Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:462/08.8BECTB
Secção:CT
Data do Acordão:01/24/2020
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:DENÚNCIA
DENÚNCIA ANÓNIMA
SELEÇÃO DO INSPECIONADO
INSPEÇÃO TRIBUTÁRIA
Sumário:
I. O legislador pretendeu que, em sede de procedimento inspetivo, a seleção dos contribuintes fosse fundada em critérios o mais objetivos possível, assim se excluindo quaisquer dúvidas no sentido de se estar perante opções de cariz persecutório ou arbitrário, pretendendo-se, desta forma, que a seleção não seja meramente discricionária.

II. A denúncia, para os efeitos previstos na alínea c) do n.º 1 do art.º 27.º do RCPIT, não pode ser uma denúncia anónima, além de não poder ser manifestamente infundada.

III. Em casos de denúncia anónima, a AT, considerando, desde logo, o princípio do inquisitório, poderá tentar indagar da existência de algum fundamento para a mesma e, a partir daí, atuar. No entanto, nestes casos, não poderá ser a denúncia a fundar a seleção para efeitos de instauração do procedimento inspetivo nem, consequentemente, ser indicada como critério de seleção.

IV. A ilegalidade na seleção do sujeito passivo inspecionado fere a validade do procedimento inspetivo na sua génese e afeta-o na sua globalidade.

Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 23.05.2016, no Tribunal Administrativo e Fiscal (TAF) de Castelo Branco, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por T….., Lda (doravante Recorrida ou Impugnante), que teve por objeto as liquidações de imposto sobre o valor acrescentado (IVA), atinentes aos meses de janeiro a dezembro de 2005, de janeiro a dezembro de 2006, de maio e de setembro de 2007.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nesse seguimento, a Recorrente apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

“a) Foram violados, pela douta sentença, o Plano Nacional de Actividades da Inspecção Tributária aprovado para o ano 2007 (PNAIT/2007), o artigo 27/1 alínea a) do RCPIT, o artigo 544° do CPC (actual artigo 444° do CPC), o artigo 76° da LGT.

b) Foram violados, pela douta sentença, o principio do estado de direito fiscal no sentido do sistema fiscal ter em vista a satisfação das necessidades financeiras do Estado e outras entidades públicas nos termos do artigo 103° da CRP, o princípio da igualdade e o sub- princípio da capacidade contributiva manifestada pela impugnante patenteada no relatório de inspecção tributária ora em causa, o princípio da repartição justa dos rendimentos e da riqueza previsto no artigo 103° da CRP, o Plano Nacional de Actividades da Inspecção Tributária aprovado para o ano 2007 (PNAIT/2007), o artigo 27/1 alíneas a) e c) do RCPIT, o artigo 70° da LGT, o artigo 544° do CPC (actual artigo 444° do CPC), o artigo 76° da LGT, o artigo 58° da LGT.

c) Consta da carta aviso, das ordens de serviço, da nota de diligência, do relatório de inspecção emitidos pela entidade competente, conforme chancela aposta a identificar a legislação e órgão competente, e a respectiva assinatura, como o impõe o RCPIT, como critério de selecção para inspecção da impugnante o “PNAIT 221.35, ano/exercício 2005, ano/exercício 2006”, um dos critérios previstos no Plano Nacional de Actividades da Inspecção Tributária (PNAIT) para o ano 2007 (ano em que teve lugar o procedimento inspectivo ora em causa): “221.35 - SP’s relativamente aos quais tenham sido apresentadas denúncias”.

d) Critério em causa utilizado que se encontra previsto e abrangido pelo artigo 27/1 alínea a) do RCPIT nos termos do qual “a identificação dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários a inspeccionar no procedimento de inspecção tem por base a aplicação dos critérios objectivos definidos no PNAIT para a actividade de inspecção tributária”.

e) Por outro lado, em relação à denúncia em apreço, a impugnante ora recorrida não impugna a genuinidade ou sequer invoca a falsidade do documento, limitando-se a colocar questões, sendo que, há muito, querendo fazê-lo, que o devia ter feito, desde logo nos termos e prazos do artigo 544° do CPC (actuais artigos 444° e 446° do CPC) ex vi artigo 2o do CPPT, nunca o tendo feito.

i) Sendo ainda de evidenciar o artigo 76/1 da LGT, nos termos do qual “as informações prestadas pela inspecção tributária fazem fé, quando fundamentadas e se basearem em critérios objectivos, nos termos da lei”.

g) Ora, são os ínspectores tributários intervenientes no procedimento de inspecção que juntam e fazem expressa menção ao “extracto de denúncia” como critério de selecção previsto no Plano Nacional de Actividades da Inspecção Tributária (PNAIT) para o ano 2007 (ano em que teve lugar o procedimento inspectivo ora em causa): “221.35 - SP’s relativamente aos quais tenham sido apresentadas denúncias”, cuja genuinidade não é impugnada pela impugnante recorrida, fazendo fé a informação prestada pela inspecção tributária. Não é, pois, “uma forma de «deixar entrar pela janela o que não se quis deixar entrar pela porta»”.

h) Aliás, em anotação ao artigo 70° da LGT, na sua “Lei Geral Tributária anotada”, Lima Guerreiro refere que “...o número 1 impõe o início do procedimento com base em denúncia de autoria identificada e quando não seja manifesto o seu carácter infundado, mas não veda que os dados integrantes da denúncia não identificada sejam tidos em conta, se se revelarem fundamentados, por confronto como outro outros elementos já em poder da administração tributária, na decisão de instauração de procedimento, caso se verifiquem os requisitos legais que lhe podem dar início e são os previstos genericamente no artigo 27°, número 1, do RCPIT. Não resulta da expressão do número do presente artigo uma proibição absoluta do início do procedimento nos casos de denúncia de autoria não identificada (o que seria inequívoco se antes de «pode» tivesse incluído o advérbio «somente»)”.

