Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:10/21.4BCLSB
Secção:CA
Data do Acordão:07/07/2021
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Sumário:
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção de Contencioso Administrativo do Tribunal Central Administrativo Sul:

I. Relatório


J... intentou no Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), em 30.01.2021, uma providência cautelar contra a Federação Portuguesa de Futebol (FPF), pedindo a suspensão da eficácia da decisão do Conselho de Disciplina da FPF, datada de 29.01.2021, proferida no âmbito do recurso hierárquico impróprio n.º 19-2020/2021, bem como da decisão antecedente proferida em processo sumário a 27.01.2021, que o puniu com um jogo de suspensão e com uma multa no montante de EUR 153,00.

Por decisão de 1.02.2021 do Exmo. Presidente deste TCAS a providência cautelar foi julgada procedente e suspensa a eficácia daquela decisão.

Inconformada, a FPF interpôs recurso dessa decisão para o STA, o qual não foi admitido por se ter considerado irrecorrível a decisão cautelar proferida ao abrigo do artigo 41º, n.º 7, da Lei do TAD.

Após reclamação, por decisão de 14.04.2021 da Exma. Conselheira Relatora, o STA julgou-se hierarquicamente incompetente para conhecer da mesma e determinou a baixa a este TCAS para esse efeito, apresentando a seguinte fundamentação:

É nossa convicção que é esta a solução a adoptar, por mais que possa vir a causar estranheza que a decisão de um presidente de um tribunal superior possa ser „revogada por um colectivo de juízes do tribunal a que preside (não sendo esta a sede e o momento próprios para apreciar as relações de hierarquia entre os presidentes dos TCAs e os restantes juízes desembargadores). Antes de mais, não se pode deixar de sublinhar que o caso aqui em apreciação se reporta a uma situação especialíssima, sui generis em que o Presidente do TCAS actua em substituição de um colégio arbitral que deveria decidir no âmbito do TAD (que funciona como uma primeira instância) e não de uma competência atribuída ao TCAS e, especificamente, ao seu presidente (v.g., a escolha de árbitros em certas circunstâncias no âmbito da LAV). Além disso, maior estranheza pode causar a solução da irrecorribilidade da decisão cautelar singular do Presidente do TCAS sem que – abstractamente falando – haja razões jurídicas de monta para a sustentar.

Obviamente, a solução que aqui se propõe não resulta directamente da lei, nomeadamente da Lei do TAD. Ela decorre, sim, de uma interpretação do artigo 8.º, n.º 1, da Lei do TAD, em conformidade com a constituição, devendo equiparar-se a decisão cautelar singular do Presidente do TCAS em substituição de um colégio arbitral às decisões colegiais que estes proferem, tendo em vista a tutela dos direitos, valores e bens constitucionais assinalados pelos acórdãos do TC trazidos à colação pela aqui reclamante. Em consonância, dela pode haver recurso para o TCAS, assim se respeitando, igualmente, a regra da recorribilidade que consta do mesmo artigo 8.º, n.º 1, da Lei do TAD. [sublinhado nosso] A esta solução não obsta o argumento da provisoriedade da decisão, argumento assim esgrimido pelo ora reclamado: “Por outro lado, a decisão de decretamento de uma providência cautelar é provisória por natureza, vigorando apenas até à composição do litígio por via da prolação da sentença na acção principal”; “Sendo certo que em sede de arbitragem desportiva necessária, considerando os curtíssimos prazos previstos para a tramitação e decisão e ainda o efeito devolutivo conferido aos recursos (cfr. artigo 8.º, n.º 2 da LTAD), a sentença proferida pelo Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul vigorará inevitavelmente por um curtíssimo período de tempo” [dando o requerido cautelar conta de que já foi, entretanto, proferida a sentença arbitral nos autos principais] – cfr. pontos 41. e 42. da Resposta. Além de tudo o que já foi dito, este argumento da provisoriedade vale para todas as situações já acima assinaladas e em relação a todas elas não se coloca a questão da sua recorribilidade. Devem, por isso, os autos baixar ao TCAS para que, desde logo, este conheça da presente reclamação”.

Após, neste TCAS, o recurso foi admitido por despacho de 20.05.2021 do Exmo. Presidente e ordenada a distribuição dos autos, do que foram as Partes devidamente notificadas.

Considerando o caso julgado formal da decisão do STA e os efeitos do mesmo decorrentes para o processo, admitido que se encontra o recurso jurisdicional que havia sido interposto nos termos ordenados pelo despacho supra identificado, cumpre então conhecer de acordo com o determinado pelo STA (ficando prejudicado o conhecimento da reclamação, uma vez que o recurso já foi admitido para a conferência deste TCAS).

Recapitulando, a FPF recorreu da decisão que deferiu a providência cautelar requerida, tendo, na sua alegação, formulado as seguintes conclusões:

1. O recurso ora interposto tem por objeto a decisão proferida pelo Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul em 1 de fevereiro de 2021, que decidiu “Nestes termos e pelo exposto, julga-se procedente a presente providência cautelar e, em consequência, suspende-se a eficácia da decisão tomada em 27-1-2021, pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol – e posteriormente confirmada pelo Pleno do mesmo Conselho de Disciplina em 29-1-2021 -, que impôs ao requerente a sanção disciplinar de 1 (um) jogo de suspensão e, acessoriamente, a sanção de multa no montante de € 153,00”.

2. Temos por certo que a decisão proferida é passível de impugnação, porquanto nenhuma norma prevê a sua irrecorribilidade.

3. A decisão é proferida em matéria sancionatória [cfr. artigo 142.º, n.º 3, al. b), do CPTA] e um dos fundamentos para o recurso é a violação das regras de competência em razão da matéria [cfr. artigo 629.º, n.º 2, al. a) do CPC, aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA], pelo que caberá sempre recurso da mesma.

