Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:63/10.0BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:06/24/2021
Relator:PATRÍCIA MANUEL PIRES
Descritores:DUPLICAÇÃO DE COLETA
RENDIMENTO ACRÉSCIMO
PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA
Sumário:I-A duplicação de coleta, regra geral, está associada à inexigibilidade da dívida exequenda enquanto fundamento de oposição, no entanto pode ser aceite como fundamento de impugnação judicial, quando consubstancie uma ilegalidade que afete a validade do ato de liquidação, mormente, nas situações em que o ato de liquidação impugnado ocorre em momento em que já se verifica cobrada a quantia por este apurada, por ter constituído matéria coletável num ato de liquidação anterior.
II-Se do acervo fático dos autos, resulta que os rendimentos foram auferidos pelo sujeito passivo A, em vez do sujeito passivo B, que os declarou, ainda que erradamente, e se a AT não é lesada em qualquer quantia visto que o rendimento coletável do agregado familiar é o mesmo, então tal deve determinar a anulação do ato tributário, porquanto a interpretação da questão não pode ater-se, singela e redutoramente, na formalidade do ato, mas sim à substancialidade da tributação, desde logo, porque em sede de IRS vigora o princípio do rendimento acréscimo.
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I-RELATÓRIO

O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (DRFP) veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por V….. e P….., tendo por objeto a decisão de indeferimento da reclamação graciosa deduzida contra a liquidação adicional de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS), referente ao ano de 2002, no valor total de €2.284,02.

A Recorrente, apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem:

“4. Conclusões

4.1. Visa o presente recurso reagir contra a douta decisão que julgou procedente a Impugnação judicial, intentada pelos ora recorridos contra o indeferimento da reclamação graciosa n.º ….., que teve por objecto a liquidação adicional de IRS n.º ….., relativa ao ano de 2002, no montante de 2.284,02 €.

4.2. Como fundamento da impugnação invocaram os impugnantes a ilegalidade da liquidação adicional de IRS em questão alegando para tanto, em suma, a duplicação de colecta.

4.3. Concluem peticionando a procedência da impugnação e, em consequência, a anulação da liquidação de IRS impugnada, na totalidade da parte respeitante à correcção da matéria colectável, por violação do disposto nos artigos 99.º, al. a), e 205.º do CPPT.

4.4. O Ilustre Tribunal “a quo” julgou procedente a impugnação, por julgar verificada a pelos impugnantes invocada duplicação de colecta, determinando, em consequência, a anulação da liquidação de IRS em questão, por vício de violação de lei.

4.5. Como decorre do conteúdo da sentença proferida, decidiu o Tribunal “a quo” fixar com interesse para a sua decisão, a matéria de facto constante do seu ponto IV – da fundamentação de facto da sentença – cfr. págs. 3 a 8 do suporte documental da decisão ora em crise, e que ora se dá por reproduzida.

Posto isto,

4.6. relativamente à invocada pelo impugnante duplicação de colecta, e no que à verificação do requisito da unicidade do facto tributário diz respeito, entendeu o Tribunal “a quo”, em síntese, que “…verifica-se que, nos termos provados em 2. e 6., ambas as liquidações, quer a resultante da entrega da Declaração Modelo 3 do IRS pelos Impugnantes, quer a adicional, respeitam, entre outros, à perceção de € 12.843,18 pagos pela FAP por prestações de serviços a esta entidade, existindo, assim, idênticos elementos objetivos.

4.7. mais considerando que,”… o que resulta da matéria provada é que a FAP apenas efetuou um pagamento ao Impugnante V….. pelo mesmo exato valor do recibo passado pela Impugnante P….., ou seja, e pese embora não tenha sido por ele declarado, mas por ela, certo é que na declaração modelo 3 apresentada em conjunto pelos Impugnantes consta que foi recebido aquela quantia, conforme se retira do ponto 2. dos factos”,

4.8. concluindo que “…não existe qualquer indício nos autos que os Impugnantes tenham omitido qualquer rendimento, mas antes que efetivamente apenas receberam a quantia de €12.843,18, uma única vez, por prestações de serviços prestadas pelo Impugnante V…...”.

