Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:158/22.8BCLSB
Secção:JUIZ PRESIDENTE
Data do Acordão:10/21/2022
Relator:PEDRO MARCHÃO MARQUES
Descritores:JUSTIÇA DESPORTIVA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
REQUISITOS
FUMUS BONI IURIS
PERICULUM IN MORA
Sumário:1- O Tribunal Arbitral do Desporto não tem competência para decidir sobre a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da própria competição desportiva (cfr. art. 4.º, n.º 6, da Lei do TAD).
2- A avaliação de uma (alegada) conduta de um jogador que, de forma livre, voluntária e consciente agrediu um jogador da equipa adversária, no caso com uma estalada na face, no decurso de uma competição desportiva, tem como resultado que o objecto da providência comporta uma controvérsia relativa à prática pelo ora Requerente de uma conduta susceptível de ser enquadrada na previsão do art. 151.º, n.º 1, do RDLPFP [Agressões a Jogadores] e que nos movemos no âmbito de questões de facto conexas com as leis do jogo e que motivam a aplicação de normas técnicas e em concreto disciplinares.

3-A verificação de uma excepção dilatória no TAD, determina o fumus malus juris gerador da improcedência da providência cautelar conhecida neste TCA Sul, por via do artigo 41.º da Lei do TAD . 

Votação:DECISÃO SUMÁRIA
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral: Decisão
(artigo 41.º, n.º 7, da Lei do TAD)


I. Relatório

H ………….. , atleta profissional da M ……. FC – Futebol SAD s, com os demais sinais dos autos, veio requerer no Tribunal Arbitral do Desporto, em 18.10.2022, em acção que intentou contra a Federação Portuguesa de Futebol, o decretamento de providência cautelar de suspensão da decisão proferida pelo Conselho de Disciplina da FPF (Secção Profissional) que o condenou na sanção de suspensão de 2 jogos e sanção de multa de EUR 540,00, pela prática de uma infração p. e p. no artigo 151.º, al. a) (Agressões a Jogadores) do RDLFPF.

Juntou 3 documentos com a p.i., procuração forense e, após despacho de 18.10.2022, em 19.10.2022 comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida no TCA Sul.

Para fundamentar a sua pretensão, conclui o Requerente que:

1ª Conforme resulta do relatório final, o arguido aos 25 minutos de jogo (jogo n.° ………), viu cartão amarelo em resultado da prática de um comportamento antidesportivo - “empurrou o adversário com o jogo interrompido

2ª Nesse mesmo momento do jogo, foi o jogador J ………….. admoestado com cartão vermelho por se tornar culpado de conduta violenta - "agrediu um adversário com uma estalada

3ª Resulta, portanto, que o momento do jogo em causa, foi devidamente percecionado em toda a sua extensão pela equipa de arbitragem que se encontrava a arbitrar aquele jogo.

4ª E, por isso, sancionou ambos os atletas, no momento em que as infrações se verificaram.

5ª No presente caso estamos perante uma clara situação em que deve relevar o sentido e o alcance do princípio geral da presunção de veracidade dos factos constantes das declarações e relatórios da equipa de arbitragem/princípio da autoridade do árbitro.

6ª Ou seja, a “field of play doctrine ”, que significa a irreversibilidade das decisões tomadas pelos árbitros em campo, tidas por decisões finais, mesmo que posteriormente se constate terem sido erradas, o que implica o dever de o órgão disciplinar respeitar tais decisões.

7ª Ao ter julgado e sancionado os atletas naquele momento de jogo, não se pode agora, com recurso a “novas” imagens colocar em causa a autoridade do árbitro, que com pleno conhecimento de todas as circunstâncias decidiu de modo diverso do agora pretendido pela acusação.

8ª A admitir-se tal possibilidade está-se a colocar em causa a autoridade do árbitro principal e restante equipa de arbitragem.

9ª Cfr. Arbitration CAS 2017/A/5373 Japan Triathlon Union (JTU) v. International Triathlon Union (ITU), award of 28 June 2018 (Doc. 2) e Cfr. Arbitration CAS 2015/A/4208 Horse Sport Ireland (IISI) & Cian 0'Connor v. Fédération Equestre Internationale (FEI), award of 15 July 2016 (operative part of 4 January 2016) (Doc. 3).

