Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:03461/09
Secção:CT - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:04/13/2010
Relator:EUGÉNIO SEQUEIRA
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IRS
PRESUNÇÃO
ADIANTAMENTO POR CONTA DE LUCROS
Sumário:1. Constituem rendimentos da categoria E do IRS os rendimentos lançados em quaisquer contas correntes dos sócios, escriturados nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, que, em princípio, se presumem feitos a título de lucros ou de adiantamento dos lucros;
2. Para tal presunção de incidência do imposto se verificar, é necessário que se mostre provada a base da presunção judicial, sob pena de a mesma não poder operar e a causa ter de ser decidida contra parte onerada com esse ónus da prova;
3. Não tendo a AT provado a base dessa presunção (os lançamentos em conta corrente do sócio escrituradas nessa sociedade) não pode a mesma fundar a liquidação na presunção que dela resultava, que assim é ilegal, por inexistência de facto tributário.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:A. O Relatório.
1. A..., identificado nos autos, dizendo-se inconformado com a sentença proferida pelo M. Juiz do Tribunal Tributário de Lisboa - 4.ª Unidade Orgânica - que julgou improcedente a impugnação judicial deduzida, veio da mesma recorrer para este Tribunal formulando para tanto nas suas alegações as seguintes conclusões e que na íntegra se reproduzem:


1. Os seguintes factos não foram dados por provados, mas resultam claramente dos elementos de prova juntos aos autos:
a) A única conta corrente da contabilidade da B...em nome do Impugnante, ora Recorrente, analisada no relatório de inspecção tributária é a conta 268 (devedores e credores diversos).
b) Em relação ao sócio em nome de quem foram contabilizadas as transferências dos 997.595,80 € - C... foram analisadas as contas 25 e 26 (anexo 2 ao relatório de inspecção junto aos autos).
2. A Sentença recorrida enferma de erro de julgamento e de apreciação ao considerar que o acto impugnado se encontra devidamente fundamentado.
3. A fundamentação da liquidação adicional impugnada é obscura e contraditória.
4. Os factos que a Administração Fiscal invoca ter apurado não se subsumem nas estatuições legais fundamentadoras da correcção fiscal - arts. 6.º e 7.º n.º 4 do CIRS.
5. A Administração Fiscal assume no relatório de inspecção e a Sentença recorrida dá por provado que não há qualquer registo de movimentos na conta corrente do Recorrente na sociedade B....
6. Contudo, advogam a tributação do Recorrente, com a fundamentação legal de que "Os lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros" (art. 7.º n.º 4 do CIRS - redacção à data dos factos - 1998).
7. Se não houve lançamento na conta do Recorrente não pode ser aplicada a referida disposição (presunção) legal.
8. Trata-se de vício de fundamentação que origina a nulidade do acto impugnado nos termos dos arts. 77.º da LGT e arts. 125.º e 133.º do CPT em decorrência do art. 268.º n.º 3 da CRP.
9. O facto de ter ocorrido uma transferência bancária de 997.595,80 € para a conta do Recorrente de nada releva pois tal facto não é abrangido pela estatuição da dispo­sição legal fundamentadora da liquidação - art. 7.º n.º 4 do CIRS.
10. Para além disso a Administração Fiscal não prova ou sequer demonstra o motivo pelo qual ocorreu tal transferência, em violação do princípio do ónus da prova.
11. A transferência bancária encontra-se suportada por um movimento contabilístico na conta de C..., o que demonstra que a relação causal por detrás da transferência não pode ser encontrada no relacionamento B...- ­RECORRENTE, mas na relação RECORRENTE - C....
12. O motivo da entrega de 997.595,80 € de C... para o Recorrente não foi analisado ou sequer considerado pelo Fisco, em denegação das funções de inspecção, aí residindo o motivo da transferência.
13. Donde a Sentença recorrida deve ser anulada e o acto de liquidação impugnado totalmente anulado, por erro na aplicação dos factos ao direito.
14. Por outro lado, existe erro na aplicação dos factos ao direito, quer da liquidação impugnada (por via da respectiva fundamentação), quer da Sentença recorrida.
15. Foi provado nos autos que não ocorreram lançamentos dos 997.595,80 € em con­tas do Recorrente na sociedade, pelo que, a liquidação impugnada não poderia ser fundamentada no art. 7.º n.º 4 do CIRS, pois os factos não se subsumem na sua previsão, melhor dizendo presunção.
16. O Fisco afirma que o lançamento é precisamente efectuado na conta de outro sócio.
17. Para além disso, a liquidação impugnada é ainda ilegal por assentar em factos fal­sos, invocados pelo Fisco sem apresentação dos respectivos meios de prova, em clara violação do princípio do ónus da prova, tendo a Sentença recorrida andado mal ao não considerar procedente a impugnação.
18. Do relatório de inspecção - sancionado superiormente - não consta a análise inte­gral das contas correntes do Recorrente na sociedade B..., designadamente não indica os valores registados na conta 25 (sócios), porque não os viu.
19. Logo o Fisco não prova que a entrega de 997.595,80 € ao Recorrente não resulte de mútuo, prestação de trabalho ou exercício de cargo social.
20. Donde, não poderia ter sido aplicado o disposto no art. 7.º n.º 4 do CIRS, pois não demonstra que se encontrem preenchidos os requisitos legais para a sua aplicação.
21. Assim andou mal a Sentença recorrida ao não anular a liquidação adicional impugnada, o que deve conduzir à anulação da Sentença bem como do acto impugnado, por violação do disposto nos arts. 6.º e 7.º n.º 1 do CIRS, arts. 2.º al. d) e 78.º do CPT, nos arts. 268.º n.º 3 da CRP, art. 125.º n.º 1 e 2 e 133.º n.º 1 e 2 designadamente al. d) do CPA, art. 342.º n.º 1 do CC, e arts. 74.º, 75.º e 77.º n.º 1 e 2 da LGT.

