Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:438/19.0BELRA
Secção:CT
Data do Acordão:05/04/2023
Relator:VITAL LOPES
Descritores:EMBARGOS DE TERCEIRO
CONTRATO PROMESSA
POSSE DO PROMITENTE COMPRADOR
ÓNUS DE PROVA
Sumário:I. Os requisitos da dedução dos embargos de terceiro, de acordo com a lei processual tributária, são os seguintes (cf. artº.237, do CPPT):
a- A tempestividade da petição de embargos;
b- A qualidade de terceiro face ao processo de execução no âmbito do qual se verificou a diligência judicial ofensiva da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da mesma diligência;
c- A ofensa da posse ou de qualquer outro direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial, que se traduza num acto de agressão patrimonial.
II. A posse pode ser definida como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (cf. art.º 1251.º, do Cód. Civil), tendo como elementos constitutivos uma componente objectiva ou material (“corpus”) e outra subjectiva ou intencional (“animus”), de acordo com a melhor doutrina, assim se consagrando a concepção subjectivista do referido instituto (cf. artº.1253, al. a), do Cód. Civil). Só esta, a posse efectiva e causal, que se traduz pelos mencionados elementos objectivo e subjectivo, pode fundamentar, regra geral, os embargos de terceiro.
III. Se a base factual que resultou provada não é de modo a poder concluir-se que a embargante tenha passado a exercer sobre o imóvel, com anterioridade às penhoras, actos materiais caracterizadores do “corpus” e actuando com “animus possidendi”, os embargos alicerçados na ofensa da posse estão votados ao insucesso
Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:ACORDAM EM CONFERÊNCIA OS JUIZES DESEMBARGADORES DO TRIBUNAL CENTRAL ADMINISTRATIVO SUL

I. RELATÓRIO

Por apenso à execução fiscal n.º 1929201101041088 e outros que corre no serviço de finanças de Abrantes contra A…, veio B… deduzir embargos de terceiro, alegando que a penhora do prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo 3… da freguesia de Bajouca, concelho de Leiria, ofende a sua posse.

Recebidos os embargos e seguidos os ulteriores termos da lide, foi proferida sentença pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria que julgou procedentes os embargos e ordenou o levantamento das penhoras sobre o identificado imóvel.

Inconformado, o Exmo. Representante da Fazenda Pública interpôs o presente recurso, cujas alegações, encerra com as seguintes e doutas conclusões:
«
A) Segundo a informação prestada pelo OEF (S.F de Abrantes), a referência ao artigo matricial não seria possível naquela data, uma vez que tal averbamento apenas se materializou no ano de 2013.

B) Logo é no mínimo estranho que a embargante traga aos autos um contrato de promessa compra e venda datado de 05 de janeiro de 2009 referenciando o dito artigo 3… da freguesia da Bajouca, concelho de Leiria - ou seja, quatro anos antes da atribuição do numero do artigo matricial (art.º 3…) a embargante outorgou um contrato promessa compra e venda identificando expressamente um numero de artigo matricial inexistente (art.º 3…) nem sequer tinha sido atribuído provisoriamente (P-3…) uma vez que a respetiva declaração de inscrição na matriz só foi submetida em 03/10/2012.

C) Já inferindo a prática de atos demonstrativos de que pretendeu assumir o título de herdeiro com intenção de adquirir a sua herança, nos casos em que este efetuou escritura de habilitação de herdeiros e deduziu incidente de habilitação de herdeiros, cf. Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora de 21/6/2007, no processo 1049/07-2.

D) Em segundo lugar e tal como prescreve o artigo 875.º do Código Civil “Sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura publica ou por documento particular autenticado”.

E) O contrato promessa é a convenção pela qual alguém se obriga a celebrar um certo contrato” (cfr. artigo 410.º do Código Civil - “CC”). Quanto, através desse “certo contrato”, que as partes se obrigaram a celebrar se transmite a propriedade de um bem imóvel mediante um preço, estamos perante a figura do Contrato Promessa de Compra e Venda de um Bem Imóvel (“CPCV”).

F) Devemos ter presente que, em qualquer circunstância, o CPCV não tem por efeito a transmissão da propriedade do bem a que respeita. Este efeito apenas se obtém com a celebração do contrato prometido, ou seja, da escritura de compra e venda.

G) Não podemos deixar de dissentir da decisão proferida, pelas razões que sustentam o presente recurso, sob o prisma do que consideramos ter sido erro de julgamento, assim, contraditando a sentença proferida em 1ª instância.

