Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul | |
| Processo: | 1106/12.9 BELRS |
| Secção: | CT |
| Data do Acordão: | 06/01/2023 |
| Relator: | PATRÍCIA MANUEL PIRES |
| Descritores: | HOMOLOGAÇÃO DA NULIDADE DA DOAÇÃO AQUISIÇÃO DERIVADA TRANSMISSÃO EX NOVO RESTITUIÇÃO STATUS QUO ANTE |
| Sumário: | I - A sentença homologatória de transação, é uma sentença de mérito, que faz caso julgado material relativamente à matéria do litígio, constituindo título executivo quando condenatória; II - A nulidade homologada por sentença não é passível de subsunção no conceito normativo de “aquisição derivada”, porquanto não se pode descortinar na declaração de nulidade qualquer transmissão ex novo de direitos da donatária para a doadora, mas sim a declaração da nulidade, com todas as consequências invalidantes daí dimanantes, quer negativas, quer positivas. III - A comprovada declaração de nulidade da doação, restituindo as partes ao status quo ante, repercute-se na vertente tributária, eliminando a doação realizada com efeitos retroativos e eficácia ex tunc, não sendo, por conseguinte, suscetível de equiparação a uma aquisição derivada, donde passível de tributação em sede de IS. |
| Aditamento: |
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| Decisão Texto Integral: | I-RELATÓRIO
O DIGNO REPRESENTANTE DA FAZENDA PÚBLICA (DRFP) veio interpor recurso jurisdicional da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por P… tendo por objeto a liquidação de Imposto de Selo nº 415491, no montante total de €11.121,36. A Recorrente apresenta as suas alegações de recurso nas quais formula as conclusões que infra se reproduzem: “i. A questão controvertida resume-se a saber se a transmissão de imóvel para a esfera da impugnante, operada por transação homologada por sentença, é um facto sujeito a Imposto de Selo. ii. Determina o art.º 1º, nº 1 do CIS que “O imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos ou situações jurídicas previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens”. iii. Estabelece o nº 3 do mesmo preceito que: “3 - Para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral, são consideradas transmissões gratuitas, designadamente, as que tenham por objeto: (…) g) Aquisição derivada de invalidade, distrate, renúncia ou desistência, resolução, ou revogação da doação entre vivos com ou sem reserva de usufruto, salvo nos casos previstos nos artigos 970.º e 1765.º do Código Civil, relativamente aos bens e direitos enunciados nas alíneas antecedentes. iv. Efetivamente esta norma do art.º 1º, nº 3, al. g) equipara à aquisição gratuita, a aquisição derivada de invalidade de doação entre vivos. v. Sendo estas tributadas nos termos da verba 1.2 da TGIS, à taxa de 10%. vi. Nas transmissões gratuitas, são sujeitos passivos de Imposto do Selo as pessoas singulares para quem se transmitem os bens (art.º 2, nº 2, al. b) do CIS) e o imposto constitui encargo dos titulares do interesse económico (art.º 3º, nº 1 do CIS). vii. Assim, resultando dos autos que a Impugnante doou em 08-05-2007 o prédio supra identificado e tendo este imóvel regressado à sua titularidade, por efeitos de declaração de invalidade do contrato de doação, encontram-se preenchidos os pressupostos, quer objetivos, quer subjetivos de tributação em Imposto do Selo. viii. Pelo que, ao decidir como decidiu, violou a douta sentença o disposto no art.º 1º, nº 3, al. g) do CIS. Termos em que, concedendo-se provimento ao recurso, deve a decisão ser revogada e substituída por acórdão que declare a impugnação improcedente, quanto à matéria aqui discutida. PORÉM V. EX.AS DECIDINDO FARÃO A COSTUMADA JUSTIÇA.” *** A Recorrida apresentou contra-alegações como infra se transcreve: “I- A d. sentença recorrida julgou procedente a impugnação judicial por ter entendido que, no caso sub judice, não se havia verificado qualquer transmissão fiscal. E, A inexistência dessa transmissão conduziu à não verificação do facto tributário, que a Autoridade Tributária havia considerado na liquidação a que procedera e que foi objecto de impugnação. Mas, Entendeu a recorrente que deve haveria lugar à liquidação do imposto do selo, escudando-se para tal no art.