10ª O órgão recorrido violou por erro de interpretação e aplicação a doutrina Field of Play (FOP) e o disposto no artigo 151.º, a) do RDLFPF.

11ª O recorrente deve ser absolvido da prática de uma infração p. e p. no artigo 151°, a) (Agressões a Jogadores) do RDLFPF, assim como da sanção de suspensão de 2 (dois) jogos e sanção de multa de € 540 (quinhentos e quarenta euros).

12ª A imediata execução da decisão recorrida prejudica fortemente a carreira desportiva do recorrente.

13ª Tal prejuízo é incomensuravelmente maior que o que pode resultar do cumprimento imediato da referida sanção disciplinar.

14ª O cumprimento do castigo gerará lesão grave e de impossível reparação para a M ……….. FC Futebol SAD, para a modalidade e para o Jogador, pois fica este impedido de jogar, entre outros, o jogo agendado para o dia 18 de Outubro de 2022, pelas 20:00 horas.

15ª Em suma, no caso em apreço, estão verificados os três requisitos de que depende o decretamento da providência cautelar requerida - o fumus boni iuris, o periculum in mora e no balanço dos danos que o Requerente pretende ver evitados, não excedendo estes aqueles que pudessem vir a ser produzidos na esfera da Requerida.

16ª Em face do que anteriormente se descreveu e concluiu, deve julgar-se procedente o pedido formulado pelo Requerente, decretando-se, em consequência disso, por ser adequada e proporcional, a providência de suspensão da sanção disciplinar aplicada ao recorrente, por deliberação do Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol vertida na Decisão Final, proferida no dia 17.10.2022, no âmbito do Processo Disciplinar n° ……………..



II. Da intervenção do Presidente do TCA Sul

Por despacho do Exmo. Presidente do TAD, de 18.10.2022, foram os autos remetidos a este TCA Sul para apreciação e decisão, na constatação de não ser viável em tempo útil a constituição do colégio arbitral e, assim, estar o TAD em condições de apreciar o pedido cautelar formulado.

Vejamos se estão reunidos os pressupostos que justificam a intervenção do Presidente do TCA Sul.

O artigo 41.º da Lei do TAD, sob a epígrafe “procedimento cautelar”, estatui no seu n.º 7 que “consoante a natureza do litígio, cabe ao presidente do Tribunal Central Administrativo do Sul ou presidente do Tribunal da Relação de Lisboa a decisão sobre o pedido de aplicação das medidas provisórias e cautelares, se o processo ainda não tiver sido distribuído ou se o colégio arbitral ainda tiver constituído”.

No presente caso, em que a instauração da providência cautelar no TAD coincide com o dia do primeiro jogo em que o ora Requerente pretende participar enquanto jogador, medeia um curtíssimo espaço temporal, no decurso do qual não se mostrará possível, a constituição do colégio arbitral junto do TAD.

Assim, entende-se que está preenchida a condição de que depende a intervenção do Presidente do TCA Sul, ou seja, a verificação da impossibilidade da constituição do colégio arbitral em tempo útil (cfr. artigo 41.º, n.º 7, da Lei do TAD).



III. Dos factos

A matéria de facto pertinente é a constante da sentença recorrida, a qual, não sendo impugnada, se dá aqui por reproduzida, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 663.º, n.º 6, do Código de Processo Civil.



IV. Da instância, competência e valor da causa

As partes são legitimas e o processo é o próprio.

Vejamos se existem excepções ou outras questões prévias que devam ser, desde já, conhecidas e que obstem à apreciação do mérito da providência requerida.

Sustenta o Requerente, como se viu, que lhe foi aplicada uma sanção disciplinar de 2 jogos de suspensão e de uma de multa de EUR 540,00, pela prática de uma infração p. e p. no artigo 151.º, al. a) (Agressões a Jogadores) do RDLFPF.

Entende que essa sanção é ilegal, por ser violadora da “field of play doctrine”, que significa a irreversibilidade das decisões tomadas pelos árbitros em campo, tidas por decisões finais, mesmo que posteriormente se constate terem sido erradas, o que implica o dever de o órgão disciplinar respeitar tais decisões. Afirma que ao ter julgado e sancionado os atletas naquele momento de jogo, não se pode posteriormente, com recurso a imagens colocar em causa a autoridade do árbitro, que com pleno conhecimento de todas as circunstâncias decidiu de modo diverso, com o que se estaria a admitir tal possibilidade e a colocar em causa a autoridade do árbitro principal e restante equipa de arbitragem.

