Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:963/07.5 BELSB
Secção:CT
Data do Acordão:11/25/2021
Relator:TÂNIA MEIRELES DA CUNHA
Descritores:CLÁUSULA GERAL ANTI-ABUSO
PROVA
SGPS
VANTAGEM FISCAL
ZONA FRANCA DA MADEIRA
Sumário:I. A aplicação da CGAA pressupõe a demonstração, por parte da AT, de quatro elementos caraterizadores: o elemento meio, o elemento resultado, o elemento intelectual e o elemento normativo.

II. Às SGPS é vedado, designadamente, conceder crédito a sociedades não participadas.

III. Não é defensável que a alternativa a um ato lícito fiscalmente menos oneroso seja a prática de um ato ilícito fiscalmente mais oneroso, não podendo o negócio ou ato de substância económica equivalente consubstanciar-se num negócio ou ato cuja prática é legalmente vedada.

IV. Se a vantagem fiscal obtida pela Impugnante, fruto da distribuição de dividendos por parte de sociedade sediada na Zona Franca da Madeira (após lhe terem sido pagos juros por uma outra sociedade de que era credora), já existia em abstrato antes da interposição desta sociedade no negócio, não se pode considerar que a referida interposição tenha visado obter qualquer vantagem fiscal.

V. Considerando o referido em IV. e não tendo a AT posto em causa toda a cadeia negocial em causa, centrando-se apenas no último degrau dessa mesma cadeia, não é possível concluir no sentido de se estar perante atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos.

VI. A intervenção negocial de sociedades sedeadas na Zona Franca da Madeira não pode, per se, conduzir à conclusão de que a sua utilização é abusiva.

VII. Apenas com o regime aplicável às entidades licenciadas na Zona Franca da Madeira a partir de 1 de janeiro de 2003 e anos subsequentes se passou a exigir a criação de um número mínimo postos de trabalho e a aquisição de ativos fixos corpóreos ou incorpóreos.

Votação:Unanimidade
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:I. RELATÓRIO

A Fazenda Pública (doravante Recorrente ou FP) veio apresentar recurso da sentença proferida a 12.03.2021, no Tribunal Tributário de Lisboa, na qual foi julgada procedente a impugnação apresentada por J., SGPS, SA (doravante Recorrida ou Impugnante), que teve por objeto a liquidação de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas (IRC), atinente ao exercício de 2004, na sequência do despacho que autorizou a aplicação de normas anti-abuso e respetivo relatório n.º 03/COM1/2007.

Apresentou alegações, nas quais concluiu nos seguintes termos:

A. Visa o presente recurso reagir contra a douta decisão que julgou procedente a Impugnação Judicial e, em consequência, determinou a anulação da liquidação de IRC referente ao exercício de 2004. Alicerçou-se a referida decisão na consideração de que não se mostravam, in casu, verificados os elementos meio e intelectual essenciais à aplicação da cláusula geral anti-abuso;

B. Não pode a Fazenda Pública conformar-se com o assim doutamente decidido, considerando existir erro de julgamento, uma vez que da prova produzida e levada aos autos da presente impugnação, não se podem extrair as conclusões em que se alicerça a decisão proferida, impondo-se antes decisão diversa da adotada;

C. A liquidação de IRC objeto de apreciação nos presentes autos foi emitida na sequência de procedimento inspetivo, no âmbito do qual foram efetuadas correções à matéria coletável da Impugnante, ao exercício de 2004, no montante de €6.498.000,00. Tais correções resultaram da aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 38.º da LGT, tendo sido considerada a ineficácia, para efeitos tributários, do recebimento de lucros e a necessidade de tributar as operações de acordo com as normas aplicáveis ao recebimento de juros. Tal consubstancia-se na desconsideração da dedução prevista no artigo 46.° do CIRC e na tributação dos juros com base no artigo 20.°, n.°1, alínea c) do mesmo Código, no montante de 6.498.000,00 Euros, relativamente ao exercício de 2004;

D. A AT logrou demonstrar, de forma clara e inequívoca, a verificação de todos os pressupostos legais de que depende a aplicação da cláusula geral anti-abuso, prevista no n.º 2 do artigo 38.º da LGT;

E. Mostra-se minucioso e pormenorizadamente descrito e provado todo o “itinerário” artificioso e fraudulento que a recorrida adotou na sua fuga ao fisco, bem como os elementos normativos integradores da conclusão da ocorrência de abuso fiscal, nos termos do artigo 38.º, n.º 2 da LGT e do artigo 63.º, n.º 2 do CPPT;

F. No sentido de que se mostravam verificados os requisitos de que depende a aplicação da cláusula geral anti-abuso já se havia pronunciado a sentença inicialmente proferida nos autos;

G. Não pode a Fazenda Pública conformar-se com a consideração da Mma. Juiz a quo, no sentido de que estando a Impugnante juridicamente impedida de conceder diretamente crédito à F. O., a utilização da F. não se revela desnecessária, nem tão pouco constitui um meio artificioso ou abusivo;

H. Com efeito, tal raciocínio assenta no pressuposto errado de que a F. exerceu uma atividade económica típica, usual e autónoma, como se de uma verdadeira sociedade comercial se tratasse, o que, resulta clara e amplamente infirmado nos autos;

I. Ficou amplamente demonstrado nos autos, conforme resulta das alíneas J), N), O, P), R), S) e Z) do probatório, falta de qualquer estrutura económica ou financeira que suportasse a sociedade em causa, limitando-se a interpor-se nos contratos de empréstimo com a F. O., cujos juros entretanto recebidos não revertiam a favor desta enquanto ente autónomo, transferindo-os, sob a forma de dividendos, para a Impugnante;

J. Impunha-se, pois, concluir que o único papel relevante que a F. vinha desempenhando foi então o de funcionar como mero recetáculo ao recebimento dos juros (aproveitando o regime fiscal favorável da Zona Franca da Madeira) e posteriormente os fazer distribuir, agora como dividendos, para a Impugnante, ora recorrida, e esta os fazer deduzir na sua base tributável, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 46.º do CIRC.

K. A ora recorrida, ao transformar os juros do capital que aplica em lucros distribuídos por uma empresa sua participada isenta de IRC produz um efeito de fuga ao imposto, o qual seria exigido se a empresa tivesse optado por uma aplicação direta, com resultados económicos equivalentes;

L. Em situação idêntica à dos presentes autos, o TCA Sul pronunciou-se no sentido de que “… Preenche todos os pressupostos da cláusula antiabuso, a contribuinte que fez interpor entre si e o cliente final, uma sociedade por si detida na sua maior parte, sem atividade comercial típica e normal e nem património ou qualquer estrutura física, em que os atos praticados não tiveram em vista gerar qualquer lucro para si, enquanto ente autónomo, tendo apenas praticado actos formais de intermediação, que permitiram beneficiar a contribuinte, face ao regime legal de isenção aplicável na zona franca da Madeira em que a mesma se encontra sediada, tendo por estas operações obtido exatamente o mesmo resultado económico como se tais operações fossem diretamente, por si realizadas”, cfr. acórdão de 14-02-2012, p. 05104/11;

M. Em face do exposto, impunha-se concluir pela verificação dos pressupostos de que depende a aplicação da cláusula geral anti-abuso, consagrada no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, não enfermando de qualquer ilegalidade as correções à matéria coletável da Impugnante, no exercício de 2004, feitas pelos SIT, e consequentemente a liquidação dali resultante não merece qualquer censura, devendo ser mantida na ordem jurídica;

N. Assim sendo, ao decidir como decidiu, incorreu o tribunal a quo, salvo o devido respeito, em erro de julgamento por inadequada apreciação e valoração da prova produzida e errónea interpretação e aplicação do disposto no artigo 38.º, n.º 2 da LGT, pelo que, deve a douta sentença ser revogada, determinando-se a total improcedência da impugnação, com as legais consequências.

Termos em que, com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogada a douta decisão, na parte recorrida, com as legais consequências, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!”.

A Recorrida apresentou contra-alegações, nas quais formulou as seguintes conclusões:

“1. Através do presente recurso pretendeu a AT reagir contra a douta decisão que julgou procedente a Impugnação Judicial e, em consequência, determinou a anulação da liquidação de IRC n.º 2007.8910017484 (e consequente demonstração de acerto de contas n.º 2007.00001933879), referente ao exercício de 2004, alicerçada que estava na consideração de que não se mostravam, in casu, verificados os elementos meio e intelectual essenciais à aplicação da cláusula geral anti abuso.

2. Sucede, porém, que resulta indubitavelmente provada nos autos, toda a matéria de facto alegada e não contestada e, de resto, diretamente retirada dos documentos juntos aos autos e dos depoimentos prestados, de forma capaz e credível – conforme ajuíza o Tribunal a quo –, pelas testemunhas arroladas em sede de audiência de discussão e julgamento agendada para o efeito, do que resulta não oferecer a menor dúvida que (i) a constituição da F. teve como objetivo inicial um interesse organizatório do Grupo, não dominado por razões fiscais, o que explica, aliás, que ela tenha ocorrido algum tempo antes de existir qualquer negócio com a H.; (ii) em face da instabilidade económica que se fazia sentir em alguns mercados externos, e tendo em conta a debilidade do sistema bancário nacional, o grupo J. decidiu financiar o seu programa de internacionalização através da criação de sociedades localizadas na Zona Franca da Madeira, que ficariam responsáveis por canalizar para cada mercado alvo e para cada negócio os meios financeiros necessários à sua consolidação; (iii) esta estrutura foi escolhida para reduzir o risco de contaminação dos investimentos no exterior à sociedade holding em Portugal; (iv) todas as operações de carácter administrativo e financeiro, no seio do Grupo J., eram proporcionadas por sociedades destinadas a esse fim, pelo que não havia razão para duplicar meios e estruturas nas respetivas sub-holdings; e, finalmente, que (v) a prestação destes serviços externos eram os que se mostravam adequados a uma sociedade como a F., em função dos ativos que detinha e das operações que realizava.

3. Todos estes aspetos que foram absolutamente discernidos pelo Tribunal a quo, de forma fundamentada e consolidada, não sendo de lhe imputar qualquer vício de julgamento a respeito da matéria de facto carreada e provada nos autos, caindo, assim, por terra a tese que a este propósito vem defendida pela Recorrente nas respetivas alegações de recurso.

4. Quanto ao julgamento da matéria de Direito, considera a Recorrida que não pode deixar de ser entendido que, à data da emissão das liquidações impugnadas, teria já caducado o direito de utilizar o procedimento especial previsto no nº 1 do artigo 63º do CPPT, sem o que não é possível à Administração aplicar a CGAA. Com efeito, o processo de inspeção subjacente à liquidação impugnada teve o seu início em 2007, enquanto que a celebração do contrato de compra e venda de obrigações emitidas pela F. O., entre esta sociedade e a sociedade H. (1997), a constituição da F. (2000), e a celebração do contrato de cessão da posição contratual assumida pela H. naquele contrato de compra e venda, em benefício da H. (2001), ocorreram em momentos que antecedem em mais de três anos a mencionada data.

5. Ora, no nº 3 do artigo 63º do CPPT, a referência ao ato ou à celebração do negócio jurídico, como marcos a partir dos quais se inicia a contagem deste prazo especial, só pode querer abranger os atos ou negócios jurídicos realizados através da “utilização de meios artificiosos ou fraudulentos ou realizados com abuso de formas” – os chamados também “atos fraudatórios”.

6. Em muitos casos, é certo, o momento da prática do ato ou da celebração do negócio abusivo coincide com o momento da obtenção da vantagem fiscal: pense-se no exemplo de escola, em que alguém concede um empréstimo com um prazo de cem anos e uma taxa de juro simbólica para contornar um imposto sobre doações.

7. Em outras situações, contudo, os atos abusivos distam vários anos da obtenção do resultado fiscal: veja-se o caso de uma empresa que realiza uma série de negócios que lhe proporcionam, de forma artificial, uma certa menos-valia, que procurará compensar contra eventuais lucros futuros a gerar, digamos, nos quatro anos seguintes. Nesta hipótese, aliás, o momento em que ocorre a dedução do prejuízo fiscal – o momento da vantagem fiscal – nem sequer está associado diretamente a atos ou negócios jurídicos, como se refere no nº 3 do artigo 63º do CPPT. O objetivo fiscal materializa-se simplesmente com o preenchimento e entrega da declaração tributária.

8. Não pode, na verdade, entender-se que o citado preceito do CPPT elege indistintamente, como momento do início da contagem do prazo de caducidade do procedimento especial, os atos fraudatórios ou abusivos e a obtenção de uma vantagem fiscal, conforme o que ocorra mais tarde. Não há, na letra da lei, qualquer apoio para esta tese.

9. No nosso caso, relembre-se, uma sociedade recebeu efetiva e inquestionavelmente lucros distribuídos pela sua participada e a AT pretende tratar esses lucros como se fossem os juros que, por seu turno, esta última havia cobrado, em momento anterior, de uma terceira entidade, com sede no exterior.

10. Para evitar que a lesão daqueles princípios constitucionais ultrapasse o limiar do tolerável – e apesar de estar já consagrado na lei um prazo geral de caducidade do direito de liquidar –, o referido legislador entendeu ser necessário restringir a incerteza que o citado efeito de analogia sempre produz, estabelecendo um apertado prazo de caducidade do correspondente, prévio e obrigatório procedimento administrativo.

11. Depois, conforme melhor se verá à frente, o cerne da previsão do nº 2 do artigo 38º da LGT está no carácter artificioso ou fraudulento e com abuso de formas dos meios utilizados pelo contribuinte para lograr um certo resultado fiscal. Esses meios hão-de revelar-se como inidóneos, desadequados, incompreensíveis mesmo, do ponto de vista da experiência e dos usos do comércio jurídico – tudo características objetivas observáveis nos atos em si próprios, que eles hão-de apresentar mesmo antes que se conheça a vantagem fiscal concreta a que estão associados. É, por isso, também a estes atos ou negócios – os atos ou negócios que encerram a fraude, o artifício, o abuso – que se refere o nº 3 do artigo 63º do CPPT.

12. Mas a leitura da Recorrente, ao contrário, pressupõe que o prazo de caducidade em análise pode contar-se a partir da produção do alegado resultado fiscal vantajoso – que pode distar vários anos dos atos alegadamente abusivos –, o que redunda na extensão desmesurada do intervalo temporal de atuação da Administração, com o fundamento em referência, e contraria frontalmente a ratio e a letra do nº 3 do artigo 63º do CPPT.