Ou seja,

4.9. entendeu o Ilustre Tribunal recorrido, no decisório ora em crise, que dos documentos constantes dos autos de impugnação colhe-se não terem sido omitidas pelo impugnante V….. as quantias a este entregues pela Federação de Andebol de Portugal (FAP), visto que o recibo, de montante de 12.843,18 €, foi emitido por P….. à FAP e esta entidade não registou qualquer pagamento aquela, tendo ainda em conta que da declaração anual de rendimentos, Mod. 3 de IRS dos impugnantes, referente ao ano de 2002, consta a percepção do referido montante, pagos pela FAP, por parte do casal. E deste entendimento concluiu o Ilustre Tribunal ora recorrido pela verificação da existência de duplicação das colecta.

No entanto,

4.10. considera a Fazenda Pública que o decisório ora em crise, com o devida respeito e salvo sempre melhor entendimento, não perfilhou a solução jurídica correcta.

Isto porque,

4.11. da factualidade tida por provada, conjugada com a restante constante da fundamentação factual do decisório ora em apreciação, conclui-se que o impugnante V….. não declarou, na declaração anual de rendimentos de IRS, Mod.3, do ano de 2002, o recebimento da quantia de 12.843,18 € pagos pela FP, conforme descrito no ponto 11. da fundamentação da matéria de facto constante da sentença em apreciação.

Assim sendo,

4.12. não se pode concluir, conforme o fez o Ilustre Tribunal ora recorrido, com o devido respeito e salvo sempre melhor entendimento, que inexiste qualquer indício quer os impugnantes tenham omitido rendimentos.

4.13. Da matéria factual tida por assente na decisão ora em crise colhe-se que o impugnante auferiu no ano de 2002 o montante de 12.843,18 €, pagos pela FP, e não os declarou, como seu rendimento, na competente declaração anual de rendimentos de IRS, Mod. 3.

4.14. Razão pela qual foram devida e correctamente efectuadas, por parte da Administração Tributária, as correcções à matéria colectável dos impugnantes, em sede de IRS do ano de 2002, procedendo-se à inclusão o referido montante auferido pelo impugnante V….. na declaração oficiosa de rendimentos de IRS dos impugnantes, relativos ao ano de 2002.

4.15. Não se verifica, In casu e pelo exposto, qualquer duplicação de colecta, tal qual a mesma se é configurada pela g) do n.º 1 do artigo 204.º do CPPT, por não se verificar a unicidade do facto tributário.

4.16. Ao assim não entender, o Ilustre Tribunal recorrido, sempre com o devido respeito e salvo melhor entendimento, incorreu em erro direito no julgamento da matéria de facto ao concluir pela verificação da excepção da duplicação de colecta, fazendo, por isso, uma errada subsunção dos factos tidos por assentes no decisório ora em apreciação direito, concretamente, ao considerar verificada a duplicação de colecta, prevista na al. g) do n.º 1 do artigo 204.º do CPPT, violando assim os ditames que presidem ao julgamento da matéria de facto tida por provada, consagrados nos n.º 3, 4 e 5 do artigo 607.º do CPC, ora aplicável por força do disposto na al. e) do artigo 2.º do CPPT.

Razão pela qual,

4.17. com o devido respeito e salvo sempre melhor entendimento, deve ser revogada a decisão ora recorrida, com as legais consequências daí decorrentes.

Pelo que se peticiona o provimento do presente recurso, revogando-se a decisão ora recorrida, assim se fazendo a devida e costumada JUSTIÇA!”


***

Os Recorridos devidamente notificados optaram por não apresentar contra-alegações.

***

O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

***

Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir.