Em suma, de acordo com a factualidade constante da decisão condenatória e que não vem impugnada, a condenação em causa tem por base uma alegada agressão perpetrada pelo Requerente contra um jogador da equipa adversária (J………..) no decurso da primeira parte do jogo disputado no dia 27.08.2022 entre a “Os B…………– Sociedade Desportiva de Futebol, SAD, e a “M…………. FC – Futebol, SAD” (jogo oficial n.º ………….), com este interrompido.

Ora, certo é que é excluída da jurisdição do Tribunal Arbitral do Desporto e portanto também do âmbito da competência deste TCA Sul, por ser exclusiva das federações desportivas, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da própria competição desportiva (cfr. art. 4º n.º 6, da Lei do TAD).

Foi isso mesmo que se decidiu no ac. deste TCA Sul de 18.11.2021, proc. n.º 108/21.9BCLSB, que aqui se reproduz na sua parte relevante e cuja doutrina é aqui inteiramente aplicável:

“(…)

Como se lê no acórdão em crise “Temos assim, no âmbito desta arbitragem necessária, e no que respeita aos recursos das deliberações dos órgãos de disciplina das federações desportivas, erigido um sistema de delimitação recíproca de competências necessárias e exclusivas entre o TAD e os conselhos de justiça (ou equivalentes) das federações desportivas, que assim pode enunciar-se:

a) As deliberações dos órgãos de disciplina das federações desportivas só são recorríveis para o TAD, se não estiverem em causa “questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva”; e, naturalmente, como se viu já, sem prejuízo da impugnação administrativa necessária que efetivamente se imponha a montante do recurso para o TAD;

b) As deliberações dos órgãos de disciplina das federações desportivas só são recorríveis para os conselhos de justiça (ou equivalentes), se estiverem em causa “questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva”; (…)”

Em conformidade, dispõe o artigo 287.º do RDLPFP, sob a epígrafe “Formas de recurso”, que:“ 1 – As decisões finais proferidas pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, em pleno, são impugnáveis apenas por via de recurso para o Tribunal Arbitral do Desporto.

2 – Sem embargo do disposto no número anterior do presente artigo, as decisões finais proferidas pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, em pleno, respeitantes a matérias estritamente desportivas são apenas impugnáveis por via de recurso para o Conselho de Justiça. (…)”

Da mesma forma, dispõe o n.º 1 do artigo 44.º do regime jurídico das federações desportivas, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 93/2014, de 23.06, que “Para além de outras competências que lhe sejam atribuídas pelos estatutos, cabe ao conselho de justiça conhecer dos recursos das decisões disciplinares relativas a questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva.”

Assim, o TAD é incompetente para conhecer do recurso de decisões que tenham por fundamento normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar, emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas provas, sendo as mesmas recorríveis para o órgão de justiça das respectivas federações desportivas.

Donde, o presente litígio centra-se na interpretação a dar ao disposto no nº 6 do artigo 4º da Lei do TAD e em saber se o caso em apreço se subsume ou não na sua previsão.

(…).

XV. Para efeitos de determinação do conceito de questão estritamente desportiva não releva a aplicação de qualquer regulamento desportivo, mas apenas os regulamentos relativos à organização das provas e da competição.

XVI. Deve considerar-se questões estritamente desportivas as questões de facto e de direito emergentes das leis do jogo, que são aquelas que surjam no decurso da prova ou durante a competição, estando, por isso, relacionadas com o seu desenvolvimento, quer do ponto de vista técnico, quer disciplinar, delas se excluindo as ofensas constitucionais e legais destinadas a proteger valores e interesses estranhos ao fenómeno desportivo, como no caso da afetação de direitos indisponíveis ou de direitos, liberdades e garantias.[sublinhado nosso]

(…)

Por “leis de jogo” tem vindo a entender a nossa jurisprudência que se trata do “ conjunto de regras que, relativamente a cada disciplina desportiva, têm por função definir os termos da confrontação desportiva e que se traduzem em regras técnico - desportivas que ordenam a conduta, as ações e omissões, dos desportistas nas atividades das suas modalidades e que, por isso, são de aplicação imediata no desenrolar das provas e competições desportivas.” – cfr., entre outros, acórdãos do STA de 07.06.2006 (proc. nº 262/06), de 10.09.2008 (proc. nº 120/08) e de 21.09.2010 ( proc. nº 0295/10); acórdão do TCA Sul de 13.10.2011 (proc. nº 6925/10); e acórdão do TCAN de 09.11.2018 (proc. nº 248/18), disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.