13. A justificação da Recorrente assenta na ideia, repita-se, de que, estando em causa um conjunto complexo de atos sujeitos a uma arquitetura global, só seria possível detetar o desenho elisivo com a distribuição de lucros realizada pela F.. No entanto, quem conhecesse – como conhecia a AT desde o início – a estrutura deste sector do Grupo J., não precisaria de assistir à efetiva distribuição de dividendos para formular um juízo sobre essa estrutura e sobre as operações que se encontram em causa: sabendo-se que a J. detinha a F. (uma sociedade com o estatuto especial da Zona Franca da Madeira), que esta recebia fundos para os emprestar, por sua vez, a terceiros residentes no exterior, saber-se-ia também, de imediato, o que aconteceria com uma eventual – mas sempre natural ou muito provável – distribuição à primeira dos lucros que viessem a ser obtidos pela segunda.

14. Com efeito, só o propósito de contornar as regras de caducidade do procedimento permite perceber uma tese tão rebuscada e imprestável como a que figura defendida pela AT no nosso caso – a tese de que o momento relevante para o efeito da contagem do prazo do nº 3 do artigo 63º do CPPT é o da denominada “transformação dos juros em lucros” (segundo ela, aliás, não haveria abuso de formas se os lucros obtidos pela F. se tivessem acumulado na sua esfera, em lugar de serem entregues ao respetivo acionista).

15. A verdade é que todas as tentativas de fundamentação da Recorrente se centram na interposição da F. – esse é que constitui, na sua ótica muito distorcida, o meio “artificioso ou fraudulento”, o verdadeiro abuso de formas. É por isso que na decisão se insinua que a utilização da referida F. seria desnecessária, que a J. poderia ter emprestado os fundos diretamente ou através de outra sua subsidiária, ou ainda que a mesma F. registou na sua contabilidade juros que não eram verdadeiramente seus, mas que pertenceriam na totalidade à J..

16. Repare-se em que, por outro lado, a requalificação das operações, efetuada pela AT, aporta a uma desconsideração da personalidade jurídica da F.: os juros que esta recebeu são antes imputados, como tal, à J. Mas isto mostra de forma definitiva, em conclusão, que é a interposição da F. que verdadeiramente, na perspetiva da AT, constitui um abuso de formas. Pelo menos, se não é ali, o alegado abuso há-de residir na concessão dos empréstimos à F. O., pela H., e, no limite, na celebração do contrato de cessão da posição contratual entre esta sociedade e a F.. Forçosamente, só aquela interposição ou estes negócios podem constituir os momentos do início da contagem do prazo previsto no nº 3 do artigo 63º do CPPT. Como se sabe, porém, nas circunstâncias de que tratou a decisão recorrida, entre esses momentos e o início do procedimento a que diz respeito este último preceito decorreram muito mais de três anos, encontrando-se o direito à sua instauração, por essa razão, caducado.

17. Resulta dos autos que o licenciamento e a constituição da F. tiveram lugar no ano de 2000. Decorre também dos factos provados no processo que os empréstimos obrigacionistas concedidos pela F. à F. O., que originaram o pagamento dos juros cuja não tributação foi posta em causa pela administração, datam de 5.9.1997.

18. Ora, a CGAA contida no artigo 38.º, n.º 2, da LGT, na redação atualmente em vigor, que foi aquela que foi aplicada na douta decisão recorrida, foi dada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 de Dezembro, e posta em vigor em no dia 1 de Janeiro de 2001, “aplicando-se aos períodos de tributação que se iniciem a partir dessa data” (cfr. artigo 21.º, n.º 2, da referida Lei). Vale isto por dizer que a constituição e licenciamento da F. e a concessão, por esta, dos empréstimos à F. O. que originaram o pagamento dos juros que a administração fiscal imputou à J. para efeitos da tributação desta última ocorreram em datas anteriores à entrada em vigor da CGAA aplicada na douta decisão recorrida. Ou seja, a norma que fundamentou a liquidação impugnada não existia ao tempo da constituição e licenciamento da F. nem sequer ao tempo da celebração dos contratos com a F .O.

19. Aplicar a estes factos a referida disposição do artigo 38.º, n.º 2, da LGT significa incorrer na aplicação retroativa dessa norma, em manifesta violação do n.º 3 do artigo 103.º da CRP.

20. Se a proibição da retroatividade está, em geral, ao serviço do princípio da segurança jurídica, a proibição da aplicação retroativa da norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT serve, em particular, uma finalidade de proteção da segurança e da estabilidade dos atos e negócios jurídicos lícitos e dos contribuintes que os realizam. É que a CGAA contida nesta norma, ao permitir a requalificação, para efeitos fiscais, dos negócios efetivamente celebrados por um sujeito passivo, constitui sempre uma limitação grave dos princípios da legalidade e da proibição da analogia, consagrados constitucionalmente, uma vez que através dela a administração fiscal faz corresponder ao negócio ou ao conjunto de negócios celebrados uma consequência fiscal diferente da que se encontra tipificada na lei.

21. Assim, esse propósito de proteção dos contribuintes e dos atos e negócios por eles realizados só se consegue se a norma que vai permitir que estes últimos sejam sindicados estiver já em vigor quando tais atos são praticados e tais negócios são celebrados. É nesse momento que os contribuintes devem poder já contar com a norma e com a eventual desconsideração de tais atos e negócios que da sua aplicação poderá resultar, se vierem a ser qualificados como abusivos ou fraudatórios.

22. A esta luz, é manifesto que, se a norma anti abuso somente estiver em vigor quando os efeitos fiscais desses atos se produzem, nenhum fundamento existe para a convocar como fundamento para se ignorar esses mesmo atos e tributar a realidade a eles subjacente como se eles não tivessem sido praticados.

23. Ao pretender aplicar aos factos em que se consubstanciaria o “abuso de formas” a disposição do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, sem que ela estivesse em vigor ao tempo da constituição da F., nem sequer ao tempo do seu licenciamento, nem tão-pouco ao tempo da celebração dos negócios com a F. O., a AT incorreu em aplicação retractiva daquele preceito: uma interpretação contrária basear-se-ia numa aplicação da norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT com o sentido de que é aplicável a factos anteriores à sua entrada em vigor contanto que estes se integrem numa cadeia ou complexo de atos em que alguns deles ocorreram já no seu domínio de vigência, ainda que estes últimos se traduzam apenas na distribuição de rendimentos com base em contratos celebrados anteriormente.

24. Interpretada com este sentido, a norma seria materialmente inconstitucional porque violaria a proibição constitucional da retroatividade da lei fiscal consagrada no artigo 103.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa — o que ora expressamente se invoca.

25. Recentemente e a propósito deste ponto da argumentação, faz a Recorrida notar a publicação de um aresto do Tribunal Central Administrativo Sul, proferido em 30 de setembro de 2020, no âmbito do processo n.º 2925/04.5BELSB, o qual dedica boa parte do seu conteúdo a explicar que a step transaction doctrine tem contornos completamente distintos daqueles que a AT invoca, não sendo admissível, designadamente, “considerar a sua aplicação numa operação económica que se desenrola em várias etapas, relevando para esse efeito apenas a última etapa, com fundamento no alegado propósito elisivo da mesma, e irrelevando as etapas anteriores com fundamento na sua licitude e pertinência”.

26. Com efeito, a referida doutrina, quando mobilizada para captar o abuso de planeamento fiscal implícito numa série de atos jurídicos ou de contratos, visa justamente comprovar que cada um desses atos ou contratos não tem uma finalidade autónoma, e carece em si mesmo de propósito negocial, sendo que apenas adquire racionalidade quando considerada globalmente a operação de que constituem parte.

27. Nestes termos, ou se entende que todos os atos que antecederam a referida distribuição constituem meros atos preparatórios da obtenção de uma vantagem fiscal indevida – os chamados atos fraudatórios ou artificiosos –, e então somos forçados a concluir que a presente liquidação é manifestamente extemporânea, por óbvio esgotamento de quaisquer dos prazos previstos no artigo 45º da LGT; ou se entende – como parece ser o caso da AT – que apenas a distribuição de lucros merece a censura protagonizada pela cláusula geral anti abuso, e então a invocação da step transaction doctrine não dispõe de qualquer lógica ou préstimo.

28. Seja como for, é evidente: a Recorrente incorre não só num flagrante erro de perceção da situação de facto concreta, como num erro grosseiro de interpretação da norma do nº 2 do artigo 38º da LGT – da sua função e do seu conteúdo. A AT entende que na CGAA se enquadram situações que, de todo, não fazem parte do seu campo de aplicação, revelando desta forma uma incompreensão grave daquilo que ela, como qualquer outra norma sua congénere, visa sancionar.

29. A utilização da CGAA em atos ou negócios absolutamente legais pressupõe, assim, que a AT faça prova de que, apesar dessa legalidade, ocorreu a violação de um programa normativo ínsito nas normas que disciplinam tais negócios, violação essa que justifica o desencadear de consequências fiscais distintas das que se afiguram como tipicamente previstas na lei. Quer dizer, por um lado, em nome dos princípios da capacidade contributiva e da legalidade fiscal, para poder aplicar o nº 2 do artigo 38º da LGT, a AT tem que mostrar por que modo o resultado dos atos ou negócios que considera abusivos contrariam o Direito, identificando inequivocamente uma intenção legislativa de os tributar pelo modo por si pretendido, contida numa norma ou instituto.

30. Por outro lado, haverá que ter em conta o princípio geral da prevalência de regras especiais sobre a regra geral: uma norma complementar e de sobreposição – como a CGAA – pode ser afastada por normas com um campo de aplicação muito mais específico (especiais, na sua relação com a primeira). Se é inequívoco que o objetivo de uma norma que, por exemplo, concede um benefício fiscal, é o de levar os contribuintes a alterarem o seu comportamento por razões principalmente fiscais (comparativamente com outras opções disponíveis), o escopo dessa norma sairia frustrado caso se não entendesse que ela derroga, no seu âmbito de aplicação, o âmbito de aplicação normal da CGAA.

31. Tudo isto aponta, pois, para a conclusão de que se encontram excluídas do âmbito de aplicação do n.º 2 do artigo 38º da LGT as situações em que, apesar de a poupança fiscal ter sido um dos motivos que presidiram a um certo ato ou negócio jurídico (ou mesmo o principal motivo), ele não foi realizado com a “utilização de meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso de formas jurídicas”, designadamente porque foi realizado ou celebrado em obediência ao seu fim económico-jurídico típico (e até, em alguns casos, recorrendo a normas ou regimes tributários que o legislador quis que fossem utilizados pelos contribuintes em razão das vantagens fiscais que abertamente lhes proporcionam).

32. A AT, a julgar pela sua posição vertida na Fundamentação, possui um entendimento radicalmente distinto daquele que acabou de ser enunciado. Com efeito, a decisão recorrida – que é do que aqui particularmente se trata – limita-se a sublinhar que dos negócios identificados resultou uma vantagem fiscal que não se verificaria caso eles não fossem realizados (pelo menos com a configuração, conteúdo ou sequência em que o foram), ou o fossem através de outras subsidiárias da Recorrida. Mas em lado algum se demonstra por que razão as formas utilizadas se afiguram como artificiosas ou fraudulentas e realizadas em abuso de formas, ao arrepio de um qualquer programa normativo contido, de forma explícita ou implícita, numa determinada norma ou conjunto de normas.

33. À AT era exigível bem mais do que isto. Na verdade, sendo da natureza das coisas que todos os ganhos realizados pela F., dentro dos limites legais, seriam isentos de imposto – já que, aliás, não só a lei não distingue, de entre as atividades económicas quais aquelas que são suscetíveis de preencher substantivamente aquele conceito para os efeitos da atribuição da referida isenção, e já que, aliás, nunca o licenciamento desta sociedade para operar, com todos os benefícios, naquela região foi posto em causa pelas autoridades locais ou nacionais –, e, mais tarde, naturalmente distribuídos ao respetivo acionista – o qual, já se sabe, é uma SGPS –, teriam que demonstrar, no fundo, que a J. não poderia deter a F., que esta não preenchia as condições para poder beneficiar do regime fiscal que sempre lhe adviria pelo facto de se encontrar licenciada para operar na Zona Franca da Madeira – condição a condição –, e que, enquanto participada da mesma J., não poderia exercer qualquer atividade lucrativa (a menos que não distribuísse lucros!).

34. Na prática, a Recorrente teria mesmo de explicar porque entende que é vedado a qualquer sociedade sediada em Portugal continental deter o controlo de uma sociedade na Zona Franca da Madeira, ainda que adequadamente licenciada e a operar dentro das condições legalmente estabelecidas – sem nunca, repita-se, ter sido posto em causa, quer o licenciamento, quer a possibilidade de beneficiar do regime de isenção fiscal que a esta estava associado –, ao contrário do que dispõe a lei e do que é comummente reconhecido.

35. É que o resultado que a AT pretendeu evitar é o resultado a que inegavelmente se chega sempre que uma sociedade sediada em Portugal continental controla uma sociedade lucrativa sediada na Zona Franca da Madeira, suceda ela nos objetivos da sua constituição ou não.

36. E se, de facto, como diz a Recorrente, a F. não dispunha de qualquer estrutura física e humana para prossecução da sua atividade, a verdade é que isso seria tão natural quanto insuscetível de censura, na medida em que, à semelhança do que acontece na esmagadora maioria dos grupos económicos de média ou grande dimensão, todos os serviços administrativos e financeiros das participadas do Grupo J. eram assegurados pelos departamentos das respetivas holding ou sub-holding.

37. Não se pode, portanto, dizer que o facto de uma sociedade, integrada num grupo com estas características, não dispor de recursos autónomos na área administrativa e financeira, significa automaticamente que se trata de uma estrutura artificial, a cuja constituição e funcionamento não preside qualquer racionalidade económica. Várias outras subsidiárias do Grupo J. encontravam-se nas mesmas circunstâncias.

38. Mais: se a escolha da Zona Franca da Madeira para a localização da F. parece justificar-se simplesmente à luz da leitura do respetivo regime fiscal de benefício ou incentivo, o mesmo parece poder dizer-se da forma societária assumida pelo respetivo acionista, a J.. É que foi igualmente o legislador quem encorajou os empresários a deterem as participações nas suas sociedades operacionais através de SGPS, pelas razões que figuram no preâmbulo do diploma que instituiu este tipo societário (cfr. DL nº 495/88, de 30 de dezembro) – razões associadas ao incentivo à concentração e à racionalização da gestão das empresas portuguesas. E esse encorajamento, resultava, desde logo, do regime fiscal oferecido (regime que hoje consta do artigo 32º do EBF), o qual contemplava e contempla condições especiais para excluir da base tributável das SGPS os lucros que lhes fossem distribuídos pelas suas subsidiárias, bem como regras favoráveis para a tributação de mais-valias realizadas com a alienação de participações sociais.

