Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:2259/09.9BELRS
Secção:CT
Data do Acordão:02/15/2024
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:CRÉDITOS DE COBRANÇA DUVIDOSA
PROVISÕES
PROVA
Sumário:I- A constituição de provisões reflete o respeito pelos princípios da prudência e da especialização dos exercícios.
II- No caso da constituição de provisões por créditos de cobrança duvidosa, cabe ao sujeito passivo demostrar a realização de diligências para o recebimento dos créditos em mora.
III- A prova da realização das diligências mencionadas em II. pode ser feita através de qualquer dos meios de prova admitidos, não se tratando de qualquer situação de prova vinculada.
IV­ A decisão proferida sobre a matéria de facto, para ser cabalmente posta em causa, tem de o ser nos termos prescritos no art.º 640.º do CPC, não sendo suficiente uma mera manifestação de inconformismo com o decidido.
Votação:Unanimidade
Indicações Eventuais:Subsecção tributária comum
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:
Acórdão

I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio recorrer da sentença proferida a 28.12.2017, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por S………….., Lda. (doravante Recorrida ou Impugnante), que teve por objeto a liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC) e a dos respetivos juros compensatórios, atinentes ao exercício de 2005.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nas suas alegações, a FP concluiu nos seguintes termos:

“I - Pelo elenco de fundamentos acima descritos, infere-se que a douta sentença a quo, julgou procedente a impugnação à margem referenciada com as consequências aí sufragadas, por ter considerado que foi produzida prova que demonstra terem sido efectuadas diligências para o recebimento dos créditos sobre os quais a Impugnante constituiu provisões para créditos de cobrança duvidosa, considerando-se que o conjunto da prova documental e testemunhal produzida foi de molde a afastar a fundamentação que suportou as correcções efectuadas pela AT em sede de procedimento inspectivo.

II - O thema decidendum, assenta em determinar se efectivamente a prova testemunhal, atenta a prova documental constante dos presentes autos, é suficiente para de "per si” comprovar a efectivação de diligências de cobrança dos créditos objecto dos presentes autos, a fim de que seja possível a constituição de provisões sobre os mesmos, nos termos do disposto na alínea a) do n.° 1 do art.° 34.° e 35° do CIRC.

III - Com efeito, quando esteja em dúvida a indispensabilidade de um custo, e portanto a sua dedutibilidade nos termos do art° 23.° do CIRC, como no caso em apreço, ao sujeito passivo cabe um verdadeiro ónus, pelo que deveria a Impugnante ter demonstrado através de prova documental, as diligências efectuadas para cobrança destes créditos, o que efectivamente não foi feito, pois, certamente que o legislador fiscal, quando fez depender a consideração de créditos de cobrança duvidosa, da existência de provas de terem sido efectuadas diligências para o seu recebimento, certamente não tinha no seu espírito que tais provas se pudessem limitar a meras declarações verbais, as quais certamente não permitiriam o controle por parte da Administração Fiscal, de tais diligências terem sido levadas a efeito ou não.

IV - Assim, tendo em conta a imperiosa necessidade imposta por lei da demonstração da necessidade da provisão por impossibilidade de cobrança dos créditos e a relevância de que tais provisões não se repercutem só, ao nível das relações entre a Impugnante e os seus devedores, mas também entre aquela e terceiros, no caso a Administração Fiscal, sobre a mesma impendia o dever de esclarecer fundadamente e sem margem para dúvidas, ter diligenciado pela cobrança dos créditos em causa, pelo que tal prova é insusceptível de se efectuar apenas mediante depoimentos testemunhais.

V - Para além disso, entende-se que a prova documental carreada, consistente em missivas remetidas aos devedores mediante carta simples, sem aviso de recepção, enquanto comprovativo de que foi recepcionada pelo devedor, também não constitui meio idóneo de comprovação das diligências efectuadas para cobrança destes créditos, posto que neste caso se fica sem saber se as mesmas foram realmente recepcionadas pelas entidades devedoras.