Tal como o voto de vencido junto ao acórdão recorrido, socorremo-nos aqui das palavras de Pedro Gonçalves:

“As “leis do jogo” (10), visando identificar e regulamentar a prática do jogo e desconhecendo qualquer eficácia no ordenamento jurídico, não incorporam regras jurídicas, mas regras técnicas. A situação não se apresenta diferente no caso das regras (disciplinares) que sancionam o desrespeito das “leis do jogo”, resultante da prática de infracções (faltas) no “decurso do jogo”: também aqui está envolvida a apreciação de factos ou condutas segundo critérios técnicos e não jurídicos. Num sentido rigoroso, a regulação do jogo não é de direito público, nem de direito privado, posto que não se trata de uma regulação jurídica.” - in, “A soberania limitada das federações desportivas”, Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 59, pág. 59.

Para o mesmo Autor, “(…) seria inconsequente pedir a um Tribunal do Estado tribunal administrativo ou outro, que decide questões de direito e procede à aplicação de normas jurídicas, uma pronúncia sobre os termos de aplicação de normas técnicas ou sobre se um certo jogador cometeu, no decurso do jogo, a falta x ou y ou nenhuma das duas. Há, nesta matéria, um imperativo natural de contenção da ingerência da justiça estadual. [sublinhado nosso]

Também o STA se pronunciou recentemente sobre esta matéria, em caso análogo, no acórdão de 10.02.2022, proc. n.º 40/21.6BCLSB, concluindo que: “é infração estritamente desportiva aquela que é cometida no decurso de uma competição, envolvendo questões de facto e de direito emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras técnicas de organização das respectivas provas, e sendo questões estritamente desportivas estão fora da competência da jurisdição do TAD, pois nada têm a ver com decisões materialmente desportivas”.

O acórdão em referência, apresenta seguinte discurso fundamentador que aqui também se reproduz, na parte relevante:

“(…)

A Lei nº 74/2013 de 06.09 criou o Tribunal Arbitral de Desporto (TAD) - com competência específica para administrar a justiça relativamente a litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou relacionados com a prática do desporto – e aprovou a respectiva lei, entretanto alterada pela Lei nº 33/2014 de 16.06.

O artigo 4º da Lei do TAD regula a arbitragem necessária e os artigos 6º e 7º a arbitragem voluntária.

O artº 4º, na redacção dada pela Lei nº 33/2014 de 16.06, estabelece que:

«1 - Compete ao TAD conhecer dos litígios emergentes dos atos e omissões das federações desportivas, ligas profissionais e outras entidades desportivas, no âmbito do exercício dos correspondentes poderes de regulamentação, organização, direção e disciplina.

2 - Salvo disposição em contrário e sem prejuízo do disposto no número seguinte, a competência definida no número anterior abrange as modalidades de garantia contenciosa previstas no Código de Processo nos Tribunais Administrativos que forem aplicáveis.

3 - O acesso ao TAD só é admissível em via de recurso de:

a) Deliberações do órgão de disciplina ou decisões do órgão de justiça das federações desportivas, neste último caso quando proferidas em recurso de deliberações de outro órgão federativo que não o órgão de disciplina;

b) Decisões finais de órgãos de ligas profissionais e de outras entidades desportivas.

4 - Com exceção dos processos disciplinares a que se refere o artigo 59.º da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto, compete ainda ao TAD conhecer dos litígios referidos no n.º 1 sempre que a decisão do órgão de disciplina ou de justiça das federações desportivas ou a decisão final de liga profissional ou de outra entidade desportiva não seja proferida no prazo de 45 dias ou, com fundamento na complexidade da causa, no prazo de 75 dias, contados a partir da autuação do respetivo processo.

5 – (…)

6 - É excluída da jurisdição do TAD, não sendo assim suscetível designadamente do recurso referido no n.º 3, a resolução de questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva».

