escrita identificados pelo Recorrido Antes de se passar à apreciação do recurso apresentado pela FP, cumpre atentar no constante das contra-alegações, atinente a eventuais lapsos de escrita, constantes da sentença recorrida. Assim, considera o Recorrido que, “na motivação de direito da Douta Sentença a quo, (…) o valor de 189.000,00€, [mencionado] nos parágrafos 23° e 36° do título IV, como valor de alienação do imóvel artigo …. da freguesia de A. R. (Vila Franca de Xira - 2), [deve] (…) ser corrigido para 185.000€”. Nos termos do art.º 614.º do CPC: “1 - Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz. 2 - Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação”. Assim, independentemente de as retificações poderem não ter influência no sentido decisório, é de apreciar o requerido. Compulsada a sentença recorrida, na mesma é afirmado: a) “Da escritura púbica de compra e venda resulta que o valor da alienação do imóvel, correspondente ao artigo …., da freguesia de Vila Franca de Xira-2, foi de 189.000,00€”; b) “Neste conspecto, considera o tribunal que o impugnante logrou demonstrar, através dos documentos juntos aos autos, que o montante da alienação foi de 189.000,00€, conseguindo assim ilidir a presunção do preceituado no n.º 2 do art.44º do CIRS norma que, pela citada inconstitucionalidade é desaplicada ao caso em concreto dos autos”. Analisada a decisão proferida sobre a matéria de facto [cfr. facto 2], verifica-se que, efetivamente, o valor indicado na escritura foi de 185.000,00 Eur. e a prova que o Tribunal a quo considerou efetuada foi no sentido de o preço praticado ser igual ao preço declarado. Como tal, defere-se o pedido de retificação efetuado, sendo que, nos segmentos da sentença expressamente identificados supra, onde se lê “189.000,00” deve ler-se “185.000,00”.
Prossigamos, pois, para a apreciação das demais questões suscitadas. III.B. Da nulidade da sentença Considera a Recorrente que a sentença recorrida extravasa o objeto da ação e o pedido do Impugnante, que versa sobre as correções efetuadas, nomeadamente a correção de 206.724,76 Eur. para 391.510,oo Eur. Ainda que inominadamente, o que a Recorrente aponta à sentença recorrida é uma nulidade, quer por excesso de pronúncia, quer por condenação em objeto diferente do pedido. Com efeito, o objeto da ação consubstancia-se no pedido e na causa de pedir, pelo que a alegação de que o mesmo foi extravasado não pode deixar de ser vista neste duplo prisma. Nos termos do art.º 125.º, n.º 1, do CPPT, há excesso de pronúncia, que consubstancia nulidade da sentença, quando haja pronúncia sobre questões de que o juiz não deva conhecer [cfr. igualmente o art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC]. As questões de que o juiz deve conhecer são ou as alegadas pelas partes ou as que sejam de conhecimento oficioso. Por seu turno, o já referido art.º 615.º, n.º 1, do CPC, na sua alínea e), aplicável ex vi art.º 2.º, al. e), do CPPT, prevê, como nulidade da sentença, a condenação em “objeto diverso do pedido”. Vejamos. Compulsada a petição inicial, verifica-se que a mesma versou sobre a liquidação n.º 2011 5005077435 de IRS e a respetiva liquidação de juros compensatórios e, bem assim, sobre o indeferimento da reclamação graciosa apresentada. O pedido formulado foi no sentido, pois, da procedência da impugnação, com a consequente anulação das liquidações em causa. Analisada a sentença recorrida, verifica-se que a decisão foi no sentido da procedência do pedido, com a consequente anulação do ato de liquidação impugnado. Ora, não se alcança de que forma foi extravasado o pedido, porquanto, como resulta da análise da petição inicial e da sentença proferida, ambos respeitam à mesma liquidação e a decisão proferida foi nos exatos termos peticionados. Também não se alcança de que forma foi extravasada a causa de pedir, uma vez que as questões apreciadas foram suscitadas pelo Impugnante. Aliás, a própria Recorrente é bastante lacónica na alegação que formula. Coisa diferente é se os fundamentos em que se sustentou o Tribunal a quo não estão corretos. No entanto, isso consubstancia eventual erro de julgamento. Como tal, carece de razão a Recorrente nesta parte.