4. Por outro lado, a decisão proferida é ilegal – assim o entendemos –, pelo que o sistema jurídico, ou melhor, as normas de processo têm de permitir que se discuta a sua validade noutra sede, conforme prevê o artigo 7.º do CPTA, que materializa o princípio pro actione.

5. O Recorrido, na ação arbitral que deu entrada no TAD, pretende que seja revogada a sanção disciplinar que lhe foi aplicada pelo Conselho de Disciplina da ora Recorrente de suspensão por 1 (um) jogo e multa no valor de 153,00€, sanções automáticas aplicadas em virtude da cumulação de uma série de 5 cartões amarelos, numa mesma competição, na mesma época desportiva, p. p. no artigo 164.º, n.º 7 do Regulamento Disciplinar da LPFP, acompanhando a ação de pedido de decretamento de medida cautelar dirigido ao Presidente do TCA Sul.

6. A competência para o decretamento de providências cautelares no âmbito da arbitragem necessária cabe, em exclusivo, ao TAD.

7. Nos casos de especialíssima urgência, em que não seja possível a constituição atempada de Colégio Arbitral, pode ser dirigido um pedido ao Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul para decidir, nos termos circunscritos do n.º 7 do citado artigo 41.º da Lei do TAD, sobre a “aplicação de medidas provisórias e cautelares”.

8. O Presidente do TCA Sul, ao abrigo da citada norma da Lei do TAD, no dia 1 de fevereiro de 2021, cerca das 16h, sem prévia audição da ora Recorrente, proferiu decisão no sentido de decretar a medida cautelar requerida pelo Recorrido, isto é, a suspensão da eficácia da sanção disciplinar que lhe tinha sido aplicada pelo Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF).

9. O regime previsto na Lei do TAD, neste ponto específico, nada refere quanto ao recurso das decisões proferidas pelo Presidente do TCA Sul ao abrigo do n.º 7 do artigo 41.º

10. De acordo com os artigos 24.º n.º 1, al. a), inciso v), e 36.º, n.º 1, al. u) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), a decisão recorrida é um ato próprio e exclusivo do Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul proferido no âmbito de processo em matéria administrativa, pelo que cabe à Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal Administrativo conhecer do presente recurso.

11. A competência atribuída pela Lei do TAD ao Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul é uma competência originária, atribuída por lei, em que o mesmo não age como relator, nem a competência está atribuída ao coletivo de juízes. O legislador não pretendeu, pois, que sobre as decisões referentes ao decretamento de medidas cautelares no âmbito de litígios desportivos recaísse julgamento de uma composição de três juízes, mas apenas o julgamento daquele Juiz Presidente em específico.

12. Daí que pareça mais adequado que o meio de impugnar esta decisão seja através de recurso para o Tribunal hierarquicamente superior e não através de Reclamação para a Conferência. Seria, inclusive, estranho ao funcionamento e hierarquia dos tribunais que um coletivo de juízes do TCA Sul pudesse reverter uma decisão tomada pelo seu Presidente.

13. À luz do exposto, a Federação Portuguesa de Futebol toma posição em favor da precedência do presente meio de reação processual – i.e., recurso para este Alto Tribunal – perante a hipótese da Reclamação para a Conferência, porém, dada a falta de resposta direta na Lei quanto ao meio de impugnar esta decisão, não se pode, por dever de patrocínio, afastar o entendimento de que da decisão proferida nos presentes autos pelo Presidente do TCA Sul cabe Reclamação para a Conferência e apenas de tal Acórdão caiba recurso [atento o disposto no artigo 24.º, n.º 1, al. g), do ETAF], então, ao abrigo do disposto no artigo 193.º, n.º 3, do CPC (aplicável ex vi do artigo 1.º do CPTA) requer-se a convolação do recurso interposto numa Reclamação para a Conferência, porquanto se está em prazo e a Recorrente tem legitimidade.

14. Caso se entenda que da decisão proferida cabe recurso mas de revista e não de apelação – o que também por dever de patrocínio se admite -, diga-se que estão preenchidos os critérios previstos no artigo 150.º do CPTA, porquanto a matéria em causa nos autos tem complexidade jurídica que justifica a intervenção do STA bem como se trata de questão com relevância social assinalável.

15. Na decisão proferida é colocada em crise o sistema de resolução de litígios desportivos existente pelo menos desde a Lei n.º 1/90, de 13 de Janeiro (Lei de Bases do Sistema Desportivo, no caso o seu artigo 25.º), na qual foram delimitadas as esferas de competência entre tribunais estatais e os órgãos internos das federações desportivas, ditos órgãos jurisdicionais federativos, tendo sido conhecida questão estritamente desportiva.

16. O facto de ter sido proferida decisão matéria estritamente desportiva abre um perigoso precedente e potencia a tentativa de outros agentes desportivos em replicá-la nos seus casos concretos, trazendo para estes Tribunais Superiores a discussão de matérias – por exemplo, se um árbitro agiu bem ao admoestar o jogador com cartão amarelo, ou não – que claramente não têm dignidade para serem apreciadas por esta categoria de instâncias jurisdicionais.

17. A circunstância de estarmos perante decisão proferida no âmbito cautelar em nada belisca este fundado receio, porquanto o recurso ao mecanismo previsto no n.º 7 do artigo 41.º da Lei do TAD pode, com relativa facilidade, e dado este perigoso precedente, ser utilizado com frequência pelos agentes desportivos em casos semelhantes.