i) Por outro lado e sem conceder, em virtude da natureza fiscal do nosso estado de direito nenhum contribuinte está isento da fiscalização sendo que, mais tarde ou mais cedo, todos os contribuintes, independentemente da sua dimensão, localização ou sector de actividade, deviam ser objecto de fiscalização. Prevêem precisamente o RCPIT e a LGT que no âmbito do procedimento de inspecção tributária, regra geral, a iniciativa do procedimento [que visa também a confirmação dos factos tributários declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributários (artigo 2/2 alínea a) do RCPIT] é da inspecção tributária.

j) Depois, o que o RCPIT e a LGT regulam no âmbito do procedimento de inspecção não são os fundamentos desta - ínsita na natureza fiscal do nosso estado de direito - mas sim os princípios e regras a esta aplicáveis, os critérios (no sentido de estabelecer uniformidade e de fazer face à escassez dos recursos inspectivos), as competências, o âmbito da inspecção, o iter procedimental, a forma de obtenção dos elementos probatórios.

k) Assim, para além do critério de selecção em causa utilizado estar abrangido pelo artigo 27/1 alínea a) do RCPIT, está também abrangido pelo artigo 27/1 alínea c) do mesmo artigo.

l) Assim, tendo em conta os princípios da prossecução do interesse público e do inquisitório, previstos nomeadamente no artigo 58° da LGT, ínsitos na natureza da inspecção tributária e nos objectivos para ela previstos nomeadamente no artigo 2º do RCPIT, quanto à selecção dos contribuintes a inspeccionar esta obedece também, necessariamente, a critérios aleatórios, uma vez que pelo simples facto de se ser contribuinte e da natureza fiscal do nosso estado de direito, pode-se ser objecto duma acção inspectiva.

m) Quer-se com isto dizer que o poder de inspecção tributária é exercitado essencialmente mediante critérios de oportunidade. É claramente um poder de natureza discricionária e o seu exercício comporta os limites inerentes ao exercício de todo o poder discricionário da administração, por força da sua natureza e das próprias normas da Constituição da República Portuguesa. Assim, e desde logo, a inspecção tributária visa apurar a situação tributária dos contribuintes. A selecção destes obedece a critérios objectivos e subjectivos (embora estes últimos decorram já da consideração dos critérios objectivos). Os primeiros são constituídos também a partir de estudos comportamentais - denúncias, notícias de imprensa e outros - e cruzamentos automáticos. Os segundos partem da necessidade de ponderar quantas acções de inspecção deverá ter um determinado programa de inspecção e sobretudo ponderar o grau de importância de cada um dos critérios de selecção. Construído o universo de contribuintes que preenche um ou vários critérios de selecção, há que proceder à selecção nominal dos contribuintes a inspeccionar utilizando: critérios aleatórios, critérios de nível de materialidade, critérios mistos, universo total dos contribuintes a inspeccionar.

n) Assim, e no que tange à presente situação, estando em causa o princípio da prossecução do interesse público, o princípio da indisponibilidade das obrigações tributárias e a existências de indícios, mesmo que ténues - fls. 26 do processo administrativo (extracto de denúncia) - de eventual não regularização da situação tributária da ora impugnante, acompanhada com elementos ao dispor da administração tributária - nomeadamente fls. 21 a 56 do processo administrativo - não podia esta deixar de fazer aquilo que lhe incumbe, apurar a situação tributária do contribuinte.

o) Quer-se com isto dizer que mesmo tratando-se de denúncia de autoria não identificada, não pode decorrer do escopo da lei qualquer impedimento à realização de diligências, tendo em vista o início e o posterior desenvolvimento do procedimento inspectivo. Assim, e na perspectiva de enquadramento do critério no artigo 27/1 alínea c) do RCPIT, mesmo que não encontrado o denunciante ou não confirmada a denúncia, não deixa, por isso, de proceder-se às necessárias averiguações e de agir de harmonia com o seu resultado, “mas então há que proceder ao levantamento do auto de notícia pelo funcionário que verificou pessoalmente a infracção. Processualmente tudo se passa como não havendo denúncia” (Fernando Pinto Femandes e Cardoso dos Santos no seu Código de Processo Tributário anotado). A presente inspecção tem, pois, como critério de selecção a existência duma denúncia nos termos do PNAIT 2007 - fls. 12 a 15 do processo administrativo - que mesmo não encontrado o denunciante ou não confirmada a denúncia, não poderia, por isso, impedir a prossecução do procedimento e de agir de harmonia com o seu resultado.

p) Depois ainda, as enormes correcções e irregularidades detectadas, quer em sede de IVA, quer em sede de IRC, demonstram por si o fundamento da denúncia.

q) Finalmente, qualquer irregularidade que eventualmente tivesse existido nas ordens de serviço não implicariam nulidade do procedimento e muito menos das liquidações mas apenas irregularidades invocáveis no próprio procedimento de inspecção que teriam legitimado a oposição à prática de actos de inspecção. E se dúvidas a ora impugnante tivesse, poderia ter solicitado esclarecimento, quer no âmbito do direito de informação em geral, quer no âmbito do disposto no artigo 37° do CPPT, o que nunca viria a fazer.

r) No que se refere aos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida, eles constam dos autos e da douta sentença, tendo sido juntos quer pela impugnante/recorrida, quer pela fazenda”.