III.C. Do erro de julgamento, por não ter sido ilidida a presunção Considera, ademais, a Recorrente que o Tribunal a quo laborou em erro, na medida em que, na sua perspetiva, não foi ilidida a presunção atinente ao preço efetivamente praticado e que o valor a ter em conta é o que resultou da avaliação. Vejamos então. Nos termos dos art.ºs 9.º e 10.º do CIRS, são tributadas em sede de IRS as mais-valias, ali definidas, designadamente, como “os ganhos obtidos que, não sendo considerados rendimentos empresariais e profissionais, de capitais ou prediais, resultem de (…) [a]lienação onerosa de direitos reais sobre bens imóveis e afetação de quaisquer bens do património particular a atividade empresarial e profissional exercida em nome individual pelo seu proprietário”. Nos termos do n.º 4 do art.º 10.º do CIRS: “4 - O ganho sujeito a IRS é constituído: a) Pela diferença entre o valor de realização e o valor de aquisição, líquidos da parte qualificada como rendimento de capitais, sendo caso disso, nos casos previstos nas alíneas a), b) e c) do nº 1”. Não obstante, há que ter em conta a norma de exclusão de tributação, constante do n.º 5 do referido art.º 10.º. Assim, na redação à época, dispunham nos n.ºs 5 a 7 do mencionado art.º 10.º: “5 - São excluídos da tributação os ganhos provenientes da transmissão onerosa de imóveis destinados a habitação própria e permanente do sujeito passivo ou do seu agregado familiar, nas seguintes condições: a) Se, no prazo de 24 meses contados da data de realização, o valor da realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, for reinvestido na aquisição da propriedade de outro imóvel, de terreno para a construção de imóvel, ou na construção, ampliação ou melhoramento de outro imóvel exclusivamente com o mesmo destino situado em território português ou no território de outro Estado membro da União Europeia ou do espaço económico europeu, desde que, neste último caso, exista intercâmbio de informações em matéria fiscal; b) Se o valor da realização, deduzido da amortização de eventual empréstimo contraído para a aquisição do imóvel, for utilizado no pagamento da aquisição a que se refere a alínea anterior, desde que efetuada nos doze meses anteriores; c) Para os efeitos do disposto na alínea a), o sujeito passivo deverá manifestar a intenção de proceder ao reinvestimento, ainda que parcial, mencionando, na declaração de rendimentos respeitante ao ano da alienação, o valor que tenciona reinvestir; d) (revogada) 6 - Não haverá lugar ao benefício referido no número anterior quando: a) Tratando-se de reinvestimento na aquisição de outro imóvel, o adquirente o não afete à sua habitação ou do seu agregado familiar até decorridos seis meses após o termo do prazo em que o reinvestimento deva ser efetuado; b) Tratando-se de reinvestimento na aquisição de terreno para construção, o adquirente não inicie, exceto por motivo imputável a entidades públicas, a construção até decorridos seis meses após o termo do prazo em que o reinvestimento deva ser efetuado ou não requeira a inscrição do imóvel na matriz até decorridos 24 meses sobre a data de início das obras, devendo, em qualquer caso, afetar o imóvel à sua habitação ou do seu agregado familiar até ao fim do quinto ano seguinte ao da realização; c) Tratando-se de reinvestimento na construção, ampliação ou melhoramento de imóvel, não sejam iniciadas as obras até decorridos seis meses após o termo do prazo em que o reinvestimento deva ser efetuado ou não seja requerida a inscrição do imóvel ou das alterações na matriz até decorridos 24 meses sobre a data do início das obras, devendo, em qualquer caso, afetar o imóvel à sua habitação ou do seu agregado familiar até ao fim do quinto ano seguinte ao da realização. 7 - No caso de reinvestimento parcial do valor de realização e verificadas as condições estabelecidas no número anterior, o benefício a que se refere o nº 5 respeitará apenas à parte proporcional dos ganhos correspondente ao valor reinvestido”. Em termos de cálculo das mais-valias, há que atentar no disposto nos art.ºs 43.º e ss. do CIRS. Assim, considera-se valor de realização o valor da contraprestação (cfr. art.º 44.º, n.