º 1.º, nº 1 e 3 do Código Imposto de Selo. Mas sem razão como se demonstrará. II- A ora alegante impugnou a legalidade da liquidação de imposto do Selo, no valor de 11.121,36€, defendendo que a alegada transmissão gratuita que tal liquidação pressupõe, não existia. E isto porque havia sido proferida decisão judicial no processo 435/10.4TBLNH que declarou a nulidade do contrato de doação por si celebrado com a sua sobrinha M… sobre o imóvel inscrito na matriz urbana sob o artigo 1… da freguesia da Marteleira e da respetiva escritura, que teve efeitos retroativos e removeu o negócio celebrado da ordem jurídica, tendo somente sido reposto o estado da propriedade existente antes da realização desse negócio. Apesar disso vem agora, nas suas alegações, a Fazenda Pública defender que o artº 1, nº 3 alínea g) do CIS equipara a aquisição gratuito à aquisição derivada da invalidade da doação entre vivos. III A douta sentença recorrida refere a este propósito o seguinte: " O imposto do Selo tributa uma grande variedade de manifestações de capacidade coniributiva, que não são objeto de tributação em outro imposto do sistema fiscal português, assentando o seu ponto de partida nas verbas da Tabela Geral do Imposto do Selo constante do Código do Imposto do Selo (CIS) aprovado pela Lei Ns 150/99, de 11 de Setembro (à luz da versão dada pela Lei n.ã 55-A/2010,de 31.12.2010, por ser a vigente à data de 15.5.2011, em que transitou em julgado a sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Lourinhã na ação de processo ordinário n.º495/10.4TBLNH, conforme ponto G) do probatório). IV- A recorrente não tecerá mais considerações sobre esta questão, uma vez que o texto que se deixou transcrito é perfeitamente claro, tornando desnecessário e repetitivo mais considerações sobre o assunto em causa. Do supra citado extrato da sentença recorrida resulta de forma inequívoca a falta de razão da recorrente. V-Sintetizando: a) - Ao julgar a oposição procedente fez a d. sentença recorrida correcta interpretação dos factos e da lei. b)- Assim deverá manter-se c)- E o que se pede e espera desse alto Tribunal, assim se fazendo JUSTIÇA! Termos em que deverá ser provimento ao recurso, mentendo-se sentença recorrida. *** O Digno Magistrado do Ministério Público (DMMP) neste Tribunal Central Administrativo Sul emitiu parecer no sentido da procedência do recurso. *** Colhidos os vistos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos, cumpre, agora, decidir. *** II-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A sentença recorrida julgou provada a seguinte matéria de facto: Com relevo para a decisão da causa, tendo em atenção as diversas soluções de direito plausíveis, resulta provada a seguinte matéria de facto: A) No dia 21.1.2005 a, ora Impugnante, adquiriu mediante partilha subsequente ao divórcio, um prédio de natureza urbana sito em Casais do A…, Rua do T…, n.º …, M…, Lourinhã, descrito na matriz com o n.º 1……; (cfr. doc. n.º 2 junto pela Impugnante com o requerimento n.º 005500330 do SITAF e depoimento da testemunha S…); B) Em 8.5.2007, a Impugnante e M…, perante o Cartório Notarial de A…, em Torres Vedras, e, na qualidade de Primeira e Segunda Outorgantes, respetivamente, lavraram escritura de doação, cujos termos se dão por reproduzidos e dos quais se extrai: «Imagem no original» C) Em 14.8.2009, a Impugnante e seu ex-marido, P…, compareceram perante Cartório Notarial de A…, em Torres Vedras, e, na qualidade de Segunda e Primeiro Outorgantes, respetivamente, lavraram partilha por divórcio, que se dá por reproduzida, e da qual se extrai o seguinte:
D) A Impugnante intentou, na qualidade de A., a ação declarativa contra M…, na qualidade de Ré, com processo ordinário n.º 495/10.4TBLNH, que correu termos na secção única do Tribunal Judicial da Lourinhã, pedindo: a) Declarar-se a nulidade da doação e da escritura efetuada entre a A. e Ré referida em 13 e 14 desta P.I., por simulação (art.240.º do C.C.); Ou, caso assim não se entenda, b) Declarar-se a nulidade da doação e da escritura efetuada entre a A. e Ré referida em 13 e 14 desta P.I., com base na reserva mental (art.244.º do C.C.); (cfr. doc. junto pela Impugnante); E) Nos autos do proc. n.º 495/10.4TBLNH, a Ré M… apresentou contestação, na qual reconvém, e peticiona, nos termos que se dão por reproduzidos e dos quais se extrai o seguinte conteúdo:
«Imagem no original»
(cfr. doc. n.º 1 junto pela Impugnante com o requerimento n.º 005500330 do SITAF); F) Na ação de processo ordinário, proc. n.º 495/10.4TBLNH, foi proferida sentença em 10.5.2011, nos seguintes termos, que se dão por reproduzidos: «Imagem no original» «Imagem no original» «Imagem no original» «Imagem no original» «Imagem no original»
(cfr. doc. n.º 4 junto pela Impugnante); G) A sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Lourinhã na ação de processo ordinário n.º 495/10.4TBLNH transitou em julgado no dia 15.5.2011; (cfr. PAT a fls. 8); H) Em 3.1.2012, o Serviço de Finanças da Lourinhã emitiu ofício n.º 34, dirigido à ora Impugnante, que se dá por reproduzido, e do qual se extrai o seguinte teor: «(…) Fica notificada, nos termos do n.º 3 do art.º 28.º do Código do Imposto do Selo, para, no prazo de 15 (quinze) dias a contar da data da recepção do aviso de recepção, participar, no Serviço de Finanças da área da sua residência, e em resultado da sentença proferida no Processo 495/10.4TBLNH que correu termos no Tribunal Judicial da Lourinhã a qual transitou em julgado em 2011-05-15, a transmissão a seu favor do prédio urbano sito na Rua do T… n.º …, Casais do A…, inscrito na matriz urbana da freguesia de Marteleira sob o artigo 1…, sob pena de serem havidos por sonegados os bens.(…)» I) Na sequência do ofício referido, a Impugnante apresentou uma exposição, em 17.1.2012, dirigida ao Sr. Chefe do Serviço de Finanças da Lourinhã, que se dá por reproduzida, na qual conclui: «(…) Face a todo o exposto, deverá ser considerado que não houve qualquer transmissão a favor da ora requerente, pelo que não poderá ser levantado qualquer auto de notícia para aplicação da coima ou promovida a participação oficiosa do imóvel aqui em causa. (…)» J) Em 27.1.2012, foi recebido pelo Serviço de Finanças da Lourinhã participação de transmissões gratuitas (modelo 1), n.º 11158803, surgindo como autor da transmissão M… e beneficiário da transmissão P…, ora Impugnante, como origem do facto tributário a “Invalidade/Distrate/Renúncia/Resolução/Revogação de Doação” em 15.5.2011 no Tribunal Judicial da Lourinhã, com as seguintes observações: “Participação oficiosa após notificação oficiosa efetuada em 2012.01.05 através do n/Ofício 34 de 2012.01.03, nos termos do n.º 2 do art.28.º do CIS, por se ter verificado tradição do bem imóvel constante da escritura lavrada em 2007.05.08 no CN A… a Fls. 134 do Liv. 78-A, participada neste SF através da declaração 436363, para a esfera da beneficiária, conforme sentença proferida no Proc. 495/10.4 TBLNH que transitou em julgado em 2011.05.15”; (cfr. fs. … do PAT); K) No dia 31.1.2012, a Impugnante foi notificada do ofício n.º 363, de 27.1.2012, do Serviço de Finanças da Lourinhã, que se dá por reproduzida e da qual se extrai o seguinte teor: «(…) No seguimento da exposição recebida neste Serviço de Finanças em 17-01-2012, somos a informar que será instaurada oficiosamente, nos termos do n.º 2 do art.º 28.º do Código do Imposto do Selo (CIS) a participação de imposto do Selo decorrente da sentença proferida no Processo 495/10.4 que correu termos no Tribunal Judicial da Lourinhã e cuja sentença transitou em julgado em 2011-05-15, na qual se verifica a transmissão a seu favor do prédio urbano sito na Rua do T… n.º …, Casais do A…, inscrito na matriz urbana da freguesia de Marteleira sob o artigo 1….. L) Em 6.2.2012, a Impugnante foi notificada, na qualidade de Sujeito Passivo, da Liquidação do Imposto do Selo, n.º 415491, de 27.1.2012, participação n.º 1158803 1, matéria coletável de Imposto do Selo 111.213,55€, total liquidado 11.121,36€, data limite de pagamento a 30.4.2012, da qual se extrai o conteúdo seguinte: «Imagem no original» «Imagem no original» «Imagem no original»