Nestes termos e nos demais de facto e de Direito, que certamente o mui douto entendimento do Insigne Colectivo não deixará de convocar, defende a Representação da Fazenda Publica o provimento do presente recurso jurisdicional, determinando a revogação da decisão provinda do Tribunal a quo, substituindo-a por decisão que determine o decaimento do pedido anulatório formulado, fazendo-se assim,
Justiça!».

A Recorrida apresentou contra-alegações, que culmina com as seguintes e doutas conclusões:
«
a) Não junta a Fazenda Publica qualquer matéria factual em termos de declarações produzidas em julgamento, nem para estas remete, ou tão pouco menciona qualquer interpretação da lei, por norma mencionada na sentença, processual ou fiscal que tenha sido mencionada e daí indevidamente aplicada;

b) não foi invocada qualquer causa de nulidade da sentença, e pedido para que a nulidade da sentença fosse devidamente conhecida

c) assiste uma dúvida insuprível se o indicado nas Alegações, resulta de algum erro material derivado do artigo 614º do CPC, por divergência e erro material, ou de facto quando o Juiz disse o que pretendia, mas julgou ou decidiu mal. (vide, Ac. do Tribunal de Instrução Central de Coimbra - SEC. Comércio – J3 de 10/03/2015, Apelação n.º 490/11.6TBOHP-D.C2);

d) Pelo que, na sequência, indicar a existência de erro de julgamento, sem de facto identificar em concreto a matéria de facto existente nos autos, que levou a esse erro, ou se a apreciação do Juiz, identificada essa matéria, levou a que tivesse a melhor perceção, ou ainda identificada a matéria de direito, se o Juiz a apreciou e interpretou devidamente, é matéria que cabe necessariamente expor em sede de conclusões sob pena de indeferimento do recurso;

e) as alegações que foram apresentadas, não são devidamente expostas, resultando numa absoluta falta de fundamentação, pelo que não merecem, por parte deste Tribunal qualquer apreciação, nos termos inclusive previstos no artigo 641º do CPC, bem como 640º do mesmo Diploma;

f) O D. Tribunal pronunciou-se devidamente sobre as questões mencionadas em termos de matéria de facto e de direito;

A sentença encontra-se devidamente fundamentada sendo que, não há qualquer erro de julgamento, por interpretação dos factos, ou do direito, o que, de todo o modo nunca se poderia identificar com o vicio da contradição entre os fundamentos de factos e/ou direito e a decisão dos quais assenta,
pelo que, não há que efetuar qualquer alteração à D. Sentença, mormente revogação, dado que se encontra de harmonia com a prova produzida, não merecendo qualquer reparação, devendo manter-se.
JUSTIÇA!».

O Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu mui douto parecer concluindo que o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se o decidido na sua totalidade.

Colhidos os vistos legais e nada mais obstando, vêm os autos à conferência para decisão.

II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das respectivas alegações (cfr. artigo 635.º, n.º 4 e artigo 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2003, de 26 de Junho), sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, analisadas as conclusões das alegações do recurso, a questão que importa resolver reconduz-se a indagar se a sentença incorreu em erro de julgamento ao concluir que a embargante fez prova da posse ou qualquer outro direito incompatível com a penhora efectuada na execução.
***

III. FUNDAMENTAÇÃO
A) OS FACTOS
Na sentença recorrida, deixou-se factualmente consignado:
«

Com interesse para a decisão dos presentes embargos, fixo a seguinte factualidade:

1. Em 09.07.2002 foi registada a aquisição, por partilha da herança, do prédio urbano sito na R. A…, M…, na freguesia de Bajouca do concelho de Leiria, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Leiria sob o n.º 2…, e com o artigo matricial urbano 3…, por parte do Executado (cf. certidão de fls. 10 e seguintes do processo físico);

2. Em 28.12.2007 foi celebrada escritura pública de transferência de mútuo com hipoteca, no Cartório Notarial de S…, em Abrantes, entre a Caixa …, S. A., como primeira outorgante, e a Embargante e o Executado, como segundos outorgantes, pela qual a primeira concedeu aos segundos um empréstimo destinado a liquidar à Caixa E… o financiamento por esta concedido aos segundos e transferido para a primeira, no valor de €109.837, 96, tendo ainda sido constituída como garantia do capital emprestado, respetivos juros e despesas extrajudiciais hipoteca sobre o prédio melhor descrito em 1. (cf. escritura de fls. 7 e seguintes do processo físico);

3. Em 04.02.2008 foi registada a constituição de hipoteca voluntária sobre o prédio melhor descrito em 1., a favor da Caixa …, S. A., para garantia de empréstimo com o valor de capital €109.837,96, também concedido à Embargante (cf. certidão de fls. 10 e seguintes do processo físico);