º 1), sendo que o legislador consagrou, para estes efeitos, ou seja, para efeitos de cálculo da mais-valias, que, se o VPT for superior (uma vez que é sobre ele que era calculado o Imposto Municipal de Sisa, atual Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis), é este considerado como valor de realização (cfr. art.º 44.º, n.º 2). Até à redação que lhe foi dada pela Lei n.º 82-E/2014, de 31 de dezembro, inexistia no CIRS a previsão de qualquer procedimento que permitisse a prova de que o valor de realização era inferior ao VPT, ao contrário do que já existia para efeitos de IRC. Foi neste contexto que foi proferido o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 211/2017, de 02.05.2017, no qual se decidiu “julgar inconstitucional a norma contida no artigo 44.º, n.º 2, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na interpretação segundo a qual, para efeitos da determinação dos ganhos sujeitos a IRS relativos a mais-valias decorrentes da alienação onerosa de bens imóveis, ali se estabelece uma «presunção inilidível», por violação do princípio da capacidade contributiva ínsito nos artigos 103.º, n.º 1 e 13.º da Constituição da República Portuguesa”. No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 488/2021, de 07.07.2021. Considerando este enquadramento normativo, passemos à apreciação da pretensão da Recorrente. Sublinhe-se, a este respeito, que, na realidade, a Recorrente não ataca a sentença em todos os seus fundamentos. Se não vejamos. Compulsada a referida sentença, da mesma decorre que o Tribunal Constitucional já julgou inconstitucional a norma contida no art.º 44.º, n.º 2, do CIRS, nos termos que já referimos supra. Na mesma sentença é sublinhada a problemática da inexistência de procedimento que permitisse provar que o valor da realização era inferior ao VPT e da inconstitucionalidade daí decorrente. Ora, representa este o acento tónico da decisão. Aliás, em situação muito similar a esta já decidiu este TCAS, em Acórdão de 02.02.2023 (Processo: 2565/12.5BELRS), relativo às mesmas partes, cuja argumentação acompanhamos e onde se refere: “No caso em exame, o prédio urbano do artigo matricial … foi destacado do prédio referido em 1), tendo dado origem a terreno para construção com o artigo matricial urbano referido (n.º 3). Nesta sequência foi determinado o vpt do prédio, sem que o impugnante tivesse requerido a segunda avaliação do mesmo (…). Suscita-se a questão de saber se o vpt apurado deve ser considerado, com vista à determinação do valor de realização da mais-valia obtida com a alienação do prédio em causa no mesmo exercício em que foi avaliado (2010) ou se deve ser atendido ao valor declarado pelo contribuinte na escritura pública de venda. Na sequência da alteração introduzida pela Lei n.º 82-E/2014, de 31/12, do preceito do artigo 44.º do CIRS, passou a constar os n.ºs 5 e 6, com a redacção seguinte: « 5. O disposto no n.º 2 não é aplicável se for feita prova de que o valor de realização foi inferior ao ali previsto. // 6. A prova referida no número anterior deve ser efetuada de acordo com o procedimento previsto no artigo 139.º do Código do IRC, com as necessárias adaptações». Perante o preceito em apreço, é, hoje, firme o entendimento segundo o qual, «[S]e o valor patrimonial tributário do imóvel alienado for superior ao valor constante do acto ou contrato referente a esse mesmo imóvel, prevalecerá o valor patrimonial tributário. // Contudo, esta prevalência pode ser afastada mediante prova, efectuada pelo sujeito passivo, de que o valor de realização foi efectivamente inferior ao valor relevante para efeitos de IMT / valor patrimonial tributário do imóvel (…). A aludida prova deve se efectuada de acordo com o procedimento previsto no artigo 139.ºdo CIRC, com as necessárias adaptações» (…). No entanto, importa aquilatar qual o regime aplicável à correcção imposta pela Administração Fiscal, ao valor de realização apurado pelo contribuinte e declarado na escritura pública de venda, quando não vigoravam os preceitos do artigo 44.º/5 e 6, do CIRS. A correcção teve por base o vpt do imóvel, que, entretanto, se tornou definitivo, dado não ter sido impugnado, através do pedido de segunda avaliação (artigo 76.