39. Este entendimento é o mesmo que o Diretor-geral do IRC do Ministério das Finanças sufraga no seu despacho de 29/05/2003 – respeitante a uma situação de facto em tudo idêntica à de que aqui se cuida –,

40. O regime das SGPS, contudo, estabelece, em contrapartida, requisitos apertados de funcionamento para estas sociedades. Elas não podem, designadamente, realizar uma atividade económica direta – não podem, por exemplo, emprestar fundos a terceiros (cfr. alínea c) do nº 1 do artigo 5º do DL nº 495/88, de 30 de dezembro). Quando, por isso, uma SGPS constitui uma sociedade para, através dela, prosseguir uma determinada atividade económica direta, nunca se pode falar de interposição em sentido pejorativo, como o faz o Tribunal a quo – com o sentido de que essa constituição configura como que uma criação “ficcionada” de uma nova pessoa jurídica. A verdade é que é assim mesmo que o legislador quer que as coisas se passem, ou melhor, só assim mesmo é que as coisas se podem legalmente passar.

41. Sucede que se afigura impossível de aceitar, por exemplo, sob qualquer prisma, que a distribuição de lucros verificada corporize a vantagem fiscal lograda pela Recorrida, como também que ela, em si mesma, constitua um ato fiscalmente abusivo.

42. Repare-se, com efeito, em que, na esfera do Grupo J., a apropriação de valor – ou a realização de uma vantagem fiscal, se se preferir – consubstancia-se no momento em que uma sua participada a 89% realiza lucros isentos em razão do regime aplicável à ZFM.

43. A F., sob instrução da Recorrida, podia, por exemplo, ter usado os lucros que obteve para capitalizar ou mesmo para adquirir qualquer outra empresa – fosse ela exterior ou participante do mesmo Grupo –, sem que fosse necessário distribuí-los primeiramente à respetiva “acionista de controlo”; e, nesse caso, na própria perspetiva da AT, pura e simplesmente não existiria o processo que agora nos detém.

44. Com efeito, a exclusão da distribuição realizada pela F. do lucro tributável da J.R decorreu da simples aplicação do artigo 46º do CIRC, dispositivo que se encontra disponível para todas as distribuições que ocorram entre sociedades residentes em Portugal, desde que cumpridos os requisitos que ali se encontram plasmados (o que não foi minimamente posto em causa pelo Relatório de Inspeção).

45. Também aqui, neste preciso ponto, o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul n.º 2925/04.5BELSB, proferido em 30 de setembro de 2020, se mostra claro: a mencionada distribuição não pode jamais ser vista como um ato fraudatório ou abusivo, porquanto ela constitui, afinal, a prossecução do destino dos lucros que o direito das sociedades português considera mais natural, ou mesmo desejável (cfr. artigo 6º, nº 3, do CSC).

46. Por outro lado, no seu relatório, a AT salienta por diversas vezes, com a insistência de quem está a utilizar um argumento decisivo, que a Recorrida poderia ter celebrado diretamente os contratos com a F.O., sem recurso à interposição da sua participada F. e com diferentes consequências fiscais – justamente as consequências que se querem extrair com recurso à cláusula geral anti abuso. Sucede, contudo, que semelhante possibilidade contraria abertamente o regime particular deste tipo de sociedades (SGPS), o qual justamente lhes veda, em geral, o exercício de atividades económicas diretas, mormente as de natureza financeira (facto igualmente sublinhado pelo acórdão em referência).

47. Na verdade, ainda que esta última limitação não existisse, tudo quanto a AT refere a propósito da atividade da F. poderia igualmente ser dito sobre qualquer uma das dezenas de participadas da Recorrida: é claro que, se não se tratasse de uma sociedade gestora de participações sociais, à Recorrida estaria aberta a possibilidade teórica de desempenhar todos os objetos das suas participadas; mas a organização dos grupos de sociedades a partir de uma sociedade-mãe que simplesmente se dedica à gestão de participações, sobre ser uma manifestação inatacável da liberdade de organização da atividade económica, constitui mesmo o modelo para que o legislador nacional sempre quis atrair as empresas portuguesas.

48. Além disso, é inegável que a operação em análise, olhada na sua globalidade, inclui a fruição de um benefício fiscal por parte da F., desenhado expressamente pelo legislador nacional em proveito das entidades licenciadas na ZFM, de acordo com os requisitos legais, sejam elas detidas por sociedades ou por pessoas singulares. Mas a obtenção desse benefício não constitui obviamente qualquer artifício ou ardil: trata-se de um resultado que o legislador deseja e para que estabeleceu apertadas regras e um especial escrutínio.

49. Aliás, essa utilização não estaria apenas vedada à J.: a tomar como acertada a tese essencial da AT, em boa verdade todas as sociedades sediadas em Portugal estariam impedidas de deter uma participação superior a 10% numa sociedade licenciada na ZFM, porque a AT parece divisar abuso de formas em todos os casos em que viessem a beneficiar da aplicação do artigo 46º do CIRC.

50. Como justamente se lembra no acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul a que fizemos referência supra – proferido, repita-se, em 30 de setembro de 2020, no âmbito do processo n.º 2925/04.5BELSB –, um tal resultado não dispõe da menor cobertura legal, no plano literal ou do espírito das leis, pelo que a AT estaria realmente a tirar com uma mão aquilo que o legislador procura incentivar com a outra, o que recorda imediatamente as lapidares palavras de Maria de Lourdes Correia e Vale: “Tal interpretação teria como efeito uma «esterilização» de incentivos fiscais legítimos existentes nos Estados membros e autorizados a nível comunitário” – cfr. “A Tributação dos Fluxos Internacionais de Dividendos, Juros e Royalties”, in “A Internacionalização da Economia e a fiscalidade, Centro de Estudos Fiscais”, Lisboa, 1993, p. 188.

51. Sendo as coisas assim, afigura-se impossível sustentar que a vantagem fiscal obtida unicamente pela F. constituiu o resultado de um abuso de formas jurídicas (o conhecido elemento meio, tratado pela doutrina como uma condição da aplicação do nº 2 do artigo 38º da LGT); e muito menos se pode dizer que o meio utilizado pela J. mereça a reprovação do sistema fiscal no seu conjunto (elemento ou condição normativosistemática), já que o próprio legislador quis conscientemente incentivar a utilização de sociedades na ZFM em nome do propósito para que a criou e nos estreitos limites que para esse efeito estabeleceu.

52. Nestes termos, e agora já apenas quanto ao plano substancial, não se verificam na situação controvertida os pressupostos de facto e de direito – as condições, por outras palavras – de aplicação do nº 2 do artigo 38º da LGT, pelo que a liquidação de que cuidamos deve ser considerada como ilegal, recomendando-se indubitavelmente a sua impugnação pelos meios próprios: o contribuinte, no caso dos autos, se limitou a responder positivamente às solicitações da política pública de incentivos fiscais. Primeiro, concentrou as suas participações, por sector de atividade, em SGPS, de que é exemplo a Recorrente, confiado na neutralidade fiscal que a lei assegurava a esta particular forma. Depois, carecendo de constituir uma sociedade operacional destinada ao financiamento e prestação de serviços a entidades sediadas no exterior, escolheu o local a que, em Portugal, corresponde um melhor regime tributário para tal objeto: a Zona Franca da Madeira.

53. O caso dos autos não traduz, pois, uma situação artificiosa, fraudulenta ou abusiva, mas tão-só o aproveitamento de uma ausência de tributação que o legislador assim mesmo quis que funcionasse (aquilo que a Doutrina chama de “lacuna consciente de tributação”). E, quando a própria lei faculta determinadas formas fiscalmente mais vantajosas para que os contribuintes possam prosseguir os seus objetivos económicos – justamente porque detrás dessa opção se encontram específicos propósitos de natureza extrafiscal –, estas não podem incluir-se no campo de aplicação da CGAA.

54. Se se entender que a norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT, permite que se desconsidere a personalidade jurídica própria da sociedade (a F.) que percebeu os juros dos empréstimos que fez a um terceiro (a F.O.), bem como o facto de aquela ser uma sociedade que, instalada na ZFM, estava sujeita a um regime de tributação distinto, para o efeito de se tributar esses juros como se tivessem sido diretamente obtidos pela J., assim se desatendendo à intenção normativa de tributação da norma do artigo 20.º, n.º 1, alínea c), do CIRC (que não tem qualquer vontade de aplicação à situação em análise), estar-se-á então a aplicar a norma do artigo 38.º, n.º 2, da LGT como se se tratasse de uma espécie de tipo legal aberto ou de sobreposição que permite a tributação de factos ou realidades que a ordem jurídica não pretendeu tributar, assim conduzindo a uma espécie de aplicação analógica das normas tributárias — na medida em que admite que a administração fiscal, desconsiderando, para efeitos fiscais, a personalidade jurídica de uma sociedade sedeada na ZFM, a cuja constituição o contribuinte foi expressamente incentivado pela lei, possa tributar como juros aquilo que reconhece expressamente serem lucros, no plano jurídico-civil.

55. Interpretada com este sentido, a norma é materialmente inconstitucional porque viola o princípio constitucional da legalidade fiscal, previsto nos artigos 103º, n.º 2, 104º e 165º, nº 1, alínea i), da Constituição da República Portuguesa, o que se invoca.

TERMOS EM QUE DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO IMPROCEDENTE, POR NÃO PROVADO, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, DESIGNADAMENTE A MANUTENÇÃO DA SENTENÇA RECORRIDA”.

O recurso foi admitido, com subida imediata nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Foram os autos com vista ao Ilustre Magistrado do Ministério Público, nos termos do art.º 288.º, n.º 1, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), que emitiu parecer, no sentido de ser negado provimento ao recurso.

Colhidos os vistos legais (art.º 657.º, n.º 2, do CPC, ex vi art.º 281.º do CPPT) vem o processo à conferência.

É a seguinte a questão a decidir:

a) Verifica-se erro de julgamento, em virtude de estarem preenchidos os pressupostos do art.º 38.º, n.º 2, da Lei Geral Tributária (LGT)?

II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

II.A. O Tribunal recorrido considerou provada a seguinte matéria de facto:

“A) A Impugnante é uma sociedade gestora de participações sociais (cfr. artigo 25º da p.i. e n° 1.1.1 do Relatório da Inspecção Tributária “RIT”, a fls. 55 dos autos);

B) Por despacho de 29.05.2003 do Director-Geral dos Impostos, em resposta a pedido de informação vinculativa por uma sociedade do "Grupo J.", foi reiterado o entendimento segundo o qual, no âmbito do regime da eliminação da dupla tributação económica, verificados que estejam todos os requisitos legais, nada obsta a que a dedução a que se refere o artigo 46° do CIRC aproveite à entidade requerente, relativamente aos dividendos que vier a receber (cfr. Doc. 6 junto com a p.i. - fls. 314 a 315 dos autos);

C) A sociedade "H. – S., Lda." (doravante H.), tem sede na Zona Franca da Madeira e encontra-se isenta de IRC, nos termos do artigo 33°, n° 1, alínea h) do Estatuto dos Benefícios Fiscais, sendo o seu capital detido em 99,99% pela Impugnante (cfr. RIT, n° 1.1.2, a fls. 56 dos autos);

D) A sociedade "F.O. Limited" (adiante F.O.) é uma sociedade sedeada nas Ilhas Channel, regida pelas leis de Jersey, não integrando o “Grupo J.” (cfr. RIT, n° 1.1.3, a fls. 56 dos autos);

E) Por contrato celebrado em 05.09.1997, a sociedade H. efectuou dois financiamentos obrigacionistas à F.O., um no montante de 18.796.752.000$00 (€ 93.757.803,69), e um outro no montante de 15.907.788.000$00 (€ 79.347.712,01), tendo em contrapartida a F.O. emitido obrigações de taxa fixa e de taxa variável (cfr. RIT, n° 2.2, ponto 1, a fls. 69 dos autos; e artigo 54° da p.i.);

F) Na mesma data (05.09.1997), a H. celebrou dois contratos de depósito com o Banco A., cada um dos quais no valor de GBP 10.000.000,00 (cfr. RIT, n° 2.2, ponto 2, a fls. 70 dos autos);

G) Em 22.05.2001, foi registada na Conservatória do Registo Comercial a aquisição, pela Impugnante, de 100% do capital social da sociedade "F. – S., Lda.” (doravante F.), e unificação das respectivas quotas, passando a integrar o “Grupo J.” (cfr. RIT, n° 1.1.4. 4, a fls. 59 e certidão de fls. 104 a 105 dos autos).

H) A F. é sujeito passivo em sede de IRC, isenta de imposto, pelo facto de se encontrar licenciada para o exercício das suas actividades na Zona Franca da Madeira, nos termos do artigo 33°, n° 1, alínea h) do Estatuto dos Benefícios Fiscais, tendo por objecto social a prestação de serviços nas áreas de contabilística e económica, elaboração de estudos económicos e de análise, assim como consultadoria nas referidas áreas; a gestão da carteira de títulos próprios; a compra de imóveis para revenda (cfr. RIT, n°s 1.1.4 a fls. 57 a 59 e 102 a 108 dos autos);

I) Os membros dos órgãos sociais da F., sucessivamente designados pelas deliberações de 16.05.2001, de 26.02.2002 e de 25.03.2002, estão ligados ao "Grupo J." nos termos que seguidamente se enunciam:

- F. M. C. S. S., exerceu funções de gerente da F. entre 16.05.2001 e 25.03.2002, tendo sido remunerado a título de trabalho dependente nos anos de 2001 a 2006 pela sociedade J. S., SA, participada directamente pela Impugnante em 100%;

- R. M. L. F. N. R., exerceu funções de gerente da F. entre 16.05.2001 e 14.09.2001, tendo sido remunerado a título de trabalho dependente nesse período pela sociedade J. S., SA, participada directamente pela Impugnante em 100%;

- L. M. V. P. S., exerce funções de gerente da F. desde 26.02.2002, tendo sido remunerado a título de trabalho dependente entre os anos de 2001 e 2006 pela sociedade J.; desempenha ainda desde 2002 as funções de gerente da “H. – S., Lda.”, participada directamente pela Impugnante em 99,99%;

- A. L. A. C. V., exerce funções de gerente da F. desde 26.02.2002, tendo sido remunerada a título de trabalho dependente entre os anos de 2002 a 2006 pela sociedade J. S., SA, participada directamente pela Impugnante em 100%; desempenha ainda funções de gerente desde 2002 na “H. – S., Lda.”, participada directamente pela Impugnante em 99,99%;

- J. M. M. P. L., exerceu funções de gerente da F. entre 16.05.2001 e 20.09.2001, tendo sido remunerado nesse período a título de trabalho independente pela sociedade Impugnante, e a título de trabalho dependente pela sociedade J. S., SA, participada directamente pela Impugnante em 100%; desempenhou igualmente funções de gerência na “H. – S., Lda.”;

