Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:03804/00
Secção:Contencioso Tributário- 1.º Juízo Liquidatário do TCA- Sul
Data do Acordão:01/13/2004
Relator:Francisco António Pedrosa de Areal Rothes
Descritores:IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
IMPUGNAÇÃO DO IMPOSTO E DOS JUROS COMPENSATÓRIOS
IMPUGNAÇÃO AUTÓNOMA DOS JUROS COMPENSATÓRIOS
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
CASO JULGADO
Sumário:I - Liquidado imposto e respectivos juros compensatórios, a impugnação autónoma destes últimos só é possível se o contribuinte, aceitando a liquidação do imposto, pretender atacar a liquidação dos juros compensatórios com fundamento exclusivo em vício ou ilegalidade própria desta liquidação.
II - Os actos tributários carecem de fundamentação, que, desde logo, tem de traduzir-se numa declaração formal, externa ou explícita, ou seja, numa manifestação (declaração) exterior consubstanciada num discurso expresso pelo autor do acto num texto e que dê a conhecer ao seu destinatário, pressuposto este como um destinatário normal ou razoável colocado perante as circunstâncias concretas, a motivação funcional do acto, os motivos por que se decidiu num determinado sentido e não em qualquer outro, permitindo àquele optar conscientemente entre a aceitação da legalidade do acto ou a sua impugnação.
III - A fundamentação de uma liquidação de juros compensatórios deve dar a conhecer, no plano factual, o montante de imposto sobre o qual incidem os juros, a taxa ou taxas aplicáveis e o período da sua contagem e, no plano jurídico, a norma em que se baseia.
IV- Se o contribuinte impugnou separadamente as liquidações do imposto e dos juros compensatórios e nesta última impugnação (com excepção do vício de falta de fundamentação, que foi julgado improcedente) se limitou a reproduzir a alegação que aduziu na impugnação do acto de liquidação do imposto, a improcedência desta acarreta, sem mais, a improcedência da impugnação judicial dos juros compensatórios, como consequência da força do caso julgado.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:1. RELATÓRIO

1.1 A sociedade denominada “IRMÃOS …, LDA.” (adiante Impugnante, Contribuinte ou Recorrente), recorreu para o Supremo Tribunal Administrativo (STA) da sentença proferida no processo acima identificado e que julgou improcedente a impugnação por ela deduzida contra a liquidação de juros compensatórios, no montante de esc. 2.479.119$00, efectuada na sequência da liquidação de IVA referente ao 1.º trimestre do ano de 1990.

1.2 Na impugnação, a Contribuinte, reportando-se sempre à liquidação de IVA sobre a qual foram liquidados os juros compensatórios, invocou como causas de pedir do pedido de anulação do acto impugnado:

- a inconstitucionalidade das normas que permitem a determinação da matéria tributável por métodos indirectos;
- a falta de verificação dos requisitos que permitem o recurso aos métodos indiciários na fixação da matéria tributável;
- a falta de fundamentação da decisão de fixação da matéria tributável;
- a caducidade do direito à liquidação do imposto.

Relativamente à liquidação de juros compensatórios, a Impugnante limitou-se a invocar a que «não se sabe como se chegou ao referido montante de juros compensatórios, que é sempre manifestamente exagerado, e a sua repartição trimestral (1)

1.3 Na sentença recorrida considerou-se, em síntese, e relativamente à liquidação de IVA sobre a qual foram liquidados os juros compensatórios:

- que a invocada inconstitucionalidade das normas que permitem o recurso aos métodos indiciários «encontra-se [...] prejudicada, uma vez que não foram aplicadas para a determinação do imposto em causa nestes autos»;
- que a Impugnante confunde a falta de fundamentação com a falta de comunicação dos fundamentos, sendo que, enquanto a primeira constitui vício do acto, susceptível de determinar a sua anulação, a segunda é uma «mera irregularidade sanável, que não inquina a validade do acto»; em todo o caso, por um lado, o acto de fixação do imposto está devidamente fundamentado por remissão para o relatório dos Serviços de Fiscalização, relatório do qual consta que «a Impugnante deduziu imposto (de montante devidamente discriminado) relativo a operações simuladas e mencionado em documentos sem os requisitos legais, especificando-se, no ponto 5-1-2, as disposições legais violadas e os documentos que serviram de suporte a tais deduções, cujas cópias fazem parte do relatório» e, por outro lado, foi-lhe entregue cópia desse relatório;
- que não se verifica a falta dos requisitos para a fixação da matéria tributável por métodos indiciários porque «não houve recurso aos métodos indiciários»;
- que o termo do prazo de caducidade do direito à liquidação só ocorreria em 32 de Dezembro de 1995 e a Impugnante foi notificada da liquidação antes dessa data, motivo por que não se verifica a invocada caducidade do direito à liquidação.

Quanto à invocada falta de fundamentação da liquidação dos juros compensatórios, ficou dito na sentença recorrida: «consta na nota de liquidação que também lhe foi entregue, o período a que respeita a liquidação, o n.º de dias em causa e a taxa de juros aplicada».

1.4 Inconformada com a sentença, a Impugnante dele recorreu para o STA e o recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.

1.5 A Recorrente alegou e formulou as seguintes conclusões:

«1ª- A liquidação dos presentes autos tem por base a determinação da matéria colectável pelos métodos indiciários.

2a- Em conformidade com o disposto na al. d) do nº 1 do artigo 51º do CIRC e 82º a 84º do CIVA, a determinação da matéria colectável fundou-se pretensamente em inexactidões e irregularidades na contabilização das operações da empresa e indícios de que a contabilidade da impugnante não reflectia a sua exacta situação patrimonial e o resultado efectivamente obtido.

3a- O acto tributário não vem fundamentado, nem de facto, nem de direito, sendo o relatório dos serviços de fiscalização, jamais aceite pela impugnante como exacto e verdadeiro, uma mera informação/proposta, que não contém em si a fundamentação do acto tributário.

4a- Além disso, todo o acto tributário deve ser fundamentado pelo seu autor, podendo a fundamentação consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas, que, neste caso, é parte integrante dele.

5ª- Foi autor do acto tributário o Sr. Director de Serviços, que não o fundamentou, nem declarou concordar com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas.

6a- Porém, para a prática desse acto era competente, nos termos do artigo 82º do CIVA, não ele, mas o Sr. Chefe da Repartição de Finanças de Cinfães.

7a- Se fosse de considerar – e não é – que a fundamentação do acto tributário consta do relatório dos serviços de fiscalização, certo é que a administração fiscal não deu conhecimento dela à impugnante, como devia, quando a notificou do acto tributário.

8a- A impugnante não entende que operações levou a efeito a administração fiscal para encontrar o montante de juros compensatórios ora impugnado, em face designadamente do ponto 6.2.2.1. do referido relatório, que apresenta um valor de correcção 16.910.483$00, que foi notificado à impugnante em 07 de Julho de 1995.

9ª- Dada a determinação da matéria colectável com recurso aos métodos indiciários, o Tribunal recorrido ao confirmar o acto tributário violou, por aplicação que fez dos artigos 51º e 52º do CIRC e 82º a 89º do CIVA, o artigo 104º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, sendo, assim, tais normas inconstitucionais. Se, porém, outro for o entendimento, o acto tributário é anulável, quer porque se não encontra fundamentado, nem de facto, nem de direito, quer porque foi praticado por órgão sem competência para a sua prática, preterindo a competência de outro órgão, tendo o Tribunal recorrido violado, no primeiro caso, os artigos 21º do C. P. Tributário e 123º e 15º do C. P. Administrativo, e no segundo o artigo 82º do CIVA. Mas se, ainda assim, se considerasse que o acto tributário está fundamentado, de igual modo ele é anulável por não ter sido a sua fundamentação notificada à impugnante, violando a sentença recorrida o disposto nos artigos 21º, nº 2 do C. P. Tributário e 66º do C. P. Administrativo. Em qualquer destas duas últimas situações, o tribunal recorrido violou o princípio da legalidade consagrado no artigo 3º, nº 2 da C. R. Portuguesa.

nestes termos e nos melhores de direito, que mui doutamente serão supridos, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida:

a) Declarar-se que a administração fiscal recorreu aos métodos indiciários na determinação da matéria colectável, por aplicação dos artigos 51º e 52º do CIRC e 82º a do CIVA, que são inconstitucionais por violarem o disposto no nº 2 do artigo 104º da C. R. Portuguesa.