A Recorrida não contra-alegou.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser concedido provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:
a) Há erro de julgamento, em virtude de ação inspetiva ter sido realizada atentando nos critérios de seleção legalmente previstos?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“a) Foi divulgado em relação a 2007 o PNAIT, onde se encontra no ponto 221.35 “– SP’s relativamente os quais tenham sido apresentadas denúncias” e no ponto 221.39 – Diversos (determinados por despacho do DF) (cfr. documento de fls. 1 e ss. do PAT);

b) Foi preenchido “Processo de Evidência de Trabalho” relativamente à Ordem de Serviço n.ºOI2007….., onde se lê quanto ao âmbito e extensão inspectiva, além do mais (cfr. documento de fls. 14 do PAT):


“PNAIT 221,35 Ano /Exercício 2005”

“PNAIT 221,35 Ano /Exercício 2006”

“PNAIT 221,39 Ano /Exercício 2007”


c) Na sequência do documento a que se refere a alínea anterior, encontram-se sete anexos, que se dão por integralmente reproduzidos, onde além do mais se encontra quadro com a compilação das declarações da aqui impugnante em sede de IVA, do exercício 2005, Análise sistema VIES, quadro relativo às demonstrações de resultados e balanços dos exercícios de 2004 a 2006 e análise das respectivas variações e cruzamentos da informação relativa aos anexos O, P e Modelo 10 (cfr. documentos de fls. 15 a 51 do PAT);

d) Do PAT consta a fls. 20 documento, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, onde se encontram manuscritas as palavras “Extracto de Denúncia” e onde se lê :



e) A 11/10/2007 foi emitida “Carta Aviso” com o n.º….., onde se lê (cfr. “Carta Aviso” de fls. 473 do PAT): “Nos termos da alínea l) do n.3 do artigo 59.º da Lei Geral Tributária – LGT e do artigo 49.º do (…)RCPIT fica (m) V.ª(s) Ex.ª(s) notificado(d) de que, a muito curto prazo, se deslocar(ão) à morada acima referenciada, técnico(s) dos Serviços de Inspecção Tributária. A visita do(s) técnico(s) tem como finalidade a verificação do cumprimento das correspondentes obrigações tributárias por parte de V.ª(s) Ex.ª(s) e terá o âmbito e extensão a seguir indicados:

Âmbito e extensão da acção inspectiva – Anos / Exercícios/ Períodos a Fiscalizar

Parcial IRC IVA PNAIT 221.35 Ano /Exercício 2005

Parcial IRC IVA PNAIT 221.35 Ano /Exercício 2006

A eventual alteração, ao Âmbito e extensão da acção inspectiva, resultará de despacho fundamentado da entidade que a ordenou (artigo 15.º do RCPIT);

f) A 24/10/2007 foi assinada a Ordem de Serviço com o n.ºOI2007….., relativa à inspecção que ora nos ocupa, pelo representante da impugnante, onde se lê (cfr. documento de fls. 474 do PAT):

“Âmbito e extensão da acção inspectiva – Anos / Exercícios/ Períodos a fiscalizar

Parcial IRC IVA PNAIT 221.35 Ano /Exercício 2005

Parcial IRC IVA PNAIT 221.35 Ano /Exercício 2006”

g) A 08/02/2008 foi emitida Ordem de Serviço a ordenar a inspecção da aqui impugnante, ao abrigo da OI 2007….., lendo-se da mesma (cfr. documento de fls. 475 do PAT);

Parcial IRC IVA PNAIT 221.35 Ano /Exercício 2005

Parcial IRC IVA PNAIT 221.35 Ano /Exercício 2006

Parcial IVA PNAIT 221.39 Ano /Exercício 2007 Meses 05 e 09

h) Na Ordem de Serviço a que se refere a alínea anterior lê-se: (cfr. documento de fls. 475 do PAT) “Altera-se a Ordem de Serviço que lhe foi notificada em 24/10/07, com os seguintes fundamentos: Verificação da facturação relativas às “obras em curso” em 31/12/2006, em matéria de IVA e quanto aos períodos 07.05 e 07.09.”

i) A 08/02/2008 foi assinada Nota de Diligências (artigo 61.º do RCPIT) pelo sócio­‑gerente da impugnante, onde se lê (cfr. cópia de nota de diligências a fls 476 do PAT):

Âmbito e extensão da acção inspectiva – Anos / Exercícios/ Períodos a fiscalizar

Parcial IRC IVA PNAIT 221.35 Ano /Exercício 2005

Parcial IRC IVA PNAIT 221.35 Ano /Exercício 2006

Parcial IVA PNAIT 221.39 Ano /Exercício 2007

j) A 11/02/2008 foi elaborado relatório de inspecção, onde além do mais se lê (cfr. relatório a fls.481 e ss.):

II.1 – Credencial e período em que decorreu a acção

Ordem de Serviço n.º - OI2007…..

Início da acção em:2007-10-24

Conclusão da acção em:2008-02-08

II.2 – Motivo, âmbito e incidência

A presente acção de inspecção à contabilidade do sujeito passivo “T….., Lda.” NIPC ….., com sede (…) incidiu nos exercícios de 2005 e 2006. É uma acção parcial, PNAIT 221.35, abrangendo IRC e IVA.

A acção foi ainda estendida ao ano de 2007, com âmbito parcial, PNAIT 221.39 incidindo sobre o IVA dos períodos 05 e 09.

k) A 10/03/2008 foi emitido ofício de notificação à ora impugnante para o exercício de audição quanto ao projecto de relatório de Inspecção Tributária (cfr. cópia de ofício a fls. 477 do PAT);

l) A impugnante pronunciou-se sobre o projecto de relatório a 24/03/2008, nos termos que se dão por integralmente reproduzidos (cfr. cópia de requerimento de fls. 576 e ss e carimbo de entrada aí aposto);

m) A 3/04/2008 foi elaborado relatório de inspecção, onde se lê, além do mais o seguinte, dando-se o demais por integralmente reproduzido (fls. Relatório de fls. 691 a fls. 770):

II – Objectivo, âmbito e extensão da acção inspectiva

II-1. Credencial e período em que decorreu a acção

Ordem de Serviço n.ºOI2007…..

