Acórdãos TCAS

Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul
Processo:07539/11
Secção:CA - 2.º JUÍZO
Data do Acordão:10/06/2011
Relator:COELHO DA CUNHA
Descritores:LEI DA NACIONALIDADE.
ARTIGOS 6º, 11º E 12º.
SENTIDO DA EXPRESSÃO “HAVIDOS COMO DESCENDENTES DE PORTUGUESES”.
DETENÇÃO ORIGINÁRIA DA NACIONALIDADE.
DETENÇÃO DA NACIONALIDADE POR NATURALIZAÇÃO.
Sumário:I- A Lei da Nacionalidade, nos seus artigos 11º e 12º, distingue os portugueses originários daqueles que o não são.

II- A dispensa dos requisitos vertidos nas alíneas b) e c) do nº1 do artigo 6º da Lei da Nacionalidade apenas tem aplicação aos descendentes dos que detenham originariamente a nacionalidade portuguesa, e não já aos descendentes que a adquiram posteriormente.

III- A nacionalidade portuguesa obtida por naturalização não é transmissível aos filhos já nascidos.
Aditamento:
1
Decisão Texto Integral:Acordam na Secção Administrativa do TCA -Sul

1- Relatório
A..., residente em Queluz, intentou no TAF de Sintra, contra o Ministério da Justiça, acção administrativa especial, visando a impugnação do despacho de 20.04.2009, que lhe indeferiu o pedido de aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalidade.
O Mmº Juiz do TAF de Sintra, por decisão de 23.08.2010, julgou a acção procedente, anulando o despacho impugnado e condenando o R. a conceder à Autora a nacionalidade portuguesa.
Inconformado, o Ministério da Justiça interpôs recurso jurisdicional para este TCA-Sul, em cujas alegações enunciou as conclusões seguintes:
“1.O entendimento que tem vindo a ser seguido, no âmbito da aplicação do art.° 6° n° 6 da LN, é o de que a expressão "descendentes de portugueses", para o fim em vista (dispensa de um requisito essencial de ligação permanente ao território português, pelo menos há seis anos), se encontra intrinsecamente ligada apenas àqueles que o são relativamente a ascendentes que sempre tiveram essa nacionalidade.

2. Com efeito, só a título excepcional, é que poderá ser concedida a nacionalidade portuguesa com dispensa dos requisitos da residência há pelo menos seis anos, em território português e do conhecimento da língua portuguesa, - artigo 6° n°1 da LN - hipótese consentida no n.°6 do art.°6.° da LN e no art.°24.° do RLN.

3. A excepcionalidade que há-de permitir, em cada caso concreto, a dispensa daqueles requisitos, tem de ser devidamente ponderada, no contexto do normativo supra referido que estabelece que "O Governe pode conceder a naturalização, (...) aos que foram havidos como descendentes de portugueses (...)”.

4.E foi precisamente este poder ou esta faculdade, de carácter não vinculativo, que, no caso "sub júdice", foi exercido, por se considerar não ser suficiente a nacionalidade portuguesa dos ascendentes invocados do requerente, por não deterem nacionalidade originária.

5. Pelo que a douta sentença, ao julgar ilegal a interpretação propugnada pela Administração quanto à expressão " descendentes de portugueses", no âmbito do artigo 6° n°6 da LN, não fez uma boa interpretação e aplicação do direito;

6. Pois, a interpretação sistemática da LN, leva-nos a concluir que esta interpretação é admissível, no âmbito da discricionariedade técnica da Administração, nos termos das disposições conjugadas dos art.°s 6° n.º 1 e 6 da LN; art.°9° do Código Civil e art.° s 2°, 10° e 11°, todos da LN.