4. Em 10.07.2008 foi registada a constituição de hipoteca voluntária sobre o prédio melhor descrito em 1., a favor da Caixa …, S. A., para garantia de empréstimo com o valor de capital de €12.000,00, também concedido à Embargante (cf. certidão de fls. 10 e seguintes do processo físico);

5. Em 05.01.2009 o Executado e a Embargante assinaram contrato promessa de compra e venda pelo qual o primeiro prometeu vender e a segunda prometeu comprar o prédio melhor descrito em 1., pelo preço de €56.000,00, tendo nessa data sido entregue o valor de €26.450,00 como “acerto de contas de valores emprestados ao longo do tempo e pagamento de prestações do crédito habitação”, e sendo igualmente estipulado que o remanescente, no valor de €29.550,00, seria pago no ato da escritura (cf. contrato de fls. 9 do processo físico);

6. Em 28.12.2011 foi registada a constituição de hipoteca voluntária sobre o prédio melhor descrito em 1., a favor da Caixa …, S. A., para garantia de empréstimo com o valor de capital de €31.000,00, (cf. certidão de fls. 10 e seguintes do processo físico);

7. Em 03.10.2012 o Executado apresentou declaração modelo 1 de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) referente ao prédio melhor descrito em 1., com o motivo “prédio omisso” (cf. declaração de fls. 18 e 19 do processo físico);

8. Em 19.12.2013 foi registada sobre o prédio melhor descrito em 1. penhora a favor da Fazenda Nacional à ordem do PEF n.º 1929201101008722 e apensos, tendo como sujeito passivo o Executado e como quantia exequenda o valor de €5.880,23 (cf. certidão de fls. 16 e seguintes do processo físico);

9. Em 10.10.2014 foi registada sobre o prédio melhor descrito em 1. penhora a favor da Fazenda Nacional à ordem do PEF n.º 1929201201041770 e apensos, tendo como sujeito passivo o Executado e como quantia exequenda o valor de €3.940,27 (cf. certidão de fls. 16 e seguintes do processo físico).

Com interesse para a decisão deste incidente de embargos, logrou ainda provar-se:

10. A Embargante e o Executado conhecem-se há cerca de vinte anos e vêm desde data concretamente não determinada mantendo uma relação de namoro;

11. A Embargante e o Executado têm um filho em comum, com dez anos;

12. Em data concretamente não determinada mas situada no período compreendido entre os anos de 2005 e 2007 a Embargante e o Executado decidiram construir uma casa num terreno herdado pelo Executado, na qual à data perspetivavam viver juntos;

13. A casa referida em 12. foi construída e corresponde ao prédio urbano que melhor se encontra identificado em 1.;

14. Para a construção da casa referida em 12. a Embargante e o Executado constituíram crédito bancário, tendo num primeiro momento os pais da Embargante sido fiadores desse empréstimo;

15. Sempre foram a Embargante e os seus pais a pagar a maioria das despesas de construção e do pagamento do empréstimo da casa referida em 12.;

16. Em data concretamente não determinada mas situada entre o final do ano de 2008 e o início do ano de 2009 a Embargante e o Executado acordaram, verbalmente, que este passaria a casa referida em 12. para o nome daquela;

17. O contrato promessa de compra e venda referido em 5. apenas foi formalmente assinado no ano de 2014 e formaliza um acordo verbal, melhor descrito em 16., que data do ano de 2009;

18. É a Embargante que tem de facto a posse material do imóvel, realizando todos os atos de conservação e reparação do mesmo;

19. O Executado utiliza a casa referida em 12. apenas por estar para tal autorizado pela Embargante.
*
De acordo com o disposto no n.º 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil (CPC), que aqui tem aplicação por força da al. e) do artigo 2.º do CPPT, na fundamentação da sentença “o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos
instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.

No que concerne aos factos considerados provados, acima elencados sob os números 1. a 9., foi determinante a análise da prova documental junta aos autos pela Embargante, mas também pelo órgão da execução fiscal, que remeteu ao Tribunal o processo executivo, sem que qualquer das partes tenha impugnado os documentos juntos ou por qualquer outra forma apresentado oposição à sua junção, tudo conforme se encontra devidamente especificado em frente a cada um dos pontos do probatório – cf. artigos 374.º e 376.º do Código Civil.

No que concretamente diz respeito aos factos fixados sob os números 10. a 19. da fundamentação de facto, especialmente relevante foram as declarações e o depoimento das partes nesta causa, como sejam a Embargante e o Executado, mas também o depoimento prestado pelas testemunhas inquiridas em sede de audiência de inquirição.