Início da acção em: 2007-10-24

Conclusão da acção em: 2008-02-08

II-“. Motivo, Âmbito e Incidência

A presente acção de inspecção à contabilidade do sujeito passivo “T….., Lda.”, NIPC: ….., com sede no P….., Lotes …../….., ….. Guarda, incidiu nos exercícios de 2005 e 2006. É uma acção parcial, PNAIT 221.35, abrangendo IRC e IVA.

A acção foi ainda extensiva ao ano de 2007, com âmbito parcial, PNAIT 221.39, incidindo sobre o IVA dos períodos 05 e09.

(…)

n) Fazem parte do relatório de inspecção 39 anexos que se dão por reproduzidos (cfr. se indica no corpo do relatório e os documentos de fls. 771 a 1143 do PAT)

o) A 17/04/2008 foi emitido o ofício n.º….. da Divisão de Inspecção Tributária – Serviço de Planeamento e apoio administrativo, tendente à notificação do relatório de inspecção tributária à aqui impugnante (cfr. cópia de ofício a fls. 687 dos autos);

II.B. Relativamente aos factos não provados, refere-se na sentença recorrida:

“Factos não provados:

1. A existência de uma denúncia contra a aqui impugnante (é que dos documentos constantes do processo administrativo apenas é possível expurgar o conteúdo de um documento cujo autor não está identificado, cujo conteúdo consta do probatório na alínea d), onde se escreveu, não se sabe quem, “extracto de denúncia”, não se conhecendo tampouco as circunstâncias de tempo e de lugar em que o mesmo terá sido elaborado, sendo que a AT nada mais juntou para provar a alegada denúncia”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“Os factos provados assentam da análise dos documentos juntos aos autos e constantes do PAT, sendo que o depoimento das testemunhas se mostrou irrelevante para a decisão sobre a matéria de facto, visto que as testemunhas mais não fizeram que emitir opiniões sobre os documentos constantes dos autos”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, na medida em que, na sua perspetiva, a procedimento inspetivo não sofre de qualquer irregularidade atinente ao critério de seleção da Recorrida.

O Tribunal a quo considerou, em síntese, que a validade da ação inspetiva foi ferida, na medida em que não ficou provado que a denúncia que alegadamente esteve na sua origem tivesse obedecido às exigências legais sobre a matéria, ilegalidade essa que se estende a todos os atos praticados no âmbito do procedimento.

Vejamos então.

O apuramento da situação tributária dos contribuintes pode ser feito através de atos de inspeção levados a cabo pela administração tributária (AT).

O procedimento inspetivo é, pois, um procedimento tributário, como decorre, desde logo, do art.º 54.º da Lei Geral Tributária (LGT). O então n.º 5 (atual n.º 6) desta mesma disposição legal remete para diploma próprio a regulamentação do “exercício do direito de inspeção tributária” [o então Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária (RCPIT)[1], a que nos referiremos infra].

Atentando no n.º 1 do art.º 2.º do RCPIT, “[o] procedimento de inspeção tributária visa a observação das realidades tributária, a verificação do cumprimento das obrigações tributária e a prevenção das infrações tributárias”.

Sendo levado a cabo pela AT um procedimento inspetivo, o mesmo tem os seus termos e limites legalmente estabelecidos, por forma a que, desde logo, sejam respeitados os princípios da adequação e da proporcionalidade (cfr. art.º 63.º, n.º 3, da LGT), princípios esses, aliás, cujo respeito pela administração pública, na sua atuação, encontra assento na nossa lei fundamental (cfr. art.º 266.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa).

Sobre os termos em que a inspeção tributária deve ser levada a efeito, há que apelar, então, ao já referido RCPIT (aprovado pelo DL n.º 413/98, de 31 de dezembro, constituindo o seu anexo).

Como resulta do preâmbulo deste diploma:

“[T]endo em conta a natureza da actividade inspectiva, a Administração não poderá estar subordinada a uma sucessão imperativa e rígida de actos. Porém, esta circunstância não prejudica a consagração de regras gerais de actuação visando essencialmente a organização do sistema, e consequentemente a garantia da proporcionalidade aos fins a atingir, da segurança dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários e a própria participação destes na formação das decisões, evitando a proliferação de litígios inúteis.

No respeito por estes princípios, a Lei Geral Tributária acolheu uma concepção da inspecção tributária harmónica com o moderno procedimento administrativo e as garantias dos cidadãos.

Assim, a natureza do presente diploma é essencialmente regulamentadora não se pretendendo alterar os actuais poderes e faculdades da inspecção tributária nem os deveres dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários que se mantêm integralmente em vigor.

No entanto, a melhor sistematização da acção fiscalizadora incrementará a sua eficiência e eficácia, bem como a segurança do procedimento de inspecção, tendo sido diminuída a margem de discricionaridade” (sublinhados nossos).

O RCPIT define, pois, os termos em que deve ser levado a cabo o procedimento inspetivo, consagrando, designadamente, desde os princípios globais em termos de atuação (cfr. art.ºs 5.º a 10.º), à classificação dos procedimentos (cfr. art.ºs 12.º a 15.º), à competência para os mesmos (cfr. art.ºs 16.º a 19.º), ao planeamento e seleção (cfr. art.ºs 23.º a 27.º) e aos termos do procedimento propriamente dito (cfr. art.ºs 28.º e ss.).

Assim, um dos aspetos objeto de consagração expressa no RCPIT prende-se com o planeamento e seleção dos sujeitos passivos a inspecionar.