E se assim se não entender,

b) Anular-se o acto tributário por se encontrar viciado de anulabilidade, dada a inobservância do disposto nos artigos 21º do C.P. Tributário, 123º, 125º e 66º do C. P. Administrativo e, sendo, por virtude disso, violado também o artigo 3º, nº 2 da C. R. Portuguesa».

Com as alegações juntou um documento: cópia do ofício por que foi notificada da fixação do lucro tributável para efeitos de IRC do ano de 1990.

1.6 A Fazenda Pública apresentou contra-alegações no sentido da improcedência do recurso.

Para tanto, depois de enunciar os fundamentos por que a Recorrente discorda da sentença recorrida, teceu os seguintes considerandos:

« Não tem razão a recorrente:

- Desde logo, a insistência da recorrente na ocorrência de determinação da matéria colectável com recurso a métodos indiciários colide com a matéria de facto dada como provada na douta sentença recorrida.

- Com efeito, a impugnante demonstra e confunde, no seu articulado, a liquidação de IVA com fixação de matéria colectável para efeitos do IRC, aproveitando dessa aglutinação o recurso aos métodos indiciários utilizados no apuramento da matéria colectável para efeitos do IRC.

- E o mesmo decorre do documento ora junto pela recorrente com as suas alegações.

- Aliás, a recorrente, tanto se conformou com a qualificação de liquidação com recurso a correcções técnicas que usou do meio de impugnação judicial, referido como meio processual ao seu dispor, na notificação de fls. 8 e não usou a via da reclamação para a Comissão de Revisão.

- Quanto à alegada falta de fundamentação, como bem julgou a douta sentença recorrida, a fundamentação do acto impugnado é a que consta do relatório e do despacho do Director de Finanças que recaiu sobre o mesmo relatório, ordenando as correcções do IVA em causa, não tendo aplicação o artigo 52º do CIRC por não ter havido recurso aos métodos indiciários».

1.7 O STA declarou-se incompetente em razão da hierarquia para conhecer o presente recurso, indicando como tribunal competente para o efeito este Tribunal Central Administrativo (TCA), ao qual o processo foi remetido, a requerimento da Recorrente.

1.8 Anuindo à promoção do Procurador-Geral Adjunto junto deste TCA, solicitou-se informação sobre eventual impugnação da liquidação do imposto sobre o qual foram liquidados os juros compensatórios impugnados no processo em que foi proferida a sentença recorrida e verificou-se que estava pendente neste TCA o recurso interposto da decisão proferida no processo de impugnação da liquidação do IVA.

Considerou-se então que essa impugnação constituía causa prejudicial relativamente à presente impugnação, motivo por que se ordenou a suspensão da instância, ao abrigo do disposto nos arts. 276.º, n.º 1, alínea c), e 279.º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi da alínea f) do art. 2.º do Código de Processo Tributário (CPT) (2).

1.9 Junta aos autos cópia do acórdão proferido pelo STA naquele processo, com nota de trânsito em julgado, declarou-se cessada a suspensão da instância.

1.10 Colheram-se os vistos legais.

1.11 As questões que cumpre apreciar e decidir são as seguintes:

a sentença fez correcto julgamento ao considerar que o acto de liquidação de juros compensatórios estava fundamentado ?
feita uma liquidação de imposto e de juros compensatórios, se a Contribuinte vem impugnar autonomamente os juros compensatórios com os mesmos fundamentos que utilizou para impugnar judicialmente a liquidação do imposto, qual o destino da impugnação dos juros perante a improcedência da impugnação judicial da liquidação do imposto ?