18. Por fim, a decisão recorrida coloca em crise uma realidade normativa prevista na Lei e nos Regulamentos Federativos há décadas – a ausência de prévia audição do potencial arguido em processo sumário -, querida pelos próprios intervenientes nas competições desportivas, sem que tenha procedido a uma verdadeira análise dos direitos constitucionalmente consagrados em conflito e a sua harmonização, fazendo uma aplicação cega da jurisprudência recente do Tribunal Constitucional, com a agravante que, no caso concreto, houve efetiva audiência do agente desportivo ora Recorrido.

19. A questão em apreço é suscetível de ser repetida num número indeterminado de casos futuros. Apenas a título de exemplo, no mandato de 2016-2020 do Conselho de Disciplina da Recorrente foram decididos, em ambas as Secções daquele órgão – Profissional e Não Profissional – nada mais nada menos, que 39.129 processos sumários.

20. Imaginemos se de cada um desses processos sumários – através dos quais, na sua maioria, são sancionados jogadores por amostragem de cartões amarelos e vermelhos no decurso de um jogo – se lançar mão deste expediente previsto na Lei do TAD; rapidamente o Presidente do TCA Sul ficaria completamente submerso de pedidos semelhantes todas as semanas.

21. Existem fundamentos jurídicos para sustentar a revogação da decisão proferida no âmbito cautelar porquanto uma análise meramente perfunctória – a única que se podia, mas devia, exigir do Presidente do TCA Sul – levaria à conclusão de que a medida cautelar não poderia ter sido decretada.

22. A competência do Tribunal Arbitral do Desporto para conhecer desta matéria é excluída pela Lei de Bases da Atividade Física e do Desporto, pelo Regime Jurídico das Federações Desportivas e diretamente pela Lei do TAD. Logo, tal determina a incompetência do Presidente do Tribunal Central Administrativo Sul para decretar a medida cautelar.

23. O que materialmente o Recorrido vem colocar em crise perante o Tribunal Arbitral do Desporto e perante o Presidente do TCA Sul é a amostragem do cartão amarelo durante um jogo, tanto que reconhece – nem poderia ser de outro modo – que a aplicação da sanção de suspensão é uma sanção automática decorrente da cumulação de 5 cartões amarelos na competição na mesma época desportiva. Ou seja, o facto que o Recorrido concretamente pretende ver alterado (rectius, revogado) pelos tribunais comuns é a amostragem de um cartão amarelo no decorrer de um jogo, pelo árbitro regularmente designado para o mesmo.

24. Ao pretender colocar em crise a factualidade subjacente à aplicação desta sanção automática, isto é, ao colocar em crise a correção da amostragem do cartão amarelo, o Recorrido pretende que o TAD se substitua no juízo técnico do árbitro do jogo em causa.

25. De acordo com o artigo 4.º, n.º 6 da Lei do TAD, “6 - É excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim suscetível designadamente do recurso referido no n.º 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva”.

26. Da conjugação das normas, doutrina e jurisprudência citadas no presente recurso retira-se, com clareza, que a discussão sobre o tipo de questões trazidas ao conhecimento do TAD e do Presidente do TCA Sul - recorde-se, aplicação de sanção disciplinar automática decorrente da cumulação de cartões amarelos em determinada competição, ou, melhor, a anulação de um cartão amarelo regularmente amostrado em jogo pelo árbitro - cabe apenas dentro das instâncias desportivas, estando o seu conhecimento vedado ao Tribunal Arbitral do Desporto, porquanto é matéria relacionada com a aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva. Ou, numa leitura mais atualista, é, sem dúvida alguma, uma questão emergente da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.

27. Retira-se, igualmente, dos arestos citados, que esta realidade normativa não belisca o direito de acesso aos tribunais previsto no artigo 20.º da Constituição.

28. Por ser colocada questão relativa à factualidade subjacente à aplicação desta sanção automática de suspensão, isto é, ao colocar em crise a correção da amostragem do cartão amarelo, o Tribunal Arbitral do Desporto é incompetente para conhecer da ação arbitral que aí foi intentada, de acordo com o disposto no n.º 6 do artigo 4.º da Lei do TAD.

29. Assim sendo, também ao Presidente do TCA Sul estava vedada a possibilidade de decretar medidas cautelares sobre esta matéria, sendo incompetente para o efeito, pelo que a decisão proferida enferma do vício de incompetência em razão da matéria pelo que tem de ser revogada por este Supremo Tribunal.

30. Tendo sido a alegada falta de audiência prévia do Recorrido o fundamento para que o Presidente do TCA Sul entendesse estar preenchido o critério do fumus boni iuris, os factos demonstram que, no caso concreto, tal audiência existiu efetivamente.

31. O Presidente do TCA Sul, na decisão recorrida, quanto ao preenchimento do critério do fumus boni iuris, refere que “(…) é lícito concluir que se mostra suficientemente demonstrado o pressuposto da aparência do direito invocado pelo requerente, na medida em que é mais do que plausível a argumentação invocada no tocante à ilegalidade da falta de audição e defesa do arguido em processo sumário”.

32. Porém, no caso concreto, houve audição e defesa do Recorrido em momento prévio ao seu sancionamento em processos sumário, porquanto a pronúncia por si apresentada foi analisada, ponderada e valorada pelo Conselho de Disciplina, conforme demonstra o documento junto pela Recorrente em complemento do documento n.º 2 junto pelo Recorrido no seu requerimento inicial.

33. Ficou demonstrado que o Recorrido teve, no caso concreto, a oportunidade de ser ouvido antes do sancionamento em processo sumário, tendo-o sido efetivamente, pelo que nenhuma nulidade pode ser assacada ao procedimento disciplinar neste caso concreto.

34. No caso vertente, não foi aplicado o artigo 214.º do RD da LPFP, porquanto existiu efetiva audiência prévia do Recorrido.

35. Não tendo sido aplicado o artigo 214.º, não tem, por isso, cabimento a alegação de que o mesmo é inconstitucional por violação do artigo 32.º, n.º 10 da CRP, porquanto apenas a aplicação de norma reputada como inconstitucional num caso concreto pode ter consequências ao nível dessa mesma ação impugnatória.