Chama-se a este respeito, desde já, à colação o art.º 23.º do RCPIT. Esta disposição legal, na redação então em vigor, previa que, sem prejuízo da realização de outras ações de inspeção, a atuação inspetiva da AT obedeceria ao Plano Nacional de Atividades da Inspeção Tributária (PNAIT), aprovado nos termos descritos nos n.ºs 2 a 6 da referida disposição legal.

Decorre desta disciplina que são definidos no PNAIT os programas, critérios e ações a desenvolver e que servem de base à seleção dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários a inspecionar.

Por seu turno, o art.º 27.º, n.º 1, do RCPIT, sob a epígrafe “Seleção”, refere que:

“1 - A identificação dos sujeitos passivos e demais obrigados tributários a inspecionar no procedimento de inspeção tem por base:

a) A aplicação dos critérios objetivos definidos no PNAIT para a atividade de inspeção tributária;

b) A aplicação dos critérios que, embora não contidos no PNAIT, sejam definidos pelo diretor-geral dos Impostos, de acordo com necessidades conjunturais de prevenção e eficácia da inspeção tributária ou a aplicação justificada de métodos aleatórios;

c) A participação ou denúncia, quando sejam apresentadas nos termos legais;

d) A verificação de desvios significativos no comportamento fiscal dos sujeitos passivos ou demais obrigados tributários perante os parâmetros de normalidade que caracterizam a atividade ou situação patrimonial ou de quaisquer atos ou omissões que constituam indício de infração tributária.

2 - Os casos em que a iniciativa da inspeção tributária é do próprio sujeito passivo ou de terceiro que igualmente prove interesse legítimo estão sujeitos a regulamentação especial”.

Deste enquadramento, resulta que o legislador pretendeu que a seleção dos contribuintes fosse fundada em critérios o mais objetivos possível, assim se excluindo quaisquer dúvidas no sentido de se estar perante opções de cariz persecutório ou arbitrário, pretendendo-se, desta forma, que a seleção não seja meramente discricionária[2].

Como decorre deste art.º 27.º, n.º 1, do RCPIT, concretamente da sua alínea c), a seleção dos contribuintes pode ser feita com base em “[a] participação ou denúncia, quando sejam apresentadas nos termos legais”.

Como referido por Joaquim Freitas da Rocha e João Damião Caldeira[3], a denúncia define-se “… como um acto voluntário de um particular através do qual este dá a conhecer à Administração tributária determinados factos, situações ou circunstâncias que afectam o denunciado e que, caso se constate terem fundamento, poderá dar lugar ao início de um procedimento de inspecção”.

A circunscrição constante do teor da mencionada al. c) do n.º 1 do art.º 27.º do RCPIT, in fine (“apresentadas nos termos legais”) remete-nos para o disposto no art.º 70.º da LGT, nos termos de cujo n.º 1:

“1 - A denúncia de infração tributária pode dar origem ao procedimento, caso o denunciante se identifique e não seja manifesta a falta de fundamento da denúncia”.

Daqui decorre, desde logo, que a denúncia, para os efeitos previstos na alínea c) do n.º 1 do art.º 27.º do RCPIT, não pode ser uma denúncia anónima, além de não poder ser manifestamente infundada. Como referido por Jesuíno Alcântara Martins, “[o] procedimento de inspecção tributária pode ter origem em participação ou denúncia, quando estas sejam apresentadas nos termos legais. De entre os requisitos legais destaca-se a necessidade da pessoa que efectuar a denúncia se identificar, o que implica a elaboração de um termo de identificação que deve ficar ínsito em envelope inviolável”[4].

Feito este introito, cumpre apreciar.

In casu, desde logo a Recorrente defende que o Tribunal a quo violou o PNAIT/2007 e, por via disso, o art.º 27.º, n.º 1, al. a), do RCPIT, o art.º 444.º do CPC e o art.º 76.º da LGT.

Como resulta da matéria de facto provada, efetivamente foi previsto, no PNAIT 2007, um código (o código 221.35), com a descrição “– SP’s relativamente os quais tenham sido apresentadas denúncias”, bem como um outro, o código 221.39, com a descrição “Diversos (determinados por despacho do DF)”.

Resulta, desde logo, do exposto que o PNAIT 2007 optou por consagrar, na sua listagem de códigos, situações onde se podem incluir parte daquelas a que respeita o art.º 27.º, n.º 1, als. b) (ou seja, situações radicadas em critérios definidos pelo então diretor geral dos impostos) e c) (ou seja, situações radicadas em denúncias) do RCPIT.

Ou seja, não se trata propriamente de critérios definidos inovatoriamente no PNAIT, nos termos consignados nos art.ºs 23.º e ss. do RCPIT, mas sim situações que a lei define como fundamentadoras da seleção de um determinado sujeito passivo.

Significa isto, ao contrário do defendido pela Recorrente, que não se pode considerar que o facto de o código 221.35 estar elencado no PNAIT implique que este instrumento consagre um critério de seleção que visa quaisquer denúncias, mesmo anónimas (aliás, tal nem sequer resulta explanado no PNAIT). Ou seja, ainda que conste do PNAIT 2007 o código 221.35, a sua apreciação e interpretação tem de ser feita sobretudo considerando os termos em que está prevista a admissibilidade de procedimentos de inspeção com base em denúncias, como aliás refere o Tribunal a quo a este respeito.

Não pode, pois, a situação in casu ser analisada de um ponto de vista atomístico, considerando-se, como pretende a Recorrente, que o caso está, tout court, abrangido pela al. a) do n.º 1 do art.º 27.º do RCPIT, pelo simples facto de existir um código PNAIT, tendo sempre de ser lida e apreciada a situação em consonância com a al. c) do n.º 1 do art.º 27.º do RCPIT e as suas exigências.