***

II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto:

1. Entre 30-01-2002 e 30-12-2002, a Impugnante P….. outorgou 18 documentos intitulados “IRS – Modelo n.º 6 (art. 115.º do CIRS)”, no valor total de € 22.711,27, nos quais consta, além do mais, o seguinte:

 (cf. Doc. 5 junto à PI, a fls. 29 a 46 dos autos);

2. Em 30-04-2003, deu entrada nos serviços da Autoridade Tributária (AT), em nome dos Impugnantes, uma Declaração de Rendimentos – IRS Modelo 3, referente ao ano de 2002, na qual consta, designadamente, o seguinte:
   

 (cf. Doc. 6 junto à PI, a fls. 49 a 54 dos autos);

3. Em 14-12-2006, os serviços da AT elaboraram um documento designado “RELATÓRIO / CONCLUSÕES”, no qual consta, além do mais, o seguinte:

«[...] SUJEITO PASSIVO A: V….. SUJEITO PSSIVO B: P….. [...] 1-CORRECÇÕES PROPOSTAS [...]

CATEGORIA B- Nos termos da alínea a) do no 1 do artº 119° do Código do IRS, o sujeito passivo é obrigado a possuir registo actualizado das pessoas credoras de rendimentos, e exigir os respectivos recibos nos termos do n° 4 da artº 115 do CIRS, ainda que não tenha havido retenção, onde conste nome, número fiscal e respectivo código (SF). Por sua vez, os titulares de rendimentos da categoria B, nos termos do artigo 115° n° 1 alínea a), são obrigados a passar recibo de modelo oficial, de todas as importâncias recebidas, mesmo que a título de provisão, adiantamento ou reembolso de despesas.

As verbas recebidas da Federação de Andebol no montante de €12.380,56€ devem ser consideradas como rendimento da Categoria B de IRS, nos termos do artº 3° do CIRS.

Este sujeito passivo encontra-se registado desde 2005/01/01, pela actividade de "Outras prestações de serviços", N.E., CAE 93050.

Concluiu-se:

Em relação ao sujeito passivo acima identificado: V….., [...] , foram omitidos valores a enquadrar na Categoria B, no valor de € 12.380,56, de acordo com o referido anteriormente, pelas verbas recebidas da Federação de Andebol.

Foram analisados os valores declarados na declaração de rendimentos de IRS, com os constantes do nosso sistema informático - declaração anual, anexo J, onde se verificou que omitiu os valores recebidos da Federação de Andebol [...] no valor de 12.843,00€, conforme anexo 1. [...]

Da análise da situação, após ter apresentado o direito de audição:

1 - Após a análise da petição apresentada pelo sujeito passivo, verifica-se que no sistema informático não consta como tendo recebido remunerações, no anexo J da declaração anual da Federação de Andebol o sujeito passivo B deste agregado familiar- P….., anexo 3.

2 - O sujeito passivo só faz alegações de que o valor 12.843,00€, foi incluído nos rendimentos declarados, mas não fez prova desses total através de fotocópias dos recibos emitidos.

3- Quanto ao valor corrigido de 12.380,56€, resultante da acção de fiscalização à Federação de Andebol e que deve ser considerado como rendimento da categoria B, alega não ter recebido valores que perfizeram esse montante. [...]»

(cf. Doc. 1 junto à PI, a fls. 12 a 21 dos autos);

4. Em 18-12-2006, a Chefe de Divisão dos Serviços de Inspeção Tributária da Direção de Finanças de Lisboa, proferiu despacho, por delegação, nos seguintes termos:

«Concordo.

Confirmo as correcções propostas e o parecer do Chefe de Equipa.

Proceda-se à alteração dos rendimentos nos termos do n° 4 do artº 65° do CIRS.

Remeta-se o Auto de Noticia ao Serviço de Finanças competente.

Notifique-se o contribuinte nos termos do artº 77º da LGT e do artº 62° do RCPIT.»

(cf. Doc. 1 junto à PI, a fls. 12 dos autos);

5. Em 21-12-2006, os serviços da AT emitiram o ofício n.º …..em nome dos Impugnantes, com assunto “Notificação de Correções Resultantes de Análise Interna”, do qual se extrai, designadamente, o seguinte:

«Fica V. Exª, por este meio notificado [...] Da alteração efectuada nos termos do n.º 4 do artigo 65.º do Código do IRS, sem recurso a métodos indirectos.