M) Em 5.9.2012, foi emitida certidão de registo predial da Conservatória de Registo Predial da Lourinhã, relativamente ao prédio identificado no ponto 1 do probatório, nos termos que se dão por reproduzidos e dos quais se extrai o seguinte: «Imagem no original» «Imagem no original» «Imagem no original» «Imagem no original» «Imagem no original» N) Em 27.10.2015, foi emitido o ofício n.º 2275 do Serviço de Finanças da Lourinhã, que se dá por reproduzido, e que do qual se extrai: «Imagem no original» «Imagem no original» «Imagem no original» (cfr. ofício registado no SITAF com o n.º 005914152); *** A decisão recorrida consignou como factualidade não provada o seguinte: “Não se provaram outros factos com relevância para a decisão da causa.” *** No item respeitante à motivação da matéria de facto consta o seguinte: “A decisão da matéria de facto teve por base o exame dos elementos documentais e informações oficiais constantes dos autos, a que foi sendo feita referência em cada uma das alíneas do probatório, bem como a prova por depoimento testemunhal prestada em sede de inquirição. A testemunha S…, professora, que tem com a Impugnante uma relação de parentesco direto (filha), relatou que os seus pais se divorciaram em 2005, com divisão de bens, tendo a sua mãe, ora Impugnante, ingressado na propriedade da casa até então comum. Mais referiu que depois do divórcio dos pais a sua mãe foi aconselhada a doar a casa à sobrinha M… para a escudar de dívidas do ex-marido. Depôs que sempre foi assumido pela donatária que a casa doada continuava a ser propriedade da, ora Impugnante, tendo sido esta a receber as rendas e a pagar os impostos relativos ao imóvel. Assim, também, declarou que a Impugnante suportava os encargos de creche da sobrinha donatária e que a compensação paga em Tribunal não foi uma contrapartida pela restituição do imóvel ao anterior proprietário, e sim um ressarcimento de despesas suportadas enquanto a casa esteve na sua posse. O depoimento prestado, apesar da estreita relação familiar entre a testemunha e a Impugnante, mostrou-se credível, convincente e dotado de razão de ciência.” *** III-FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO In casu, a Recorrente não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a impugnação judicial deduzida contra a liquidação adicional de IS, no montante total de €11.121,36. Em ordem ao consignado no artigo 639.º, do CPC e em consonância com o disposto no artigo 282.º, do CPPT, as conclusões das alegações do recurso definem o respetivo objeto e consequentemente delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso. Assim, ponderando o teor das conclusões de recurso cumpre apreciar se a sentença padece de erro de julgamento por errónea apreciação dos pressupostos de facto e de direito, indagando, para o efeito, se a transação homologada por sentença judicial determina a inexistência do facto tributário, conforme decidiu o Tribunal a quo, ou se existiu uma errónea interpretação dos pressupostos de facto e de direito na medida em que a questão se subsume no artigo 1.º, nº3, do CIS, sendo, por isso, legal o ato impugnado. Apreciando. A Recorrente defende que a transmissão do imóvel visado para a esfera da Recorrida, operada por transação homologada por sentença, é um facto sujeito a IS, em ordem ao consignado no artigo 1.º, nºs 1 e 3, alínea g), do CIS, porquanto equipara a aquisição gratuita, a aquisição derivada de invalidade de doação entre vivos, sendo, por conseguinte, tributada nos termos da verba 1.2 da TGIS, à taxa de 10%. Concluindo, por atendibilidade ao recorte probatório dos autos que, tendo a Recorrida doado, a 08 de maio de 2007, o bem imóvel melhor identificado em B), e tendo este imóvel regressado à sua titularidade, por efeitos de declaração de invalidade do contrato de doação encontram-se preenchidos os pressupostos, quer objetivos, quer subjetivos, de tributação em Imposto do Selo. Pelo que, a decisão recorrida violou o disposto no artigo 1.