TERMOS EM QUE DEVERÁ DADO PROVI­MENTO AO PRESENTE RECURSO, ANU­LANDO-SE INTEGRALMENTE A LIQUIDA­ÇÃO IMPUGNADA, COM TODAS AS CON­SEQUÊNCIAS LEGAIS.


Foi admitido o recurso para subir imediatamente, nos próprios autos e no efeito meramente devolutivo.


A Exma Representante do Ministério Público (RMP), junto deste Tribunal, no seu parecer, pronuncia-se por ser concedido provimento ao recurso, por não se encontrar demonstrada a existência do facto tributário, já que não se encontra escriturada aquela quantia em nome do ora recorrente, mas sim em nome de um outro sócio, não podendo funcionar a presunção contra si, e também não foram efectuadas diligências para saber porque foi efectuado em seu nome, pelo referido C..., o referido depósito, que em todo o caso já não se subsume naquela presunção.


Foram colhidos os vistos dos Exmos Adjuntos.



B. A fundamentação.
2. A questão decidenda. A única questão a decidir consiste em saber se a AT logrou provar a base da presunção donde se presume a incidência do imposto, ao que se responde negativamente, não sendo de conhecer de quaisquer outras questões, por prejudicadas.


3. A matéria de facto.
Em sede de probatório o M. Juiz do Tribunal “a quo” fixou a seguinte factualidade, a qual igualmente na íntegra se reproduz:
l°- No cumprimento da ordem de serviço n° 22087 ­C.PAFT - 31116, foi efectuada uma análise interna ao exercício de 1998 do ora impugnante, em resultado de uma acção de inspecção externa à empresa B...- Sociedade de Construções, Lda., da qual o ora impugnante é sócio – informação de fls. 49 do PAT apenso.
2° - No decurso da fiscalização efectuada à empresa B...-Sociedade de Construções Lda., verificou-se que em 1998 foram efectuadas transferências a favor de Luís Lino Pires, no valor total de € 997.595,80, transferências essas efectuadas da conta da empresa, conta no BES - Nova Oeiras n° 020/21652000.7 - informação de fls. 12 e 50 do PAT apenso.
3°- As referidas transferências não estão contabilizadas na conta corrente do sócio A... e foram relevadas na conta corrente de outro sócio ­informação de fls. 11 e 50 do PAT apenso.
4°- Não existe qualquer registo contabilístico que demonstre que a sociedade devesse aquela importância ao sócio A... – informação de fls. 50 do PAT apenso.
5°- Consta do relatório da inspecção a seguinte conclusão:
"Atentos os/actos descritos, conclui-se que esses valores foram transferidos da sociedade para a conta pessoal do sócio.
Assim, conforme previsto no n° 4 do art° 7 do Código do IRS, estas transferências assumem a natureza de adiantamentos por conta de lucros, enquadráveis nos rendimentos da categoria E - artigo do mesmo diploma.
Estes rendimentos ficam sujeitos a tributação desde o momento em que são colocados à disposição do respectivo beneficiário, por força do disposto no artº 8 da supra citada disposição legal.
Consequentemente, e conforme dispõe n° 1 do artigo 94° do referido CIRS, a empresa B...- Sociedade de Construções, Lda., deveria ter procedido à retenção na fonte, à taxa de 15%, no momento da colocação à disposição do sócio das referidas quantias.
Conforme o disposto no n° 2 do artº 96° do CIRS: "Quando a retenção não tiver sido efectuada, total ou parcialmente, cabe ao titular dos rendimentos a responsabilidade originária pelo seu pagamento, ficando as entidades obrigadas à retenção subsidiariamente responsáveis".
Face ao exposto, ao rendimento bruto declarado no exercício de 1998 será acrescido o valor relativo à distribuição antecipada de lucros, no montante de € 997.595,80" - relatório junto, conforme fls. 12 do PAT apenso.
6° - A A.F. procedeu à liquidação adicional n° 5323988805, referente ao ano de 1998, no montante de € 481.383,27, sendo € 389.557,46 de imposto e € 91.825,81 de juros compensatórios- informação de fls. 49 do PAT apenso.
7° - A delegação de competências na Directora de Finanças Adjunta Maria Aurora S. M. Azevedo Rodrigues foi feita por despacho de 26/03/2002, publicado em 24/05/2002 através do aviso n° 11892/2002 no D.R., II série, n° 120, de 2002 - Diário da República citado.
8°- A subdelegação de competências no chefe de Divisão Artur Pires foi feita por despacho em 26/03/2002, publicado em 24/05/2002, através do aviso n° 11893/2002, no D.R., II série, n° 120, de 2002 - Diário da República citado.