ANO(S) / EXERCÍCIO(S) 2002

RENDIMENTO LIQUIDO ALTERADO 31.897,42 € [...]»

(cf. Doc. 1 junto à PI, a fls. 11 dos autos);

6. Em 28-12-2006, os serviços da AT emitiram em nome dos Impugnantes o documento n.º 2006 00001436976, do qual se extrai o seguinte:


» (cf. Doc. 2 junto à PI, a fls. 22 dos autos);

7. Em 04-05-2007, deu entrada nos serviços da AT um requerimento em nome dos Impugnantes com assunto “IRS-2002-Recl.Grac.”, do qual consta, por extrato, o seguinte:

«[...] Face ao exposto e atendendo ao facto de estarem a triplicar um rendimento, supostamente por:

• Numa primeira fase não poderá o agregado ser novamente tributado pela mesma verba, uma vez que não poderá deixar de se considerar que se trata de uma injustiça grave tal duplicação!

• E numa segunda fase, ocorre a duplicação do meu rendimento por parte dos serviços uma vez que não entende que a verba inscrita no relatório dos vossos serviços é a mesma do modelo 10. [...]

Daí que, se requeira seja anulada a liquidação adicional efectuada por totalmente indevida.»

(cf. Doc. 3 junto à PI, a fls. 23 e 24 dos autos);

8. Em 17-12-2009, os serviços da AT elaboraram um documento designado “INFORMAÇÃO ADICIONAL”, no qual consta, além do mais, o seguinte:

«[...] Atendendo aos factos alegados, no exercício do direito de Audição Prévia, verifica-se que não foram apresentados quaisquer documentos susceptíveis de alterar a decisão. [...]»

(cf. Doc. 4 junto à PI, a fls. 27 dos autos);

9. Na mesma data, o Chefe do Serviço de Finanças de Loures 4 proferiu despacho nos seguintes termos:

«Com os fundamentos constantes da informação infra, indefiro a presente reclamação graciosa por falta de base legal.

Notifique-se.»

(cf. Doc. 4 junto à PI, a fls. 26 dos autos);

10. Também na mesma data, os serviços da AT emitiram o ofício n.º ….. em nome dos Impugnantes, com assunto “RECLAMAÇÃO GRACIOSA - NOTIFICAÇÃO”, do qual se extrai, designadamente, o seguinte:

«Fica por este meio notificado que a reclamação acima indicada foi indeferida, por despacho de 2009-12-17, conforme fundamentação que se junta. [...]»

(cf. Doc. 4 junto à PI, a fls. 25 dos autos);

11. Em 17-05-2010, os serviços da AT elaboraram um documento designado “INFORMAÇÃO DOS SERVIÇOS”, no qual consta, designadamente, o seguinte:

«[...] No entanto, e por consulta aos elementos disponíveis verifica-se que o montante de €12.843,18, pago pela FPA, foi efectivamente recebido pelo 1.º Impugnante V….. [...]

Por sua vez em nome da 2.ª Impugnante, não constam para aquele exercício quaisquer rendimentos pagos por parte da FAP [...]

Assim somos de parecer em que o pedido não merece provimento, devendo manter-se o Acto Tributário aqui Impugnado e remeter-se os autos ao Representante da Fazenda Pública. [...]»

(cf. Doc. 1 junto à contestação, a fls. 80 a 84 dos autos);

12. Na mesma data, constava no sistema informático da AT, em relação ao Impugnante V….., o seguinte:


» (cf. impressão a fls. 72 do PA apenso aos autos);

13. Ainda na mesma data, constava no sistema informático da AT, em relação à Impugnante P….., o seguinte:

» (cf. impressão a fls. 80 do PA apenso aos autos);

14. Em 10-11-2010, deram entrada os presentes autos (cf. carimbo aposto a fls. 1 dos autos).


***

A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte:

“Não existem factos alegados e não provados com interesse para a decisão da causa.”