- F. F. S., exerceu funções de gerente da F. entre 16.05.2001 e 25.03.2002, tendo sido remunerado a título de trabalho dependente nesse período pela sociedade J. S., SA, participada directamente pela Impugnan6 em 100%;

- P. M. C. S. S., iniciou as funções de gerente da F. em 25.03.2002, tendo sido remunerado a título de trabalho dependente desde o ano de 1998 até 2005 pela sociedade J. S., SA, participada directamente pela Impugnante em 100%; desde 2002 que exerce as funções de Vogal do Conselho de Administração nesta sociedade;

- H. M. S. C. S. S., iniciou também as funções de gerente da F. em 25.03.2002, tendo sido remunerado a título de trabalho dependente desde o ano de 2001 pela sociedade J. S., SA, participada directamente pela Impugnante em 100%; a partir de 2002 exerce ainda funções de Vogal do Conselho de Administração na sociedade J. R., SA, participada directamente a 100% pela Impugnante. (Cfr. RIT, n° 1.2, a fls. 61 a 63 dos autos; esquema gráfico de participações sociais do Grupo J., a fls. 100 dos autos; e fls. 102 a 108 dos autos);

J) Em 12.06.2001 foi celebrado entre a H. e a F., um contrato de compra e venda de obrigações e de cessão de posição contratual, através do qual a F. adquiriu à H. as obrigações emitidas pela F.O., e todos os direitos acessórios, incluindo os juros vencidos desde 01.01.2001, bem como sucedeu na posição daquela nos contratos de depósito efectuados no Banco A. referidos na alínea F) supra, pelo preço global de 41.577.873.620$00// € 207.389.559,26 (cfr. RIT, n° 2.2, ponto 3, a fls. 70 dos autos; e art.° 54° da p.i.);

K) O contrato referido na alínea antecedente foi celebrado pelos Senhores J. M. M. P. L. e R. M. L. F. N. R., em representação de ambas as sociedades (cfr. RIT, n° 2.2, ponto 4, a fls. 70 dos autos e fls. 127);

L) Em 15.06.2001, a Impugnante, a título de realização de prestações suplementares de capital, efectuou, através do Banco A., uma transferência no montante de € 207.390.189,64, para a conta da F. (cfr. RIT, n° 2.2, ponto 5, a fls. 70/71 dos autos e fls. 129 a 131);

M) Na mesma data (15.06.2001), também através do Banco A., a F. transferiu o montante de € 207.389.559,26 para a conta da H. (cfr. RIT, n° 2.2, ponto 6, a fls. 72 dos autos e fls. 133 a 137 e 139);

N) A actividade da F. caracterizou-se do seguinte modo:

- Nos exercícios de 2001 a 2003 a rubrica "Investimentos Financeiros" representava 99% do total do Activo da empresa, totalizando € 173.105.515,72, valor que correspondia ao saldo final a 31 de Dezembro de cada um dos respectivos exercícios;

- Os investimentos financeiros correspondem em exclusivo a empréstimos obrigacionistas concedidos à sociedade F.O., residente nas Ilhas Channel, reembolsados no final do ano de 2004, passando então o saldo desta rubrica a ter um valor nulo;

- No ano de 2001 foram também contabilizados na rubrica "Investimentos Financeiros" dois depósitos em GBP, cada um no valor de £ 10.000.000,00, levantados antes de 31 de Dezembro desse ano de 2001;

- No final de 2004 a rubrica "Outras aplicações de tesouraria-curto prazo" passou a representar 99,46% do valor total do Activo, em resultado da aplicação parcial dos recebidos pela F., na sequência do reembolso do empréstimo obrigacionista. (Cfr. RIT, n° 1.3a fls. 65 dos autos e fls. 117 a 118);

O) No período entre 2001 e 2004, a F. não possuía imobilizado corpóreo nem incorpóreo, e não suportou qualquer encargo com pessoal (cfr. RIT, n° 1.3, pontos 6 e 9, a fls. 65 e 66 dos autos e fls. 117 a 118);

P) Os custos suportados pela F. no período de 2001 a 2004 representaram, em média, 0,07% do total dos proveitos registados nos respectivos exercícios (cfr. RIT, n° 1.3, ponto 7, a fls. 65 dos autos e fls. 117 a 118);

Q) A sede social da F. encontra-se localizada nas instalações da empresa "N. – N., SA", suportando a F., a título de inerentes encargos, o montante anual de € 900,00, o qual inclui ocupação do espaço, consumos de água, de electricidade, bem como de quaisquer outros custos associados à respectiva manutenção (cfr. RIT, n° 1.3, ponto 10, a fls. 66 dos autos e fls. 102 a 108 e 117 a 118);

R) Em 22.12.2004, a F.O. procedeu ao reembolso integral dos empréstimos obrigacionistas concedidos pela F. (cfr. RIT, n° 3.2.2- b) a fls. 80 dos autos);

S) A F., seguidamente, procedeu ao reembolso integral das prestações suplementares recebidas do seu sócio único – a Impugnante (cfr. RIT, n° 3.2.2-b) a fls. 80 dos autos);

T) Os empréstimos obrigacionistas concedidos à F.O. renderam juros à F., no período de 2001 a 2004, que ficaram isentos de IRC face ao regime de tributação da empresa, correspondendo, em 2003, ao montante de € 6.616.950,23, e em 2004, ao montante de € 6.210.193,89 (cfr. RIT, n° 2.2, ponto 7, a fls. 72 dos autos e fls. 141);

U) A F. distribuiu lucros à Impugnante no exercício de 2004, nos montantes de € 4.374.000,00 e de € 2.124.000,00, correspondentes a lucros de 2003 e a lucros antecipados de 2004, totalizando o montante global de € 6.498.000,00 (cfr. RIT, n° 2.2, ponto 9, a fls. 72 dos autos);

V) Em 17.04.2007, a Impugnante foi objecto de uma acção de inspecção externa em sede de IRC, no âmbito da qual foram efectuadas correcções à matéria colectável, ao exercício de 2004, no montante de € 6.498.000,00 (cfr. RIT de fls. 52 a 231 dos autos);

W) Em 11.06.2007, a Impugnante foi notificada do projecto de relatório de inspecção, para exercer o direito de audição prévia (cfr. artigo 3º da p.i.; e documento de fls. 236 a 270 dos autos);

X) Mediante despacho do Director-Geral dos Impostos, proferido em 12.09.2007 e exarado no Relatório n° 03/COM1/2007, foi autorizada a aplicação da cláusula geral anti-abuso, prevista no artigo 38° da LGT (cfr. fls. 232 dos autos);

Y) A Impugnante exerceu o direito de audição prévia, com os fundamentos que se dão aqui por integralmente reproduzidos (cfr. fls. 271 a 313 dos autos);

Z) As correcções aritméticas a que se refere a alínea V) supra, foram efectuadas com base na fundamentação constante do RIT, que aqui parcialmente se transcreve:

"(…) 3. APLICAÇÃO DAS NORMAS ANTI-ABUSO

3.1 ENQUADRAMENTO LEGAL

A Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto-Lei 398/98 de 17 de Dezembro e com entrada em vigor em 1999/01/01, contemplava, no seu art° 38º, uma cláusula anti-abuso com a seguinte redacção:

"A ineficácia dos negócios jurídicos não obsta à tributação, no momento em que esta deva legalmente ocorrer, caso já se tenham produzido os efeitos económicos pretendidos pelas partes.”

Com a Lei nº 100/99, de 26 de Julho, o referido art.° 38º da LGT, passou a ter a seguinte redacção: (…).

Posteriormente, com a Lei nº 30-G/2000 de 29 de Dezembro, foi alterada a redacção do nº 2 do art.° 38º em questão, que passou a referir:

"2 - São ineficazes no âmbito tributário os actos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, actos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efectuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”.

Por outro lado, a disposição que o Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) consagra à aplicação das normas anti-abuso, nomeadamente através do n.° 2 do art° 63.° que refere que, as disposições anti-abuso consistem em "quaisquer normas legais que consagrem a ineficácia perante a administração tributária de negócios ou actos jurídicos celebrados ou praticados com manifesto abuso das formas jurídicas de que resulte a eliminação ou redução dos tributos que de outro modo seriam devidos".

Esta legislação tem aplicabilidade sempre que as empresas praticam uma série de actos anómalos, desadequados face ao fim económico pretendido, mas que em si mesmo são legais e produzem o mesmo resultado económico (mas não fiscal) dos actos usuais e adequados que estão definidos nas normas de incidência de IRC.

3.2 SUBSUNÇÃO DOS FACTOS À LEI

Os actos que a Administração Tributária classifica como inseridos no n.° 2 do art.° 38.° da Lei Geral Tributária, não têm como propósito a poupança fiscal, mas sim uma actuação contra os fins essenciais do ordenamento jurídico-tributário. O que se pretende neste caso é combater a elisão fiscal, concretizada em actos jurídicos formalmente lícitos. De facto, os lucros distribuídos pela F. à J., constituem a prática de um acto com a intenção de obter rendimentos isentos de tributação, através de um acto jurídico formalmente lícito, que de outra forma, mais concretamente sob a forma de juros obtidos, estariam sujeitos a efectiva tributação.

De acordo com a legislação descrita, os lucros distribuídos pela F. à J., constituem actos dirigidos, por meios artificiosos, através da utilização desnecessária da empresa F., e com abuso das formas jurídicas, à eliminação de imposto que seria devido se os juros provenientes dessa aplicação de capital fossem devidamente contabilizados na esfera da J., e que, sem a utilização de uma empresa, sua participada, que beneficia de um regime fiscal temporário e favorável, seriam correctamente tributados em sede de IRC na esfera da J., na medida em que concorreriam para a formação do seu resultado fiscal.

Efectivamente, a J., ao transformar os juros do capital que aplica, em lucros distribuídos por uma empresa sua participada isenta de IRC, produz um efeito de fuga ao imposto, pois este seria exigido se a empresa tivesse optado por uma aplicação directa, com resultados económicos equivalentes. No caso em concreto, a J. obtém rendimentos sob a forma jurídica de lucros que lhe foram distribuídos, quando na realidade os mesmos consistem pura e simplesmente em juros resultantes dos empréstimos efectuados à empresa F.O..

A utilização da F. nestas operações financeiras não constitui qualquer mais-valia, incorporando este conceito qualquer vantagem negocial que a sua intervenção poderia acarretar para qualquer das partes intervenientes, numa clara alusão de que a sua utilização teve como única e principal finalidade um aproveitamento abusivo das formas legais com o intuito de obter rendimentos que, sem o uso de tais formas, ficariam sujeitos e não isentos de tributação.

3.2.1 Intervenção da F.

A utilização da F. no referido contrato de empréstimo, teve um único, claro e inequívoco objectivo: a eliminação da carga fiscal sobre os respectivos juros, traduzida, na esfera da sociedade J., numa redução significativa da base tributável a considerar nos exercícios de 2001 a 2004.

Com efeito, ao abrigo do disposto no n.° 1 do art.° 46° do CIRC, a J., deduziu para efeitos de apuramento do lucro tributável do exercício de 2004, os lucros distribuídos pela F. (Anexo XVI, fls. 51), contabilizados em proveitos, no total de 6.498.000,00 Euros (…), operando assim uma redução de igual montante no valor a tributar naquele exercício. De notar que, no exercício de 2004, a J. obteve um prejuízo para efeitos fiscais no montante de 11.445.998,43 Euros (o qual está obviamente influenciado pela dedução indevida de 6.498.000,00 Euros).

3.2.2 Actividade Exercida pela F.

A F., … está habilitada a desenvolver diversas actividades de índole económico-financeira. Contudo, a única actividade que a sua contabilidade regista, consiste na aplicação que a mesma faz das prestações suplementares de capital entregues pelo sócio único J.. …, a aplicação de tesouraria efectuada pela F. em 2004/12/22 que no exercício de 2004 lhe rendeu juros no valor de 2.374,17 Euros, encontra-se também directamente relacionada com a dita aplicação das prestações suplementares de capital realizadas pela J., porquanto resulta da aplicação de fundos conexos com o reembolso do empréstimo (capital e juros), recebido da F.O.. De facto, do total de 174.469.278,69 Euros recebido pela F. na sequência do reembolso do empréstimo concedido à F.O., apenas 170.398.404,05 Euros se destinaram ao reembolso de Prestações Suplementares, sendo o restante canalizado para uma aplicação de tesouraria enquanto a F. não procede à sua distribuição ao sócio sob a forma de lucro.

Nos pontos seguintes ficará demonstrado o quanto era dispensável o envolvimento da F. nas operações financeiras de que tomou parte, a saber:

a) A F. tem como única actividade a concessão de empréstimos financeiros à entidade não residente F.O.. O capital emprestado tem como única e exclusiva origem de fundos, o valor da prestação suplementar de capital realizada em Junho de 2001 pelo sócio único, J.. Essa actividade gera rendimentos sob a forma de juros que, no próprio exercício (lucros antecipados), e no exercício seguinte, após deliberação tomada em Assembleia-Geral, são distribuídos ao sócio sob a forma jurídica de participação nos lucros.

b) Em termos concretos a F. obtém um rendimento mínimo com os empréstimos concedidos que celebra, como se demonstra:

1. Em 2001, a J. transfere da sua conta no A. * A. - Sucursal em Portugal, um determinado montante com data-valor de 2001/06/15, para uma conta da mesma instituição bancária, cujo titular é a F.. Dessa conta a F., efectua para outra conta do A., cujo titular é a H., uma transferência de montante um pouco inferior e com a mesma data-valor. No mês de Março dos exercícios de 2002, 2003 e 2004, idêntica transferência de fundos é efectuada a partir da conta da J. no A. * A., desta feita para a conta da F. no H. – H., NV, da qual, com a mesma data-valor e a título de distribuição de lucros, são transferidos - juntamente com o montante relativo a juros vencidos na mesma data - para a conta da J. no banco A.. Nestas operações de transferência de capital de umas contas para as outras, uma vez que a data-valor e os montantes envolvidos são praticamente iguais, a F. não obtém qualquer juro pela permanência do capital na sua conta. Ressalve-se que em 2004/12/22, a F.O. procedeu ao reembolso integral dos empréstimos concedidos pela F., tendo esta sociedade, com o fluxo financeiro recebido, procedido ao reembolso integral das prestações suplementares recebidas do seu sócio único, utilizando o montante remanescente para efectuar uma aplicação de tesouraria de curto prazo.