Interpretar em sentido diferente o caso dos autos seria admitir a subversão dos critérios que o legislador entendeu relevantes, designadamente no que respeita à imposição da existência de denúncia apresentada nos termos legalmente prescritos, permitindo, através de uma mera integração no PNAIT, a consagração de um critério contra legem.

Por outro lado, não se alcança em que termos foi violado o art.º 76.º da LGT.

Com efeito, nos termos do art.º 76.º, n.º 1, da LGT, “[a]s informações prestadas pela inspeção tributária fazem fé, quando fundamentadas e se basearem em critérios objetivos, nos termos da lei”.

Este regime abrange os factos apurados pela AT, desde que devidamente fundamentados.

Ora, in casu, desde logo, em relação do documento mencionado em d) do probatório, o mesmo surge em anexo do documento referido em b), sendo que nenhuma alusão ou remissão é feita ao mesmo em qualquer documento da AT, não havendo qualquer menção à existência de denúncia nem sua caraterização. A simples inclusão de um anexo no processo administrativo de modo algum se pode equiparar a informação prestada pela AT para efeitos do art.º 76.º, n.º 1, da LGT.

Note-se que o documento em causa, como referido pelo Tribunal a quo, em sede de motivação da factualidade não provada, é um documento cuja autoria não surge minimamente identificada nem circunstanciada. Logo, não há aqui lugar à aplicação do disposto no n.º 1 do art.º 76.º da LGT, não só por nem ser feita alusão, se não na menção do código PNAIT, à existência de uma denúncia em concreto contra a Recorrida, mas também porque essa alusão nem se encontra sustentada, na medida em que o documento em causa, deste logo em virtude de o seu autor não estar sequer identificado, não pode ser configurado como denúncia, nos termos e para os efeitos do n.º 1 do art.º 70.º da LGT.

Da mesma forma não se está perante situação em que devesse ser impugnada a genuinidade do documento ou invocada a sua falsidade.

Com efeito, nos termos do art.º 444.º do CPC:

“1 - A impugnação da letra ou assinatura do documento particular ou da exatidão da reprodução mecânica, a negação das instruções a que se refere o n.º 1 do artigo 381.º do Código Civil e a declaração de que não se sabe se a letra ou a assinatura do documento particular é verdadeira devem ser feitas no prazo de 10 dias contados da apresentação do documento, se a parte a ela estiver presente, ou da notificação da junção, no caso contrário”.

Por seu turno, nos termos do art.º 446.º, n.º 1, do mesmo código:

“1 - No prazo estabelecido no artigo 444.º, devem também ser arguidas a falta de autenticidade de documento presumido por lei como autêntico, a falsidade do documento, a subscrição de documento particular por pessoa que não sabia ou não podia ler sem a intervenção notarial a que se refere o artigo 373.º do Código Civil, a subtração de documento particular assinado em branco e a inserção nele de declarações divergentes do ajustado com o signatário”.

Como referido por Salvador da Costa[5], “[o] conceito de genuinidade ou de autenticidade lato sensu dos documentos significa a coincidência entre a pessoa que, no momento da sua apresentação em juízo, consta ser o seu autor – o autor aparente – e aquela que o formou ou por conta de quem foi formado – o autor real. // Em sentido restrito, reporta-se o conceito de genuinidade à referida coincidência no que concerne aos documentos particulares. O conceito de autenticidade refere-se, por seu turno, a essa coincidência, quando referenciada aos documentos autênticos”.

Ora, a genuinidade ou autenticidade tem inerente ser posta em causa a autoria do documento, sendo que, como já se referiu, o mencionado documento não tem qualquer identificação, pelo que não há qualquer autoria a pôr em causa, porque desconhecida.

Quanto à falsidade, também a mesma não tinha de ser in casu arguida. Com efeito, desde logo, não se trata, no caso dos autos, de documento autêntico, pelo que careceria de materialidade suscitar a falta de autenticidade do documento, nos termos consignados no n.º 1 do art.º 446.º do CPC. Efetivamente, nos termos do art.º 363.º, n.º 2, do Código Civil, “[a]utênticos são os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de atividade que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares”. Ora, tal anexo não se enquadra neste conceito de documento autêntico, o que desde logo decorre do facto de não estar sequer identificado o seu autor.

Por outro lado, e quanto aos documentos particulares, os mesmos só fazem prova plena quando a sua autoria seja reconhecida nos termos do art.º 375.º do Código Civil (cfr. n.º 1 do art.º 376.º do mesmo código), o que não é o caso. A falsidade do documento particular consiste em no mesmo “… se mostrar exarada uma declaração que o seu autor não fez” [6]. Daqui resulta que “[a] questão da falsidade do documento só se coloca depois de estabelecida a respetiva autoria, a sua genuinidade, só prevendo a lei a falsidade como meio de ilidir a força probatória plena de documentos”[7].

Ora, não só, in casu, não há qualquer autoria reconhecida do documento em causa, como nem sequer há autoria conhecida do mesmo. Logo, não haveria por que arguir a falsidade do mencionado documento, ao contrário do defendido pela Recorrente.

Veja-se, ademais, que não é posta em causa a existência do anexo mencionado em d) do probatório, mas tão-só a sua configuração como denúncia, designadamente nos termos e para os efeitos do art.º 70.º da LGT.

O que na verdade está em causa é o ónus da prova da verificação de um critério de seleção ao abrigo do qual a Recorrida foi inspecionada e que, concretamente, se centrava na existência de uma denúncia, devendo, naturalmente, tal critério estar fundamentado e ser demonstrado pela AT, atento o disposto no art.º 74.º, n.º 1, da LGT, pois que se trata de documento fundamental para demonstração da legitimidade da atuação da AT.

Como tal, carece de razão a recorrente quando alega que não foi respeitado o disposto nos art.ºs 444.º e 446.º do CPC.