***

A motivação da matéria de facto assentou no seguinte:

“A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto dada como provada resulta da análise dos documentos constantes dos autos, que não foram impugnados, assim como nos factos alegados pelas partes, corroborados pelos documentos juntos, conforme discriminado nos vários pontos do probatório, dando-se por integralmente reproduzido o teor dos mesmos bem como o do PA.”


***

C) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida contra a decisão de indeferimento da reclamação graciosa interposta contra a liquidação adicional de IRS, referente ao ano de 2002, no valor total de €2.284,02.

Importa, desde já, ter em consideração que em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso.

Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre aferir se a decisão recorrida padece de erro de julgamento por errónea apreciação dos pressupostos de facto e de direito, competindo, para o efeito, analisar se o Tribunal a quo, decidiu acertadamente a questão ao ajuizar que existe duplicação de coleta quanto aos rendimentos provenientes da Federação de Andebol de Portugal (FAP).

Apreciando.

Alega a Recorrente que a sentença recorrida estribou a sua fundamentação numa errónea valoração da matéria de facto, assim como numa incorreta interpretação das normas legais aplicáveis.

Defende, neste particular, que da factualidade provada, decorre que o impugnante V….. não declarou, na declaração anual de rendimentos de IRS, Modelo 3, do ano de 2002, o recebimento da quantia de 12.843,18€ pagos pela FAP, logo não se pode concluir, que inexista qualquer indício que os impugnantes tenham omitido rendimentos.

E isto porque o que resulta provado é que o impugnante auferiu no ano de 2002 o montante de 12.843,18 €, pagos pela FAP, e não os declarou, como seu rendimento, na competente declaração anual de rendimentos de IRS, Modelo 3.

Concluindo, nessa medida, que inexiste a apontada duplicação de coleta, desde logo, por faltar o requisito da unicidade do facto tributário.

O Tribunal a quo concluiu pela procedência da presente impugnação judicial, começando por densificar a presença dos três pressupostos para a verificação da duplicação de coleta, e depois concluir que se é certo que “[o] recibo a que alude o artigo 115.º do CIRS, no valor de € 12.843,18, foi passado em nome da Impugnante P….., verifica-se também que a entidade FAP não registou qualquer pagamento em seu nome, conforme se extrai dos factos assentes em 1. e 13.

Assim, ao contrário do alegado pela AT, fica desde logo patente que os rendimentos naquele mesmo valor que constam na declaração apresentada pelos Impugnantes não foram obtidos pela Impugnante P…...

Do mesmo modo, o que resulta da matéria provada é que a FAP apenas efetuou um pagamento ao Impugnante V….. pelo mesmo exato valor do recibo passado pela Impugnante P….., ou seja, e pese embora não tenha sido por ele declarado, mas por ela, certo é que na declaração modelo 3 apresentada em conjunto pelos Impugnantes consta que foi recebido aquela quantia, conforme se retira do ponto 2. dos factos.”

Razão pela qual, decide que “[n]ão existe qualquer indício nos autos que os Impugnantes tenham omitido qualquer rendimento, mas antes que efetivamente apenas receberam a quantia de € 12.843,18, uma única vez, por prestações de serviços prestadas pelo Impugnante V…..”, donde “[a]través da liquidação adicional ora impugnada está a AT a tentar cobrar imposto sobre o rendimento já declarado e liquidado aquando da declaração entregue pelos Impugnantes, ou seja, está a aplicar o mesmo preceito legal mais do que uma vez a uma mesma situação tributária concreta, o que consubstancia o vício de violação de lei por duplicação de coleta.”

Apreciando.

Importa, desde já, relevar que não se vislumbra que o entendimento do Tribunal a quo mereça qualquer censura, visto que interpretou corretamente o quadro normativo vigente e aplicou-o com adequação ao recorte fático dos autos.

Senão vejamos.

Comecemos por atentar no quadro normativo aplicável ao caso vertente.