2. O rendimento que esse capital aplicado gera à F. também ele não tem reflexos visíveis na contabilidade desta empresa. …, é possível constatar que os resultados líquidos apurados nos exercícios de 2003 e 2004 pela F., correspondem em média a 99,93% dos juros obtidos com os empréstimos concedidos à F.O. e que os resultados líquidos do exercício são distribuídos praticamente na sua totalidade ao seu sócio único J..

3. Para além das razões supra invocadas e dado que a F. não apresenta necessidades de tesouraria, facilmente se constata que as prestações suplementares de capital apenas se revelam necessárias, na medida da concessão de empréstimos que poderiam ser efectuados directamente pela sociedade J..

4. Da análise efectuada à estrutura do Balanço e da Demonstração de Resultados da sociedade F., no período de 2001 a 2004, conjugado com a informação prestada por escrito em resposta à notificação pessoal efectuada em 2007/05/10, verifica-se que a mesma não possui quaisquer meios físicos na sede social (inexistência de valores registados nas contas 42 - ‘Imobilizações Corpóreas’ e 44 - 'Imobilizações em Curso'), consubstanciada na ausência de instalações próprias ou arrendadas para efectuar "prestações de serviços nas áreas contabilística e económica, elaboração de estudos económicos e de análise, assim como consultadoria, nas referidas áreas, gestão da sua carteira de títulos próprios e compra de imóveis para revenda", conforme descrição do objecto de sociedade constante da certidão (…).

5. Relativamente a meios humanos, também facilmente se constata que a F. não procedeu à contratação ou subcontratação de funcionários ou empresas especializadas na área de Recursos Humanos. De facto, nas Demonstrações de Resultados, relativas aos exercícios de 2001 a 2004, não consta qualquer custo com pessoal afecto à empresa (a conta 64 - 'Custos com Pessoal' não evidencia quaisquer valores, no referido período), a que acresce o facto de os Gerentes nomeados, terem sido no decurso dos seus mandatos, remunerados em sede de IRS - categoria A - trabalho dependente, pela J. ou pela J. Serviços, SA detida a 100% por aquela, não auferindo, de acordo com as actas das Assembleias Gerais, qualquer remuneração pelo exercício das funções inerentes ao cargo de gerência da F..

No que respeita à Técnica de Contas, M. H. G. M., responsável pela contabilidade da sociedade F. no período de 2001 a 2004, constata-se que, durante o exercício das suas funções, foi igualmente remunerada, em sede de IRS - categoria A - trabalho dependente, pela J..

Estes factos mostram inequivocamente que os serviços de gestão e contabilidade são efectuados pelas empresas do Grupo J., mais concretamente nas suas instalações e pelos seus funcionários. Esta situação é corroborada pela análise efectuada às facturas emitidas pela N. (empresa onde se encontra instalada a sede da F.), onde apenas são debitados à F., os custos associados a despesas com faxes, selos, fotocópias, prestação de serviços de secretariado inerente a estes custos e o valor relativo à sede social.

c) O facto de existir coincidência de datas entre a realização da primeira prestação suplementar efectuada pelo sócio único e a tomada de posição contratual assumida pela F. relativamente quer às obrigações emitidas pela F.O. quer aos contratos de depósito, evidencia que a J. é a entidade decisora e gestora das operações de financiamento.

d) O envolvimento de pessoas do Grupo J. ligadas a estas operações financeiras é tão elevado, que não existe outra razão senão a fiscal para a utilização da F. como parte interveniente nestes negócios. Na celebração do contrato de compra e venda de obrigações e de cessão de posição contratual com a H. (…), no qual a F. assume o direito de ser reembolsada dos empréstimos originariamente concedidos pela H. à F.O. (2001/06/12), assinaram por parte da F., os senhores J. P. L. e R. M. L. F. N. R. que, fazendo parte do corpo de gerentes da F., foram remunerados em sede de Categoria A de IRS - Trabalho Dependente pela J. S., SA, participada directamente em 100% pela J..

Para além de serem gerentes da F., os referidos senhores, pertenceram igualmente ao corpo de gerência da H., exercendo o Sr. R. R. ainda a gerência das sociedades E. – S., Lda - Zona Franca da Madeira e P. – S., Lda - Zona Franca da Madeira, empresas estas participadas maioritariamente pela J..

Perante estes factos é legítimo considerar que os empréstimos concedidos à F.O. constituem operações financeiras efectuadas com origem no seio do grupo, pelo que não se poderá invocar que a intervenção da F. era indispensável à realização das operações.

e) A F. ao não dispor de quadros, especializados ou não, e ao não subcontratar qualquer entidade externa ficaria teoricamente inibida de realizar as operações atrás descritas.

Mas na realidade estas operações foram de facto realizadas, tal como anteriormente ficou demonstrado. Contudo, e tal como se provou inequivocamente, estas operações foram pensadas e implementadas pelos sócios da sociedade, na medida em que esta nunca possuiu ou possui capacidade, know-how e meios humanos para levar a cabo a concessão/celebração e posterior gestão destes financiamentos que em seu nome efectuou.

À situação descrita no parágrafo anterior; acresce o facto de a F. não ter, nem nunca ter tido, qualquer capacidade física ou funcional, para desenvolver qualquer actividade. Nesse sentido, é inequívoco que as aplicações de capital efectuadas pela F., são na realidade aplicações de capitais eminentemente da sociedade J..

3.3 SÍNTESE

Importa realçar e clarificar que não é a constituição da F., enquanto empresa, que a Administração Tributária coloca em causa, mas tão somente os juros que ela regista na sua contabilidade como sendo seus, quando na realidade pertencem na totalidade à J. que os incorpora nos seus proveitos sob a forma de lucros distribuídos. Importa ainda salientar que a J., poderia por si só efectuar os empréstimos à F.O., uma vez que, quer os meios financeiros, quer os meios humanos, quer ainda os meios estruturais são sua pertença ou de entidades que controla. Nesse sentido, o acto jurídico colocado em questão pela Administração Tributária, encontra-se relacionado com o recebimento de lucros por parte da J., que deveriam, face aos elementos provados no presente relatório, consubstanciar-se inequivocamente como recebimentos de juros.

Face a esta situação, a J. procedeu indevidamente à dedução do referido proveito (lucro distribuído pela F.) por força de um normativo legal que não terá aqui aplicabilidade (art° 46° do CIRC), não concorrendo as importâncias recebidas para a formação do resultado fiscal, quando de facto deveriam as mesmas influenciar positivamente aquele resultado.

4. CONCLUSÕES

4.1 DOS FACTOS

… atendendo, nomeadamente a que:

a) A F. não possui qualquer tipo de estrutura física, própria ou arrendada;

b) A F. não contratou ou subcontratou pessoal (…)

c) Os seus gerentes foram e/ou são funcionários das empresas que constituem o grupo J.;

d) Eram os gerentes que detinham o Know-How para a celebração dos contratos de empréstimo, pois quando os mesmos foram celebrados, os gerentes da F., desempenhavam nas referidas datas, funções como quadros superiores do grupo J.;

e) Os proveitos gerados na esfera da F. não têm como finalidade incrementar a estrutura económico-financeira da empresa, dado que os mesmos são transferidos na sua totalidade para o seu sócio único, J.;

Conclui-se que o contrato que a F. celebrou com a H., inerente à aquisição de obrigações da sociedade F.O., poderia ter sido perfeitamente celebrado pela J., não acarretando esse cenário qualquer desvantagem para esta que não fosse a tributação em sede de IRC dos juros provenientes desses empréstimos que necessariamente iria receber. Neste contexto, não pode a J. invocar qualquer outra razão, seja ela de natureza financeira, comercial ou outra, que não seja a fiscal, para a utilização da F. como intermediária nestas operações de aplicação de capital.

Claramente fica comprovado que a intervenção da F., na aplicação de capital por parte da J. em empresa não residente, é completamente desnecessária e que a J., utilizou para o efeito, uma empresa sua participada instalada na Zona Franca da Madeira, para desse facto isentar de imposto, proveitos que contabilizados devidamente e tratados sob a forma jurídica normal, na esfera da J., seriam tributados em sede de IRC.

4.2 ENTENDIMENTO DA ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA

De referir, que a Administração Tributária não coloca em causa a utilidade ou necessidade de o contrato ter sido celebrado, ou tão pouco os meios postos em prática para a sua realização. O que a Administração Tributária não aceita é a manipulação da forma jurídica de que foram alvo os rendimentos provenientes da aplicação de capitais por parte da sociedade J., quando esta os classifica na sua esfera como lucros distribuídos pela F. não como juros.

Os rendimentos que contribuíram para a formação dos lucros distribuídos pela F. à J. em 2004, respeitam a juros obtidos com a concessão de empréstimos, pelo que os mesmos deveriam constituir proveitos financeiros da J., em observância ao estipulado na alínea c) do n.° 1 do art.° 20.° do CIRC, influenciando dessa forma positivamente e por igual montante, o respectivo lucro tributável (sem possibilidade de dedução no Quadro 07 da declaração periódica de rendimentos, Mod. 22 de IRC).

Os factos acima expostos, consubstanciam que os montantes atribuídos a título de lucros distribuídos pela F. à J., correspondem à remuneração da aplicação de capital por parte da J., com a obrigatoriedade de o proveito subsequente ser efectivamente tributado em sede de IRC, na sua esfera, nomeadamente nos termos da alínea c) do n.° 1 do art.° 20° do CIRC.

No âmbito do procedimento adoptado pelo sujeito passivo, anteriormente descrito, foi indevidamente deduzido para efeitos de apuramento do lucro tributável do exercício de 2004 (Campo 232 do quadro 07 da declaração periódica de rendimentos, Mod. 22 de IRC), o valor relativo aos "lucros distribuídos" pela F., no montante de 6.498.000,00 Euros.

Por último, será de referir que, apesar dos empréstimos F.Fl e F. F. em questão terem sido integralmente reembolsados pela F.O. à F. em 2004/12/22, os factos analisados e geradores do presente relatório vão continuar a produzir efeitos em 2005, uma vez que, neste exercício, a F. procede à distribuição ao seu sócio único J., do lucro disponível de 2004, lucro esse que, conforme ficou comprovado, é na sua quase totalidade, composto pelos juros decorrentes dos referidos empréstimos.

4.3 APLICABILIDADE DA CLÁUSULA GERAL ANTI-ABUSO

Os relatos anteriormente apresentados permitem enquadrar os actos no estatuído no n.° 2 do art.° 38.° da Lei Geral Tributária, uma vez que se encontram preenchidos os requisitos de aplicação da cláusula geral anti-abuso, consubstanciados em diversos elementos, que no entender de Gustavo Lopes Courinha, são quatro:

§ a forma utilizada - elemento meio;

§ a vantagem fiscal e a equivalência económicas obtidas - elemento resultado;

§ a motivação do contribuinte - elemento intelectual;

§ a reprovação normativo-sistemática da vantagem obtida - elemento normativo.

Senão vejamos,

1. O elemento meio encontra-se previsto nos factos descritos, uma vez que a opção escolhida pelo contribuinte, recebimento de lucros em vez de juros, teve como objecto a obtenção de uma vantagem fiscal. De facto, ao distorcer a operação, tal como se demonstrou durante o presente relatório, através da utilização artificiosa de uma empresa (F.) na referida operação e através do consequente tratamento, indevido, dos proveitos inerentes à operação como lucros distribuídos, a J., consegue anular a carga fiscal a que a operação em causa, em condições normais estaria sujeita. (…)

2. O elemento resultado encontra-se presente quando “…se comprove a característica especial da equivalência de resultados não fiscais, a que não corresponde uma equivalente oneração tributária", verificando-se tal equivalência quando os actos praticados possam ser substituídos nos efeitos pelos actos normais tributados. Ora tal sucede no caso presente, conforme foi demonstrado nas alíneas b), c), d) e e) do ponto 3.2.2, a J. poderia realizar a operação sem a F., obtendo os mesmos rendimentos económicos.

3. O elemento intelectual, ou seja a necessidade de que “…as escolhas e formas adoptadas pelo contribuinte sejam fiscalmente dirigidas e que aquele (resultado fiscal) prevaleça sobre este (resultado não fiscal)", encontra-se demonstrada ao longo do relatório no qual ficou evidenciado que o contribuinte atribuiu às formas adoptadas um predominante fim fiscal - ver ponto 3.2 -, em que se provou que os lucros recebidos na esfera da J. se consubstanciam de facto como remuneração do capital aplicado por esta empresa, e consequentemente como juros, conforme se constata pelos Anexos VI a XVII.

4. O elemento normativo, ou seja, a existência de "...uma reprovação de um certo resultado obtido ou pretendido, quando confrontado com a intenção ou espírito da lei, do Código do Imposto em causam…”. Tal reprovação existe, pois com estas operações, o sujeito passivo procura evitar que sejam tributadas situações que a lei fiscal visa tributar, como é o caso dos juros. Acresce que o sujeito passivo procura beneficiar de uma vantagem fiscal de dedução dos rendimentos obtidos resultantes de lucros distribuídos, não estando seguramente no espírito do legislador a utilização deste mecanismo em situações criadas com intuito de utilizar abusivamente este normativo, facto conseguido, tal como se demonstra no presente relatório, através da transformação de juros em lucros distribuídos.

O contorno da lei permitiu ao contribuinte atingir efeitos económicos equivalentes sem ser tributado, prejudicando apenas uma terceira pessoa - o Estado.

Na realidade o que se verificou foi unicamente uma poupança fiscal tendo a Administração Tributária provado a inexistência de qualquer racionalidade económica na constituição e intervenção da empresa F. em toda a operação descrita, que não a referida poupança fiscal, com a totalidade dos benefícios económicos a decorrer para o Sujeito Passivo.

Os caminhos escolhidos pelo Sujeito Passivo para obter os resultados pretendidos não são suportados por qualquer razão económica válida, mas apenas a busca de vantagens fiscais, pelo que se efectivou aqui a reposição da verdadeira situação e a tributação de acordo com as normas que devem ser aplicáveis.

Verificados que estão os requisitos para a aplicação do n° 2 do art.° 38° da LGT, resulta da aplicação do mesmo, a ineficácia para efeitos tributários do recebimento de lucros e a necessidade de tributar as operações de acordo com as normas aplicáveis ao recebimento de juros. Tal consubstancia-se na desconsideração da dedução prevista no art.° 46° do CIRC e na tributação dos juros com base no art° 20°, n.° 1, alínea c) do mesmo Código, no montante de 6.498.000,00 Euros, relativamente ao exercício de 2004 (Anexo XVI, fls. 51).