36. Não existindo qualquer violação do direito de audiência prévia do Recorrido, não se encontra preenchido o critério do fumus boni iuris, pelo que a medida cautelar requerida nunca poderia ter sido decretada com esse fundamento. Porém, foi exatamente esse o (único) fundamento a que o Presidente do TCA Sul recorreu para proferir a decisão ora recorrida, pelo que se impõe a sua imediata revogação.

37. Não obstante, e por mero dever de patrocínio, sempre se dirá que a norma em causa – que, repita-se, não teve aplicação no caso concreto - está conforme à Constituição, quando lida no seu todo e não de forma isolada.

38. Em suma, atualmente, e no seguimento de um percurso histórico-legislativo, o quadro normativo que temos atualmente é o seguinte: (i) apenas é exigível processo disciplinar para as infrações mais graves; (ii) estabelecimento da necessidade de audiência do arguido apenas nos casos em que seja necessária a instauração de processo disciplinar; e (iii) garantia de recurso quer tenha ou não existido processo disciplinar.

39. Tal pressupõe, a contrario, que: (i) nas infrações menos graves não há necessidade de existir processo disciplinar, podendo as mesmas ser sancionadas sem atender a essa formalidade; (ii) não existindo processo disciplinar, não existe necessidade de audiência do arguido; (iii) tal é perfeitamente admissível e pretendido pelo legislador, tanto que existe garantia de recurso das sanções aplicadas quer tenha ou não existido processo disciplinar. Em bom rigor, diremos até, o Regime Jurídico das Federações Desportivas na sua redação atual dispensa qualquer tipo de procedimento disciplinar para as infrações menos graves.

40. O RD da LPFP que, sublinhe-se, foi aprovado pelos próprios clubes que disputam competições profissionais, entre eles o clube relativamente ao qual o Recorrido é funcionário / atleta, consagrou 5 formas de procedimentos disciplinares especiais, para além do processo disciplinar, também designado processo comum: a) processo abreviado; b) processo sumário; c) processo de reabilitação; d) processo de inquérito; e) processo de revisão (artigo 213.º, n.º 1 do RD da LPFP).

41. Para o que ora nos interessa, tem lugar a aplicação do processo sumário quando estiver em causa o exercício da ação disciplinar relativamente a infrações disciplinares menos graves ou, em qualquer caso, infrações disciplinares puníveis com sanção de suspensão por período igual ou inferior à de suspensão por um mês ou por quatro jogos (artigo 257.º do RD da LPFP).

42. Nos termos do artigo 258.º, n.º 1 do RD da LPFP, o processo sumário é instaurado tendo por base o relatório da equipa de arbitragem, das forças policiais ou dos delegados da Liga, ou ainda com base em auto por infração verificada em flagrante delito.

43. Nesse sentido, para garantir a necessária celeridade deste tipo de processos, determina o artigo 214.º do RD da LPFF que “Salvo o disposto no presente Regulamento quanto ao processo sumário, a aplicação de qualquer sanção disciplinar é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido através da instauração do correspondente procedimento disciplinar”.

44. De facto, a celeridade que se exige na tramitação de determinadas infrações disciplinares, que sublinhe-se correspondem a infrações leves ou cuja sanção não ultrapassa determinados limites, não se compadece com um procedimento disciplinar que consagre as garantias de defesa do arguido em toda a sua amplitude (como se, na verdade, de um procedimento criminal se tratasse).

45. É, pois, exigível, no especifico mundo das competições desportivas, um tipo de obtenção de decisão sancionatória que seja célere, de forma a acompanhar a dinâmica das competições e provas, que muitas vezes levam a que o jogo ou jogos seguintes, se venham a disputar no espaço de 48 ou 72 horas. Na verdade, não raras vezes, existem jornadas ao fim de semana e ao meio da semana.

46. Tal implica que o Conselho de Disciplina – composto por pessoas e não por máquinas – analise vários relatórios elaborados após cada jogo – de arbitragem, dos delegados, de policiamento disciplinar – que nem sequer ficam disponíveis logo após o jogo respetivo, verifique e enquadre juridicamente as eventuais incidências disciplinares, elabore o ato final e o publicite, em tempo útil, ou seja, antes da próxima jornada.

47. Dessa forma - e só dessa forma – a defesa dos valores desportivos e as finalidades da sanção – prevenção especial e geral – se veem alcançadas.

48. A preterição do direito de audiência prévia do arguido encontra fundamento nas especificidades do direito do desporto e, mais concretamente, na imposição de um normal desenrolar das competições desportivas, de forma a garantir a preservação da verdade desportiva e o equilíbrio da competição, através da aplicação de sanções em tempo célere e com efeito útil, para que as mesmas sejam cumpridas imediatamente ou nos jogos que se seguem.

49. O exercício do poder disciplinar, enquanto exercício de um poder público, no cumprimento de uma missão de serviço público, manifesta-se no sancionamento de uma multiplicidade de regras desportivas, de entre as quais, a violação das regras do jogo e as relativas à ética desportiva e ao combate à violência no desporto.

50. O exercício do poder disciplinar é, pois, não temos qualquer dúvida, um meio instrumental necessário da organização e gestão do desporto e uma forma de garantir o direito ao desporto constitucionalmente garantido.

51. Ademais, em bom rigor, o RD da LPFP consagra uma garantia mais ampla dos direitos do arguido do que aquela que é exigida pelo RJFD pois aquele Regulamento consagra uma real possibilidade de defesa, num segundo momento, através da previsão de recurso interno da decisão sumária, quer estejamos perante a aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva, ou não. Assim, o arguido tem oportunidade de apresentar a sua versão dos factos, ou seja, de efetivar o seu direito a uma defesa e a uma audiência em momento imediatamente posterior (leia-se, em sede de recurso para o Plenário do Conselho de Disciplina, como sucedeu, saliente-se, nos presentes autos).