Ab initio, importa relevar que pese embora, em regra, a duplicação de coleta esteja associada à inexigibilidade da dívida exequenda enquanto fundamento de oposição (cfr. artigo 204.º, n.º 1, alínea g), do CPPT) a verdade é que pode ser aceite como fundamento de impugnação judicial, quando consubstancie uma ilegalidade que afete a validade do ato de liquidação, mormente, nas situações em que o ato de liquidação impugnado ocorre em momento em que já se verifica cobrada a quantia por este apurada, por ter constituído matéria coletável num ato de liquidação anterior[1].

O conceito de duplicação de coleta é fornecido pelo artigo 205.º do CPPT, estatuindo o mesmo que há lugar à duplicação de coleta: “quando estando pago por inteiro um tributo, se exigir da mesma ou de diferente pessoa um outro de igual natureza, referente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo”.

A duplicação de coleta, considerada por TEIXEIRA RIBEIRO como “heresia dentro do sistema fiscal”[2] exige a verificação de três pressupostos:

-Unicidade dos factos tributários;

-Identidade da natureza entre a contribuição ou imposto e o que de novo se exige;

-Coincidência temporal do imposto pago e o que, de novo, se pretende cobrar.

Com efeito, a duplicação de coleta implica que a realidade factual que está subjacente à pluralidade de liquidações de imposto seja uma só, e que a AT esteja a exigir uma quantia que já foi integralmente paga.

Dir-se-á, portanto, que a duplicação de coleta, por referência a um elemento temporal e estrutural, verifica-se quando, estando paga uma coleta, se liquida e exige outra da mesma natureza, em relação ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo.

Conforme evidencia JORGE LOPES DE SOUSA[3]: “ A finalidade da duplicação de coleta é impedir que seja repetida a cobrança de um mesmo tributo”.

Mais doutrinando o citado autor que[4]:

“(…) poderá suceder, porém, que uma segunda liquidação seja efectuada após ter sido cobrada a quantia nela indicada, com base numa liquidação anterior.

Nestas situações, tem-se entendido que a segunda liquidação é ilegal estando afectada de vício de duplicação de colecta, por a lei não permitir efectuá-la.
(…)”.

Vistos os conceitos de direito que relevam para o caso vertente, atentemos, então, no que resulta da factualidade assente.

Dimana do probatório que, na sequência de ação inspetiva, e mediante confronto com os valores declarados na declaração de rendimentos de IRS, com os constantes do sistema informático - declaração anual, anexo J, ajuizou a AT que foram omitidos os valores pagos pela FAP a V….., no valor de 12.843,18€.

Retirando-se, outrossim, do teor do Relatório Inspetivo que não é controvertido que P….. não recebeu quaisquer rendimentos da aludida FAP, evidenciando-se, expressamente, no aludido documento que, no sistema informático não consta como tendo recebido remunerações, no anexo J da declaração anual da FAP.

Com efeito, no sistema informático da AT, e nos elementos constantes na Declaração Anual e no anexo J, resulta que só V….. e não P….. auferiu rendimentos da FAP.

Resultando, no entanto, do acervo fático que no ano de 2002, a Recorrida P….. emitiu 18 recibos Modelo n.º 6, no valor total de € 22.711,27, deles constando, designadamente, o recibo nº 350077, emitido à FAP, no valor de €12.843,18, tendo esses rendimentos sido objeto de declaração, na competente Declaração de IRS, Modelo 3, apresentada tempestiva e conjuntamente por ambos os sujeitos passivos integrantes do agregado familiar.

Ora, se é certo que P….. não auferiu rendimentos da FAP e se é, igualmente, certo que os rendimentos foram auferidos por V….., a verdade é que no sentido propugnado pelo Tribunal a quo não podemos descurar que foi emitido um recibo atestando o recebimento da quantia e que o mesmo foi declarado para o efeito, dando lugar à correspondente tributação em sede de IRS e de acordo com o agregado familiar.

Logo, a manter-se a liquidação adicional em apreço estar-se-ia a validar uma situação de duplicação de coleta, porquanto está a exigir-se no âmbito do mesmo agregado, relativamente ao mesmo facto tributário e ao mesmo período de tempo uma quantia que foi declarada, liquidada e se encontra paga-situação, de resto, não controvertida, donde regularizada.