Nesse sentido e em consequência, encontram-se verificados os pressupostos constantes do n.° 2 do art.° 63° do CPPT, pelo que nos termos dos n.°s subsequentes da mesma norma, elaborou-se o presente relatório, contendo os elementos referidos no n.° 9 do referido dispositivo legal, que se remetem ao sujeito passivo no sentido de ser dado cumprimento ao direito de audição prévia previsto nos nº 4 e 5 do art.° 63° do CPPT. (…)". (sublinhado nosso) (cfr. RIT a fls. 53 a 231 dos autos).

AA) Na sequência das correcções efectuadas, com a fundamentação descrita na alínea antecedente, foi emitida, em 05.11.2007 a liquidação de IRC nº 2007.8910017484, bem como a demonstração de acerto de contas nº 2007. 00001933879, ambas no montante de € 0,00 (cfr. fls. 233 a 235 dos autos);

BB) A Impugnação foi remetida ao Tribunal por meio de correio registado, em 05.12.2007, tendo dado entrada em 06.12.2007 (cfr. registo postal, a fls. 316 e carimbo a fls. 2 dos autos).

Mais se provou que:

CC) O Grupo J., fruto de um pior desempenho no final dos anos 90 e por pressão do mercado, perspectivou uma reestruturação societária que se consubstanciava na cisão entre os dois grandes ramos de actividade a que se dedicava – distribuição alimentar/retalho (J.D), por um lado, e indústria (J.I), por outro (depoimentos das testemunhas);

DD) No âmbito da implementação da operação societária a que se refere a alínea precedente, que surge a aquisição da sociedade F., à qual são alocados parte dos investimentos detidos pela sociedade H., sociedade que centralizava os meios financeiros destinados a projectos de expansão no exterior, designadamente Brasil e Polónia; a sociedade F. deveria passar a deter os investimentos que tinham em vista a internacionalização do ramo da Indústria, enquanto a H. manteria os investimentos alocados à expansão internacional no ramo da Distribuição (depoimentos das testemunhas);

EE) A H. e a F. eram sociedades sedeadas na Zona Franca da Madeira que serviam de veículos para investimento no estrangeiro, cada uma na respectiva área, sendo que a sua utilização, naquela zona geográfica, se devia ao facto de as vantagens fiscais amortecerem o risco do investimento no estrangeiro, sem contaminar directamente a contabilidade do Grupo em Portugal e por permitir maior liberdade de circulação de capitais (depoimento das testemunhas);

FF) As perspectivas de internacionalização do ramo da indústria, para as quais iria servir de veículo ou plataforma de investimento a F., não se vieram a concretizar por se terem frustrado algumas operações “prévias” de aquisição de sociedades no território nacional, como a C. ou D. (depoimento das testemunhas);

GG) É política de gestão do Grupo J. que, sempre que haja resultado positivo (lucro, excedente) nas participadas, será para distribuir aos accionistas, sendo canalizados os fundos até à sociedade cúpula – a Holding –, que faz a gestão das necessidades financeiras das sociedades participadas, de forma consolidada, distribuindo dividendos aos accionistas (particulares e outros), e redistribuindo o investimento de acordo com as áreas prioritárias e as decisões de investimento (depoimento das testemunhas);

HH) Parte relevante das empresas que pertencem ao Grupo J., e de que é exemplo a F., não são dotadas de estrutura física e/ou meios humanos, uma vez que o Grupo dispõe de departamentos de apoio funcional às participadas (geralmente nas SGPS), que prestam serviços de contabilidade, consultoria, tesouraria, recursos humanos, etc., mediante a cobrança de um fee, que é calculado em função do volume de trabalho que cada empresa implica, sendo certo que grande parte desses fees são pagos pelas sociedades operacionais e de maior grandeza (depoimento de testemunhas)”.

II.B. Refere-se ainda na sentença recorrida, quanto aos factos não provados:

“Inexistem factos não provados com interesse para a decisão da causa”.

II.C. Foi a seguinte a motivação da decisão quanto à matéria de facto:

“Quanto aos factos provados, a convicção do Tribunal fundou-se na análise crítica da prova documental constante dos autos, bem como do processo administrativo em apenso, conforme especificado em cada uma das alíneas supra.

Para fixação dos factos constantes das alíneas CC) a HH) contribuíram decisivamente os depoimentos das 3 testemunhas arroladas pela Impugnante: J. M. P. L. (à data dos factos, gestor do Grupo J.); J. A. S. J. (à data, director financeiro da Impugnante) e A. L. A. C. V. (à data, responsável pelo planeamento e controlo de operações de fusão, aquisição e alienação), os quais depuseram de forma natural, coerente e espontânea, que ao Tribunal se revelaram credíveis.

As testemunhas mostraram ter amplo conhecimento sobre o Grupo J. – designadamente constituição, modo de funcionamento, política de gestão e financeira, estratégia – todos eles coincidindo e corroborando a mesma versão dos factos.

Sinteticamente, todos se referiram à perspectiva de reestruturação do Grupo no final dos anos 90/início de 2000, motivada pela pressão do mercado, já que não era bem vista a sociedade cotada em bolsa abranger dois ramos distintos de actividade. A solução discutida pela Administração do Grupo J. passava por uma operação de cisão entre as duas grandes áreas de negócio: área de distribuição alimentar/retalho, por um lado, e a área da Indústria, por outro (onde o grupo actuava em parceria com a U.). A intenção era isolar em subholdings as referidas áreas, de forma a manterem “isolada” cada actividade.

Embora não viesse a ser integralmente concretizada tal operação, facto é que foi planeada e preparada e muitas das operações “prévias” foram levadas a cabo, encontrando-se em grande parte separadas as actividades.

Nessa sequência, as testemunhas explicitaram a razão da existência da sociedade "H. – S., Lda.", sedeada na Zona Franca da Madeira, que centralizava os meios financeiros para realizar investimentos no estrangeiro (tanto na área de indústria como retalho), isto é, funcionava como veículo aos projectos de expansão, designadamente na Polónia, Brasil e Inglaterra.

Com a ideia de cisão do Grupo, era então necessário “cindir” a sociedade H. (que, repita-se, “servia” ambas as áreas de actividade), pelo que se destacaram os meios financeiros/investimentos cujo capital seria afecto à internacionalização na área da Indústria, os quais passaram para a esfera da F., adquirida para esse efeito.

A H. passaria apenas a manter/deter os investimentos alocados à internacionalização da área de distribuição alimentar/retalho e seria colocada sob a alçada da subholding do retalho, enquanto a F. seria veículo dos investimentos estrangeiros na área da Indústria e colocada sob a respectiva subholding.

Ambas as sociedades eram sedeadas na Zona Franca da Madeira, por oferecer um regime fiscal vantajoso (ao nível da isenção de imposto nos juros recebidos, ao nível da retenção na fonte) e possibilitava maior liberdade de circulação de capitais, sublinhando ainda todas as testemunhas que a “interposição” das referidas sociedades permitia amortizar o risco do investimento no estrangeiro sem contaminar o Grupo, potenciando o espírito concorrencial.

Assinalaram ainda que as perspectivas de investimento no estrangeiro, na área da Indústria, designadamente na Polónia, não se vieram a concretizar, porquanto falharam negociações para aquisição (prévia) de sociedades como a C. e D.

Enquanto não se concretizavam os investimentos, a F. teria que rentabilizar os fundos, mantendo as aplicações financeiras que “herdou” da H..

Todas as testemunhas corroboraram também que era normal que a F. distribuísse o seu cash-flow (juros das obrigações) para a accionista (aqui Impugnante), sob a forma de dividendos. Explicitaram que a política do Grupo é a distribuição dos fundos aos accionistas, em pirâmide, até à Holding, que faz depois a gestão das necessidades de financiamento de forma consolidada, reinvestindo ou realocando, posteriormente, os fundos às participadas, de acordo com as decisões de investimento. As sociedades participadas apenas retinham os fundos quando havia possibilidade de investimento iminente.

De resto, confirmaram que esta é a lógica da generalidade dos Grupos societários e que não vislumbram outra forma de procedimento.

Questionados ainda sobre a ausência de estrutura física da sociedade F., todos coincidiram na justificação, declarando peremptoriamente que parte relevante das sociedades do Grupo não são dotadas de meios humanos nem estrutura física própria, atenta a respectiva actividade (por exemplo, as financeiras e imobiliárias) e atento o facto do Grupo dispor de departamentos de apoio funcional às participadas. Normalmente, as SGPS do Grupo prestam serviços de contabilidade, tesouraria, consultoria, recursos humanos às participadas, por contrapartida a um sistema de cobrança de fees, em função do volume de trabalho que implica e da “grandeza” de cada sociedade.

No caso da F., por não ser uma empresa operacional, tendo antes actividade de índole económico-financeira, que consistia na detenção e gestão de investimentos com vista à internacionalização do ramo da indústria, e porque não implicava carga de trabalho relevante, o fee era imaterial (quando comparado com as demais sociedades operacionais que beneficiavam dos mesmos serviços), motivo pelo qual, pela sua inexpressão, não era cobrado”.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

III.A. Do erro de julgamento

Considera a Recorrente que a sentença recorrida padece de erro de julgamento, uma vez que, na sua perspetiva, se encontram preenchidos todos os pressupostos de aplicação da cláusula geral anti-abus0 (CGAA).

Vejamos então.

Como se refere no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte, de 28.09.2017 (Processo: 01188/11.0BEPRT):

“[O] planeamento fiscal legítimo “consiste numa técnica de redução da carga fiscal pela qual o sujeito passivo renuncia a um certo comportamento por este estar ligado a uma obrigação tributária ou escolhe, entre as várias soluções que lhe são proporcionadas pelo ordenamento jurídico, aquela que, por acção intencional ou omissão do legislador fiscal, está acompanhada de menos encargos fiscais” (Os Limites do Planeamento Fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, pág. 21).

Por seu lado, o planeamento fiscal ilegítimo “consiste em qualquer comportamento de redução indevida, por contrariar princípios ou regras do ordenamento jurídico-tributário, das onerações fiscais de um determinado sujeito passivo”.

Pois bem, é às situações que configuram planeamento fiscal ilícito ou extra legem que irá ser aplicada a CGAA e, consequentemente serão desconsiderados os efeitos fiscais do acto ou negócio jurídico lícito praticado pelo contribuinte que desencadeou na obtenção de vantagens fiscais”.

A CGAA está prevista no art.º 38.º, n.º 2, da LGT, nos termos do qual (redação à época):

“2 - São ineficazes no âmbito tributário os atos ou negócios jurídicos essencial ou principalmente dirigidos, por meios artificiosos ou fraudulentos e com abuso das formas jurídicas, à redução, eliminação ou diferimento temporal de impostos que seriam devidos em resultado de factos, atos ou negócios jurídicos de idêntico fim económico, ou à obtenção de vantagens fiscais que não seriam alcançadas, total ou parcialmente, sem utilização desses meios, efetuando-se então a tributação de acordo com as normas aplicáveis na sua ausência e não se produzindo as vantagens fiscais referidas”.

Tratando-se, como é, de um mecanismo que permite à administração tributária (AT) pôr em causa uma determinada opção negocial do contribuinte, a sua aplicação contém especiais exigências, que passam, desde logo, pela existência de um procedimento específico.

Assim, nos termos do art.º 63.º do CPPT, na redação à época vigente:

“1 - A liquidação dos tributos com base em quaisquer disposições antiabuso nos termos dos códigos e outras leis tributárias depende da abertura para o efeito de procedimento próprio.

2 - Consideram-se disposições antiabuso, para os efeitos do presente Código, quaisquer normas legais que consagrem a ineficácia perante a administração tributária de negócios ou atos jurídicos celebrados ou praticados com manifesto abuso das formas jurídicas de que resulte a eliminação ou redução dos tributos que de outro modo seriam devidos.

3 - O procedimento referido no número anterior pode ser aberto no prazo de três anos após a realização do ato ou da celebração do negócio jurídico objeto da aplicação das disposições antiabuso.

4 - A aplicação das disposições antiabuso depende da audição do contribuinte, nos termos da lei.

5 - O direito de audição será exercido no prazo de 30 dias após a notificação, por carta registada, do contribuinte, para esse efeito.

6 - No prazo referido no número anterior, poderá o contribuinte apresentar as provas que entender pertinentes.

7 - A aplicação das disposições antiabuso será prévia e obrigatoriamente autorizada, após a observância do disposto nos números anteriores, pelo dirigente máximo do serviço ou pelo funcionário em quem ele tiver delegado essa competência.

8 - As disposições não serão aplicáveis se o contribuinte tiver solicitado à administração tributária informação vinculativa sobre os factos que a tiverem fundamentado e a administração tributária não responder no prazo de seis meses.

9 - Salvo quando de outro modo resulte da lei, a fundamentação da decisão referida no n.º 7 conterá:

a) A descrição do negócio jurídico celebrado ou do ato jurídico realizado e da sua verdadeira substância económica;

b) A indicação dos elementos que demonstrem que a celebração do negócio ou prática do ato tiveram como fim único ou determinante evitar a tributação que seria devida em caso de negócio ou ato de substância económica equivalente;

c) A descrição dos negócios ou atos de substância económica equivalente aos efetivamente celebrados ou praticados e das normas de incidência que se lhes aplicam…”.

Esta disposição legal exige, pois, um especial dever de fundamentação por parte da AT, nestes casos.
Nas palavras de Saldanha Sanches(1)“[d]a fundamentação devem constar a descrição da ‘verdadeira substância económica’ do acto jurídico realizado, a indicação dos elementos que demonstrem o fim único ou principal da operação (redução da carga fiscal), a tributação que seria devida se fosse feito o outro acto ou negócio jurídico com ‘substância económica equivalente’ e, também, a descrição dos actos ou negócios que contêm a tal ‘substância económica equivalente’”.
Seguindo a sistematização de Gustavo Lopes Courinha(2),são os seguintes os elementos ou pressupostos de aplicação da CGAA:

a) Elemento meio;

b) Elemento resultado;

c) Elemento intelectual;

d) Elemento normativo.

O mesmo A. ainda densifica o elemento sancionatório, consubstanciado na efetivação da CGAA.

Lançando mão desta distinção, ainda que se tenha sempre presente que os referidos elementos se conexionam, cumpre, brevemente, densificar os respetivos carateres.