Por seu turno, dispõe o artigo 287.º do RDLPFP, sob a epígrafe “Formas de recurso”, que:

«1 – As decisões finais proferidas pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, em pleno, são impugnáveis apenas por via de recurso para o Tribunal Arbitral do Desporto.

2 – Sem embargo do disposto no número anterior do presente artigo, as decisões finais proferidas pela Secção Profissional do Conselho de Disciplina da FPF, em pleno, respeitantes a matérias estritamente desportivas são apenas impugnáveis por via de recurso para o Conselho de Justiça. (…)».

E o nº 1 do artº 44º do Regime Jurídico das Federações Desportivas, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 93/2014, de 23.06, dispõe:

«Para além de outras competências que lhe sejam atribuídas pelos estatutos, cabe ao conselho de justiça conhecer dos recursos das decisões disciplinares relativas a questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares diretamente respeitantes à prática da própria competição desportiva».

Resulta com clareza do exposto que o TAD não tem competência para conhecer do recurso de decisões que tenham por fundamento normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar, emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas provas, pois as mesmas apenas são recorríveis para o órgão de justiça das respectivas federações desportivas. [sublinhado nosso]

E, assim sendo, o nó górdio da presente revista prende-se com a interpretação a dar ao nº 6 do artº 4º da Lei do TAD, ou seja, apurar se o caso concreto se subsume ou não na sua previsão, ou seja, se estamos ou não perante questões emergentes da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da competição desportiva, também denominadas pela jurisprudência e doutrina, como questões estritamente desportivas.

E a este propósito, a Lei de Bases do Sistema Desportivo – Lei nº 1/90, de 13.01 -, dispunha no nº 2, do artigo 25º: “As decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas que tenham por fundamento a violação de normas de natureza técnica ou de caráter disciplinar não são impugnáveis nem suscetíveis de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva.”

A referida Lei foi revogada pela Lei de Bases do Desporto – a Lei nº 30/2004 de 20.07- que, no seu artº 47º, sob a epígrafe “Questões estritamente desportivas”, prevê o seguinte:

«Não são susceptíveis de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva as decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas” (nº 1).

E define-se que são questões estritamente desportivas “aquelas que tenham por fundamento normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar, nomeadamente as infracções disciplinares cometidas no decurso da competição, enquanto questões de facto e de direito emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas provas” (nº 2); sendo que nestas não “estão compreendidas as decisões e deliberações disciplinares relativas a infracções à ética desportiva, no âmbito da dopagem, da violência e da corrupção.”

Importa ainda ter presente a Lei de Bases da Actividade Física e do Desporto – Lei nº 5/2007, de 16.01 -, que previa no artº 18º (revogado pela alínea b) do artigo 4º da Lei nº 74/2013, de 06.09), o seguinte:

“(…)

2 – Não são suscetíveis de recurso fora das instâncias competentes na ordem desportiva as decisões e deliberações sobre questões estritamente desportivas.

3 – São questões estritamente desportivas as que tenham por fundamento normas de natureza técnica ou de caráter disciplinar, enquanto questões emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respetivas competições.

4 – Para efeitos do disposto no número anterior, as decisões e deliberações disciplinares relativas a infrações à ética desportiva, no âmbito da violência, da dopagem, da corrupção, do racismo e da xenofobia não são matérias estritamente desportivas.

5 – Os litígios relativos a questões estritamente desportivas podem ser resolvidos por recurso à arbitragem ou mediação, dependendo de prévia existência de compromisso arbitral escrito ou sujeição a disposição estatutária ou regulamentar das associações desportivas»

Assim sendo, as questões estritamente desportivas terão de ser aquelas que tenham por fundamento e origem normas de natureza técnica ou de carácter disciplinar, emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras de organização das respectivas provas.

Logo, por leis do jogo também se terá de entender o conjunto de regras que, relativamente a cada disciplina desportiva, têm por função definir os termos da confrontação desportiva e que se traduzem em regras técnico - desportivas que ordenam a conduta, as acções e omissões, dos desportistas nas actividades das suas modalidades e que, por isso, são de aplicação imediata no desenrolar das provas e competições desportivas.