A convicção do Tribunal baseou-se na apreciação crítica do conjunto da prova produzida, nomeadamente os documentos referidos juntos aos autos.

Não se provaram outros factos, nomeadamente que o impugnante fosse credor de qualquer importância da empresa, por nenhuma prova nesse sentido ter sido produzida, tendo sido aliás produzida prova de que na contabilidade da empresa nada constava nesse sentido.


4. Para julgar improcedente a impugnação judicial considerou o M. Juiz do Tribunal “a quo”, em síntese, que o acto de liquidação se encontra devidamente fundamentado sob o ponto de vista formal, que existe o facto tributário e que nenhum vício existe nas delegações e subdelegações de competências, desta forma tendo mantido erecto o acto tributável.

Para o recorrente, de acordo com a matéria das conclusões das alegações do recurso e que delimitam o seu objecto, apenas contra parte desta fundamentação se vem insurgir, continuando a pugnar pela não fundamentação do acto de liquidação, pela inexistência de acto tributário, por nenhum lançamento existir em seu nome na sociedade em causa donde permita extrair a presunção da sua atribuição por conta de adiantamentos por conta de lucros, para além de vir invocar errado julgamento da matéria de facto quanto à factualidade indicada na conclusão 1., alíneas a) e b), que entende encontrarem-se provados pelos documentos juntos.

Vejamos então.
A presente liquidação de IRS ao impugnante e ora recorrente, teve lugar por ter sido apurado em sede de exame à escrita da B...– Sociedade Construções, Lda, da qual o ora recorrente era sócio, que esta empresa transferira, em 1998, da sua conta pessoal para a deste sócio, a quantia de € 997.595,80, sem que da contabilidade da empresa relevasse que este lhe havia feito suprimentos, tendo contudo este movimento sido feito reflectir na conta corrente do outro sócio que não na conta do impugnante, que a empresa não procedeu à retenção do IRS devido, desta forma originando quanto à empresa o acréscimo deste montante ao rendimento bruto declarado (aqui não em causa), e quanto ao impugnante, a sua tributação em IRS, rendimentos da categoria E, ao abrigo do disposto nos art.ºs 6.º e 7.º do CIRS.

Dispunha então o CIRS, no seu art.º 6.º, os rendimentos considerados da categoria E, e a norma do seu art.º 7.º, os casos de presunções relativas a rendimentos desta categoria, dispondo no seu n.º4:
Os lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escrituradas nas sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, quando não resultem de mútuos, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, presumem-se feitos a título de lucros ou adiantamento dos lucros.

Presunções são as ilações que a lei ou julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido – art.º 349.º do Código Civil (CC).
Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz – n.º1 do art.º 350.º do CC.

No caso, entendeu a AT tributar o ora recorrente com base no facto desconhecido – que tal importância depositada pela sociedade a seu favor resultava de lucros ou adiantamentos dos lucros dessa mesma sociedade – que fez subsumir à norma do n.º4 do art.º 7.º do CIRS, mas sem curar de demonstrar e nem de provar a base da presunção, ou seja que tal importância tenha sido escriturada como lançamento na sua conta corrente como sócio e que não resultava de mútuo, da prestação de trabalho ou do exercício de cargos sociais, antes tendo mesmo apurado que este montante não se encontrava relevado na conta deste sócio (cfr. relatório a fls 11 do PAT apenso), pelo que, desta forma não se encontra preenchida a base da presunção, não podendo a mesma concluir pela atribuição dessa importância a tal título, como o resultado daquela, que como se viu, não existia, pelo que a liquidação, perante esta factualidade, não poderia ter sido efectuada ao abrigo desta norma de incidência, que assim se revela indevida por inexistência deste facto tributário.