52. A garantia dos direitos de audiência e defesa do arguido no âmbito de processos sancionatórios terá de se harmonizar com o direito ao desporto que, tal como aquele, é um direito constitucionalmente consagrado.

53. É que, consabidamente, mesmo no âmbito dos direitos fundamentais plasmados na Constituição da República Portuguesa, ao contrário do entendimento do Tribunal Constitucional, não existem direitos absolutos.

54. Ora, para além de este direito de audiência prévia não ser um direito absoluto, existem diversos casos em que este direito de audiência dos interessados é dispensado e protelado para termos ulteriores, como sucede nos presentes autos.

55. Veja-se, a título exemplificativo, que a Lei n.º 113/2019, de 11 de Setembro, que procedeu à terceira alteração à Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, que estabelece o regime jurídico do combate à violência, ao racismo, à xenofobia e à intolerância nos espetáculos desportivos, de forma a possibilitar a realização dos mesmos com segurança, alterada pelo Decreto-Lei n.º 114/2011, de 30 de novembro, e pela Lei n.º 52/2013, de 25 de julho, aditou o artigo 43.º-A, ilícito contraordenacional (e não disciplinar!), também no âmbito da proteção de valores desportivos, entendeu o legislador ordinário que no âmbito do processo sumaríssimo, não haveria direito de audiência do arguido.

56. Torna-se, nesta senda, imprescindível, em sede de interpretação e aplicação dos direitos fundamentais, realizar uma tarefa de ponderação com outros direitos ou interesses fundamentais consignados na Constituição, pois que, apenas essa leitura conjugada pode oferecer reposta cabal à questão concreta que se coloque, seja ela qual for e de que natureza for.

57. Sendo verdade que o Direito ao Desporto, constitucionalmente consagrado, tem uma aceção bastante ampla, não temos qualquer dúvida que no núcleo essencial deste direito estão incluídos o desporto profissional e, ainda, o direito a organizar e participar em competições desportivas.

58. Apenas a não consagração desta audiência prévia permite o normal desenrolar das competições, o que compreende a aplicação da sua vertente sancionatória em tempo útil, enquanto elemento de equilíbrio competitivo, pelo que é absolutamente necessária; é adequada porquanto é a única que permite cumprir com os exigentes prazos impostos para decisão face à continuidade das competições; e é estritamente proporcional ou seja, equilibrada, na medida em que se permite que, também de forma célere, o arguido possa ainda recorrer dentro do mesmo órgão disciplinar, procurando rapidamente inverter, se for o caso, a sanção que lhe foi aplicada.

59. Sendo certo que os arguidos ou potenciais arguidos, sempre que queiram, podem apresentar exposições previamente à publicação do mapa de sumários – o que aconteceu no caso concreto.

60. Por todo o acima exposto, o ato punitivo sub judice proferido pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Demandada é válido e não viola qualquer norma constitucional.

61. O Presidente do TCA Sul proferiu uma decisão que excede a sua estrita competência, tendo decretado uma providência cautelar quando, na verdade, apenas lhe competia proferir uma medida cautelar específica – e, afinal, a (única) requerida pelo Recorrido e tão somente essa.

62. O legislador pretendeu, com o regime instituído pela Lei do TAD, que o Presidente do TCA Sul fosse pontualmente competente para proferir medidas cautelares específicas e muitíssimo urgentes.

63. Na eventualidade de o Tribunal Arbitral do Desporto entender que o Recorrido logo em 30.01.2021 pretendeu formular um pedido de decretamento de providência cautelar dirigida àquela instância – hipótese remota que apenas por dever de patrocínio se admite e que se expôs, concretamente, perante o Colégio Arbitral, aguardando decisão –, então o TAD tem de conhecer e julgar definitivamente o procedimento cautelar, decidindo pela manutenção, alteração ou revogação da medida cautelar decretada pelo Presidente do TCA Sul, e promover, obviamente, a audição da ora Recorrente concedendo-lhe prazo para se pronunciar nessa sede cautelar.

64. Ora, como vimos, o Presidente do TCA Sul decide declarar procedente a presente providência cautelar. Até poderíamos admitir que o Presidente do TCA Sul se pudesse ter exprimido de forma errónea, querendo decretar, afinal, uma medida cautelar com efeitos circunscritos à possibilidade de o Recorrido participar no jogo agendado para dia 1 de fevereiro.

65. Contudo, o facto de o Recorrido continuar a participar nos jogos agendados da Liga NOS, em representação da S...– Futebol SAD, fazendo-se valer da (suposta) providência cautelar em vigor decretada pelo Presidente do TCA Sul, é bastante para concluir que a parte decisória da decisão impugnada, no mínimo, não é clara.

66. Ao decretar uma providência cautelar que não lhe foi requerida, o Presidente do TCA Sul, na decisão recorrida, excedeu claramente os seus poderes de pronúncia no caso concreto, pelo que a decisão recorrida padece do vício formal de excesso de pronúncia, pelo que se impõe, também por esta via, a sua revogação.

O aqui Recorrido contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.


Neste Tribunal Central Administrativo, o Ministério Público foi notificado nos termos e para os efeitos do n.º 1 do artigo 146.º do CPTA, não se tendo pronunciado.


Com dispensa dos vistos legais, atento o seu carácter urgente, vem agora o processo submetido à conferência desta Secção do Contencioso Administrativo para apreciar do recurso interposto da decisão proferida ao abrigo do artigo 41.º, n.º 7, da Lei do TAD, como decorre da força do caso julgado formado.