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2. FUNDAMENTAÇÃO

2.1 DE FACTO

2.1.1 Na sentença recorrida o julgamento da matéria de facto foi efectuado nos seguintes termos:

«

1- A Impugnante foi notificada em 24 de Julho de 1995 da liquidação impugnada – documento de fls. 8.
2- Nessa notificação constava que a fundamentação se encontra desenvolvida na Nota de Liquidação enviada para a Repartição de Finanças – documento de fls. 8.
3- Consta ainda como motivo da liquidação o seguinte: “Juros compensatórios calculados nos termos do art.º 89º do Código do IVA. A Nota de liquidação onde constam os respectivos fundamentos pode ser solicitada na Repartição de Finanças competente” – documento de fls. 8.
4- Foi entregue à Impugnante a Nota de liquidação, a seu pedido.
5- Dá-se por reproduzido o teor da Nota de Liquidação de fls. 9.
6- A impugnação foi instaurada em 3-10-95 – fls. 2»

2.1.2 Com interesse para a decisão e ao abrigo do disposto no art. 712.º do CPC, consideramos ainda provados os seguintes factos, todos de conhecimento oficioso, uns porque se reportam à fundamentação formal do acto impugnado (3) e, outros, porque resultam dos elementos probatórios juntos aos autos e expressamente referidos, entre parêntesis, a seguir a cada uma das alíneas:

7- A liquidação dita em a) refere-se a juros compensatórios do 1.º trimestre do ano de 1990 (cfr. a carta remetida pelo Serviço de Administração do IVA à Contribuinte para notificá-la da liquidação, a fls. 8);
8- Tais juros, nos termos da respectiva nota de liquidação, foram «Liquidados nos termos do nº 2 do artigo 89º do Código do IVA e sobre 2.093.463$00», sendo o número de dias contados 1801, a taxa de 2% ao mês e o total liquidado de esc. 2.479.119$00 (cfr. o quadro com a epígrafe «fundamentação» na nota de liquidação com cópia a fls. 9);
9- A Contribuinte impugnou a liquidação do imposto a que se reportam os juros compensatórios referidos em a) (cfr. a informação prestada pela Impugnante a fls. 64, dando resposta ao solicitado por este TCA);
10- Essa impugnação foi julgada improcedente por acórdão da Secção do Contencioso Tributário do STA proferido em 2 de Abril de 2003, já transitado em julgado, que confirmou o acórdão deste TCA de 11 de Junho de 2002 que, por sua vez, confirmara a sentença do Tribunal Tributário de 1.ª instância de Viseu de 14 de Abril de 1999 (cfr. cópias do referido acórdão do STA, de fls. 81 a 86, e da sentença, de fls. 66 a 73).


*

2.2 DE DIREITO

2.2.1 AS QUESTÕES A APRECIAR E DECIDIR

Como resulta da factualidade dada como assente, a presente impugnação diz respeito apenas aos juros compensatórios, do montante de 2.479.119$00, calculados nos termos do art. 89.º do CIVA, por a AT ter considerado haver atraso na liquidação e entrega do IVA relativo ao primeiro trimestre do ano de 1990, do montante de esc. 2.093.463$00.

A Contribuinte impugnou judicialmente a liquidação do imposto e também, de forma autónoma e através da petição inicial que deu origem aos presentes autos, a liquidação dos juros compensatórios.

No entanto, a quase totalidade dos vícios que a Impugnante invocou nesta impugnação judicial não se reportam ao acto impugnado – a liquidação de juros compensatórios –, mas antes à liquidação do IVA sobre o qual foram calculados os juros. Na verdade, na petição inicial a Impugnante ataca, quase exclusivamente, a liquidação do IVA, acto ao qual imputou diversos vícios, que ficaram descritos supra em 1.2. O único vício que a Impugnante imputou à liquidação dos juros compensatórios foi a falta de fundamentação, o que fez de forma singela, num único artigo da petição inicial: «não se sabe como se chegou ao referido montante de juros compensatórios, que é sempre manifestamente exagerado, e a sua repartição trimestral» (cfr. art. 34.º da petição inicial).