De facto, no que às declarações das partes diz respeito, e apesar de ser conhecido o interesse direto que os declarantes têm na presente ação, afigura-se-nos terem as mesmas sido prestadas de forma clara e transparente, e em sentido coincidente, não só entre si mas também quando comparadas com as declarações prestadas pelas testemunhas inquiridas na mesma diligência.

Temos, ainda, que o Executado confessou que em quase nada contribuiu para o pagamento das despesas de construção e de crédito referentes ao imóvel penhorado nos autos, confessando ainda que prometeu de facto vender à Embargante o imóvel, através do contrato promessa que também se fez refletir no probatório – cf. artigos 352.º e seguintes do Código Civil.

No que às testemunhas inquiridas diz respeito, declarou aos costumes J... conhecer o Executado e a Embargante por este ser seu primo, tendo demonstrado conhecimento direto e pessoal dos factos que aqui importava comprovar, demonstrando designadamente que, na sua convicção, é a Embargante quem exerce todos os poderes efetivos sobre o imóvel penhorado nos autos.

O… afirmou, aos costumes, conhecer a Embargante o Executado por ter estudado com o Executado, demonstrando igualmente um conhecimento pessoal e direto dos factos que aqui importava comprovar, designadamente que o Executado apenas utiliza o imóvel mediante a autorização da Embargante para o efeito.

As testemunhas inquiridas depuseram com clareza, precisão, e isenção, inexistindo motivos capazes de colocar em causa a veracidade dos depoimentos prestados, tendo-se assim revelado essencial a inquirição das referidas testemunhas para a formação da convicção do Tribunal, nos termos acima enunciados.
*
Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa.».

Sendo certo que o Recorrente não cumpriu o ónus de impugnação da matéria de facto enunciado art.º 640.º, nº 1, do CPC, tal não impede que o tribunal de apelação, mesmo oficiosamente, nos termos do disposto no art.º 662.º, n.º 1, do mesmo Código, altere a decisão de facto quando a prova produzida imponha decisão diversa da que foi proferida.

Assim, o ponto 5. da matéria assente passa a ter a seguinte redacção, em vista do facto assente em 17. do probatório:

5. O Executado e a Embargante celebraram um contrato promessa de compra e venda, no qual apuseram a data de 05.01.2009, pelo qual o primeiro prometeu vender e a segunda prometeu comprar o prédio melhor descrito em 1., pelo preço de €56.000,00, tendo nessa data sido entregue o valor de €26.450,00 como “acerto de contas de valores emprestados ao longo do tempo e pagamento de prestações do crédito habitação”, e sendo igualmente estipulado que o remanescente, no valor de €29.550,00, seria pago no ato da escritura (cf. contrato de fls. 9 do processo físico);

No ponto 18., considera-se não escrito o segmento “É a Embargante que tem de facto a posse material do imóvel…”, na medida em que a materialidade é um elemento do instituto da posse a extrair de factos essenciais ou instrumentais.

Este ponto 18. passa a ter a seguinte redacção: «É a Embargante que realiza todos os actos de conservação e reparação do imóvel penhorado».

B. DE DIREITO

Estabilizada a matéria de facto, prossigamos na apreciação das demais questões do recurso que, como dissemos já, se centra em saber se a sentença incorreu em erro de julgamento ao concluir que a diligência executiva da penhora ofende a posse da embargante sobre o imóvel penhorado.

Os embargos de terceiro caracterizam-se, no essencial, por a pretensão do embargante se inserir num processo pendente entre outras partes e visar a efectivação de um direito incompatível com a subsistência dos efeitos de algum acto judicial de afectação ilegal de um direito patrimonial do embargante.

No que diz respeito à determinação e titularidade de direito incompatível com o acto judicialmente ordenado, há-de aferir-se tendo em conta a função e a finalidade concreta, quer do direito alegadamente ofendido, quer da diligência ou acto judicial que alegadamente o ofende.

Enquanto meio de defesa da posse de terceiro ofendida pela penhora.

Os embargos de terceiro constituem um meio de defesa da posse ofendida, por quem é alheio à acção executiva; essa posse não pode ser uma posse precária ou mera detenção, devendo consubstanciar-se no exercício de poderes de facto sobre o bem penhorado correspondentes à sua posse real e efectiva. Segundo o artigo 1285º do Código Civil, “o possuidor cuja posse for ofendida por penhora ou diligência ordenada judicialmente pode defender a sua posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei de processo”.