º, nº 3, al. g) do CIS. Dissente a Recorrida propugnando pela manutenção da decisão, na medida em que o Tribunal a quo, atuou de harmonia com o quadro legal vigente, porquanto tendo sido proferida decisão judicial no processo 435/10.4TBLNH que declarou a nulidade do contrato de doação por si celebrado com a sua sobrinha M… sobre o visado imóvel e da respetiva escritura, o que acarretou os competentes efeitos retroativos e removeu o negócio celebrado da ordem jurídica. Logo, inexistiu qualquer aquisição derivada, tendo, somente, sido reposto o estado da propriedade existente antes da realização desse negócio. O Tribunal a quo, por seu turno, esteou a procedência com base na seguinte fundamentação jurídica: “[m]anifesto que, com a sua homologação através de sentença, se concretizou a declaração de nulidade da doação anteriormente celebrada, bem como da escritura que a documentava (acontecimento já averbado na situação jurídica do imóvel consignada no registo predial, conforme ponto M) do probatório). Os efeitos da declaração de nulidade encontram-se regidos pelo art.289.º do Código Civil, cujo n.º 1 lhe assinala efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. (…) É inequívoco que o contrato de doação de um imóvel refulge como um típico exemplo de facto translativo, pelo qual um dos contraentes adquire a título gratuito o direito de propriedade. No entanto, o que presentemente está em causa é uma declaração de nulidade deste contrato, que comporta a eliminação do mesmo e reposição do statu quo ante à sua celebração. Por outras palavras, trata-se da irradiação retroativa das atribuições patrimoniais, como se o negócio não tivesse sido realizado. Dado que a doação tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa e a obrigação de entrega [cfr. art.954.º, al. a) e b) do Código Civil], da sua declaração de nulidade advém, com alcance retroativo, a reconstituição da propriedade da coisa na esfera da Impugnante, que já era a titular desse direito. O negócio nulo não é propriamente um nada jurídico, sendo antes um evento existente a que a ordem jurídica recusa as consequências negociais almejadas pelas partes, ainda que lhe reconheça alguma eficácia jurídica, não negocial, mas simplesmente a determinada pela lei. Declarado nulo por sentença passada em julgado, o contrato de doação não pode ser havido, em nenhum momento, como direito interpartes (…) Não se descortina, como do exposto se intui, na declaração de nulidade qualquer transmissão “ex novo” de direitos da donatária para a doadora, ora Impugnante: face à declaração de nulidade do negócio de doação, a ordem jurídica assume que a propriedade do imóvel doado sempre foi da doadora. Só a transmissão cujo objeto seja composto por um direito que não integrava o património do transmissário, algo que não era sua propriedade, desencadeando-se uma transferência entre esferas jurídicas autónomas, consubstancia uma aquisição derivada. E é sobre essa transmissão fiscal, geradora de aquisição por um novo titular, que incide o imposto do selo. E, como vem repetidamente afirmando a jurisprudência, o imposto do selo, mesmo quando está em causa uma aquisição por usucapião, só incide sobre a transmissão do bem que, ab initio, não se encontrava no património do adquirente (cfr. acórdãos do TCA-Norte de 29.9.2016, proc. n.º 00796/08.1BEBRG e de 11.2.2010, proc. n.º 00005/07.0BEPNF, ambos in www.dgsi.pt). No presente caso, não se verifica qualquer transmissão fiscal, nos termos gizados. Nesta senda, não pode ter ocorrido, mediante a declaração de nulidade em apreço, uma aquisição derivada, posto que derivada de invalidade. Consequentemente, a inexistência de transmissão do bem corporizada na declaração de nulidade conduz à não verificação do facto tributário considerado pela AT na liquidação, que foi o de transmissão gratuita, para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral do CIS.” E, de facto, não se vislumbra qualquer erro de julgamento, tendo o Tribunal a quo valorado correta e adequadamente o quadro jurídico vigente com a devida transposição fática. Senão vejamos. Importa, desde já, evidenciar que a matéria de facto dos autos se encontra devidamente estabilizada, não tendo a Recorrente procedido à sua impugnação, apenas evidenciando -sem concretizar como legalmente se impõe- quais os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, e que determinavam qualquer aditamento, alteração ou mesmo supressão ao probatório. Com efeito, atentando nas suas alegações de recurso, o que se infere é que a Recorrente aquilata, tão-só, que a realidade factual não permite extrapolar a consequência jurídica da inexistência do facto tributário. Prosseguindo. Comecemos por convocar o quadro normativo que releva para o caso dos autos. De harmonia com o disposto no artigo 1.