I. 1. Questões a apreciar e decidir:

As questões que cumpre agora conhecer traduzem-se em saber:

- Se o Presidente do TCA Sul proferiu uma decisão que excede a sua estrita competência, tendo decretado uma providência cautelar quando, na verdade, apenas lhe competia proferir uma medida cautelar específica;

- Se a decisão recorrida errou ao considerar ter existido violação do direito de audiência prévia do Recorrido, não se encontrando assim preenchido o critério do fumus boni iuris; e

- Se errou ao concluir que é inconstitucional, também em matéria desportiva, a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas.



II. Fundamentação

II.1. De facto

Não vindo impugnada a matéria de facto fixada – o art. 640.º do CPC fixa um ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto -, deverá considerar-se a mesma estabilizada, sendo aqui dada por reproduzida, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 663.º, n.º 6, do CPC.



II.2. De direito

Começa a Recorrente por alegar que ao decretar uma providência cautelar que não lhe foi requerida, o Presidente do TCA Sul, na decisão recorrida, excedeu claramente os seus poderes de pronúncia no caso concreto. Ou seja, ainda que não o seja dito expressamente, entende a Recorrente que a decisão recorrida é nula por excesso de pronúncia.

Mas sem razão.

A decisão recorrida foi proferida ao abrigo da competência substitutiva excepcional prevista no n.º 7 do artigo 41.º da LTAD, no qual se dispõe que “[c]onsoante a natureza do litígio, cabe ao presidente do Tribunal Central Administrativo do Sul ou ao presidente do Tribunal da Relação de Lisboa a decisão sobre o pedido de aplicação de medidas provisórias e cautelares, se o processo não tiver ainda sido distribuído ou se o colégio arbitral ainda não estiver constituído.

Sobre a disciplina deste artigo – cuja bondade não importa aqui avaliar - a doutrina tem-se pronunciado no sentido de se tratar de uma competência excepcional substitutiva por parte do Presidente do TCAS, por referência ao decretamento de providências cautelares e sem qualquer menção a uma suposta provisoriedade até nova decisão confirmativa pelo TAD (cfr., i.a.,ARTUR FLAMÍNIO DA SILVA e DANIELA MIRANTE, O Regime Jurídico do Tribunal Arbitral do Desporto Anotado e Comentado, 2016, p. 92; ANA CELESTE CARVALHO, A Arbitragem Necessária e os Poderes do Juiz, in O Tribunal Arbitral do Desporto, Um Ano Depois, COP, 2017. pp. 14-15).

Aliás, o entendimento avançado pela Recorrente não tem, salvo o devido respeito, o mínimo de acolhimento na letra da lei.

E, de resto, esta concreta questão foi também abordada na decisão do STA, nesta se afirmando categoricamente que: “o caso aqui em apreciação se reporta a uma situação especialíssima, sui generis em que o Presidente do TCAS actua em substituição de um colégio arbitral que deveria decidir no âmbito do TAD (que funciona como uma primeira instância) e não de uma competência atribuída ao TCAS e, especificamente, ao seu presidente (v.g., a escolha de árbitros em certas circunstâncias no âmbito da LAV)”.

Improcede, portanto, o recurso nesta parte.

Continuando, vejamos agora se a decisão recorrida errou ao considerar ter existido violação do direito de audiência prévia do Recorrido, o que faria claudicar o decidido preenchimento do critério do fumus boni iuris.

Sustenta a Recorrente que foi a alegada falta de audiência prévia do Recorrido o fundamento para que o Presidente do TCA Sul entendesse estar preenchido o critério do fumus boni iuris, mas que os factos demonstram que, no caso concreto, tal audiência existiu efectivamente.

Porém, para o recurso ter procedência nesta parte importaria que a Recorrente impugnasse a matéria de facto que vem fixada, e de acordo com o ónus especial que se encontra previsto no art. 640.º do CPC, o que manifestamente não fez.

Assim, prevalece a decisão sobre a matéria de facto e, no que aqui releva, o seguinte:

e) No dia imediatamente seguinte ao jogo, 27-1-2021, ainda antes da divulgação da sanção que lhe foi aplicada, o requerente remeteu à requerida (pelas 18.14 horas) uma exposição, para consideração e realização de diligência previamente à decisão de processo sumário, em que explicitou as razões pelas quais entendia não dever ser disciplinarmente punido apesar e para além do cartão amarelo que lhe havia sido exibido no decurso do jogo, e requereu a audição do árbitro do encontro (cfr. doc. nº 2 junto com o requerimento inicial, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

f) Sobre esse requerimento não recaiu qualquer despacho, designadamente que se dignasse indeferir ou pronunciar sobre as diligências requeridas, não tendo o requerente qualquer evidência ou razão para crer que o mesmo tenha sido apreciado ou considerado previamente à prolação da decisão em processo sumário (cfr. doc. nº 3 junto com o requerimento inicial, e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).

g) O requerente não foi ouvido previamente à prolação da decisão sumária que o sancionou.

E assim sendo, não tendo o ora Recorrido sido ouvido previamente à prolação da decisão sumária que o sancionou, apresenta-se como pacífico que não incorre a decisão recorrida no erro de julgamento que lhe vem imputado.

Improcede o recurso, também, nesta parte.

Por fim, vejamos a questão atinente ao processo sumário ser um procedimento disciplinar de natureza sancionatória e pública, que exige, também na sua tramitação, a aplicação das garantias constitucionais previstas para o próprio processo penal, designadamente as que constam dos artigos 32.º e 269.º da CRP, especialmente, os nºs 10 e 3, respectivamente.

Entende a Recorrente que “a preterição do direito de audiência prévia do arguido encontra fundamento nas especificidades do direito do desporto e, mais concretamente, na imposição de um normal desenrolar das competições desportivas”.