VI - Isto significa que para além da constituição da provisão ter de se encontrar espelhada na contabilidade da empresa e na conta apropriada aos créditos duvidosos, é indispensável que existam elementos objectivos, nomeadamente, provas documentais de terem sido efectuadas tentativas de cobrança desses valores, através de cartas registadas com aviso de recepção, envio de faxes, telegramas, etc, de forma a conseguir demonstrar as diligências realizadas para a cobrança dos créditos que foram inscritos na respectiva conta, devendo ainda constar do conteúdo das missivas o prazo para que o devedor cumpra a sua obrigação ou de que se encontra e mora.

VII - Donde, para além de a prova das diligências efectuadas para a cobrança dos créditos não poder ser feita por mera prova testemunhal, a mesma tem ainda de ser complementada por idónea prova documental que possa ser registada na contabilidade do contribuinte, a qual no presente caso também não se afigura idónea, posto que também daqui não é possível perceber se as cartas enviadas aos devedores dos créditos foram por estes efectivamente recepcionadas.

VIII - Decidindo em sentido diverso, incorreu o douto Tribunal a quo em erro de julgamento da matéria de facto e de direito, tendo sido violados, entre outros, o disposto nos art.°s 34° e 35° do CIRC.

Termos em que,

Concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação totalmente improcedente, tudo com as legais e devidas consequências”.

A Recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pelo não provimento do recurso.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do então art.º 289.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT), vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Há erro de julgamento, porquanto a prova produzida não é suficiente para a demonstração de que foram realizadas diligências junto dos clientes a que respeitam as provisões constituídas?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A) No ano de 2005, a sociedade impugnante exercia a actividade principal de “Comércio por grosso de calçado”, correspondente ao CAE 046422 (cfr. relatório de inspecção tributária (RIT), a fls. 42 a 49 do PAT apenso aos autos);

B) A Equipa de Acompanhamento Permanente dos Serviços de Inspecção Tributária da Direcção de Finanças de Lisboa realizou à impugnante acção de inspecção interna aos exercícios de 2005 e 2006, em sede de IRC, no âmbito da qual foram efectuadas correcções meramente aritméticas à matéria colectável, para o exercício de 2005, no montante de €398.470,02 (cfr. RIT, a fls. 42 a 49 do PAT apenso aos autos);

C) No âmbito da referida acção inspectiva, os Serviços de Inspecção Tributária remeteram à impugnante o ofício sob o assunto “Pedido de Elementos correspondentes aos exercícios de 2005/6/7”, solicitando, entre o mais, a remessa dos documentos contabilísticos que comprovam os valores que foram contabilizados e declarados em provisões nos exercícios de 2005, 2006 e 2007 (cfr. ofício, a fls. 27 a 29 dos autos);

D) Em 25 de Maio de 2009, a impugnante apresentou a sua pronúncia em sede de exercício do direito de audição prévia, juntando fotocópias das facturas em dívida, dos pedidos de pagamentos relacionados com os vinte principais créditos e de cartas enviadas pela advogada da impugnante a alguns dos seus clientes (cfr. anexos 1, 3 e 4 ao RIT, a fls. 50 a 56, 58 a 105 e 106 a 111 do PAT apenso aos autos);

E) Em 19 de Junho de 2009, foi elaborado o Relatório de Inspecção Tributária relativo à acção de inspecção identificada em B) que antecede, do qual consta a seguinte descrição dos factos e fundamentos das correcções meramente aritméticas à matéria colectável, relativamente ao exercício de 2005:

(...) III – DESCRIÇÃO DOS FACTOS E FUNDAMENTOS DAS CORRECÇÕES MERAMENTE ARTIMÉTICAS À MATÉRIA COLECTÁVEL

1. IRC – Exercício de 2005

1.1. Conta 67 (Provisões do exercício)

1.1.1. O contribuinte contabilizou na conta acima citada provisões para créditos de cobrança duvidosa (créditos em mora) o valor de € 355.106,46. Foi notificado para remeter os suportes documentais contabilísticos que comprovem os valores contabilizados, mas não foram remetidos. O sujeito passivo informou por escrito que relativamente aos créditos foram efectuadas diligências para o seu recebimento, os mesmos resultam da actividade normal da empresa e a constituição das provisões (bem como os respectivos reforços) foi efectuada em conformidade com o princípio dos exercícios.