Porquanto, resultando provado que o valor de €12.843,18 foi declarado enquanto rendimento coletável do casal, e com base nisso emitido o ato tributário, com todas as legais consequências, isto é, que ocorreu o cumprimento da mesma obrigação, por subsunção da mesma norma de incidência, verifica-se conforme, bem decidiu o Tribunal a quo, a figura da duplicação de coleta.

É certo que o artigo 115.º do CIRS preceitua que “[o]s titulares dos rendimentos da categoria B são obrigados: a) A passar fatura, recibo ou fatura-recibo, em modelo oficial, de todas as importâncias recebidas dos seus clientes, pelas transmissões de bens ou prestações de serviços referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 3.º, ainda que a título de provisão, adiantamento ou reembolso de despesas, bem como dos rendimentos indicados na alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo”, e in casu, não restam dúvidas que V….. não emitiu o respetivo recibo.

No entanto, como visto, não tendo P….. recebido quaisquer rendimentos- não obstante, por erro, ter emitido recibo no valor de €12.843,18- a verdade é que tal não poderá levar à manutenção do ato tributário, porquanto a interpretação da questão não pode ater-se, singela e redutoramente, na formalidade do ato, mas sim à substancialidade da tributação, desde logo, porque em sede de IRS vigora o princípio do rendimento acréscimo.

Aliás, se fizermos este exercício, tomar como base o único rendimento auferido por V….. e expurgar os rendimentos declarados por parte de P….. no âmbito da Categoria B, conclui-se que a Fazenda Pública não é lesada em qualquer quantia, ou seja, o valor dos rendimentos que deveriam integrar o rendimento coletável, donde sobre o qual incide imposto, é exatamente o mesmo. De resto, neste e para este efeito, a Recorrente nada aduz, limitando-se a afirmar que V….. auferiu rendimentos e não os declarou, descurando e negligenciando, que P….. nada auferiu.

De relevar, neste particular, que a assumir-se um entendimento distinto, quando dimana assente que P….. não auferiu rendimentos, tal levaria a assunção de tributação de uma realidade sem rendimento efetivo e com manifesta violação do princípio da capacidade contributiva.

Destarte, sendo validada a declaração Modelo 3 de IRS, na qual foi declarado o único rendimento pago pela FAP, e não sendo decretada a anulação do ato de liquidação impugnado, tal situação constitui uma situação de duplicação de coleta, por ter constituído matéria coletável num ato de liquidação anterior, donde, arrecadação ilegal de imposto, que carece de ser anulado.

Como doutrinado, em recente Aresto do STA, prolatado no processo nº 01011/02.7BTLRS01443/16 de 05 de fevereiro de 2020: “A recusa, pela Administração Tributária, em apurar o montante de imposto pago a mais constitui um acto confiscatório.”(sublinhado nosso).

E por assim ser, improcedem, in totum os erros de julgamento assacados à decisão recorrida, inexistindo qualquer violação dos normativos sindicados, e bem assim dos ditames que presidem ao julgamento da matéria de facto, consagrados nos nºs 3, 4 e 5 do artigo 607.º do CPC-alegação, de resto, não devidamente substanciada-razão pela qual a mesma se mantém na ordem jurídica.


***

IV. DECISÃO

Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SEGUNDA SUBSECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em: NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.

Custas pela Recorrente.

Registe. Notifique.


Lisboa, 24 de junho de 2021

[A Relatora consigna e atesta, que nos termos do disposto no artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo artigo 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes Desembargadores integrantes da formação de julgamento, os Desembargadores Susana Barreto e Vital Lopes]

Patrícia Manuel Pires

_____________________
[1] Vide, neste âmbito, designadamente, o Acórdão deste Tribunal prolatado no processo nº 2059/10.3BELRS, datado de 20.02.2020.
[2] Cf. Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 120, pág. 278.
[3] CPPT anotado, 6ª edição:2011, página 394, em anotação ao artigo 205.º.
[4] in CPPT Comentado e Anotado : 6.ª Edição: 2011, em anotação ao artigo 99.º página 113, nota 9.