7. Pelo que, não tendo sido apontado erro grosseiro ou violação de lei atendível, a decisão impugnada não é sindicável e deve manter-se na ordem jurídica, cf. Jurisprudência firmada.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida e confirmando-se a validade do despacho impugnado, como é de Justiça.”
A recorrida contra-alegou, concluindo como segue:
a) Vem o presente recurso interposto da douta Sentença proferida nos presentes autos que julgou verificado o vício de violação de lei do acto administrativo com a consequente anulação do despacho do Secretário de Estado da Justiça, proferido a 20/04/2009, que indeferiu o pedido de aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização formulado pela Recorrida, ao abrigo do disposto nos n.°s 6 e 1 da Lei da Nacionalidade, e que, consequentemente, condenou o Recorrente a conceder a nacionalidade português à Recorrida.
b) Ora, salvo o devido respeito, não tem qualquer fundamento a pretensão aduzida pelo Recorrente.
c) Se, por um lado, é facto que a presente o n°6 do art. 6.° confere à Administração um poder discricionário ou margem de livre apreciação.
d) Por outro lado, também é facto que a discricionariedade é sempre parcial e relativa, ou seja, não é total, implica necessariamente uma interpretação conforme ao espírito e letra da lei.
e) É verdade que a lei destrinça os portugueses de origem daqueles que a adquirem por naturalização, porém, uma vez concedida a nacionalidade, nenhuma discriminação poderá ser feita entre os portugueses de origem e aqueles que a adquirem por naturalização, quer por força do disposto no artigo 11.° da Lei da Nacionalidade, quer por força do disposto no artigo 268.° da C.R.P. e nos artigos 124.° e 125.° do C.P.A..
f) Nesta medida, conforme demonstra o Tribunal a quo, o Recorrente ao indeferir o pedido de aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização com fundamento no facto de considerar que a expressão "descendentes de portugueses” se encontra intrinsecamente e apenas ligada àqueles que o são relativamente a ascendentes que sempre tiveram essa nacionalidade (portugueses originários), está a criar um requisito que não é exigido pela lei.
g) Assim sendo, o acto administrativo praticado pelo Recorrente padece, pelos fundamentos indicados, de vicio de violação de lei, e que implica a sua anulação.
h) Tal como o Tribunal a quo decidiu, e bem.
i) Resultando à saciedade, face a todo o exposto que, andou bem, aliás, refira-se muito bem, a decisão Tribunal a quo.”
A Digna Magistrada do Ministério Público emitiu douto parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
X X
2.2. Fundamentação
2.1. Matéria de Facto
A sentença recorrida considerou provada a seguinte matéria de facto, com relevo para a decisão:
“1.°)
Em 21 de Janeiro de 2008, a Autora requereu que lhe fosse concedida nacionalidade portuguesa por naturalização, "ao abrigo do disposto nos n.°s 1 e 6 do artigo 6° da Lei da Nacionalidade, em articulação com o disposto no art.°22.° do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa" - cf. fls. 1 a 44 do processo instrutor (doravante designado como p.i.);
2.°)
A Autora nasceu em 29 de Dezembro de 1978, no distrito do Maputo, Moçambique - cf. doc. fls. 5 do p.i.;
3.°)
E tem nacionalidade Santomense - cf. doc. fls. 30 do p.i.;
4.°)
Conhece a língua portuguesa - facto não controvertido e fls. 35 a 37 do p.i.;
5.°)
Não tem qualquer condenação criminal - cf. fls. 31 do p.i.;
6.°)
Aos avós maternos da Autora foi concedida a nacionalidade portuguesa por despacho de 18 de Abril de 1985, ao avô, e por despacho de 3 de Maio de 1993 à avó - cf. doc. fls. 9 e 10 do p.i. e doc. 2 e 3 junto com a petição inicial;
7.°)
A Autora frequentou em Portugal o curso de Licenciatura em Arquitectura, na FAUTL, no período de 1996 a 2003 - cf. fls. 37 do p.i. e doc. 4 junto com a petição inicial;
8.°)
Realizou ainda em território nacional o estágio profissional da Ordem dos Arquitectos, no ano lectivo de 2003/2004 - cf. e doc. 4 junto com a petição inicial;
9.°)
Entre 1996 e 2004, a Autora foi portadora de título válido que a habilitava a residir em Portugal, designadamente, foi portadora de vistos de estudo - cf. fs. 11 a 27 do p. i.;
10.°)
Por despacho do Senhor Secretário de Estado da Justiça, proferido em 20 de Abril de 2009, com fundamento no Parecer n.°5320/08, da Conservatória dos Serviços Centrais de 31.03.2009, foi indeferida a pretensão da Autora - cf. doc 1 junto com a petição inicial;
11.°)
Naquele Parecer poder ler-se que "[a requerente] não é descendente de portugueses, mas sim - e já em segundo grau - de indivíduos que, posteriormente (1985, o avô e 1993, a avó) vieram a adquirir a nacionalidade portuguesa. ...a lei distingue os portugueses originários daqueles que o não são: basta atentar nos artigos 11.° e 12° da LN, para intuitivamente o apreender, já que uns são portugueses desde o nascimento e outros desde a data do registo.
...não pode a requerente ter a pretensão de que também em sede de poder discricionário - como é o caso -, não seja legítimo destrinçar a situação de uns e de outros e, correlativamente, também dos que deles descendem..." - cf. doc. 1 junto com a petição inicial cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.”
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2.2- Matéria de Direito
A Autora, ora recorrida requereu em 21.01.2008, que lhe fosse concedida a nacionalidade portuguesa por naturalização, ao abrigo do disposto nos nºs 1 e 6 do artigo 6º da Lei da Nacionalidade, em articulação com o disposto no artigo 22º do Regulamento da Nacionalidade, alegando que aos avós maternos foi concedida a nacionalidade portuguesa por despacho de 18.04.1985, ao avô, e por despacho de 03.05.1993, à avó.