Na sentença recorrida, apreciou-se não só este vício de falta de fundamentação, sobre o qual ficou dito que «consta na nota de liquidação que também lhe foi entregue, o período a que respeita a liquidação, o n.º de dias em causa e a taxa de juros aplicada», como também todos os vícios imputados à liquidação de IVA, para se concluir pela sua improcedência.

No presente recurso, a Impugnante ataca a sentença, reiterando a posição assumida na petição inicial.

Quando o recurso foi recebido neste TCA, tendo-se em conta que estava também pendente no TCA recurso jurisdicional interposto pela Recorrente da sentença proferida no processo de impugnação judicial por ela deduzido contra a liquidação do IVA a que respeitam os juros compensatórios impugnados com fundamento nos mesmos vícios, ordenou-se a suspensão da instância até decisão definitiva daquela impugnação (cfr. despacho de fls. 75).

Decidida que foi definitivamente aquela impugnação judicial, pelo acórdão do STA com cópia nos autos, cumpre agora apreciar e decidir.

Assim, as questões que cumpre apreciar e decidir são as seguintes:

1.ª - saber se a sentença fez correcto julgamento ao considerar que o acto impugnado – a liquidação dos juros compensatórios – estava suficientemente fundamentado;
2.ª - qual a repercussão da improcedência da impugnação judicial da liquidação do IVA sobre a impugnação judicial dos juros compensatórios que foram liquidados sobre aquele imposto, na parte em que esta impugnação se limitou a reproduzir os fundamentos invocados naqueloutra e que respeitam apenas ao acto de liquidação do imposto.

2.2.2 DO VÍCIO DE FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA LIQUIDAÇÃO DOS JUROS COMPENSATÓRIOS

A Recorrente afirmou na petição inicial que «não se sabe como se chegou ao referido montante de juros compensatórios, que é sempre manifestamente exagerado, e a sua repartição trimestral» (cfr. art. 34.º daquele articulado), ao que a sentença recorrida respondeu que «consta na nota de liquidação que também lhe foi entregue, o período a que respeita a liquidação, o n.º de dias em causa e a taxa de juros aplicada», motivo por que concluiu que não se verificava o invocado vício de falta de fundamentação (4).

A Recorrente discorda do entendimento adoptado na sentença e insiste que «A impugnante não entende que operações levou a efeito a administração fiscal para encontrar o montante de juros compensatórios ora impugnado, em face designadamente do ponto 6.2.2.1. do referido relatório, que apresenta um valor de correcção 16.910.483$00, que foi notificado à impugnante em 07 de Julho de 1995» (cfr. conclusão 8.ª).

Vejamos.

É inquestionável que a liquidação de juros compensatórios, como acto tributário que é, está sujeita a fundamentação. Na verdade, a fundamentação é um dos elementos constitutivos do acto administrativo-tributário, acarretando a sua falta, obscuridade, contradição ou insuficiência a anulabilidade do acto (cfr. arts. 125.º e 135.º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) (5). O dever de fundamentação mereceu mesmo consagração constitucional (art. 268.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (6)(CRP)) e era também imposto pelos arts. 19.º, alínea b), 21.º, n.º 1, e 82.º do CPT, em vigor à data.

Como a doutrina e a jurisprudência têm vindo a repetir desde há muito (7), a fundamentação tem duas funções: uma de natureza endógena, decorrente dos princípios da legalidade, da justiça e da imparcialidade que se impõem a toda a actuação da Administração, e que exige que as decisões administrativas, nomeadamente os actos administrativos e tributários apareçam na ordem jurídica como conclusões de um processo lógico coerente e sensato e resultado de um exame sério e imparcial dos factos e das disposições legais a considerar em cada caso; outra de natureza exógena, externa ou garantística, que é a de permitir ao cidadão o conhecimento dos fundamentos de facto e de direito que motivaram a autoridade administrativa a decidir da forma concreta que o fez e, assim, permitir-lhe optar conscientemente entre a aceitação da decisão administrativa, aceitando a sua legalidade, ou reagir contra ela por via administrativa ou contenciosa.