A embargante, que não é parte na execução fiscal, veio reagir contra a penhora do imóvel, lançando mão do procedimento de embargos de terceiro, por virtude daquela diligência ofender a sua posse sobre o mesmo, que, alegava na douta P.I. passou a exercer na sequência do contrato-promessa de compra e venda assinado em 05/01/2009.

Sucede que, na informação executiva de 26/03/2019, a fls. 14/15, que acompanhou a subida dos autos ao tribunal de 1.ª instância, era referido, nomeadamente, o seguinte:

«…dado que em 02-07-2013 foi inscrito na matriz predial urbana o prédio destinado a habitação sob o art.º 3… da freguesia da Bajouca proveniente do mencionado art.º 6… da mesma freguesia, este foi eliminado em 03-07-2013.

Daí, ser no mínimo estranho que a embargante traga aos autos um contrato promessa de compra e venda datado de 05 de Janeiro de 2009 referenciando o dito artigo 3… da freguesia da Bajouca, concelho de Leiria – ou seja, quatro anos antes da atribuição do número matricial (art.º 3...), a embargante outorgou um contrato promessa de compra e venda identificando expressamente um número de artigo matricial inexistente (art.º 3…), nem sequer tinha sido atribuído provisoriamente (P-3…), uma vez que a respectiva declaração de inscrição na matriz só foi submetida em 03/10/2012».

Esta patente contradição factual, após instrução dos autos com produção de prova testemunhal, veio a ser esclarecida nos termos que se apreendem dos pontos 5., 16. e 17. da matéria assente.

Afinal, o contrato promessa, embora datado de 05/01/2009, apenas fora assinado no ano de 2014 (pelo menos já depois da primeira penhora, vd. pontos 8. e 9. da matéria assente), visando formalizar um designado acordo verbal anterior, este sim reportado ao ano de 2009, mediante o qual a embargante e o executado, que entre si mantinham uma relação de namoro (ponto 10. da matéria assente), acordaram que o último passaria o imóvel para o nome da primeira.

De acordo com o disposto no art.º 237.º, n.º 1 do CPPT e 342.º, n.º 1 do CPC, cabe ao embargante a prova dos fundamentos do seu direito, i.e., sobre ele recai o ónus probatório de demonstrar que a penhora, a apreensão ou entrega judicialmente ordenada e a incidir sobre determinados bens, ofende direitos que ele tem sobre esses mesmos bens, merecedores de tutela.

A embargante, é bom realçar, contrariamente ao inicialmente alegado na P.I., comprovadamente, apenas alicerça o direito de reagir contra a penhora num acordo verbal de 2009 mediante o qual o executado passaria o imóvel para o nome da embargante.

A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, conforme estatui o artigo 1251º do Código Civil. Do que se extrai que é necessária uma posse real e efectiva, com o seu elemento material ou corpus e o elemento intencional ou animus sibi habendi.

Ora, no caso dos autos, inexiste qualquer factualidade que permita concluir pelo elemento material e intencional da posse, não podendo tal resultar, com um mínimo de segurança jurídica exigida em direito probatório, da mera circunstância de terem sido os pais da embargante a constituírem-se como fiadores do crédito bancário a que a embargante e o executado recorreram para financiar a construção da moradia (vd. ponto 14 da matéria assente), de ser a embargante a suportar benfeitorias no imóvel (ponto 18.), e de um designado acordo verbal de 2009 em que o executado assentiu que “passaria” a casa para o nome da embargante, expressão que, numa leitura possível, significa que tinha intenção de passar, o que, no contexto da prova produzida e na ausência de factualidade que permita explicar credivelmente a inércia ou inacção do gap temporal de cinco anos, nos leva a inferir que só viria a concretizar a sua intenção com o contrato promessa celebrado em 2014, já após as penhoras.

Assim e, rematando, a base factual que resultou provada não é de modo a poder concluir-se que a embargante tenha passado a exercer sobre o imóvel, com anterioridade às penhoras, actos materiais caracterizadores do “corpus” e actuando com “animus possidendi”.

A sentença recorrida, ao decidir diferentemente, incorreu em erro de julgamento, não podendo manter-se na ordem jurídica.

O recurso merece provimento.

IV. DECISÃO

Por todo o exposto, acordam em conferência os juízes de turno deste Tribunal Central Administrativo Sul em conceder provimento ao recurso, revogar a sentença recorrida e julgar os embargos improcedentes.

Condena-se a Recorrida em custas.

Lisboa, 04 de Maio de 2023


_______________________________
Vital Lopes



________________________________
Luísa Soares



________________________________
Tânia Meireles da Cunha