Em face do exposto não foram apresentadas provas de que os créditos resultam da actividade normal da empresa e de terem sido efectuadas diligências para o seu recebimento, tendo sido infringido o estipulado no artigo 34º, nº 1, alínea a) e artigo 35º, nº 1, alínea c). O valor de € 355.106,46 não é dedutível para efeitos de determinação do lucro tributável.

A correcção é no montante de €355.106,46

VIII – DIREITO DE AUDIÇÃO – FUNDAMENTAÇÃO

1. O contribuinte exerceu o direito de audição, por escrito (anexo 1), sobre o Projecto de Correcções do Relatório de Inspecção, nos termos previstos no artigo 60º da Lei Geral Tributária (LGT) e artigo 60º do Regime Complementar do Procedimento de Inspecção Tributária (RCPIT). (…)

O sujeito passivo alega na exposição apresentada que “(…) Nas gratificações e nas amortizações concorda com as correcções. A ora exponente adopta a política contabilística de constituição de ajustamentos para valores a receber, tomando por base a mora em conformidade com as regras fiscais, ou seja provisionou os créditos em mora há mais de 6 meses. Adicionalmente, a ora exponente na avaliação e mensuração dos riscos utilizou o método específico, tendo sido analisado o risco de incumprimento do devedor, nomeadamente ao nível da análise da probabilidade de ocorrência, consubstanciada na antiguidade dos saldos, graduando os riscos de acordo com a extensão dos atrasos de pagamentos. Assim, a ora exponente vem remeter, relativamente a 20 dos principais créditos, a decomposição das dívidas por cliente. A ora exponente para justificar que os créditos resultam da actividade normal da empresa vem juntar como documento 5, cópias das facturas em dívida. Ao nível das diligências efectuadas para o recebimento dos créditos a exponente enviou com regularidade aos clientes pedidos de solicitação de pagamento, cujas cópias, de dois dos pedidos, para os clientes mencionados junta-se, igualmente, cópias das cartas de interpelação para cumprimento enviadas pela nossa advogada.

(...) A informação do contribuinte merece a seguinte apreciação:

Exercício de 2005

Provisões para cobrança duvidosa

Ao nível das diligências efectuadas para o recebimento dos créditos o contribuinte enviou fotocópias de pedidos de solicitação de pagamentos relacionados com os 20 principais créditos (anexo 3). Para alguns dos clientes juntou fotocópias das cartas de interpelação para cumprimento enviadas pela advogada (anexo 4). O sujeito passivo não remeteu as fotocópias dos talões dos correios para comprovarem que os pedidos de solicitação de pagamento foram feitos através de correio registado.

Quanto ao que alega nos pontos 17 a 21 da informação, não podemos considerar o pretendido porque o Ofício-Circulado 14, da Direcção de Serviços do IRC, de 23.11.1993, exceptua do procedimento previsto neste Ofício-Circulado os custos ou perdas do exercício relacionadas com as provisões.

Assim, não foram apresentadas as provas que nos permitem superar as dúvidas suscitadas tal como prevê o artigo 74º da Lei Geral Tributária (LGT), pelo que a correcção no montante de €355.106,46 vai manter-se.

(...)

No exercício de 2005 vão manter-se as correcções no valor global de €398.470,02 (...)” (cfr. RIT, a fls. 42 a 49 do PAT apenso aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido);

F) A impugnante, através dos seus serviços administrativos, estabeleceu, durante o ano de 2005, contactos com os clientes devedores, quer pelo telefone, quer pessoalmente, quando vinham fazer as compras ao seu armazém, com vista ao pagamento das facturas em dívida (cfr. depoimento da testemunha S…………..);

G) Em 25 de Setembro de 2005 e 30 de Janeiro de 2006, a impugnante enviou aos clientes cartas com o extracto das facturas vencidas e não pagas, solicitando o seu pagamento (cfr. docs. a fls. 58 a 105 do PAT apenso aos autos e depoimentos das testemunhas P……………e S……………..);