É hoje também pacífico que a fundamentação «tem de traduzir-se numa declaração formal, externa ou explícita, ou dito de outro modo, revelada por uma manifestação (declaração) exterior consubstanciada em um discurso de autoria, expresso em um texto, «não bastando que resulte implicitamente da actuação administrativa», acessível ou clara, congruente e suficiente, como hoje expressamente aponta o texto constitucional e constava já antes do art. 1.º do DL n.º 256-A/77, de 17 de Junho, embora o conteúdo de uma fundamentação suficiente varie de acordo com as circunstâncias concretas, entre as quais avultam as do tipo de acto, as da participação e qual a sua extensão ou a não participação dos interessados no procedimento anterior conducente à decisão» (8).

Essencial é que o discurso contextual, expresso e externado pelo autor do acto dê a conhecer ao seu destinatário, pressuposto este como um destinatário normal ou razoável colocado perante as aludidas circunstâncias, todo o percurso de da apreensão e valoração dos pressupostos de facto e de direito que foram a sua motivação orgânica ou, como impressivamente tem vindo desde há muito a referir a jurisprudência (9), os motivos por que se decidiu num determinado sentido e não em qualquer outro.

No caso sub judice, a AT, para fundamentar a liquidação de juros compensatórios impugnada, indicou a norma legal que considerou aplicável, o montante de IVA sobre o qual incidem os juros, a taxa aplicável e o período da sua contagem (cfr. o n.º 8 dos factos provados), o que tudo se nos afigura suficiente para que a Contribuinte fique a conhecer o motivo da liquidação e lhe permite optar conscientemente entre a aceitação da legalidade do acto ou a sua impugnação (10).

Concluímos, pois, que a sentença recorrida fez correcto julgamento ao considerar que o acto impugnado não enferma de vício de forma por falta de fundamentação.

2.2.3 DOS VÍCIOS DA LIQUIDAÇÃO DE IVA A QUE RESPEITAM OS JUROS AQUI IMPUGNADOS

Como ficou já dito, o único vício próprio do acto de liquidação dos juros compensatórios invocado pela Impugnante foi a falta de fundamentação desse acto. A restante alegação da Impugnante reporta-se, toda ela, à liquidação de IVA a que respeitam os juros aqui impugnados. Ora, como é sabido, a impugnação autónoma da liquidação dos juros compensatórios só pode ter por fundamento vício próprio dessa liquidação: a falta de verificação dos pressupostos legais de que a mesma depende ou qualquer outro vício ou ilegalidade que afecte apenas a liquidação dos juros compensatórios, designadamente, como no caso, a falta de fundamentação.

Significa isto que a impugnação autónoma dos juros compensatórios pressupõe a aceitação da liquidação do imposto donde os mesmos decorrem.

A ilegalidade da liquidação de IVA não pode, pois, servir de causa de pedir ao pedido autónomo de que sejam anulados os juros compensatórios que sobre a mesma incidiram. Isto, como é óbvio, sem prejuízo de, no caso de anulação daquela liquidação, os juros compensatórios deverem ser oficiosamente anulados, por ilegalidade derivada.

Não podia, pois, nesta impugnação ter-se conhecido, como se conheceu em 1.ª instância, dos vícios próprios da liquidação do imposto a que se reportam os juros compensatórios impugnados.

Se a liquidação do imposto não tiver sido oportunamente impugnada constitui-se como caso decidido ou resolvido, não podendo questionar-se a sua legalidade no processo referente aos juros compensatórios; se foi impugnada, é nela que tem de ser feita a apreciação dos vícios dessa liquidação, não podendo voltar-se a essa discussão noutros autos sob pena de litispendência ou de violação de caso julgado.

Se, como no caso sub judice, a Contribuinte deduz impugnação contra a liquidação do imposto e, autonomamente, impugna também com os mesmos fundamentos os juros compensatórios liquidados com referência àquele imposto, verificando-se que aquela foi julgada improcedente por acórdão transitado em julgado, não há senão que julgar também a liquidação dos juros compensatórios. Assim, o impõe a força do caso julgado.