Refere ainda a Recorrente que as denúncias anónimas podem ser, de todo o modo, consideradas. Em tese, concorda-se em parte com este raciocínio. Com efeito, em casos de denúncia anónima, parece-nos que a AT, considerando, desde logo, o princípio do inquisitório (previsto no art.º 58.º da LGT), poderá tentar indagar da existência de algum fundamento para a mesma e, a partir daí, atuar. No entanto, nestes casos, não poderá ser a denúncia a fundar a seleção para efeitos de instauração do procedimento inspetivo nem, consequentemente, ser indicada como critério de seleção. O que sucederá, nestes casos, é que, tendo-se partido de uma denúncia anónima, se alcança, através de diligências instrutórias, uma conclusão que permite que o contribuinte seja selecionado com base num dos outros critérios legalmente previstos. Como referido por José Maria Fernandes Pires e outros[8], “… nestes casos de falta de identificação do denunciante, é nosso entendimento que o impulso do procedimento não será propriamente a denúncia, a que se refere o artigo 70°- (até porque o previsto nos números 2 e 3 deste artigo ficariam com o seu conteúdo esvaziado) . Cremos que se configura uma situação em que o procedimento é iniciado oficiosamente pela administração tributária, nos termos do artigo 69° da LGT (embora previamente tenha existido uma denúncia e, eventualmente, demais diligências da administração para afastar os casos infundados)” (sublinhado nosso). Ora, tal não resulta in casu sequer alegado nem decorre dos elementos juntos aos autos, tendo-se partido de uma alegada denúncia anónima e sendo este o único critério considerado para a seleção do sujeito passivo, quando o regime legal a que vimos fazendo referência exclui a seleção com base em denúncias anónimas. Não se trata de um procedimento da iniciativa oficiosa da AT, mas sim de um procedimento baseado em denúncia. Como tal, o alegado a este respeito pela Recorrente não tem qualquer relevo, porquanto o critério utilizado foi o da existência de denúncia, o que não corresponde à realidade, como resulta da factualidade não provada.

Refere, por outro lado, a Recorrente que “nenhum contribuinte está isento da fiscalização sendo que, mais tarde ou mais cedo, todos os contribuintes, independentemente da sua dimensão, localização ou sector de actividade, deviam ser objecto de fiscalização”, que “regra geral, a iniciativa do procedimento [que visa também a confirmação dos factos tributários declarados pelos sujeitos passivos e demais obrigados tributários (artigo 2/2 alínea a) do RCPIT] é da inspecção tributária” e que “o que o RCPIT e a LGT regulam no âmbito do procedimento de inspecção não são os fundamentos desta - ínsita na natureza fiscal do nosso estado de direito - mas sim os princípios e regras a esta aplicáveis, os critérios (no sentido de estabelecer uniformidade e de fazer face à escassez dos recursos inspectivos), as competências, o âmbito da inspecção, o iter procedimental, a forma de obtenção dos elementos probatórios”. Ora, de modo algum o que vem sendo dito atenta contra estas afirmações. No entanto, nos termos já referidos, o legislador pretendeu consagrar um regime do qual resulta que a atuação da inspeção tributária não é arbitrária. É com base nessa necessidade de defesa dos sujeitos passivos contra a arbitrariedade que se exige que as denúncias que fundem a seleção para efeitos de procedimento inspetivo não sejam anónimas.

Em suma, o critério em causa não está abrangido pelo disposto no art.º 27.º, n.º 1, al. a) e c) do RCPIT, lido em consonância com o art.º 70.º, n.º 1, da LGT, em virtude de inexistir denúncia apresentada nos termos exigidos legalmente.

Alega ainda a Recorrente que, “tendo em conta os princípios da prossecução do interesse público e do inquisitório, previstos nomeadamente no artigo 58° da LGT, ínsitos na natureza da inspecção tributária e nos objectivos para ela previstos nomeadamente no artigo 2º do RCPIT, quanto à selecção dos contribuintes a inspeccionar esta obedece também, necessariamente, a critérios aleatórios, uma vez que pelo simples facto de se ser contribuinte e da natureza fiscal do nosso estado de direito, pode-se ser objecto duma acção inspectiva” e que “… o poder de inspecção tributária é exercitado essencialmente mediante critérios de oportunidade. É claramente um poder de natureza discricionária e o seu exercício comporta os limites inerentes ao exercício de todo o poder discricionário da administração, por força da sua natureza e das próprias normas da Constituição da República Portuguesa”.

Ora, mais uma vez, tudo o alegado a este propósito tem a ver com o conteúdo do RCPIT e não é posto em causa. Não se põe em causa o poder de fiscalização da AT, não se põe em causa os objetivos da inspeção tributária, não se põe em causa o seu poder-dever de atuação.

No entanto, como já referimos, os termos em que esta atuação ocorre encontra-se definido, designadamente no RCPIT, onde, desde logo, temos de aferir da legalidade na génese do procedimento. Essa génese encontra-se no critério de seleção que, repetimos, não pode ser arbitrário (que não se confunde com a seleção aleatória dos inspecionados, uma vez que esta é a jusante da aplicação de critérios objetivos não arbitrários). Não se respeitou a disciplina legal atinente ao critério que presidiu à seleção da Recorrida, critério esse consubstanciado em denúncia contra o sujeito passivo, na medida em que não foi considerada a exigência de a denúncia não ser anónima (exigência essa que se mantém, ainda que o código deste critério conste do PNAIT, como já referimos supra).