Sobre esta concreta questão já este TCAS se pronunciou por inúmeras vezes, dando eco da Jurisprudência do Tribunal Constitucional firmada sobre a matéria. Afirmou-se, entre outros, no recente ac. de 18.02.2021, proc. n.º 112/20.4BCLSB (por nós relatado):

“(…)

O presente recurso tem por objecto o acórdão arbitral proferido pelo Colégio Arbitral constituído junto do Tribunal Arbitral do Desporto, notificado em 27.10.2020, que julgou procedente o recurso apresentado pela ora RECORRIDA, que correu termos sob o n.º 3/2020. Em concreto, está em causa a decisão que anulou a deliberação do Conselho de Disciplina que, sob a forma de acórdão, havia condenado em multa a ora RECORRIDA pela prática de infracção p.p. pelos artigos 127.º, n.º 1 e 187.º, n.ºs 1, als. a) e b) do RD da LPFP, considerando que o artigo 214.º do Regulamento Disciplinar da LPFP é materialmente inconstitucional por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3, ambos da CRP.

Ao que aqui releva entendeu o Tribunal: “Sem prejuízo do disposto no artigo 214.º do RD, o mesmo diploma prevê detalhadamente, nos artigos 236.º a 246.º do RD, a audiência do arguido no quadro do processo sancionatório comum, configurando-a como uma formalidade obrigatória, dado que se trata de uma garantia constitucionalmente consagrada no artigo 32.º, n.º 10, da CRP. // Impõe-se a conclusão de que a decisão sancionatória controvertida, ao aplicar o comando legal constante do artigo 214.º do RD e, dessa forma, ao precludir o direito de audição prévia do arguido, padece do vício de violação de lei, sancionado com a nulidade, por ofensa do núcleo essencial de um direito fundamental, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 161.º, n.º 2, alínea d), do Código de Procedimento Administrativo”.

Esta matéria - questão objecto do presente recurso - foi já alvo de apreciação pelo Tribunal Constitucional, concretamente no Acórdão n.º 594/2020, processo n.º 49/2020, onde se decidiu «[j]ulgar inconstitucional a norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar, no âmbito do processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional».

Entendeu o Tribunal Constitucional que:

«Em suma, e como se reconhece no artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, os direitos de audiência – de ser efetivamente ouvido antes do decretamento da sanção –, e defesa – de apresentar a sua versão dos factos, juntar meios de prova e requerer a realização de diligências – constituem uma dimensão essencial tanto do processo criminal como dos processos de contraordenação como, finalmente, também de todos os processos sancionatórios. No caso dos processos sancionatórios disciplinares no contexto da função pública, a essencialidade dos referidos direitos de audiência e de defesa é reforçada ainda pelo artigo 269.º, n.º 3, da Constituição. O sentido útil desta «explicitação constitucional do direito de audiência e de defesa é o de se dever considerar a falta de audiência do arguido ou a omissão de formalidades essenciais à defesa como implicando a ofensa do conteúdo essencial do direito fundamental de defesa» (Cfr. J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed. revista, Coimbra Editora, 2010, p. 841).

Exigindo o n.º 10 do artigo 32.º da Constituição que o arguido nos processos sancionatórios não-penais ali referidos seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e alegando as suas razões, imperioso será concluir que uma norma que permita a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas se apresenta necessariamente como violadora da Constituição.

14. O processo sumário regulado no RD-LPF é um processo disciplinar. Visa punir o ilícito disciplinar com uma sanção disciplinar, tendo, portanto, natureza sancionatória. Nessa medida, encontra-se abrangido pelo âmbito de aplicação do n.º 10 do artigo 32.º da Constituição. Sendo assim, inequívoco se afigura que a norma do referido Regulamento, que suprime o direito de audiência no âmbito do processo disciplinar sumário, contraria flagrantemente o disposto no artigo 32.º, n.º 10 da Constituição».

Assim sendo, aderindo à fundamentação constante do aresto que vimos de citar, haverá que negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida que declarar nula a deliberação do Conselho de Disciplina que havia condenou em multa a ora RECORRIDA pela prática de infração p.p. pelos artigos 127.º, n.º 1 e 187.º, n.ºs 1, als. a) e b) do RD da LPFP, com fundamento precisamente na inconstitucionalidade material do artigo 214.º do Regulamento Disciplinar da LPFP por violação do disposto nos artigos 32.º, n.º 10 e 269.º, n.º 3, ambos da CRP..

Deste modo, uma vez que a decisão recorrida alinha por este exacto diapasão, terá que reiterar-se a mesma, nos seus exactos termos. Assim:

31. No caso dos presentes autos, e quanto a este requisito, numa perspectiva meramente perfunctória, resulta evidente que o direito invocado pelo requerente consiste fundamentalmente no facto de lhe ter sido aplicada, em processo sumário, uma sanção disciplinar automática de um jogo de suspensão e, acessoriamente, numa multa, que reputa de manifestamente ilegal, porquanto tendo interposto uma impugnação administrativa necessária, esta teria sempre efeitos suspensivos da eficácia do acto impugnado.

32. A propósito da legalidade do processo sumário constante do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, já teve este TCA Sul oportunidade de se pronunciar em vários arestos, dos quais se destaca aquele que foi objecto do acórdão proferido em de 18 de Dezembro de 2019, no âmbito do processo nº 35/19.0BCLSB e disponível em www.dgsi.pt, tendo-se decidido o seguinte:

“I – O processo sumário configura uma forma especial do processo disciplinar, regulando-se pelas disposições que lhe são próprias e, na parte nelas não previstas e com elas não incompatíveis, pelas disposições respeitantes ao processo comum, consonantemente com o previsto no artigo 213º, nºs 1, alínea b) e 3 do Regulamento Disciplinar da Liga Portuguesa de Futebol Profissional.