Quanto ao elemento meio, o mesmo implica que os meios (ato ou negócio real, válido e lícito), de que o contribuinte lança mão, devem configurar um abuso de formas jurídicas.
Nas palavras de Gustavo Lopes Courinha, “[c]orresponde à via escolhida pelo contribuinte para obter o desejado ganho ou vantagem fiscal, i.e., o(s) acto(s) ou negócios jurídicos cuja estrutura se encontra determinada em função de um dado resultado fiscal (…) // Tal opção do legislador exige que se retirem as devidas consequências quanto à estruturação do negócio que, para além de dirigido à obtenção da referida vantagem fiscal, será ainda simultaneamente dotado de uma forma anómala, inusual, artificiosa, complexa, ou mesmo contraditória, (…) em consideração dos fins económicos visados pelo contribuinte. É, em conclusão, do nível de incoerência entre a forma ou estrutura escolhida e o propósito económico prático final do contribuinte, entre o fim para que é entregue concretamente essa forma adoptada e a causa que lhe é própria que se aferirá o elemento"(3)

É neste contexto, continua o mesmo A., que se chama à colação a designada step by step doctrine, onde, no fundo, está em causa uma sucessão de negócios que, coordenados, visam a tal obtenção da vantagem fiscal, sendo nestes casos imprescindível uma apreciação dessa estrutura mais complexa, composta de vários atos ou negócios.(4)

A propósito do conceito de meio artificioso ou fraudulento, a nossa jurisprudência(5)tem também lançado mão dos contributos do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), em matéria de apreciação da justificação de determinadas restrições à liberdade de estabelecimento, por motivos de luta contra práticas abusivas.

Assim, a este respeito, refere-se no Acórdão do TJUE de 12.09.2006, Cadbury Schweppes, C-196/04, EU:C:2006:544, n.ºs 51 e 55:

“51 (…) [U]ma medida nacional que restrinja a liberdade de estabelecimento pode ser justificada quando vise especificamente os expedientes puramente artificiais cuja finalidade é fugir à alçada da legislação do Estado-Membro em causa (v., neste sentido, acórdãos ICI, já referido, n.° 26; de 12 de Dezembro de 2002, Lankhorst-Hohorst, C-324/00, Colect., p. I-11779, n.° 37; De Lasteyrie du Saillant, já referido, n.° 50, e Marks & Spencer, já referido, n.° 57).

(…)

55 (…) [P]ara que uma restrição à liberdade de estabelecimento possa ser justificada por motivos de luta contra práticas abusivas, o objectivo específico de tal restrição deve ser o de impedir comportamentos que consistam em criar expedientes puramente artificiais, desprovidos de realidade económica, com o objectivo de eludir o imposto normalmente devido sobre os lucros gerados por actividades realizadas no território nacional”.
No que respeita ao elemento resultado, o mesmo consubstancia-se na obtenção de um resultado fiscal vantajoso como fim último ou dominante,(6)podendo definir-se vantagem fiscal, neste contexto, como “qualquer situação pela qual, em virtude da prática de determinados actos, se obtém uma carga tributária mais favorável ao contribuinte do que aquela que resultaria da prática dos actos normais e de efeito económico equivalente, sujeitos a tributação. Assim, estaremos perante uma comparação entre os ónus fiscais normalmente suportados e os evitados com a actuação produzida. Se de tal análise resultar uma efectiva diferença (…) que seja objectivamente vantajosa para o contribuinte, ter-se-á por verificado este requisito".(7)

Quanto ao elemento intelectual, o mesmo, em síntese, consubstancia-se na motivação fiscal, objetivamente considerada. “Quer isto dizer que não basta decorrer, da análise dos actos ou negócios jurídicos em causa, a obtenção de um resultado fiscalmente vantajoso e um resultado não fiscal equivalente. Exige-se, de igual forma, que as escolhas e formas adotadas pelo contribuinte sejam fiscalmente dirigidas (…) e que aquele (resultado fiscal) prevaleça sobre (…) [o] resultado não fiscal".(8)

Daí que o então art.º 63.º, n.º 9, al. b), do CPPT prescrevesse, como já referido supra, que é fundamental a indicação dos “elementos que demonstrem que a celebração do negócio ou prática do ato tiveram como fim único ou determinante evitar a tributação que seria devida em caso de negócio ou ato de substância económica equivalente”.

No tocante ao elemento normativo, o mesmo respeita à reprovação normativo-sistemática da estrutura.
“Entende-se por elemento normativo o requisito pelo qual se avalia se a aplicação de uma CGAA a uma estrutura de planeamento fiscal cumpre o seu propósito de combate à fraude à lei fiscal (…). [T]rata-se de indagar se o negócio(s) praticado(s) merece um juízo de reprovação pelo Ordenamento Fiscal".(9)


Cabe à AT, nos casos de aplicação da CGAA, demostrar, no procedimento, a reunião de todos estes requisitos de aplicação.

Apliquemos estes conceitos ao caso dos autos.

In casu, estamos perante uma correção relativa ao exercício de 2004, motivada pelo facto de a AT ter considerado que “os lucros distribuídos pela F. à J., constituem a prática de um acto com a intenção de obter rendimentos isentos de tributação, através de um acto jurídico formalmente lícito, que de outra forma, mais concretamente sob a forma de juros obtidos, estariam sujeitos a efectiva tributação”.

Atento o relatório de inspeção tributária (RIT), verifica-se que a AT considerou estarem reunidos todos os requisitos de aplicação da CGAA, com base, em síntese, no seguinte:

1. O elemento meio encontra-se previsto nos factos descritos, uma vez que a opção escolhida pelo contribuinte, recebimento de lucros em vez de juros, teve como objecto a obtenção de uma vantagem fiscal. De facto, ao distorcer a operação, tal como se demonstrou durante o presente relatório, através da utilização artificiosa de uma empresa (F.) na referida operação e através do consequente tratamento, indevido, dos proveitos inerentes à operação como lucros distribuídos, a J., consegue anular a carga fiscal a que a operação em causa, em condições normais estaria sujeita. (…)

2. O elemento resultado encontra-se presente quando “…se comprove a característica especial da equivalência de resultados não fiscais, a que não corresponde uma equivalente oneração tributária", verificando-se tal equivalência quando os actos praticados possam ser substituídos nos efeitos pelos actos normais tributados. Ora tal sucede no caso presente, conforme foi demonstrado nas alíneas b), c), d) e e) do ponto 3.2.2, a J. poderia realizar a operação sem a F., obtendo os mesmos rendimentos económicos.

3. O elemento intelectual, ou seja a necessidade de que “…as escolhas e formas adoptadas pelo contribuinte sejam fiscalmente dirigidas e que aquele (resultado fiscal) prevaleça sobre este (resultado não fiscal)", encontra-se demonstrada ao longo do relatório no qual ficou evidenciado que o contribuinte atribuiu às formas adoptadas um predominante fim fiscal - ver ponto 3.2 -, em que se provou que os lucros recebidos na esfera da J. se consubstanciam de facto como remuneração do capital aplicado por esta empresa, e consequentemente como juros, conforme se constata pelos Anexos VI a XVII.

4. O elemento normativo, ou seja, a existência de "...uma reprovação de um certo resultado obtido ou pretendido, quando confrontado com a intenção ou espírito da lei, do Código do Imposto em causam…”. Tal reprovação existe, pois com estas operações, o sujeito passivo procura evitar que sejam tributadas situações que a lei fiscal visa tributar, como é o caso dos juros. Acresce que o sujeito passivo procura beneficiar de uma vantagem fiscal de dedução dos rendimentos obtidos resultantes de lucros distribuídos, não estando seguramente no espírito do legislador a utilização deste mecanismo em situações criadas com intuito de utilizar abusivamente este normativo, facto conseguido, tal como se demonstra no presente relatório, através da transformação de juros em lucros distribuídos.

O contorno da lei permitiu ao contribuinte atingir efeitos económicos equivalentes sem ser tributado, prejudicando apenas uma terceira pessoa - o Estado.

Na realidade o que se verificou foi unicamente uma poupança fiscal tendo a Administração Tributária provado a inexistência de qualquer racionalidade económica na constituição e intervenção da empresa F. em toda a operação descrita, que não a referida poupança fiscal, com a totalidade dos benefícios económicos a decorrer para o Sujeito Passivo.

Os caminhos escolhidos pelo Sujeito Passivo para obter os resultados pretendidos não são suportados por qualquer razão económica válida, mas apenas a busca de vantagens fiscais, pelo que se efectivou aqui a reposição da verdadeira situação e a tributação de acordo com as normas que devem ser aplicáveis.

O Tribunal a quo não acolheu este entendimento da AT, considerando que nenhum dos pressupostos de aplicação da CGAA se verificava.

Antes de mais, vejamos a factualidade pertinente in casu.

Assim:

a) A Impugnante é uma SGPS;

b) Detém 99,99% do capital da H. – S., Lda (doravante H.), com sede na Zona Franca da Madeira (ZFM), sociedade que centralizava os meios financeiros destinados a projetos de expansão no exterior, designadamente Brasil e Polónia;

c) A sociedade F.O. Limited (doravante F.O.) tem sede nas Ilhas Channel, regida pelas leis de Jersey, e não integra o “Grupo J.”;

d) Em 1997, a H. efetuou dois financiamentos obrigacionistas à F.O., tendo esta emitido obrigações de taxa fixa e de taxa variável;

e) Em 2001, a Impugnante adquiriu 100% do capital social da sociedade F. – S., Lda. (doravante F.), sociedade licenciada para o exercício das suas atividades na ZFM, tendo por objeto social a prestação de serviços nas áreas contabilística e económica, elaboração de estudos económicos e de análise, assim como consultadoria nas referidas áreas, a gestão da carteira de títulos próprios e a compra de imóveis para revenda;

f) Esta aquisição surge como fruto de uma reestruturação societária, visando a cisão dos ramos alimentar/retalho e indústria, devendo a F. passar a deter os investimentos que tinham em vista a internacionalização do ramo da indústria, enquanto a H. manteria os investimentos alocados à expansão internacional no ramo da distribuição;

g) Em 2001, a F. adquiriu à H. as obrigações emitidas pela F.O. e todos os direitos acessórios, incluindo os juros vencidos desde 01.01.2001, bem como sucedeu na posição daquela nos contratos de depósito efetuados;

h) A 15.06.2001, a Impugnante, a título de realização de prestações suplementares, efetuou uma transferência no montante de 207.390.189,64 Eur., para a conta da F.;

i) Na mesma data, a F. transferiu o montante de 207.389.559,26 Eur. para a conta da H.;

j) Em 22.12.2004, a F.O. procedeu ao reembolso integral dos empréstimos obrigacionistas concedidos pela F. e esta procedeu ao reembolso integral das prestações suplementares recebidas;

k) A F. recebeu da F.O., a título de juros, em 2004, 6.210.193,89 Eur.;

l) A F. distribuiu lucros à Impugnante, nos montantes de 4.374.000,00 Eur. e de 2.124.000,00 Eur., correspondentes a lucros de 2003 e a lucros antecipados de 2004.

A questão, então, que se coloca é se, face a este cenário, se pode considerar ou não reunidos os requisitos previstos no n.º 2 do art.º 38.º da LGT.

Começando pelos elementos meio e intelectual, cuja interligação é patente, como resulta de descrição que dos mesmos fizemos supra, há que aferir se se verificam ou não.

O Tribunal a quo, a este respeito, começa por sublinhar que, legalmente, a Impugnante estava impedida de conceder diretamente crédito à F.O. (não podendo, pelo mesmo motivo, ter celebrado com a H. o contrato que esta celebrou com a F.).

Com efeito, a possibilidade de a Impugnante realizar a operação sem a F. trata-se de um dos fundamentos basilares constantes do RIT, por diversos momentos aduzido, ao afirmar, designadamente, que “a J. poderia realizar a operação sem a F., obtendo os mesmos rendimentos económicos”.

Adiantemos que acompanhamos o entendimento do Tribunal a quo.

Com efeito, como já referimos, a Impugnante é uma SGPS.

Estas sociedades têm o seu regime jurídico consagrado no DL n.º 495/88, de 30 de dezembro, cujo art.º 1.º, n.º 1, define que as mesmas “têm por único objeto contratual a gestão de participações sociais de outras sociedades, como forma indireta de exercício de atividades económicas”, definindo o n.º 2 do mesmo art.º 1.º que tal exercício ocorre quando não seja feito com caráter ocasional e atinja, pelo menos, 10% do capital com direito de voto da sociedade participada (direta ou indiretamente).

O art.º 5.º do referido regime prevê um conjunto de operações consideradas vedadas às SGPS.

Assim, atendendo ao disposto no art.º 5.º, n.º 1, al. c), do DL n.º 495/88, de 30 de dezembro, é vedado às SGPS[c]onceder crédito, exceto às sociedades que sejam por ela dominadas nos termos do artigo 486.º do Código das Sociedades Comerciais ou a sociedades em que detenham participações previstas no n.º 2 do artigo 1.º e nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 3.º…”.

Portanto, daqui resulta que é vedado às SGPS conceder crédito, designadamente, às sociedades pelas mesmas não participadas.

In casu, estamos perante empréstimos obrigacionistas, concedidos inicialmente pela H. à F.O., tendo, posteriormente, a F. adquirido à H. as referidas obrigações, assumindo, pois, a posição de credora face à F.O..

Ora, não sendo a F.O. participada pela Impugnante, como resulta provado, esta última estava legalmente impedida de conceder à primeira qualquer crédito.

Logo, um dos argumentos de sustentação da fundamentação do RIT, no sentido de que seria exigido que a Impugnante tivesse optado por uma intervenção direta, basilar para efeitos da aplicação, in casu, da CGAA, é impedido pelo regime específico das SGPS, o que implica que haja aqui um erro sobre os pressupostos na análise da AT.

Veja-se que, rigorosamente, a existência deste impedimento legal não é posta em causa pela Recorrente, como decorre das conclusões do presente recurso – o que por si só ditaria o não provimento do presente recurso.

Com efeito, apenas no corpo das alegações é mencionado, sem se colocar em causa que era vedado à Impugnante conceder crédito à F.O., que seria possível, ainda assim, a Impugnante conceder tal crédito, sendo tal concessão um ato ilícito e, por isso, tributado. Ora, não pode ser defensável, de modo algum, que a alternativa a um ato lícito fiscalmente menos oneroso seja a prática de um ato ilícito fiscalmente mais oneroso. O negócio ou ato de substância económica equivalente não pode consubstanciar, pois, um negócio ilícito.

Prosseguindo.

Considera, ainda, a Recorrente que ficou amplamente infirmado nos autos que a F. exerceu uma atividade económica típica, usual e autónoma, como se de uma verdadeira sociedade comercial se tratasse, limitando-se a interpor-se nos contratos de empréstimo com a F.O., cujos juros entretanto recebidos não revertiam a favor desta enquanto ente autónomo, transferindo-os, sob a forma de dividendos, para a Impugnante, funcionando como um mero recetáculo de juros.

Vejamos.

Entendemos que, neste caso, não é possível apreciar o alegado sem ter em conta o contexto que presidiu à aquisição da F. e, bem assim, em que circunstâncias a mesma se tornou credora da F.O..