H) As cartas referidas na alínea antecedente foram enviadas através de via postal simples (cfr. depoimentos das testemunhas P………… e S……………..);

I) Em 21 de Fevereiro de 2006, a Advogada da impugnante remeteu, a alguns dos clientes, novas cartas a solicitar o pagamento dos montantes em dívida (cfr. docs. a fls. 106 a 111 do PAT apenso aos autos e depoimentos das testemunhas P……………..e S……………);

J) Em 19 de Agosto de 2009, foi emitida a liquidação de IRC nº 2009 …………., referente ao exercício de 2005, e respectivos juros compensatórios, perfazendo o montante de €123.011,13 (cfr. demonstração de liquidação de IRC junta a fls. 26 dos autos);

K) A impugnante efectuou o pagamento parcial do montante resultante da liquidação identificada na alínea antecedente, no valor de €13.386,03 (cfr. artigo 11º da petição inicial);

L) A petição inicial da presente impugnação foi enviada ao Tribunal Tributário de Lisboa em 18 de Novembro de 2009 (cfr. fls. 2 dos autos).”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida:

“Inexistem factos não provados com relevância para a decisão da causa”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“A decisão da matéria de facto, no que concerne aos factos descritos nas alíneas A) a E) e J) a L) supra, efectuou-se com base no exame dos documentos e informações oficiais constantes dos autos, conforme referido a propósito de cada alínea do probatório.

No que concerne à factualidade vertida nas alíneas G) e I) supra, a convicção do Tribunal resultou da análise conjugada do teor dos documentos nelas identificados com os depoimentos das testemunhas.

Com efeito, a matéria de facto constante das identificadas alíneas resultou do exame dos documentos juntos a fls. 58 a 105 e 106 a 111 do PAT apenso aos autos, conjugado com os depoimentos das testemunhas P…………… e S…………...

Quanto à testemunha P………., sócio da sociedade que desempenha as funções de Fiscal Único da impugnante, a sua razão de ciência funda-se ainda na circunstância de ter acompanhado a acção inspectiva em causa nos autos na fase de audição prévia. Quanto à testemunha S……………, a sua razão de ciência baseia-se no facto de trabalhar para a sociedade impugnante, desempenhando as funções de técnica administrativa, tendo assumido a tarefa de verificar os créditos pendentes e de contactar os clientes para procederem à sua liquidação.

Os depoimentos revelaram-se credíveis e seguros, tendo as testemunhas esclarecido que as diligências desenvolvidas pela impugnante com vista à cobrança dos créditos se consubstanciaram, numa primeira fase, no envio de cartas escritas, com um extracto das facturas vencidas e, posteriormente, na remessa de cartas de interpelação enviadas pela advogada da sociedade impugnante.

O depoimento da testemunha S……………..foi especialmente valorado, na medida em que, confrontada com os documentos da “audiência prévia”, a fls. 50 a 56 do PAT apenso aos autos, e do anexo 3 do Relatório de Inspecção Tributária, a fls. 58 a 105 do mesmo PAT, explicou o procedimento adoptado para a solicitação dos montantes em dívida pelos clientes, referindo que era elaborado um extracto, que depois era enviado aos clientes devedores através de cartas escritas. Confirmou, ainda, que as cartas foram enviadas em 25 de Setembro de 2005 e 30 de Janeiro de 2006, e que, mantendo-se a situação de incumprimento, o administrador determinou que a documentação fosse entregue à advogada.

A factualidade descrita em F) da matéria de facto provada assentou, igualmente, no depoimento desta última testemunha, que, pelo facto de ter assumido as funções de verificação e cobrança dos créditos pendentes, explicou, de forma segura e esclarecedora, que, após ter efectuado um trabalho de análise de saldos e de ter verificado o que estava em dívida, começou a contactar os clientes com vista à regularização dos pagamentos, por via telefónica e, também, pessoalmente, quando estes se deslocavam às instalações da sociedade impugnante, para fazer as compras.