Também na doutrina, e como bem se deixou consignado no Acórdão recorrido, veja-se ANTÓNIO PEIXOTO MADUREIRA e LUÍS CÉSAR TEIXEIRA, Futebol, Guia Jurídico, fls. 1602, que consideram como questões estritamente desportivas “as questões de facto e de direito emergentes das leis do jogo, ou seja, aquelas questões que tenham surgido durante a prática de uma competição e que, portanto, estejam relacionadas com o seu desenvolvimento, quer no seu aspecto técnico quer no aspecto disciplinar. Questões de facto, serão, por exemplo, aquelas que têm a ver com o apuramento de que se determinado jogador rasteirou ou não outro, se determinada bola ultrapassou ou não a linha da baliza, se determinado jogador agrediu ou não outro, etc. Questões em relação às quais o árbitro é soberano (…). Questões de direito são as que contendem com a aplicação das leis do jogo aos factos apurados. São questões relacionadas com os chamados erros de arbitragem.

Ou seja, é infração estritamente desportiva aquela que é cometida no decurso de uma competição, envolvendo questões de facto e de direito emergentes da aplicação das leis do jogo, dos regulamentos e das regras técnicas de organização das respectivas provas, e sendo questões estritamente desportivas estão fora da competência da jurisdição do TAD, pois nada têm a ver com decisões materialmente desportivas.[sublinhado nosso]

E de nada adianta tentar delimitar a competência, nos presentes autos, fazendo apelo à violação de um direito constitucionalmente consagrado, como é o direito à audiência prévia, antes de ser proferida a decisão final porque, na realidade, a montante desta decisão, ou seja, na sua origem, se encontram questões de facto e de direito emergentes das leis do jogo, ou seja das questões que surgem no decurso da prova ou durante a competição, dado que estas estão relacionadas com o respectivo desenvolvimento/desenrolar do jogo, como melhor veremos infra.

(…)”

O que se determina é tão só a incompetência do TAD para conhecer da questão em apreço, cujo conhecimento está atribuído à respectiva federação.

No caso, é inegável que estamos perante uma controvérsia relativa à prática pelo ora Requerente de uma conduta susceptível de ser enquadrada na previsão do art. 151.º, n.º 1, do RDLPFP [Agressões a Jogadores]. Ou seja, a avaliação de uma (alegada) conduta de um jogador que, de forma livre, voluntária e consciente agrediu um jogador da equipa adversária, no caso com uma estalada na face, no decurso de uma competição desportiva – o jogo de futebol disputado no dia 27.08.2022 entre a “Os ………… – Sociedade Desportiva de Futebol, SAD, e a “M ………. FC – Futebol, SAD” (jogo oficial n.º ………..). O que significa que estamos perante questões de facto conexas com as leis do jogo e que motivam a aplicação de normas técnicas e em concreto disciplinares.

Em síntese, face ao supra exposto, e no respeito do grau de conhecimento próprio dos procedimentos cautelares, o TAD não terá efectivamente jurisdição para decidir sobre a questão subjacente aos presentes autos na medida em que a mesma emergiu da aplicação das normas técnicas e disciplinares directamente respeitantes à prática da competição desportiva. Pelo que operará a exclusão de competência prevista no art. 4.º, n.º 6, da Lei do TAD.

Concluindo, aderindo aos fundamentos da jurisprudência citada, aqui inteiramente aplicável, e como explicitado, terá que julgar-se improcedente a providência requerida, uma vez que esta se insere ainda no domínio das designadas leis do jogo. O que, estando subtraído ao âmbito de competência do TAD, pela verificação aí de excepção dilatória, não pode ser conhecido pelo TCA Sul e determina o fumus malus juris gerador da improcedência da providência cautelar aqui requerida.



Atenta a natureza indeterminável dos interesses em discussão no presente processo, nos termos previstos no art. 34.º, n.ºs 1 e 2, do CPTA, fixa-se ao presente processo o valor de EUR 30.000,01.


V. Decisão

Pelo exposto, indefere-se a presente providência cautelar e absolve-se a Requerida, Federação Portuguesa de Futebol, do pedido, mantendo-se integralmente a decisão suspendenda.

Custas a cargo do Requerente.

Notifique pelo meio mais expedito; comunique ao TAD.

Lisboa, 21 de Outubro de 2022

Pedro Marchão Marques
Juiz presidente