Reiteramos o que já referimos supra: perante uma denúncia anónima, não pode ser critério de seleção do contribuinte essa mesma denúncia, o que aconteceu in casu. Isso não invalida que não possam ser feitas diligências, partindo de uma denúncia anónima, e que se conclua que o sujeito passivo seja inspecionado em resultado do que se venha a apurar. No entanto, neste caso que abstratamente focamos (e que não resulta que tenha acontecido in casu), a denúncia não é critério de seleção, mas sim ponto de partida para aferição da existência de uma situação passível de se enquadrar nos critérios legalmente previstos (para além do critério da denúncia de autor identificado). No caso dos autos, a alegada denúncia anónima foi o critério, como não é controvertido, pelo que carece de materialidade o invocado em torno do que, em abstrato, a AT pode fazer perante denúncias anónimas.

Veja-se, por outro lado, que a prossecução do interesse público se pauta, igualmente, pelo respeito pelo princípio da legalidade. A administração não pode, sob o argumento do interesse público, atuar em desrespeito pelas garantias dos contribuintes. A atuação dentro dos limites legalmente previstos em nada belisca esta prossecução nem, naturalmente, todos os princípios alegados pela Recorrente subjacentes à arrecadação de receitas, designadamente os referidos, sem consubstanciação, nas conclusões b) e n). Essa atuação implica, repete-se, que os critérios de seleção dos sujeitos passivos a fiscalizar respeitem a disciplina legal a que já nos referimos.

Não altera esta conclusão o alegado pela Recorrente, no sentido de que “as enormes correcções e irregularidades detectadas, quer em sede de IVA, quer em sede de IRC, demonstram por si o fundamento da denúncia”. Com efeito, o critério de seleção, antes de mais, tem de ser prévio, cronologicamente anterior à ação inspetiva e tem de obedecer os termos legalmente prescritos. O facto de ter havido correções, que, aliás, são controvertidas, não altera minimamente o que se concluiu, em termos de estarmos perante uma denúncia anónima de não poderia sustentar per se o critério de seleção da Recorrida.

Finalmente, carece de pertinência o alegado, no sentido de que qualquer irregularidade que eventualmente tivesse existido nas ordens de serviço não implicaria nulidade do procedimento e muito menos das liquidações, mas apenas irregularidade invocável no próprio procedimento de inspeção que teria legitimado a oposição à prática de atos de inspeção e que, se dúvidas a Recorrida tivesse, poderia ter solicitado esclarecimento, quer no âmbito do direito de informação em geral, quer no âmbito do disposto no art.º 37.º do CPPT, o que nunca viria a fazer.

É certo que a existência de irregularidades na credenciação, decorrentes de irregularidades na ordem de serviço, não implicam ilegalidade do procedimento inspetivo, permitindo, sim, a oposição aos atos de inspeção (cfr. art.ºs 46.º e 47.º do RCPIT)[9].

No entanto, não é de irregularidades na ordem de serviço que estamos a tratar, mas sim de ilegalidade na seleção da Recorrida para efeitos de procedimento inspetivo.

Da mesma forma, não se alcança de que forma o recurso ao art.º 37.º do CPPT alteraria a conclusão extraída: estamos perante um caso cuja seleção foi feita com base na existência denúncia e não existe denúncia nos termos legalmente prescritos. Não se trata de qualquer necessidade de notificação de fundamentos, trata-se de demonstrar a existência de uma denúncia que motivou um procedimento inspetivo.

Em suma, a Recorrida foi inspecionada com base na existência de uma alegada denúncia anónima, sendo que não ficou provada a existência de denúncia efetuada nos termos legalmente prescritos, ao arrepio das exigências constantes do RCPIT. Esta ilegalidade encontra-se na génese do procedimento inspetivo e afeta-o na sua globalidade, afetando todos os atos nele praticados, incluindo a extensão da inspeção ao exercício de 2007, e, consequentemente, as liquidações que dele resultaram.

Como tal, não assiste razão à Recorrente.

Atentas a circunstância de ser uma única a questão em apreciação e a conduta processual das partes, determina-se que haja lugar à dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, prevista no art.º 6.º, n.º 7, do RCP.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:
a) Negar provimento ao recurso;
b) Custas pela Recorrente, com dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte em que exceda os 275.000,00 Eur.;
c) Registe e notifique.


Lisboa, 24 de janeiro de 2020

(Tânia Meireles da Cunha)

(Cristina Flora)

(Vital Lopes)


_________________________
[1] Sobre os antecedentes deste diploma, v. Jesuíno Alcântara Martins, Procedimento e Processo Tributário, Instituto de Formação Tributária, Lisboa, 2002, pp. 89 e 90. V. igualmente a Resolução do Conselho de Ministros n.º 119/97, publicada no Diário da República, I Série-B, n.º 160, de 14.07.1997.
[2] V. José Maria Fernandes Pires (Coord), Maria João Menezes, José Ramos Vidal e Gonçalo Bulcão, Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, Almedina, Coimbra, 2015, p. 565.
[3] Joaquim Freitas da Rocha e João Damião Caldeira, RCPIT anotado e comentado, Coimbra Editora, Coimbra, 2013, p. 141.
[4] Jesuíno Alcântara Martins, Procedimentos de Atos Inspectivos (RCPITA) - Aplicação prática, Ordem dos Contabilistas Certificados, 2017, p. 21.
[5] Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 5.ª edição, atualizada e ampliada, Almedina, Coimbra, 2008, p. 309. V. igualmente José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol 2.º, 4.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2019, pp. 266 e 267.
[6] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ob. cit., p. 269.
[7] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2019, p. 515.
[8] José Maria Fernandes Pires (Coord), Maria João Menezes, José Ramos Vidal e Gonçalo Bulcão, Lei Geral Tributária Comentada e Anotada, Almedina, Coimbra, 2015, p. 799.
[9] Cfr. o Acórdão deste TCAS, de 11.04.2019 (Processo: 1429/08.1BELRS).