º, nº1, do CIS, com a versão à data da prática dos factos tributários, sob a epígrafe de “incidência objetiva”: “1 - O imposto do selo incide sobre todos os atos, contratos, documentos, títulos, papéis e outros factos previstos na Tabela Geral, incluindo as transmissões gratuitas de bens.” Consignando, por seu turno, o mesmo normativo, no seu nº3, alíneas a) e g), que: “Para efeitos da verba 1.2 da Tabela Geral, são consideradas transmissões gratuitas, designadamente, as que tenham por objecto: a) Direito de propriedade ou figuras parcelares desse direito sobre bens imóveis, incluindo a aquisição por usucapião; (…) g) Aquisição derivada de invalidade, distrate, renúncia ou desistência, resolução, ou revogação da doação entre vivos com ou sem reserva de usufruto, salvo nos casos previstos nos artigos 970.º e 1765.º do Código Civil, relativamente aos bens e direitos enunciados nas alíneas antecedentes. Preceituando, outrossim, o artigo 2.º, sob a epígrafe de “incidência subjetiva”, que: “(…) 2 - Nas transmissões gratuitas, são sujeitos passivos do imposto as pessoas singulares para quem se transmitam os bens” Mais importa chamar à colação, o artigo 5.º do citado diploma que a propósito do nascimento da obrigação tributária, preceitua, no que para os autos releva, que: “1 - A obrigação tributária considera-se constituída: a) Nos atos e contratos, no momento da assinatura pelos outorgantes (…)” Importando, in fine, ter presente a verba 1.2. da Tabela Geral, da qual emerge que o imposto do selo recai sobre 10% do valor dos respetivos contratos de “aquisição gratuita de bens (…)”. Ora, visto o direito que releva para o caso vertente, atentemos, então, no que resulta do recorte probatório dos autos. A 21 de janeiro de 2005, a Impugnante, ora Recorrida, adquiriu mediante partilha subsequente ao divórcio, um prédio de natureza urbana sito em Casais do A…, Rua do T…, n.º …, M…, Lourinhã, descrito na matriz com o n.º 1…, sendo que esse mesmo bem imóvel, a 8 de maio de 2007, foi objeto de escritura de doação entre a Impugnante, ora Recorrida, e M…, na qualidade de Primeira e Segunda Outorgantes, respetivamente, no âmbito do qual a primeira doa à segunda o aludido bem imóvel. Nesta decorrência, foi intentada ação declarativa contra M…, na qualidade de Ré, com processo ordinário n.º 495/10.4TBLNH, junto do Tribunal Judicial da Lourinhã, no qual se peticionava a declaração da nulidade da doação e da escritura pública supra evidenciada, por simulação. Mediante reconvenção, peticionou a Ré o pagamento de uma indemnização no valor de €21.009,43, face às despesas que teve de suportar com obrigações fiscais, encargos e benefícios e apoios sociais que deixou de usufruir. Sendo que, a 10 de maio de 2011, foi prolatada sentença de homologação da transação no âmbito do visado processo, mediante a qual M…, confessa o aludido pedido de nulidade e simulação, e aceita a redução do pedido reconvencional para €20.000,00, comprometendo-se a Recorrida a pagar a visada quantia, para efeitos de ressarcimento de despesas incorridas, a qual transitou em julgado, em 15 de maio de 2011. Tendo, nessa decorrência, a 6 de fevereiro de 2012, a ora Recorrida, sido notificada, da Liquidação de Imposto do Selo, n.º 415491, datada de 27 de janeiro de 2012, ora impugnada, no valor de 11.121,36. Dimanando, in fine, que a 24 de agosto de 2011, mediante a apresentação 446, denominada decisão judicial, foi registado o seguinte facto: “declarada a nulidade do contrato celebrado pela escritura de doação outorgada entre a Autora e a Ré, lavrada em 08-05-2007”. Ora, do supra expendido, dimana perentório que, não obstante ter sido outorgada uma doação, a verdade é que a mesma foi declarada nula, com fundamento na transação homologada por sentença judicial, e por consequência legal ocorreu a restituição do prédio urbano à, ora, Recorrida, com os competentes averbamentos registrais. De relevar, neste âmbito, que há que ter presente o doutrinado no Aresto do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo nº 3462/11.7TCLRS-A.L1-7, datado de 15 de outubro de 2013, do qual dimana que: “1. A sentença homologatória de transação, é uma sentença de mérito, que faz caso julgado material relativamente à matéria do litígio, constituindo título executivo quando condenatória, nos termos do artigo 46.