Por último, quanto à matéria de facto constante da alínea H) supra, resultou dos depoimentos de ambas as testemunhas inquiridas que as missivas a solicitar os pagamentos das facturas em dívida foram enviadas pela impugnante através de correio simples”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, porquanto, na sua perspetiva, a prova produzida não é suficiente para a demonstração de que foram realizadas diligências junto dos clientes a que respeitam as provisões constituídas, não podendo ser dada relevância à prova testemunhal e sendo a documental insuficiente.

Estão, in casu, em exame as correções efetuadas pela administração tributária (AT) à Impugnante, na sequência de ação inspetiva, atinentes a provisões do exercício para créditos de cobrança duvidosa.

Para cabal apreciação do alegado, cumpre, antes de mais, fazer um breve enquadramento atinente às provisões.

As provisões “… são registos contabilísticos de verbas destinadas a fazer face a um encargo imputável ao exercício, mas de comprovação futura, ou já comprovado mas de montante incerto” Rui Duarte Morais, Apontamentos ao IRC, Almedina, Coimbra, 2007, p. 119. V. igualmente o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 04.09.2013 (Processo: 0164/12) e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 19.07.2006 (Processo: 01095/06). Cfr. ainda J. L. Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, 3.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 402., refletindo o respeito por dois princípios caraterizadores das normas contabilísticas: o princípio da prudência e o princípio da especialização dos exercícios.

O princípio da prudência determina que sejam acauteladas consequências futuras decorrentes de determinados eventos, através de estimativas exigidas em condições de incerteza.

Como referido por Rui Duarte Morais Ob. cit., p. 119., “[t]al como uma pessoa cautelosa (…) põe antecipadamente de lado dinheiro necessário para (…) satisfazer [a despesa previsível], também uma empresa previdente deve preservar certa fracção dos seus resultados para se precaver contra perdas que reputa de prováveis”.

Já o princípio da especialização dos exercícios determina que os proveitos ou os custos sejam reconhecidos quando obtidos ou incorridos, independentemente do seu recebimento ou pagamento, devendo incluir-se nas demonstrações financeiras dos períodos a que respeitam.

Significa o respeito por tal princípio, no caso da constituição de provisões por créditos de cobrança duvidosa, que estas só podem ser consideradas como custo fiscal do exercício no qual os créditos em causa foram considerados como sendo de cobrança duvidosa e como tal contabilizados V., a este propósito, os Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 29.10.2014 (Processo: 0666/13) e de 30.04.2003 (Processo: 0101/03) e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 25.04.2004 (Processo: 04778/01)., não sendo, pois, relevante ou decisivo, a este propósito, o momento em que o crédito entre em mora Cfr. Rui Duarte Morais, ob. cit., pp. 125 e 126..

Assim, as provisões, aliando o princípio da prudência com o da especialização dos exercícios, visam acautelar eventos futuros de ocorrência provável.

Nos termos do art.º 23.º, al. h), do Código do IRC (CIRC – redação vigente à época), as provisões poderiam ser consideradas como custos fiscais, nos termos ali consignados.

O regime das provisões encontrava maior desenvolvimento nos art.ºs 34.º e ss. do mesmo código.

Assim, desde logo, o art.º 34.º do CIRC enunciava, taxativamente, o elenco de provisões fiscalmente dedutíveis, constando, desde logo, da al. a) do seu n.º 1 a possibilidade de dedução de provisões que “… tiverem por fim a cobertura de créditos resultantes da atividade normal que no fim do exercício possam ser considerados de cobrança duvidosa e sejam evidenciados como tal na contabilidade”.

É ainda de chamar à colação o disposto no art.º 35.º do CIRC, no qual se definiam os termos em que deveriam ser constituídas as provisões para créditos de cobrança duvidosa, ou seja, as situações em que o risco de incobrabilidade se considera devidamente justificado.