º do CIMI). A este propósito, a jurisprudência fiscal assente é a seguinte: i) O valor a ter em consideração para efeitos do apuramento das mais valias sujeitas a IRS é nos termos do nº 1 do artigo 44 do CIRS o valor da realização. // Considerando os princípios constitucionais da igualdade e da capacidade contributiva bem como o da tributação real dos rendimento, o nº 2 do artigo 44 do CIRS ao preceituar que para determinação dos ganhos sujeitos a IRS no caso de transmissões onerosas de bens imóveis prevalecerão quando superiores os valores por que os bens houverem sido considerados para efeitos da liquidação de IMI consagra não uma presunção juris et de jure mas antes uma presunção juris tantum. // Não tendo o legislador antes da entrada em vigor da lei 82-E/2014 de 31 12 2014, que introduziu os nºs 5 a 7 ao artigo 44 do CIRS previsto forma de permitir ao contribuinte provar que o valor da realização fosse inferior ao VPT, a norma de incidência constante do nº 2 do artigo 44 do CIRS aplicada sem tal possibilidade deve ter-se por inconstitucional por violação dos artigos 13 e 18 da CRP e 5º nº 2 e 73 da LGT» (…) ii) «Nos termos do artigo 73º da LGT “As presunções consagradas nas normas de incidência tributária admitem sempre prova em contrário”. // A circunstância de, anteriormente ao aditamento do artigo 44º do CIRS, operado pela Lei nº 82-E/2014 de 31/12/14, a lei não prever expressamente a possibilidade daquela prova, de modo a ilidir a presunção contida no nº2 do artigo 44º, ou seja, impossibilitando o contribuinte de provar que o valor de realização foi inferior ao VPT, torna a norma de incidência correspondente ao do nº 2 do artigo 44 do CIRS, quando aplicada sem tal possibilidade, inconstitucional por violação dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva (artigos 13º e 103º, nº1 da CRP), assim se desaplicando ao caso concreto» (…). No caso em exame, dos elementos coligidos no probatório resulta que a liquidação impugnada assenta no apuramento da mais-valia com base no vpt do prédio (…) em vez do valor declarado pelo contribuinte na escritura pública de venda (…). A correcção em causa foi imposta ao abrigo do disposto no artigo 44.º/2, do CIRS, versão vigente. Sucede, porém, que a norma em apreço, desprovida do mecanismo de demonstração do facto contrário à presunção, não pode ser aplicada ao caso concreto, por enfermar de inconstitucionalidade. De outro modo, as garantias de defesa do contribuinte perante a presunção do facto tributário, através do recurso ao procedimento de demonstração do preço efectivo, mostrar-se-iam precludidas. Não podendo valer como sucedâneo de tais garantias, a possibilidade de impugnação do vpt, porquanto o que está em causa é a faculdade que assiste ao contribuinte de, no caso concreto, demonstrar que a transacção foi realizada pelo valor declarado na escritura ou por valor diferente do vpt apurado. Faculdade que no caso não foi assegurada. Pelo que a liquidação adicional em exame incorre em violação de lei, ao ter aplicado o regime do artigo 44.º/2, do CIRS, o qual não pode ser aplicado, por colidir com o princípio constitucional da capacidade contributiva efectiva” (sublinhado nosso). Portanto do que se trata é de que, inexistindo à época um procedimento que permitisse a demonstração pelo sujeito passivo do preço efetivo praticado e não tendo, pois, sido assegurada tal possibilidade, não pode deixar de se considerar que o valor a atender é o declarado no momento da alienação, sendo neste sentido que deve ser interpretada a sentença. Ora, em bom rigor, a Recorrente não põe em causa todo este contexto que foi referido em torno do n.º 2 do art.º 44.º do CIRS, centrando-se na alegada falta de prova do preço efetivo, no tocante ao valor da realização, desconsiderando a circunstância de, à época, nem ter sido concedida ao Impugnante a oportunidade de fazer tal prova. Como tal, não lhe assiste razão.
IV. DECISÃO Face ao exposto, acorda-se em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul: a) Negar provimento ao recurso; b) Custas pela Recorrente; c) Registe e notifique. Lisboa, 13 de julho de 2023 (Tânia Meireles da Cunha) (Susana Barreto) (Patrícia Manuel Pires) 1) Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169. 2) V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada. |