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil (art.º 703.º, n.º 1, al. a), na redação da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho), embora sujeita à disciplina estabelecida pelo art.º 301.º, do mesmo código (art.º 291.º, na redação da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho). O que significa, portanto, que com a transação homologada judicialmente foi declarada nula a doação, extinguindo-se, assim e de forma potestativa, toda a relação contratual (1) Vide Ac. TCAS, processo nº144/07, de 30.09.2019.. Sendo certo que, resulta provado, como visto, que o pagamento da quantia de €20.000,00 está inteiramente concatenada com o reembolso de despesas e encargos que a donatária teve de suportar, mormente, impostos dimanantes da entrada do imóvel na sua esfera jurídica, ainda que simulada. E a questão que se impõe é se a aludida declaração de nulidade do contrato está compreendida na evidenciada “aquisição derivada de invalidade”, e a resposta, conforme já deixámos antever é negativa. Com efeito, não podemos interpretar que a nulidade homologada por sentença possa ser subsumida no conceito normativo de “aquisição derivada”, porquanto a doadora não procede à aquisição do direito de propriedade, na medida em que tudo se passa como se o negócio de doação não tivesse sido realizado, tudo regressando ao statu quo ante. Como doutrina Ana Prata (2) Dicionário Jurídico, Almedina, 5ª edição, Volume I., “a aquisição derivada é, pois, a que resulta e se funda num direito anterior, que se transmite integralmente para o novo titular (aquisição translativa) ou que fica limitado no seu conteúdo pela criação de um direito novo, a favor do transmissário (aquisição constitutiva), ou ainda que é extinto, tendo por consequência a expansão do direito (máxime, de propriedade) que anteriormente limitava (aquisição restitutiva).”, o que não pode, de todo, abranger a situação jurídica em litígio. De resto, há que ter presente que “O negócio jurídico absolutamente simulado é nulo. Consequentemente, as transferências patrimoniais que decorram de negócio com aquelas características, porque jamais verdadeiramente desejadas pelas partes, não se operarão juridicamente. De igual forma, a garantia que eventualmente se tenha dado em prejuízo de credores não terá eficácia, de maneira a afetar a execução que se ajuíze numa indevida continuação do fingimento. Não é lícito aos simuladores, aliás, a confirmação do negócio simulado, porque a tal pretensão se opõe a peremptoriedade da invalidade (3) André Barbosa Guanes Simões-Tese Mestrado FDUL-Os efeitos da Simulação, outubro de 2016, p.83..” Com efeito, a declaração de nulidade do negócio jurídico tem efeito retroativo (ex tunc), devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado, conforme preceitua o artigo 289º, nº. 1, do CC. Com efeito “[c]aracterística de um negócio jurídico que, por enfermar de um vício grave, não produz ab initio os efeitos jurídicos que lhe corresponderiam. (…) daí que o negócio jurídico declarado nulo não produza quaisquer efeitos como tal, embora possa produzir efeitos a título de sanção. E daí também que a nulidade seja invocável a todo o tempo por qualquer interessado e possa ser declarada oficiosamente pelo tribunal-artigo 286.º CC. Declarada a nulidade do negócio, tudo o que tiver sido prestado (ou o valor correspondente, se a restituição em espécie não for possível) deve ser restituído (4) Ana Prata, in ob. Cit, pág.973.”. Neste âmbito e ainda a propósito da caraterização de negócio nulo, diz-nos Carlos Ferreira de Almeida (5) In Invalidade, inexistência e ineficácia, Católica Law Review, VOLUME I \ n.