Assim, nos termos da mencionada disposição legal:

“1 - Para efeitos da constituição da provisão prevista na alínea a) do nº 1 do artigo anterior, são créditos de cobrança duvidosa aqueles em que o risco de incobrabilidade se considere devidamente justificado, o que se verifica nos seguintes casos:

a) O devedor tenha pendente processo especial de recuperação de empresa e proteção de credores ou processo de execução, falência ou insolvência;

b) Os créditos tenham sido reclamados judicialmente;

c) Os créditos estejam em mora há mais de seis meses desde a data do respetivo vencimento e existam provas de terem sido efetuadas diligências para o seu recebimento.

2 - O montante anual acumulado da provisão para cobertura de créditos referidos na alínea c) do número anterior não pode ser superior às seguintes percentagens dos créditos em mora:

a) 25% para créditos em mora há mais de 6 meses e até 12 meses;

b) 50% para créditos em mora há mais de 12 meses e até 18 meses;

c) 75% para créditos em mora há mais de 18 meses e até 24 meses;

d) 100% para créditos em mora há mais de 24 meses”.

Cabe, desde logo, ao sujeito passivo ter na sua disponibilidade os elementos, designadamente (mas não exclusivamente) documentais, que permitam demonstrar que determinado crédito é, num determinado exercício, considerado como sendo de cobrança duvidosa.

Feito este enquadramento, passemos à análise do caso dos autos.

Antes de mais, refira-se que, ao contrário do que decorre da posição da Recorrente, não há qualquer óbice a que a prova das diligências seja feita através de qualquer dos meios de prova à disposição, não estando nós perante uma situação de prova vinculada.

Por outro lado, não obstante, globalmente, a Recorrente mencionar que a prova testemunhal produzida não devia ser relevada e que a prova documental era insuficiente, não foi impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto.

Com efeito, considerando o disposto no art.º 640.º do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto carateriza-se pela existência de um ónus de alegação a cargo do Recorrente, que não se confunde com a mera manifestação de inconformismo com tal decisão Cfr. António dos Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2018, p. 169..

Assim, o regime vigente atinente à impugnação da decisão relativa à matéria de facto impõe ao Recorrente o ónus de especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considere incorretamente julgados [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a), do CPC];

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem, em seu entender, decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b), do CPC], sendo de atentar nas exigências constantes do n.º 2 do mesmo art.º 640.º do CPC;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c), do CPC].

Especificamente quanto à prova testemunhal, dispõe o n.º 2 do art.º 640.º do CPC:

“2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.

Como tal, não basta ao Recorrente manifestar de forma não concretizada a sua discordância com a decisão da matéria de facto efetuada pelo Tribunal a quo, impondo­-se-lhe os ónus já mencionados V., a título exemplificativo, o Acórdão deste TCAS, de 27.04.2017 (Processo: 638/09.0BESNT) e ampla doutrina e jurisprudência no mesmo mencionada..

Ora, atentando nas alegações, integralmente consideradas, não são sequer identificados os concretos pontos de facto que a Recorrente considera incorretamente julgados, nem referida a decisão que deveria ter sido proferida, sendo a menção genérica, o que não configura uma verdadeira impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Logo, tudo o alegado sobre a suficiência ou insuficiência da prova produzida não pode ser apreciado, justamente por só o poder ser em contexto de cabal impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Ora, posto isto, atenta tal decisão proferida sobre a matéria de facto, decorre, como refere o Tribunal a quo, que resultou provada a realização de diligências diversas (quer através de contacto pessoal ou via telefónica com os clientes, quer através de envio de missivas, algumas das quais através da sua advogada), com vista ao pagamento dos valores em causa.

Ou seja, da factualidade assente resulta que foram realizadas diligências diversas, perante os clientes em dívida, o que não se confunde com o êxito ou não dessas diligências.

Carece de qualquer respaldo legal o nível de exigências formais que a Recorrente refere deverem ter tais diligências. Apenas se exige que sejam feitas diligências (que podem ser até verbais) e que a sua realização seja demonstrada. E, in casu, foi-o.

Assim sendo, não assiste razão à Recorrente.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na Subsecção Tributária Comum da Secção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 15 de fevereiro de 2024

(Tânia Meireles da Cunha)

(Ana Cristina Carvalho)

(Jorge Cortês)