A impugnação não pode, pois, proceder.

2.2.4 CONCLUSÕES

Preparando a decisão, formulam-se as seguintes conclusões:

I - Liquidado imposto e respectivos juros compensatórios, a impugnação autónoma destes últimos só é possível se o contribuinte, aceitando a liquidação do imposto, pretender atacar a liquidação dos juros compensatórios com fundamento exclusivo em vício ou ilegalidade própria desta liquidação.
II -Os actos tributários carecem de fundamentação, que, desde logo, tem de traduzir-se numa declaração formal, externa ou explícita, ou seja, numa manifestação (declaração) exterior consubstanciada num discurso expresso pelo autor do acto num texto e que dê a conhecer ao seu destinatário, pressuposto este como um destinatário normal ou razoável colocado perante as circunstâncias concretas, a motivação funcional do acto, os motivos por que se decidiu num determinado sentido e não em qualquer outro, permitindo àquele optar conscientemente entre a aceitação da legalidade do acto ou a sua impugnação.
III -A fundamentação de uma liquidação de juros compensatórios deve dar a conhecer, no plano factual, o montante de imposto sobre o qual incidem os juros, a taxa ou taxas aplicáveis e o período da sua contagem e, no plano jurídico, a norma em que se baseia.
IV -Se o contribuinte impugnou separadamente as liquidações do imposto e dos juros compensatórios e nesta última impugnação (com excepção do vício de falta de fundamentação, que foi julgado improcedente) se limitou a reproduzir a alegação que aduziu na impugnação do acto de liquidação do imposto, a improcedência desta acarreta, sem mais, a improcedência da impugnação judicial dos juros compensatórios, como consequência da força do caso julgado


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3. DECISÃO

Face ao exposto, os juízes da Secção do Contencioso Tributário deste Tribunal Central Administrativo acordam, em conferência, em negar provimento ao recurso, mantendo com a presente fundamentação a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro UCs.


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Lisboa, 13 de Janeiro de 2004

ass) Francisco António Pedrosa de Areal Rothes
ass) João António Valente Torrão
ass) Joaquim Casimiro Gonçalves


(1) As partes entre aspas e com um tipo de letra diferente, aqui como adiante, constituem transcrições.
(2) Em vigor à data.
(3) No sentido de que no contencioso de anulação, em que se enquadra a impugnação judicial dos actos tributários, a fundamentação formal integrante do acto, enquanto elemento constitutivo do mesmo, é de conhecimento oficioso pelo tribunal que conhece de facto, vide o acórdão da 2.ª Secção do STA, de 17 de Abril de 2002, cujo texto integral está disponível no site da Direcção-Geral dos Serviços Informáticos (www.dgsi.pt).
(4) O vício de falta de fundamentação foi também alegado relativamente ao próprio acto de liquidação do IVA mas, como melhor veremos adiante, não cumpre averiguar se a sentença fez ou não correcto julgamento quanto a essa questão.
(5) Note-se que, à data, ainda não tinha entrado em vigor a Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de Dezembro, e que passou a regulamentar a fundamentação dos actos tributários.
(6) Na redacção da Lei Constitucional de 25 de Novembro de 1992, em vigor à data.
(7) Vide o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 4 de Março de 1987, proferido no processo com o n.º 24.169 e publicado no Boletim do Ministério Justiça n.º 365, págs. 426 a 437.
(8) Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 15 de Dezembro de 1999, proferido no processo com o n.º 24.143, publicado no Apêndice ao Diário da República de 30 de Setembro de 2002, págs. 4118 a 4127, sendo a citação aí feita de VIEIRA DE ANDRADE, O Dever da Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, pág. 24.
(9) Vide o acórdão de 14 de Dezembro de 1989, publicado nos Acórdãos Doutrinais, n.º 341, pág. 680.
(10) Com interesse para a questão da fundamentação da liquidação de juros compensatórios, vide os seguintes acórdãos deste TCA:
­ de 29 de Outubro de 2002, proferido no processo com o n.º 7003/02;
de 12 de Novembro de 2002., proferido no processo com o n.º 7002/02.