II – A audiência do arguido está claramente prevista e descrita como um princípio essencial e uma formalidade obrigatória no âmbito do procedimento disciplinar comum, como decorre do estatuído nos artigos 236º a 246º do aludido Regulamento Disciplinar.

III – O processo sumário constitui também um procedimento disciplinar, assumindo natureza sancionatória e pública, o que convoca a aplicação de determinadas garantias constitucionais, por razões de similitude de essência com o próprio processo penal, mormente, as consagradas no artigo 32º, nº 10 e no artigo 269º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa.

IV – Dentre essas garantias avulta a fundamentalidade da garantia da audiência e defesa do arguido em processo disciplinar, decorrendo essa fundamentalidade, entre o mais, do consagrado nos artigos 32º, nº 10 e 269º, nº 3 da Constituição, e significando que “é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas (como declarado nos acórdãos do Tribunal constitucional nº 659/2006, nº 180/2014, nº 457/2015 e nº 338/2018).

V – Não obstante constituir um princípio essencial, assumido pelo próprio Regulamento Disciplinar, que a aplicação de qualquer sanção disciplinar é sempre precedida da faculdade de exercício do direito de audiência prévia pelo arguido através da instauração do correspondente procedimento disciplinar, a verdade é que o artigo 214º do Regulamento exclui expressamente esta garantia no que se refere ao processo sumário.

VI – Com efeito, o artigo 214º do Regulamento não só afasta explicitamente a audiência do arguido antes de ser proferida a decisão punitiva, como a própria tramitação do procedimento disciplinar sumário não permite enxertar ou acomodar qualquer ato procedimental concretizador daquela garantia constitucional, como dimana do exame do disposto nos artigos 257º a 262º do mesmo Regulamento.

VII – O que implica que o arguido apenas conhece a existência de imputações disciplinares contra si no momento em que é notificado da própria decisão disciplinar, e sem que tenha tido qualquer hipótese de esgrimir uma defesa em momento anterior ao daquela notificação.

VIII – Quer tudo isto significar, portanto, no que concerne ao procedimento disciplinar sumário, que a norma plasmada no artigo 214º do Regulamento Disciplinar, na parte em que suprime a audiência do arguido em momento anterior ao da edição do ato punitivo, é materialmente inconstitucional, por violação dos direitos fundamentais de audiência e de defesa, preceituados nos artigos 32º, nº 10 e 269º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa.

IX – Sendo assim, é dever deste Tribunal recusar a aplicação ao caso posto da aludida norma vertida no artigo 214º, na parte em que exclui e oblitera a audiência do arguido antes da promanação do ato punitivo.

X – O que conduz a que os atos punitivos proferidos em 07/02/2018, e mantidos pela Deliberação emitida em 20/03/2018 pelo Pleno da Secção Profissional do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol sejam nulos, por violação dos direitos de audiência e de defesa da Recorrente”.

33. De facto, constituindo o processo sumário um procedimento disciplinar de natureza sancionatória e pública, a ele se impõe a aplicação de garantias constitucionais previstas para o próprio processo penal, designadamente as que constam dos artigos 32º e 269º da CRP, especialmente, os nºs 10 e 3, respetivamente.

34. De entre as mencionadas garantias, avultam os direitos de audiência e de defesa consagrados em benefício do arguido e indiscutivelmente extensíveis a todos os processos de natureza sancionatória, em conformidade com o prescrito no nº 10 do artigo 32º da CRP.

35. É neste contexto que surgem as primeiras decisões do Tribunal Constitucional, nas quais, de forma inequívoca, se afirma a fundamentalidade da garantia da audiência e defesa do arguido em processo disciplinar, determinando que “é inconstitucional a aplicação de qualquer tipo de sanção disciplinar sem que o arguido seja previamente ouvido e possa defender-se das imputações que lhe são feitas” (cfr. os acórdãos do Tribunal Constitucional nº 659/2006, nº 180/2014, nº 457/2015 e nº 338/2018, acima mencionados).

36. Mais recentemente, esta jurisprudência constitucional conheceu confirmação específica e explícita em matéria de disciplina desportiva, e em concreto do futebol, através do acórdão do TC nº 594/20203, de 10 de Novembro de 2020, que decidiu “julgar inconstitucional a norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar, no âmbito do processo sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional”.

37. E também no acórdão nº 742/20204, proferido em 10 de Dezembro de 2020, onde o Tribunal Constitucional decidiu “julgar inconstitucional, por violação do direito de audiência e defesa consagrado no nº 10 do artigo 32º da Constituição, a norma que estabelece a possibilidade de aplicar uma sanção disciplinar, no âmbito do procedimento sumário, sem que esta seja precedida da faculdade de exercício do direito de audiência pelo arguido, extraível do artigo 214º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional”.

38. Deste modo, é lícito concluir que se mostra suficientemente demonstrado o pressuposto da aparência do direito invocado pelo requerente, na medida em que é mais do que plausível a argumentação invocada no tocante à ilegalidade da falta de audição e defesa do arguido em processo sumário”.

Com o que tem que julgar-se improcedente este fundamento do recurso e, deste modo, integralmente improcedente o mesmo.

Nada mais cumpre apreciar.



III. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da Secção do Contencioso Administrativo deste Tribunal Central Administrativo Sul em negar provimento ao recurso e manter a decisão recorrida do Exmo. Presidente deste TCAS.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 7 de Julho de 2021

Pedro Marchão Marques (relator).

O relator consigna e atesta, que nos termos do disposto no art. 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo art. 3.º do DL n.º 20/2020, de 01.05, têm voto de conformidade com o presente Acórdão os restantes integrantes da formação de julgamento: Alda Nunes e Lina Costa.