Com efeito, como resultou nestes autos provado e não foi impugnado pela Recorrente, num momento inicial, a H., com sede na ZFM, centralizava os meios financeiros destinados a projetos de expansão do grupo no estrangeiro. Este circunstancialismo nunca foi posto em causa.

Foi neste contexto que a H. celebrou o contrato referido em E) do probatório, o que também nunca foi posto em causa.

Ficou ainda provado que, visando o grupo cindir, de um lado, o ramo distribuição alimentar/retalho e, de outro, o ramo indústria, adquiriu a F., à qual foram alocados parte dos investimentos detidos pela H.. Esta sociedade dedicar-se-ia à internacionalização do ramo indústria e a H. ao ramo distribuição.

Ainda resultou provado que o objetivo subjacente ao facto de o grupo ter optado por sociedades com sede na ZFM, enquanto veículos para investimento no estrangeiro, foi o de amortecer o risco do investimento, sem contaminar diretamente a contabilidade do grupo, e permitir uma maior liberdade de circulação de capitais.

Ficou finalmente provado que as perspetivas de internacionalização do ramo indústria não se vieram a concretizar, por se terem frustrado, a montante, operações de aquisição de determinadas sociedades em Portugal (v.g. C. e D.).

Todo este contexto, que resultou provado e não foi impugnado, não foi considerado pela AT em sede inspetiva e nele reside em grande parte a motivação inerente à posição do Tribunal a quo, que acompanhamos.

Assim, para além de não ter sido considerado o específico regime das SGPS, que impedia a Impugnante de fazer empréstimos a não participadas, in casu parece-nos adicionalmente relevante todo o contexto a que fizemos referência e que resultou provado.

Efetivamente, como referimos, o empréstimo obrigacionista em causa surgiu no seio do grupo em 1997, com a intervenção da H. (sociedade participada pela Impugnante e sedeada na ZFM). Esta específica operação nunca foi posta em causa nem sequer analisada especificamente.

Ou seja, como refere o Tribunal a quo, a finalidade exclusiva ou principal na aquisição da F., referida pela AT, carece de sustentação.

Com efeito, a AT defende que “[a] utilização da F. no referido contrato de empréstimo, teve um único, claro e inequívoco objectivo: a eliminação da carga fiscal sobre os respectivos juros, traduzida, na esfera da sociedade J., numa redução significativa da base tributável a considerar nos exercícios de 2001 a 2004”.

No entanto, nada no RIT é referido sobre a circunstância de, caso não tivesse sido adquirida a F., o resultado a nível fiscal, do ponto de vista da Impugnante, ser exatamente o mesmo.

Concretizando.

Como referimos, a H. estava, também ela, sedeada na ZFM. Assim, mesmo que não tivesse sido adquirida pela Impugnante a F., o tratamento da operação não seria diferente: seriam pagos juros à H. e esta distribuiria dividendos à Impugnante [veja-se que ficou provado que “[é] política de gestão do Grupo J. que, sempre que haja resultado positivo (lucro, excedente) nas participadas, será para distribuir aos accionistas, sendo canalizados os fundos até à sociedade cúpula – a Holding –, que faz a gestão das necessidades financeiras das sociedades participadas, de forma consolidada, distribuindo dividendos aos accionistas (particulares e outros), e redistribuindo o investimento de acordo com as áreas prioritárias e as decisões de investimento” – facto GG)]. Daí que consideremos não ser a situação dos autos equivalente à tratada no Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 14.02.2012 (Processo: 05104/11), referido pela Recorrente e, acrescentamos, distinta também da situação subjacente ao Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 15.02.2011 (Processo: 04255/10), desde logo por não existir este contexto factual consubstanciado no facto de o resultado, do ponto de vista da Impugnante, ser o mesmo, quer a F. tivesse sido adquirida quer não.

Assim, não se demonstra que a interposição da F. tenha visado obter qualquer vantagem fiscal. A utilização da F. em nada se distingue da da H., sendo que qualquer negócio efetuado pela H. não foi, a montante, posto em causa nem foram trazidos ao procedimento quaisquer elementos que pudessem estender a cadeia de atos ou negócios jurídicos desconsiderados fiscalmente à própria atividade da H..

Ou seja, para que a posição da AT estivesse sustentada, deveria a mesma ter ido mais longe na sua apreciação, abarcando e analisando nos termos legalmente exigidos a relação entre a F.O. e o Grupo desde o início, ou seja, desde, pelo menos, o contrato mencionado em E) do probatório. O que não fez, dado que a menção a esta relação entre a H. e a F.O. é apenas focada a título de antecedente e de modo algum posta em causa ou sequer analisada.

Por outro lado, como referimos, ficou provada a motivação empresarial (internacionalização do grupo no ramo indústria) que esteve subjacente à aquisição da F. e que conduziu a que, ato imediato, esta celebrasse com a H. o contrato mencionado em J) do probatório.

Ficou ainda provado que tal motivação não teve continuidade, na medida em que houve negócios nacionais, ao nível do ramo indústria, que não se concretizaram.

Daí que, como refere o Tribunal a quo, estejamos perante razões que “conferem racionalidade e substância económica à sua existência, excluindo definitivamente a premissa em que assenta todo o raciocínio da AT para aplicação da cláusula anti-abuso e consequentes correcções à matéria tributável”.
Acrescente-se que o facto de as sociedades estarem sedeadas na ZFM não pode, per se, conduzir à conclusão de que a sua utilização é abusiva.(10)

A autorização para a criação da ZFM resulta do DL n.º 500/80, de 20 de outubro, tendo, ao longo dos anos, vindo a adotar diferentes caraterísticas.(11)

O regime fiscal da ZFM, constante, então, do art.º 33.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), consagrava uma isenção de IRS ou IRC às entidades aí instaladas, relativamente a determinados rendimentos discriminados nas diversas alíneas do seu n.º 1, sendo também isenta de tributação a distribuição de dividendos.

In casu, quer a H. quer a F. estavam sedeadas na ZFM, estando abrangidas pelo disposto na al. h) do n.º 1 do mencionado art.º 33.º do EBF, que abarca “as restantes entidades não mencionadas nas alíneas anteriores, relativamente aos rendimentos derivados das suas atividades compreendidas no âmbito institucional da respetiva zona franca desde que, em ambos os casos, respeitem as operações realizadas com entidades instaladas nas zonas francas ou com não residentes no território português”.

É de salientar que durante vários anos este regime continha algumas caraterísticas, designadamente em termos de criação de postos de trabalho e de aquisição de ativos fixos corpóreos ou incorpóreos, que não são in casu despiciendas.
Assim, apenas com o regime aplicável às entidades licenciadas na ZFM a partir de anos subsequentes se passou a exigir a criação de um número mínimo postos de trabalho, havendo limitações ao benefício a conceder em função do número de postos de trabalho criados (cfr. o, entretanto revogado, art.º 35.º do EBF e os atuais art.ºs 36.º e 36.º-A do EBF). Idêntica exigência ocorre em relação à aquisição de ativos fixos corpóreos ou incorpóreos. Como se refere no preâmbulo do DL n.º 163/2003, de 24 de julho, “[r]elativamente às entidades devidamente licenciadas a partir de 1 de Janeiro de 2003 e até 31 de Dezembro de 2006 (…) condiciona-se a admissão ao regime em função do contributo das referidas entidades para a criação de postos de trabalho e para a diversificação e modernização da Região e limita-se a concessão do benefício através da aplicação de plafonds máximos à matéria colectável objecto do benefício fiscal em sede do imposto sobre o rendimento das pessoas colectivas”.

Ou seja, à época, o próprio legislador não condicionou a instalação de sociedades na ZFM à criação de postos de trabalho ou à aquisição de ativos fixos corpóreos ou incorpóreos. Aliás, rigorosamente o regime da ZFM era muito parco, à época, em termos de exigências a satisfazer para a instalação de empresas – o que motivou, aliás, observações, quer das instituições europeias, quer ao nível da OCDE, o que veio a dar origem às maiores exigências ulteriormente consagradas na lei.

Este aspeto releva, na medida em que um dos argumentos aventados pela AT tem a ver com a inexistência de meios físicos na sede (inexistência de valores registados nas contas 42 - ‘Imobilizações Corpóreas’ e 44 - 'Imobilizações em Curso') e com a ausência de contratação ou subcontratação de funcionários ou empresas especializadas na área de Recursos Humanos, por parte da F..

Assim, o provado em HH), aliado ao facto de, à época, o próprio legislador ter consagrado um regime que não tornava obrigatória quer a criação de postos de trabalho, quer a aquisição de ativos fixos corpóreos e incorpóreos, permite-nos concluir que a atividade da F., ainda que se tenha concluído que era limitada em termos de abrangência [o que encontra resposta em FF) do probatório, na medida em que ficou provado que fatores exógenos ditaram que as perspetivas de internacionalização do ramo indústria não se tenham vindo a concretizar], existia e era efetivada por recurso aos meios disponibilizados pelo grupo – uma vez que estamos perante sociedade de índole não operacional. Isto justifica, como refere o Tribunal a quo, por que motivo os gestores e a técnica de contas da F. eram remunerados pela Impugnante a título de categoria A. e por que motivo havia pessoas comuns a várias sociedades do grupo a intervir.

Ademais, esta circunstância, isoladamente, não é suficiente para suportar a posição da AT, pelos motivos que já deixamos explanados supra.

Finalmente, refira-se que a AT sustenta que a verdadeira entidade decisora na gestão de operações de financiamento é a Impugnante, mas fá-lo de forma meramente conclusiva. Funda-se na coincidência de datas entre a primeira prestação suplementar e a tomada de posição assumida pela F.. Ora, se a aquisição da F. teve inerente a cisão entre os ramos indústria e distribuição, sob a perspetiva da internacionalização, passando a caber à F. o papel de centralizar os meios financeiros antes centralizados pela H., relativos ao ramo indústria, não se vê óbice a que seja um sócio da F. a realizar prestações suplementares (como poderia, por exemplo, ter feito um aumento de capital) que permitiram a concretização do negócio. Daqui não se conclui que tenha sido a Impugnante a entidade decisora.

Face a este contexto, consideramos, com o Tribunal a quo, que:

a) Não ficou provado o elemento meio, dado não ter ficado demonstrada uma utilização artificial e abusiva da F.;

b) Não ficou provado o elemento resultado, uma vez que o pressuposto de que parte a AT (o de a Impugnante poder conceder diretamente o empréstimo à F.O.) encontra expressa inibição no regime das SGPS, o que não é sequer posto em causa pela Recorrente;

c) Não ficou provado o elemento intelectual, porquanto ficou demonstrado que a aquisição da F. e, bem assim, a celebração do contrato referido em J) do probatório, se inseriram na estratégia de internacionalização do grupo, limitando-se, no fundo, com a aquisição da F., a haver uma cisão entre os ramos distribuição e indústria. Ademais, o contrato mencionado em E) do probatório nunca foi posto em causa e, caso tivesse sido a H. a receber os juros e a pagar dividendos à Impugnante, o resultado fiscal seria o mesmo. Logo, não ficou demonstrado que o fim fosse predominante fiscal;

d) Não se verifica o elemento normativo, porquanto, face a todo o contexto demonstrado, não se pode concluir no sentido de existir uma reprovação normativo-sistemática da estrutura.

Face ao exposto, não assiste razão à Recorrente.

Nos termos do art.º 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais (RCP), “[n]as causas de valor superior a (euro) 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento”.

Como referido no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 07.05.2014 (Processo: 01953/13): “A norma constante do nº7 do art. 6º do RCP deve ser interpretada em termos de ao juiz, ser lícito, mesmo a título oficioso, dispensar o pagamento, quer da totalidade, quer de uma fracção ou percentagem do remanescente da taxa de justiça devida a final, pelo facto de o valor da causa exceder o patamar de €275.000, consoante o resultado da ponderação das especificidades da situação concreta (utilidade económica da causa, complexidade do processado e comportamento das partes), iluminada pelos princípios da proporcionalidade e da igualdade” (sublinhado nosso).

Ora, considera-se que o valor de taxa de justiça devido, calculado nos termos da tabela I.b., do RCP, é excessivo. Assim, não obstante se entender que, face à complexidade das questões envolvidas e à tramitação dos autos, não deve haver dispensa total do pagamento da taxa de justiça, na parte que exceda os 275.000,00 Eur., entende-se ser adequado e proporcional, face às caraterísticas concretas dos autos e à atuação das partes, dispensar o pagamento da taxa de justiça, na parte que exceda 350.000,00 Eur.

IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em conferência na 2.ª Subsecção de Contencioso Tributário do Tribunal Central Administrativo Sul:

a) Negar provimento ao recurso;

b) Custas pela Recorrente, com dispensa de pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte em que exceda os 350.000,00 Eur.;

c) Registe e notifique.


Lisboa, 25 de novembro de 2021

(Tânia Meireles da Cunha)

(Susana Barreto)

(Patrícia Manuel Pires)













1)Saldanha Sanches, Os limites do planeamento fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2006, p. 177.
2)Gustavo Lopes Courinha, A Cláusula Geral Anti-abuso no Direito Tributário, Reimpressão, Almedina, Coimbra, 2009, p. 165.
3) Gustavo Lopes Courinha, A Cláusula Geral Anti-abuso no Direito Tributário, cit., pp. 165 e 166.
4) Gustavo Lopes Courinha, A Cláusula Geral Anti-abuso no Direito Tributário, cit., pp. 167 e 168.
5) V. os Acórdãos do Tribunal Central Administrativo Sul, de 15.02.2011 (Processo: 04255/10) e de 30.09.2020 (Processo: 2925/04.5BELSB), e os do Tribunal Central Administrativo Norte, de 28.09.2017 (Processo: 01188/11.0BEPRT) e de 18.10.2018 (Processo: 00917/13.3BECBR).
6) Gustavo Lopes Courinha, A Cláusula Geral Anti-abuso no Direito Tributário, cit., pp. 171 e ss.
7) Gustavo Lopes Courinha, A Cláusula Geral Anti-abuso no Direito Tributário, cit., p. 172.
8) Gustavo Lopes Courinha, A Cláusula Geral Anti-abuso no Direito Tributário, cit., p. 179.
9) Gustavo Lopes Courinha, «A Cláusula Geral Antiabuso no CAAD: a insustentabilidade de uma jurisprudência contraditória - comentário às decisões dos processos 47/2013, 51/2014 e 131/2014», Desafios Tributários, Vida Económica, Lisboa, 2015, p. 99.
10) Cfr., a este respeito, o Acórdão deste TCAS, de 30.09.2020 (Processo: 2925/04.5BELSB).
11) Cfr. Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional, 2.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2009, pp. 563 e ss.
12) Cfr. Alberto Xavier, ob. cit., pp. 590 a 594.