Como resulta do nº11 da factualidade assente, a pretensão da recorrente foi indeferida com fundamento no Parecer nº 5320, da Conservatória dos Serviços Centrais, de 31.03.2003, segundo a qual a lei distingue os portugueses originários daqueles que o não são, como resulta dos artigos 11º e 12º, sendo uns portugueses desde a data do nascimento e ouros desde a data do registo.
Todavia, a sentença recorrida considerou que, “não havendo restrição ao exercício de direitos e deveres daqueles que adquirem a nacionalidade portuguesa, como foi o caso dos Avós da recorrida, não se vê razão, formal ou substantiva, para que essa diferenciação seja feita em relação aos efeitos que essa aquisição produz nos descendentes (sublinhado), isto muito embora o poder conferido ao R. tenha natureza discricionária”. Por esse motivo, a sentença recorrida julgou a acção procedente.
Inconformado o Ministério da Justiça veio alegar que o entendimento que tem vindo a ser seguido no âmbito de aplicação do artigo 6º nº6 da LN é o que a expressão descendentes de portugueses, para o fim em vista (dispensa de um requisito de essencial de ligação permanente ao território português, pelo menos há seis anos), se encontra intrinsecamente ligada apenas aqueles que o são relativamente a ascendentes que sempre tiveram essa nacionalidade.
E alegou ainda o Ministério da Justiça que só a titulo excepcional é que poderia ser concedida a nacionalidade portuguesa com dispensa dos requisitos de residência há pelo menos seis anos em território português e do conhecimento da língua portuguesa (cfr. artigo 6º nº1 da LN e artigo 24º do RLN).
É esta a questão a apreciar.
Começamos por observar que a proposta de indeferimento contida no Parecer nº5320 dos Serviços Centrais, supra referido, tem por fundamento o facto de a ora recorrida não ter residência legal no território português pelo período mínimo de seis anos, apenas tendo beneficiado de “vistos de estudo”, não sendo certo que a mesma possa ser considerada, para os efeitos da LN, como descendente de portugueses, já que os únicos ascendentes invocados são os seus avós maternos.
Estes, como se viu, apenas vieram a obter a nacionalidade portuguesa por via da concessão, nos termos do artigo 5º do Dec.Lei nº308-A/75, em 18.04.1985 (o avô) e em 03.05.1993 (a avó).
A sentença recorrida considerou que o nº6 do artigo 6º da Lei 2/2006 não permitia estabelecer qualquer exigência para que a dispensa nele prevista se aplicasse somente aos descendentes que detinham originariamente a nacionalidade portuguesa.
A nosso ver, erradamente.
Em primeiro lugar, a interpretação não pode cingir-se à letra da lei, como estipula o artigo 9º do Código Civil, mas ter em conta a unidade do sistema jurídico. E, no caso concreto, a Administração actua no exercício de um poder discricionário, além de que a distinção entre portugueses desde o nascimento e portugueses desde a data do registo tem fundamento legal nos artigos 11º e 12º da LN.
O artigo 11º, dispondo quanto aos Efeitos da atribuição, prescreve que “A atribuição da nacionalidade portuguesa produz efeitos desde o nascimento”, sem prejuízo da validade das relações jurídicas anteriormente estabelecidas com base em outra nacionalidade”.
Por sua vez, o artigo 12º, dispondo quanto aos “Efeitos das alterações de nacionalidade” estabelece que “Tais efeitos só se produzem a partir da data do registo dos actos ou factos de que dependem”.
A nosso ver, e ao contrário do decidido, a atribuição da nacionalidade a que se reporta o artigo 11º diz respeito à nacionalidade originária, sendo certo que, aquele que adquire a nacionalidade por naturalização apenas é considerado português a partir da data do registo da naturalização.
A isto acresce que a nacionalidade portuguesa obtida por naturalização não é transmissível aos filhos já nascidos (artigo 2º da LN), não podendo por isso a recorrida ser considerada descendente de portugueses, já que os seus avós, únicos ascendentes invocados, apenas obtiveram a nacionalidade portuguesa por via da concessão, nos termos do artigo 5º do Dec.Lei nº308-A/75,no ano de 1985, o avô, e em 1993, a avó.
E é certo que a recorrida nasceu em 29.12.1978, em Moçambique e a seus avós maternos foi concedida a nacionalidade portuguesa em 1985, pelo que não se vislumbra como poderia ser considerada descendente de portugueses (artigo 2º e 6º do probatório).
Daí que se compreenda que o Parecer supra referido tenha acentuado que “ a requerente não é descendente de portugueses, mas sim – e já em segundo grau – de indivíduos que posteriormente (1985 o avô e 1993 a avó) vieram a adquirir a nacionalidade portuguesa.
Em face do poder discricionário conferido à Administração, só a titulo excepcional poderia ser concedida a nacionalidade portuguesa com dispensa do requisito da residência há pelo menos seis anos, em território português, e do conhecimento da língua portuguesa (artigo 6º nº1 da LN e artigo 24º do RLN) caso a Administração o entendesse, mediante justificada ponderação, no caso concreto. Não tendo sido concedida a nacionalidade portuguesa, a decisão é insindicável, o que implica a revogação da sentença recorrida.
* *
4. Decisão
Em face do exposto acordam em conceder provimento ao recurso revogando a sentença recorrida e mantendo o acto de indeferimento impugnado.
Custas pela recorrida em ambas as instâncias.
Lisboa, 06/10/11

COELHO DA CUNHA
FONSECA DA PAZ
RUI PEREIRA