º 2 \ maio 2017, pp. 19 e 20., que: “Em geral. Um (dito) contrato que não valha como tal, se não é válido enquanto contrato, não pode ser qualificado como contrato. As expressões “negócio jurídico nulo” e “contrato nulo” (ainda que convenientes por simplificação e universalmente usadas) envolvem uma contradição semântica, mas não há na linguagem jurídica expressão que evite essa contradição. O contrato, como todos os atos performativos, caracteriza-se pela conformidade dos efeitos com o seu significado. Por isso, se, por inadequação dos sinais emitidos (insuficiência de forma) ou antijuridicidade do comportamento (vício na formação, ilicitude do conteúdo), não se produzirem os efeitos próprios de um contrato ou de um tipo contratual, pode haver um ato socialmente relevante e até juridicamente atendível, mas não há contrato. (…) Logo, e secundando-se o propugnado na decisão recorrida, não se pode descortinar na declaração de nulidade qualquer transmissão ex novo de direitos da donatária para a doadora, mas sim a declaração da nulidade, com todas as consequências invalidantes daí dimanantes, quer negativas, quer positivas, ou seja, ficando, o ato sem qualquer efeito, e inerente reconstituição da propriedade na esfera jurídica da Recorrida. Neste particular, e ainda que reportado a uma situação concatenada com a tributação em sede de IRS, mas aplicável com as devidas adaptações, importa chamar à colação o Aresto do STA, proferido no processo nº 536/12, em 28 de novembro de 2012, o qual a propósito da capacidade contributiva doutrina expressa e claramente que a “ [“d]estruição” de um negócio jurídico e suas consequências em matéria fiscal, escreveu António Lobo Xavier – Efeitos de um acordo anulatório em impostos periódicos – Revista de Direito e Estudos Sociais, Out/Dez 1992, Ano XXXIV, nº 4, págs. 275 e segs.: “ … as leis fiscais não exigem que a celebração de um negócio seja considerada como “caso julgado”, para efeitos tributários, admitindo antes que a posterior ocorrência de acidentes jurídico-civilísticos possa ser acompanhada das correspondentes correcções do imposto. E o princípio que justifica este razoável funcionamento do sistema não pode ser outro senão o princípio da capacidade contributiva. Na verdade, um negócio jurídico pode traduzir-se na manifestação de capacidade contributiva, que merece a incidência de um imposto ou vários impostos; mas, tornado ineficaz esse negócio, o sistema é forçado a admitir que, também em termos fiscais, se regresse ao statu quo ante: destruída a manifestação da capacidade contributiva, fica desprovido de causa o imposto que lhe correspondia”. (No mesmo sentido, vide Aresto do STA, prolatado no âmbito do processo nº079/11, de 07 de julho de 2020, e bem assim deste TCAS, proferido no processo nº 144/07, de 30 de setembro de 2019). É certo que nas aludidas situações nos encontrávamos perante a tributação enquanto mais valias, no entanto a premissa base concatenada com a nulidade dos contratos, seus efeitos jurídico-tributários, e bem assim princípios subjacentes são inteiramente transponíveis. E isto porque, se só deve ocorrer tributação quando se manifesta a capacidade contributiva pela ocorrência de um facto da vida real que importa para o interessado um acréscimo patrimonial, então no mesmo sentido se terá de interpretar um normativo que apela a uma aquisição derivada, na qual não poderá ser enquadrada uma situação de nulidade, por simulação. O que significa, e transpondo para o caso vertente, que a comprovada declaração de nulidade da doação, restituindo as partes ao status quo ante, repercute-se na vertente tributária, eliminando a doação realizada com efeitos retroativos e eficácia ex tunc, não sendo, por conseguinte, suscetível de equiparação a uma aquisição derivada, donde passível de tributação em sede de IS, e concreta subsunção normativa no citado normativo. Destarte, a sentença que assim o decidiu deve ser confirmada, mantendo-se, por isso, na ordem jurídica. *** IV. DECISÃO Face ao exposto, ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, OS JUÍZES DA SECÇÃO DE CONTENCIOSO TRIBUTÁRIO deste Tribunal Central Administrativo Sul em: -NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO E CONFIRMAR A DECISÃO RECORRIDA, a qual, em consequência, se mantém na ordem jurídica. Custas pela Recorrente. Registe. Notifique. Lisboa, 01 de junho de 2023 (Patrícia Manuel Pires) (Jorge Cortês) (Luísa Soares) |