Nos termos do disposto nos art.ºs 74.º, n.º1 da LGT e 342.º, n.º1 do CC, a base da presunção judicial deve imperativamente ser provada com os correspondentes factos dela integradores sob pena de a causa ser decidida em sentido desfavorável à parte onerada com esse ónus, ou seja à AT, e, perante tal falta, o resultado que com a presunção judicial se visava obter não se pode dar por alcançado, ou seja e no caso, que tal montante da transferência ao ora recorrente, fora feito a título de lucros ou adiantamento dos lucros, pelo que inexiste o impugnado facto tributário.

E isto sem curar de saber se a dita transferência daquele montante para o sócio em causa e ora recorrente, se poderia subsumir em outra norma de incidência ou se existiria outra factualidade relevante que de forma diversa permitisse qualificar tal transferência, questões que se encontram fora do âmbito do conhecimento do presente recurso e mesmo do objecto da impugnação judicial, já que não fazem parte do concreto acto de liquidação de IRS impugnado, tendo em conta o contencioso de mera ilegalidade, em que nos encontramos, que, em geral, tem por objecto a declaração de invalidade ou anulação dos actos recorridos, como anteriormente expressamente se dispunha na norma o art.º 6.º do ETAF aprovado pelo Dec-Lei n.º 129/84, de 27 de Abril.

O M. Juiz do tribunal “a quo”, na sua fundamentação da sentença recorrida quanto a este ponto, entende que a dita transferência deste montante para a sociedade se encontrava sujeita à competente obrigação de lançamento, que assim deu por preenchido o fundamento legal base da presunção – os lançamentos em quaisquer contas correntes dos sócios, escriturados na sociedades comerciais – desta forma aplicando por analogia a esses efectivos lançamentos (que constituem a base conhecida dessa presunção) a correspondente obrigação de os efectuar, o que em sede de incidência do imposto lhe não é permitido, tendo em conta o disposto nos art.ºs 103.º, n.º2 da CRP, 8.º, n.º1 e 11.º, n.º4 da LGT, no âmbito do princípio da legalidade tributária, para além de que essa foi fundamentação que nem sequer foi utilizada pela própria AT como suporte do acto de liquidação de IRS, que assim nunca poderia ser acolhida para ancorar a sua legalidade, desde logo por lhe ser posterior e não fazer parte dos concretos fundamentos por que teve lugar tal concreta liquidação impugnada.

Como também bem se pronuncia a Exma RMP, junto deste Tribunal, no seu parecer, não se encontra demonstrada a existência do facto tributário, por inexistirem os lançamentos em conta corrente do sócio e ora recorrente na sociedade em causa, não podendo a presunção funcionar em relação a si, mas apenas em relação ao outro sócio em nome de quem tais lançamentos foram efectuados, ainda que os montantes em causa tenham sido depositados pela sociedade em nome do recorrente, mas o que só por si não tem a virtualidade de fazer funcionar a presunção legal contra o recorrente, não sendo pois, esse o quid relevante, base desta presunção judicial como se viu, pelo que através dela não é possível alcançar o facto desconhecido e era este que constituía a base da incidência do imposto, no caso.


É assim de conceder provimento ao recurso pela procedência do citado fundamento de inexistência de facto tributário e de revogar a sentença recorrida que em contrário decidiu e de anular a liquidação em causa, e de não conhecer dos demais fundamentos do recurso, por prejudicados – cfr. art.º 660.º, n.º2 ex vi do art.º 713.º, n.º2, ambos do CPC.


C. DECISÃO.
Nestes termos, acorda-se, em conceder provimento ao recurso e em revogar a sentença recorrida, julgando-se procedente a impugnação e anulando-se a liquidação impugnada.


Sem custas, por força da isenção de que então gozava a recorrida.


Lisboa, 13/04/2010

EUGÉNIO SEQUEIRA
ROGÉRIO MARTINS
LUCAS MARTINS


1 - Cfr. sobre tal questão, em sentido mais desenvolvido, o acórdão do STJ de 25.3.2004 e anotação concordante de Calvão da Silva, in RLJ, ano 135.º, n.º 3935, págs. 113/128.